sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Escola não é fábrica


Embora a matéria abaixo do professor Lucas Marcelino tenha se espelhado na politica educacional da Prefeitura do Rio de Janeiro, com toda certeza é a visão de escola que prevalece nos Estados e Municípios deste Brasil a fora. Ao ler a matéria, veio-me a mente, de imediato, a música "The wall", de Pink Floyd, que apresenta uma critica à educação autoritária e sob os moldes de "linhas de produção". Tipo de educação que não precisamos. (Prof. Aluizio Moreira)

Por Lucas Marcelino

Linha de produçãoA propaganda absurda da Prefeitura do Rio de Janeiro, publicada na segunda-feira (08/12) em página inteira no Jornal O Globo, mostra da forma mais descarada possível o pensamento neoliberal para a educação. Me nego a chamar a propaganda de infeliz, como deve ter gente dizendo. O termo infeliz traz uma conotação nesses casos de uma ação frustrada realizada na tentativa de acertar, mas sabemos que a idéia passada pela imagem não é desconexa à política educacional da Prefeitura do Rio de Janeiro, mas sim a mais fiel representação do projeto de Eduardo Paes e seu secretário de educação. Pior, podemos ampliar essa representação para todo o estado do Rio de Janeiro e, ainda mais, para a grande maioria dos muncípios e estados brasileiros.

Uma política material, mas também ideológica. Vejamos.

Em Minas Gerais, junto a prefeitos e governadores, o ex-senador Aécio Neves se regozijava pelos bons resultados do estado na educação pela medição do IDEB. De fato o estado empatava de forma geral com São Paulo, Paraná, Goiás e Rio Grande do Sul, de acordo com a faixa de ensino avaliada. Mas isso demonstra uma educação de qualidade? Não!

O que é necessário para que a rede de ensino tenha uma boa avaliação no IDEB? Um alto rendimento escolar e o sucesso na “Prova Brasil”. Sucesso na Prova Brasil a gente entende, os estudantes fazem uma prova – apenas de matemática e português – de alternativas que pode ser resolvida com conhecimento ou sorte. Mas e o rendimento escolar, mede conhecimento do aluno? Não!

O rendimento escolar mede o número de aprovações, reprovações e abandonos dos estudantes. A cada vez que um estudante abandona a escola ou é reprovado, a nota do estado cai no IDEB e fica mais difícil alcançar as metas estabelecidas a cada dois anos, até 2021. No geral o Brasil ficou abaixo da meta de crescimento esperado no IDEB para os anos finais do ensino fundamental (6º a 9º anos) e no ensino médio.

Aí que entra a jogada que ficou escrachada na propaganda fluminense. A imagem de estudantes sentados em carteiras sobre uma esteira mecânica era acompanhada pela seguinte frase: “Nossa linha de produção é simples: construímos escolas, formamos cidadãos e criamos futuros”. Teria como expressar a política educacional atual melhor do que com essa imagem e frase? Devemos louvar a coragem da Prefeitura do Rio em sua honestidade de apresentar como trata a educação de forma mecanizada.

Mas voltando ao IDEB. Essa “linha de produção” tem alguns pontos principais:

1) O índice de aprovação: A tal progressão automática do Alckmin é fruto dessa visão. O estudante é aprovado mesmo com deficiências e sem cumprir todos os requisitos necessários para chegar à série seguinte. Por isso que no final do ensino médio temos estudantes se formando sem saber ler e escrever ou fazer as operações básicas de matemática e sem dominar as diversas ciências.

Em São Paulo, onde o modelo neoliberal do PSDB destruiu a educação ao longo dos últimos 20 anos, os professores são tentados a aprovar os estudantes de qualquer jeito em troca de um bônus. Já na Prefeitura, denúncias apontam que em setembro os estudantes aprovados já haviam sido definidos, mesmo com três meses de aula pela frente.

2) Construção de escolas: Essa medida da prefeitura, segundo professores e funcionários, se dá pela falta de vagas. Afinal, quem pode citar uma escola sendo construída na cidade de São Paulo? E isso se repete por todo o país. Escolas caindo aos pedaços, literalmente. Lousas em que é impossível ler ou escrever, salas sem carteiras e cadeiras, falta de laboratórios e quadras esportivas, entre outras deficiências.

Chama a atenção também a tentativa de transformar a construção de escolas pré-moldadas, que não levam em conta as necessidades dos estudantes, com desenvolvimento da educação. Mas todas as crianças e jovens são iguais? Todas as comunidades tem o mesmo perfil para possuírem escolas iguais? Não!

3) Controle da evasão: Com um ensino que não atrai o estudante e uma escola que não dá condições materiais e físicas e que não é acolhedora, muitos optam por “tocar a vida” ao invés de “perder tempo” dentro da escola. Cada vez que um estudante abandona a sala de aula o país perde em desenvolvimento, teremos mais um homem ou mulher analfabeto(a) ou iletrado(a). Mas para os neoliberais, eles perdem um número. E com isso perdem dinheiro de fundos nacionais e internacionais e, até, perdem votos (mesmo que isso seja desmentido em São Paulo). Com isso cria-se a tática do dois pra lá, dois pra cá. As escolas ficam trabalhando para convencer os estudantes a mudarem de escola para que esses alunos sejam indicados como transferência e não como abandono, evitando que o índice da escola caia. No final do ano podemos conferir nas listas de presença salas com mais de 10 ou 15 transferências.

Outros pontos também afetam o IDEB, mas tem menor peso na nota final.

Uma avaliação simples como a feita aqui sobre as políticas e modelos educacionais aplicados no Brasil demonstra como a propaganda da prefeitura do Rio não foi mera infelicidade ou azar, mas a representação fiel da proposta pedagógica que é a seguinte: Colocar estudantes na sala de aula para cumprir a meta da LDB e de outras leis; aprovar o maior número possível, ignorando os casos mais absurdos e as necessidades dos estudantes para não sobrecarregar a linha; entregar o diploma para o estudante abrindo vaga para os que vêm a seguir. Um carro possui um tempo estipulado para ficar pronto. A escola tem como meta entregar o estudante “formado” em 12 anos. Depois fica o custo para a sociedade ou a universidade – caso ele tenha sorte – fazer o recall.

E não podemos deixar passar que no fim da linha de montagem temos produtos sempre iguais. Portanto não é à toa que vemos a luta constante para diminuir a quantidade de aulas de matérias que podem produzir um pensamento contestador. Também não é à toa que vemos direções de escolas sendo entregues aos militares. Para pensar é preciso sair da linha e escolher um caminho alternativo, e os poderosos não querem permitir isso. Crianças criativas são doentes que precisam de Ritalina e jovens contestadores são problemáticos que precisam de um bom corretivo.

O que precisamos tirar de aprendizado, já que a vida é uma grande escola, é que não podemos esperar dos governos atuais mudanças satisfatórias nas políticas para educação. Escolas de tempo integral, dois professores em sala, entrega de uniformes, etc. são apenas medidas que tentam passar uma boa impressão para a sociedade.

Assim como a pintura dos muros das escolas e o cheiro de tinta fresca que encontramos nas salas no início do ano, mas que no final estão iguais ou piores que no ano passado, essas medidas não resolvem o problema, que exige uma transformação radical, uma verdadeira derrubada dos muros das escolas (em sentido figurado ou não). Sabemos que a proposta anarquista de uma sociedade sem escolas é absurda, mas a educação não pode perder sua capacidade contestadora e seu papel revolucionário.

E sabemos que em uma revolução o novo surge do velho, mas antes é preciso questionar tudo o que é velho e destruir o que não nos serve mais, até que não fique pedra sobre pedra.


Lucas Marcelino, professor da rede estadual de São Paulo.

FONTE: A VERDADE


quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Países que reduziram maioridade penal não diminuíram a violência




Por Frei Betto

Nos 54 países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima


Voltou à pauta do Congresso, por insistência do PSDB, a proposta de criminalizar menores de 18 anos via redução da maioridade penal.

De que adianta? Nossa legislação já responsabiliza toda pessoa acima de 12 anos por atos ilegais. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o menor infrator deve merecer medidas socioeducativas, como advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. A medida é aplicada segundo a gravidade da infração.

Nos 54 países que reduziram a maioridade penal não se registrou redução da violência. A Espanha e a Alemanha voltaram atrás na decisão de criminalizar menores de 18 anos. Hoje, 70% dos países estabelecem 18 anos como idade penal mínima.

O índice de reincidência em nossas prisões é de 70%. Não existe, no Brasil, política penitenciária, nem intenção do Estado de recuperar os detentos. Uma reforma prisional seria tão necessária e urgente quanto a reforma política. As delegacias funcionam como escola de ensino fundamental para o crime; os cadeiões, como ensino médio; as penitenciárias, como universidades.

O ingresso precoce de adolescentes em nosso sistema carcerário só faria aumentar o número de bandidos, pois tornaria muitos deles distantes de qualquer medida socioeducativa. Ficariam trancafiados como mortos-vivos, sujeitos à violência, inclusive sexual, das facções que reinam em nossas prisões.

Já no sistema socioeducativo, o índice de reincidência é de 20%, o que indica que 80% dos menores infratores são recuperados.Nosso sistema prisional já não comporta mais presos. No Brasil, eles são, hoje, 500 mil, a quarta maior população carcerária do mundo. Perdemos apenas para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil).Reduzir a maioridade penal é tratar o efeito, e não a causa. Ninguém nasce delinquente ou criminoso. Um jovem ingressa no crime devido à falta de escolaridade, de afeto familiar, e por pressão consumista que o convence de que só terá seu valor reconhecido socialmente se portar determinados produtos de grife.

Enfim, o menor infrator é resultado do descaso do Estado, que não garante a tantas crianças creches e educação de qualidade; áreas de esporte, arte e lazer; e a seus pais trabalho decente ou uma renda mínima para que possam subsistir com dignidade em caso de desemprego.

Segundo o PNAD, o adolescente que opta pelo ensino médio, aliado ao curso técnico, ganha em média 12,5% a mais do que aquele que fez o ensino médio comum. No entanto, ainda são raros cursos técnicos no Brasil.

Hoje, os adolescentes entre 14 e 17 anos são responsáveis por consumir 6% das bebidas vendidas em todo o território nacional. A quem caberia fiscalizar? Por que se permite que atletas e artistas de renome façam propaganda de cerveja na TV e na internet? A de cigarro está proibida, como se o tabaco fosse mais nocivo à saúde que o álcool. Alguém já viu um motorista matar um pedestre por dirigir sob o efeito do fumo?

Pesquisas indicam que o primeiro gole de bebidas alcoólicas ocorre entre os 11 e os 13 anos. E que, nos últimos anos, o número de mortes de jovens cresceu 15 vezes mais do que o observado em outras faixas etárias. De 15 a 19 anos, a mortalidade aumentou 21,4%.

Portanto, não basta reduzir a maioridade penal e instalar UPPs em áreas consideradas violentas. O traficante não espera que seu filho seja bandido, e sim doutor. Por que, junto com a polícia pacificadora, não ingressam, nas áreas dominadas por bandidos, escolas, oficinas de música, teatro, literatura e praças de esportes?

Punidos deveriam ser aqueles que utilizam menores na prática de crimes. E eles costumam ser hóspedes do Estado que, cego, permite que dentro das cadeias as facções criminosas monitorem, por celulares, todo tipo de violência contra os cidadãos.

Que tal criminalizar o poder público por conivência com o crime organizado? Bem dizia o filósofo Carlito Maia: “O problema do menor é o maior.”


FONTE: Controvérsia

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Entidades educacionais criticam jornada integral no Ensino Médio


A proposta (Projeto de Lei 6840/13) que prevê a jornada integral para o Ensino Médio recebeu fortes críticas em audiência pública nesta quarta-feira na Câmara do Deputados.

     Gabriela Korossy / Câmara dos Deputados
Bárbara: não se trata de aumentar a carga horária , mas
de melhorar a infraestrutura das escolas e do
currículo para que ele seja legenda mais
atrativo.
O projeto foi resultado dos trabalhos iniciados em 2012 na Comissão Especial de Reformulação do Ensino Médio e prevê uma carga horária de pelo menos sete horas diárias para os alunos.

No debate promovido pela comissão especial que analisa a proposta, representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) reclamaram que, com a medida, os alunos do ensino noturno seriam prejudicados pois a carga horária seria menor. Por isso teriam um ensino de segunda classe.

A audiência foi a última antes da apresentação do relatório prevista para a próxima quarta-feira (10).

Infraestrutura e currículo
A presidente da Ubes, Bárbara Melo, defendeu uma reformulação do Ensino Médio para que nesses três anos de estudos os alunos possam discutir temas ligados às suas realidades.

Para Bárbara, não se trata de aumentar a carga horária, mas de melhorar a infraestrutura das escolas e do currículo para que ele seja mais atrativo. "Nós da Ubes acreditamos que a estrutura da escola, além dos preconceitos e da violência existente, em muitas escolas causa a evasão no ensino médio, que é grande infelizmente."
                                                                                                     Gabriela Korossy / Câmara dos Deputados
Maria Eulália: temos um ensino médio que desafia a se
relacionar de forma mais íntima, mais concreta
com os jovens de hoje.
Já a representante do Consed, Maria Eulália Nascimento, defendeu um sistema mais democrático, para que as escolas possam se aproximar dos alunos. "Nós temos um ensino médio que desafia a se relacionar de forma mais íntima, mais concreta com os jovens de hoje. Não é uma falência do ensino médio como se as pessoas que vem atuando na escola pública tenham fracassado na sua tarefa. Nós vivemos outra sociedade. O desafio hoje é lidar com essa realidade de forma a garantir o direito à aprendizagem."

Relatório
O relator da comissão, deputado Wilson Filho (PTB-PB), afirmou que as contribuições dadas pela Ubes e pelo Consed, serão incluídas no relatório. O deputado reconhece que é importante aprovar o relatório antes do fim dos trabalhos legislativos, apesar dos pontos polêmicos que poderão ser discutidos depois, inclusive no Plenário.

"As ideias estão convergindo, o corpo do projeto já está montado e é claro que têm debates mais polêmicos”. Wilson Filho acrescenta que entre os pontos polêmicos estão o ensino noturno, o prazo para se montar o ensino integral, a possibilidade de o Enem estar ou não dentro do currículo, e a inserção do ensino profissionalizante dentro do currículo. “São pontos que já são polêmicos há muito tempo e é por isso que precisamos de um debate maior."

Carência de professores
Segundo a auditoria, que foi realizada conjuntamente pelo TCU e pelos tribunais de contas dos estados (exceto SP e RR) e dos municípios, faltam 32 mil professores com formação específica nas 12 disciplinas obrigatórias do ensino médio, sobretudo em física, química, sociologia e filosofia.

Em audiência promovida pela comissão no último dia 12, o diretor da Secretaria de Controle Externo da Educação do TCU, Alípio dos Santos Neto, afirmou que a solução para essa defasagem pode estar na capacitação dos 46 mil professores que integram a rede escolar e não têm formação específica ou na realocação dos mais de 60 mil professores que estão fora da sala de aula, a maioria em atividades administrativas.

O relatório também chama a atenção para o risco de o Brasil não atingir o objetivo do Plano Nacional de Educação (PNE – Lei 13.005/14) de alcançar, em 2023, pelo menos 85% de taxa de escolarização líquida no ensino médio – número de alunos matriculados em relação ao total da população com faixa etária adequada a esse nível de ensino, que é de 15 a 17 anos. Dados do Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) indicavam que, em 2011, essa taxa era de apenas 51,6%.

Além disso, a auditoria aponta que o investimento público direto do Brasil por estudante do ensino médio ainda está abaixo da média dos países integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – 2.148 dólares por aluno em 2010, contra 9.322 na média dos países da OCDE.

Íntegra da proposta:


Reportagem - Karla Alessandra
Edição – Regina Céli Assumpção



sábado, 13 de dezembro de 2014

Para além do voto




Por Manuel Alves Filho – Pesquisa contemplada com o Prêmio Capes de Tese analisa as experiências de democracia participativa no Brasil.


No Brasil, as primeiras experiências e ideias sobre a democracia participativa tiveram origem no interior das esquerdas, em meados dos anos 1970. Inicialmente, houve predominância de um posicionamento mais exigente, baseado no conceito de “participação como emancipação”. Com o decorrer do tempo, entretanto, tal sentido foi progressivamente atenuado, até alcançar uma proposta de participação de caráter mais consultivo. A conclusão é da tese de doutorado da cientista social Ana Claudia Chaves Teixeira, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O trabalho, que foi orientado pela professora Luciana Tatagiba, obteve o Prêmio Capes de Tese 2014 na área das Ciências Sociais.

De acordo com Ana Claudia, a tese procurou analisar as diferentes formas de participação da sociedade, além daquela proporcionada pelo voto. “A ideia de democracia participativa com a qual eu trabalhei é bem ampla e contempla diversos mecanismos, como plebiscito, referendo, conselhos, conferências etc. O foco da tese está nos canais institucionais de participação que foram criados ao longo de um período de 35 anos, e que, apesar de reconhecidos por lei e amplamente disseminados, ainda são poucos conhecidos pela população em geral”, explica. As três décadas e meia às quais a pesquisadora se refere estão compreendidas entre os anos de 1975 e 2010.

Na tese, a cientista social dividiu esse amplo período em três períodos menores, cada um deles marcado por uma visão predominante de participação. Um ponto importante a ser observado é que Ana Claudia propõe uma análise em torno do imaginário social construído sobre o tema, com o objetivo de entender porque determinados modelos participativos prevaleceram sobre outros. “Minha preocupação não foi apontar quais modelos deram certo e quais deram errado, mas sim entender como esse imaginário, construído no interior da esquerda, serviu para concretizar algumas experiências participativas”, esclarece.

Conforme a autora da tese, estudar o imaginário social é importante porque é possível perceber até onde vão os horizontes, ou seja, permite identificar até onde as pessoas gostariam de chegar com suas escolhas. “O imaginário, a idealização ou a utopia servem, em última análise, para mover indivíduos ou grupos”, justifica. Assim, num primeiro momento, que se estende de 1975 a 1990, o modelo participativo predominante esteve fundado na ideia da emancipação. Em outros termos, os adeptos desse pensamento acreditavam que a participação geraria a emancipação e, como consequência, permitiria a construção de uma nova sociedade.


Tal concepção, observa a autora da tese, foi fortemente inspirada no método desenvolvido pelo educador Paulo Freire, notadamente na experiência de educação de adultos. Freire defendia que todos são detentores de saberes e que a educação seria um forte instrumento de transformação. “Pequenas experiências participativas baseadas nesse modelo surgiram em diferentes pontos do país, por meio de atividades desenvolvidas pelas comunidades eclesiais de base [CEBs], núcleos de base do PT, associações de moradores, comitês de trabalhadores e outras organizações. Naquele instante, essas experiências eram bastante fragmentadas”, afirma Ana Claudia.

O grande laboratório para as ações realizadas no período, diz a pesquisadora, foi o setor da saúde, que contribuiu decisivamente para a institucionalização de várias outras políticas públicas nos períodos posteriores. Um exemplo foi o trabalho executado por um grupo de médicos sanitaristas na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais. Os profissionais colaboraram para a criação de conselhos de saúde, instâncias por meio das quais a população podia discutir e decidir sobre a formulação de políticas públicas para o setor. “A experiência ajudou a testar o pressuposto de que não eram somente médicos e enfermeiros que entendiam de saúde. A população também detinha conhecimento nesse campo, principalmente porque conhecia melhor que ninguém as suas necessidades”, pontua a autora da tese.

Também em São Paulo, no mesmo período, ganharam corpo os conselhos populares de saúde, implantados inicialmente nos bairros localizados na Zona Leste do município. A ideia era semelhante à experimentada em Montes Claros. “Essas ações ajudaram a consolidar a proposta de criação de um sistema único de saúde com participação popular. Em 1990, foi promulgada a lei que instituiu o SUS”, observa. A primeira fase pavimentou, por assim dizer, o caminho para um segundo momento da experiência de democracia participativa, levada a cabo entre os anos de 1990 e 2002.

Esta, segundo a pesquisadora, foi marcada principalmente pela ideia de participação com deliberação. De um lado, a partir do SUS, foram criados os conselhos de saúde nos âmbitos municipal, estadual e federal. Segundo as legislações, em todas essas instâncias a participação da sociedade teria caráter deliberativo, embora isso nem sempre tenha ocorrido na prática. “Na tese, eu não entro no mérito se o sistema tem ou não funcionado, pois trabalho com a dimensão imaginária, com o mundo desejado”, reafirma Ana Claudia. Destacam-se também nesse período as experiências do Orçamento Participativo, que foi implantado em alguns municípios brasileiros e posteriormente “exportado” como exemplo de boas práticas de gestão municipal. Por meio desse mecanismo, o orçamento público era discutido e, por decisão da população, parte dele era aplicada em áreas consideradas prioritárias.

O terceiro e último período analisado pela pesquisadora vai de 2003 a 2010 e coincide com os oito anos de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Nesse período, a ênfase da participação esteve muito mais relacionada com o que classifiquei de ‘escuta’. Um aspecto importante que surgiu nessa fase foi a multiplicação de espaços. Foram criados diversos conselhos, como os do idoso, juventude, LGBT etc. Desse modo, o número de vozes foi ampliado e novas perspectivas de participação foram abertas. Além disso, também foram definidas novas conferências, que contribuíram para o reconhecimento de novos sujeitos”, pormenoriza a cientista social.

Ocorre, porém, que o caráter deliberativo desses espaços foi diminuído. A interpretação que Ana Claudia faz dessa experiência é que o PT no governo federal teve que lidar, de um lado, com os movimentos sociais. Estes, obviamente, precisavam ter suas pautas contempladas em alguma medida. Assim, foram abertos canais de diálogo e de escuta. Mas, de outro lado, para garantir a governabilidade, o governo teve que fazer alianças com distintos partidos. “Por causa das alianças para governar e da pressão dos lobbys de diferentes setores da sociedade, o governo não tinha como transformar todas as demandas dos movimentos sociais em políticas públicas. O resultado foi que alguns pleitos foram atendidos e outros, não. É nesse sentido que eu considero que a participação nesse período foi baseada na escuta, pois os espaços deixaram de ser deliberativos para assumir um caráter marcadamente consultivo”.


Ana Claudia faz questão de assinalar que o fato de as formas de participação terem sofrido transformações – e em boa medida se atenuado – com o passar dos anos não significa que as reivindicações contidas nos dois primeiros modelos tenham desaparecido por completo. “Ao contrário, as ideias de emancipação e de deliberação continuam presentes até hoje, mas já não são mais predominantes”, esclarece. A cientista social não considerou em sua tese o período atual, marcado pelo governo da presidente Dilma Rousseff, nem as manifestações de junho de 2013. A pesquisadora não descarta que possamos estar experimentando um quarto modelo de participação, mas entende que este eventual novo imaginário sobre a participação somente poderá ser mais bem analisado no futuro.

Ana Claudia observa, todavia, que estão em plena discussão propostas de realização de plebiscito ou referendo para a realização da reforma política. Outro ponto importante em debate é a Política Nacional de Participação Social (PNPS), cujo decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff foi recentemente derrubado pela Câmara dos Deputados sob o argumento de que ele teria inspiração “bolivariana”, e que seria uma forma autoritária de passar por cima do Congresso. O Legislativo, conforme Ana Claudia, ignorou que esses espaços participativos já existem, e inclusive boa parte deles está regulamentada por lei.

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), chegou a adiantar que a matéria também seria rejeitada pela Casa, pelos mesmos motivos. “O decreto não tem nada disso. O texto propõe apenas organizar os espaços, regulamentar as audiências públicas e estabelecer certos fluxos entre conselhos, conferências etc. Por causa da eleição, porém, os argumentos contrários prevaleceram, até como forma de deslegitimar a presidente. O resultado, infelizmente, foi a derrubada do decreto pela Câmara”, considera a pesquisadora.

Segundo a cientista social, se por um lado há, nos dias que correm, uma pressão por maior participação da sociedade nas decisões sobre os destinos do Brasil, e as manifestações de junho de 2013 são uma evidência disso, por outro o país conta com um Congresso Nacional bastante conservador e pouco permeável a essa contribuição popular. “Do ponto de vista do sistema político, nós vivemos uma situação ainda pior que em passado recente”, pontua a pesquisadora, que usou como fontes primárias para o seu trabalho artigos acadêmicos e textos assinados por militantes de esquerda, entre outros.

Parte da tese foi desenvolvida na Brown University, nos Estados Unidos, onde a pesquisadora cumpriu período de doutorado sanduíche. Sobre o fato de a pesquisa ter recebido o Prêmio Capes de Tese, Ana Claudia se disse inicialmente surpresa e depois feliz. “Fiquei feliz pela Unicamp, que me deu todas as condições de estudo e onde fiz toda a minha formação superior. Também fiquei muito satisfeita por ver um campo de estudos ainda em construção nas ciências sociais, e pouco compreendido pela sociedade, ter esse tipo de reconhecimento pela academia”.


Texto postado originalmente em:

http://www.unicamp.br/unicamp/ju/614/para-alem-do-voto


FONTE: Controvérsia

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

‘A Reforma Agrária passa pela elevação do nível de escolaridade da nossa base’


Por Maura Silva


A experiência do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) com as redes de Ensino Médio e Fundamental tem sido uma das principais lutas do Movimento relacionado à educação. Essa luta nasceu da necessidade de fazer com que os filhos dos assentados e acampados pudessem estar resguardados em relação à alfabetização e à educação.

Associada à ideia de construir nos jovens uma consciência revolucionária, a realidade escolar é atrelada ao meio da luta em que os educandos vivem no campo. Hoje, cerca de 1.800 escolas trabalham com jovens de sete a 14 anos. Destas, 1.100 são reconhecidas pelos Conselhos Estaduais de Educação e Cultura.

As escolas do MST abrigam por volta de 200.000 alunos e contam com cerca de 4.000 professores, além dos 250 educadores que trabalham nas Cirandas Infantis - educação de crianças até seis anos ou na faixa da alfabetização.

Para falar sobre a perspectiva dos educandos dentro do Movimento, conversamos com Maria de Jesus Santos Gomes, do Setor de Educação Estadual do MST no Estado do Ceará.

Qual a maior reivindicação do Movimento em relação as escolas do campo?

O nosso objetivo inicial era implementação de escolas até a 4° série. Com o tempo, o Movimento foi se expandindo, a visão do direito à educação se ampliou para o Ensino Fundamental e Médio.

Nós temos apenas 0,7% dos nossos jovens com acesso ao Ensino Médio nos assentamentos. Essa ainda é uma grande necessidade da nossa juventude que, hoje, para concluir os estudos, tem que se submeter ao êxodo rural. Por isso, a luta pelo MST é pelo aporte na educação.

Reivindicamos a implementação da pedagogia do Movimento nas escolas. E essa implementação pedagógica tem origem na nossa luta pela terra, na luta da classe trabalhadora.

De que maneira é pensado o projeto pedagógico dentro das escolas?

Baseamo-nos nas experiências de educação dos trabalhadores ao longo de toda a história. Perguntamo-nos como foi a educação na Comuna de Paris? Como foi a escola na Revolução Russa? Como foram as experiências educacionais de habitações populares na América Latina, em especial no Brasil, com a pedagogia do oprimido vinda de Paulo Freire? E assim, atrelada também à própria experiência do MST nos seus 30 anos de luta, criamos a nossa perspectiva de educação.

Os educandos são estimulados a participarem desse processo?

Muito. Um exemplo é que, aqui no Nordeste, a seca é uma realidade. Dentro dos nossos assentamentos, buscamos desenvolver essa realidade através de ideias e projetos práticos, que insiram tecnologia no semiárido, na seca.

Outra questão é o desenvolvimento científico. As escolas convencionais não se preocupam com o rigor cientifico, nós do Movimento procuramos desenvolver esse campo. A ideia é fazer com que esse conhecimento interaja com a realidade, nos ajudando na qualificação da vida. Isso faz com que tenhamos uma visão dialética do conhecimento.

De que maneira o restante da comunidade é inserida dentro desse contexto?

Nos assentamentos, prezamos pela direção coletiva, todos devem estar organizados em núcleos, cooperativas ou associações para participarem ativamente do processo pedagógico da escola.

Incentivamos a auto-organização, o vínculo dos educandos com o trabalho, não só o trabalho convencional, mas atividades que remontem à realidade dos assentamentos. Cuidados com a terra e com a questão da agroecologia não devem só ser estudados, devem ser praticados, nossas escolas devem desenvolver jardins e campos experimentais, quintais produtivos, áreas que fortaleçam o conhecimento da terra, mas que também tenham tecnologia. Para isso, contamos com a participação de todos dentro dos assentamentos.

Quais as maiores dificuldades encontradas para manter as escolas dentro dos assentamentos?

Hoje, a nossa luta é por escolas dentro da comunidade. Caso o aluno tenha que sair, que seja para escolas próximas ao seu acampamento ou assentamento. Por exemplo, conseguimos atender à demanda do Ensino Fundamental; já para o Ensino Médio não conseguimos o número adequado de alunos por sala de aula.

O aluno tem que se locomover cerca de 20 quilômetros para estudar. Por isso, a nossa maior reivindicação é para que haja um acesso intracampo desses estudantes. Outra questão importante que devemos levantar, principalmente nos últimos anos, é o fechamento das escolas do campo pelo agronegócio.

Tivemos uma grande experiência do Rio Grande do Sul com as escolas itinerantes, mas essas escolas foram criminalizadas indiscriminadamente no governo de Yeda Crucius (do Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB).

Para denunciar o fechamento de mais de 37 mil escolas pelo Brasil, isso só entre 2002 e 2013, o MST criou uma campanha em 2011 "Fechar escola é crime”. Essas escolas fechadas vão contra a lógica de acesso ao conhecimento é a negativa do direito à educação, além de ser uma causa política de desmonte das comunidades.

Além da restrição ao bem maior que é a educação, quais as outras consequências do fechamento dessas escolas?

A escola é um espaço cultural, um espaço de convivência comunitária, de lutas. Então, ao se fechar uma escola, se desmobiliza também uma comunidade. Lutamos pela reabertura das escolas fechadas e a construção de novos espaços de ensino.

Atrelado ao fechamento das escolas, questionamos também o financiamento público das escolas. O cálculo do financiamento da educação é feito através da relação estudante x custo. A proposta que o setor de educação do MST tem apresentado é a de um financiamento diferenciado paras as escolas do campo, um método que contemple, por exemplo, o custo escola.

Qual a perspectiva do Movimento da educação dentro do MST?

A Reforma Agrária Popular passa pela elevação do nível de escolaridade da nossa base. Não podemos gerir cooperativas agroindustrias, processos produtivos e orgânicos sem conhecimento. Esse é um debate muito presente dentro do Movimento.

Entendemos que a escola é um direito público, não pode ser privado, o projeto político-pedagógico tem que ser direcionado pela comunidade, pelos sujeitos que estão envolvidos nessa tarefa. Entendemos que devemos considerar a luta e a memória daquela comunidade. É a nossa maneira de preservarmos a nossa história.


FONTE: Adital

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

'Mulas': entre a pobreza e os papéis de gênero


Comunicar Igualdad


Por Sandra Chaher



Faz anos que se registra um aumento das mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transportes ilegais de drogas na América Latina. De 2006 a 2011, a população penitenciaria feminina na região duplicou. Segundo um estudo publicado recentemente, as razões do envolvimento das mulheres em atividades delituosas são econômicas, no contexto do continente mais desigual do mundo. "Muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar suas filhas e filhos” afirma o informe, tentadas pela "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais de cuidado e educação de seus filhos.

Ano a ano, milhares de mulheres atravessam as fronteiras nacionais de seus países contratadas como "mulas” do narcotráfico. Seu trabalho consiste em transportar a droga que será comercializada e, uma vez ingressa no circuito do consumo, engrossará os cofres das máfias organizadas que operam em nível internacional.

Muitas dessas mulheres morrerão fazendo seu "trabalho”. Outras ocuparão cadeias, dentro ou fora de seus lugares de origem. Uma opção que a maioria não escolhe e que aparece principalmente por sua situação socioeconômica.

Um documento recente do Consórcio Internacional sobre Política de Drogas (IDPC) estudou a população feminina nas prisões para analisar os papéis desempenhados pelas mulheres nas redes criminosas na América Latina e os processos de envolvimento. Procura verificar como as relações de gênero e os fatores socioeconômicos modelam a configuração das redes de tráfico internacional de drogas e a inserção das mulheres.

A feminização da pobreza no olho da tormenta

"Mulheres, delitos de drogas e sistemas penitenciários na América Latina” é como se denomina o documento do IDPC publicado em outubro de 2013 e que esteve a cargo de Corina Giacomello, do Centro de Investigações Jurídicas da Universidade Autônoma de Chiapas (México).

Uma das primeiras conclusões que revela a investigação é que existe um aumento de mulheres encarceradas por delitos vinculados à venda e transporte de drogas ilegais e que isso se vincula, não só com seu maior envolvimento nas redes de narcotráfico, também ao crescimento da perseguição penal dessas atividades. A população penitenciária feminina da América Latina duplicou entre 2006 e 2011: passou de 40 mil para mais 74 mil mulheres presas, a maioria acusada de delitos menores relacionados com as drogas.

Além disso, o estudo mostra como as mulheres ocupam o lugar de mão de obra barata e facilmente substituível nas redes criminosas. "São apresentadas principalmente como cultivadoras, coletoras, vendedoras de varejo, correios humanos (o que é geralmente conhecido como "mulas” ou "burreras”, entre outros nomes) e introdutoras de drogas em centros de reclusão”, aponta o estudo.

No entanto, na América Latina, as circunstâncias socioeconômicas constituem a principal motivação pela qual as mulheres se veem obrigadas a exercerem uma atividade ilegal. Vale destacar que, tal como aponta o estudo, a região tem o maior índice de desigualdade econômica do mundo e uma alta percentagem da população que vive na pobreza e indigência são as mulheres. Estamos diante um fenômeno que se conhece como feminização da pobreza e que se manifesta tanto em áreas urbanas como rurais. Colocando em foco o perfil das mulheres encarceradas, revela-se que "muitas delas são mães solteiras que entram no negócio das drogas somente para poder alimentar seus filhos”.

Na conversa com a entidade Comunicar Igualdade, Corina Giacomellho reflete sobre esse ponto. "Na América Latina coexistem processos mistos a respeito do papel as mulheres: por um lado, estas têm maior acesso a educação e uma maior presença nos espaços públicos, mas também são as principais protagonistas da pobreza e da pobreza extrema. Muitas vezes isto se combina com a maternidade e a responsabilidade tradicional das mulheres para "os outros”. O número de famílias monoparentais chefiadas por mulheres e de gravidezes adolescentes entre meninas dos níveis socioeconômicos mais baixos está aumentando, o que implica um maior número de mulheres em situação de pobreza e responsáveis únicas de seus filhos”. A especialista destaca que frente a este panorama, atividades do microtráfico – como a introdução de drogas nos centros de reclusão ou a venda ao varejo – oferecem a "falsa ilusão” de poder combinar uma atividade econômica com o cumprimento dos deveres tradicionais. "Estas mulheres encontram normalmente emprego nas atividades da economia informal muito mal remuneradas ( atividades de limpeza, sobre todo) e desempenham uma dupla ou tripla jornada laboral. As redes de tráfico identificam muito bem as mulheres que relutam e as envolvem aproveitando sua vulnerabilidade, por um lado, e a falta de mecanismos preventivos e de proteção por parte do Estado”, enfatiza.

Relações de gênero, a "grande” porta de entrada

Poe outra parte, as relações de gênero constituem um fator primordial do porquê das mulheres cometerem estes delitos, já que muitas delas se envolvem a partir de suas relações familiares ou sentimentais, seja como namoradas, esposas, mães e filhas , e em cumprimento dos papéis designados para homens e mulheres.

Sobre este ponto, Giacomello ressalta que as relações de gênero são espaços de poder geralmente assimétricos em detrimento das mulheres e definem os âmbitos de acesso e das modalidades de inserção a eles, diferenciados para homens e mulheres. Frente a isto, se faz necessário adaptar a perspectiva de gênero para analisar espaços como o narcotráfico, "o que permite visibilizar como homens e mulheres se envolvem em atividades delituosas relacionadas com drogas de maneira diferente, a partir de diversos fatores, entre eles sua identidade de gênero e os papéis que a sociedade os atribuem”. Conclui que analisar como o processo de construção da feminidade e da masculinidade influi no processo de envolvimento e nas formas de participação no trafico de entorpecentes "pode ajudar a construir políticas públicas de prevenção diferenciadas e adequadas para os diferentes agentes”.

Para a especialista, esse analise se aplica da mesma maneira ao aspecto punitivo. Geralmente, o sistema de justiça e o sistema penitenciário estão projetados a partir das necessidades e as características dos homens: "assim outros grupos ( indígenas , LGBT, pessoas estrangeiras e mulheres , entre outros) são assimilados sob uma falsa igualdade e neutralidade da norma. Assim, introduzir uma perspectivade gênero permite novamente elaborar políticas punitivas e carcerárias que respondam as exigências e características reais das pessoas”.

Cárcere: abandono e violência

Outra das principais conclusões que lançou a investigação de IDPC é que, uma vez em contato com o sistema de justiça penal e penitenciário, as mulheres são submetidas a formas de violência especificas. Isto se evidencia nos distintos aspectos como a falta de centros próprios para mulheres; as violações e o abuso sexual exercido pelo pessoal dos centros, a existência de redes de tráfico entre seções femininas e masculinas; a falta de atenção aos problemas de saúde mental;os danos infligidos sobre as filhas e filhos das mulheres na prisão, no caso dos que vivem com elas como os dos estão fora; a menor oferta de oportunidade educativas, laborais e de capacitação , entre outros.

Frente a isto o estudo faz referencia a uma "cegueira de gênero” em relação as leis que regulam o sistema penitenciário. Ao ser consultada acerca de que passos deveriam dar os Estados para sanar a situação, Giacomello afirma: "Tanto em nível das Nações Unidas, como no sistema interamericano tem produzido diversos instrumentos que fazem referencia as mulheres em reclusão, o mais recente e completo texto de As Regras de Bangkok. Além disso, existe evidência empírica suficiente sobre as formas de discriminação das mulheres na prisão. Os estados deveriam retomar esses princípios e a essa evidência para sustentar e modificar suas estratégias punitivas e penitenciárias e assumir plenamente seu papel de garantidores dos Direitos Humanos das pessoas privadas da liberdade, aplicando medidas gerais e também específicas, de acordo com as necessidades de cada grupo na prisão”.

Recomendações para se fazer da melhor maneira

O estudo realiza uma série de recomendações aos Estados em relação a elaboração de dados, a prevenção,a modificação do sistema penitenciário e a implementação de uma adequada política de drogas.

Giacomello destaca entre estas recomendações, por um lado a necessidade de uma reelaboração das medidas punitivas relacionadas com drogas que impliquem redução de sentenças, a incorporação de outros fatores além de substância – conduta – quantidade para determinar o real papel desempenhado por uma pessoa nas redes de narcotráfico e aplicar uma sentença proporcional. Por outro lado, é necessário incorporar de maneira plena as Regras de Bangkok; assim como garantir o cumprimento do interesse superior das crianças em suas políticas relacionadas com a administração e aplicação da justiça e com a execução da sentença.

Soma a necessidade de trabalhar a fundo com o funcionamento público responsável de deter, processar e sentenciar a pessoas por delitos de drogas em matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos de drogas na matéria de perspectiva de gênero, políticas de drogas e direitos humanos. E finaliza introduzindo um aspecto polêmico: Descriminalizar de maneira integral e efetiva a posse e consumo de todas as drogas. Sobre este último ponto se vem dando avanços na América Latina, e particularmente em nosso país existem projetos de lei que avançam nesse sentido.


FONTE: Adital

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Você sabe o que é o bolivarianismo?




Marsílea Gombata — A palavra da moda no Brasil é usada por muita gente que não faz ideia de seu significado. Entenda o que é bolivarianismo e por que ele nada tem a ver com “ditadura comunista”


Após ser apropriado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, o termo originado do sobrenome do libertador Simón Bolívar aterrissou no debate político brasileiro. São frequentes as acusações de políticos de oposição e da mídia contra o governo federal petista. Lula e Dilma estariam “transformando o Brasil em uma Venezuela”. Mas o que é o tal bolivarianismo de que tanto falam? É um palavrão? O Brasil é uma Venezuela? Bolivarismo é sinônimo de ditadura comunista? Antes de sair por aí repetindo definições equivocadas, leia as respostas abaixo:

O que é bolivarianismo?

O termo provém do nome do general venezuelano do século 19 Simón Bolívar, que liderou os movimentos de independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia. Convencionou-se, no entanto, chamar de bolivarianos os governos de esquerda na América Latina que questionam o neoliberalismo e o Consenso de Washington (doutrina macroeconômica ditada por economistas do FMI e do Banco Mundial).

Bolivarianismo e "ditadura comunista" são a mesma coisa?

Não. Mesmo considerando a interpretação que Chávez deu ao termo, o que convencionou-se chamar bolivarianismo está muito longe de ser uma ditadura comunista. As realidades de países que se dizem bolivarianos, como Venezuela, Bolívia e Equador, são bem diferentes da Rússia sob o comando de Stalin ou mesmo da Romênia sob o regime de Nicolau Ceausescu. Neles, os meios de produção estavam nas mãos do Estado, não havia liberdade política ou pluralidade partidária e era inaceitável pensar diferentemente da ideologia dominante do governo. Aqueles que o faziam eram punidos ou exilados, como os que eram enviados para o gulag soviético, campo de trabalho forçado símbolo da repressão ditatorial da Rússia. Na Venezuela, por exemplo, nada disso acontece. A oposição tem figuras conhecidas como Henrique Capriles, Leopoldo López e Maria Corina Machado. Cenário semelhante ocorre na Bolívia, no Equador e também no Brasil, onde há total liberdade de expressão, de imprensa e de oposição ao governo.

Foi Chávez quem inventou o bolivarianismo?

Não. O que o então presidente venezuelano Hugo Chávez fez foi declarar seu país uma “república bolivariana”. A mesma retórica foi utilizada pelos presidentes Rafael Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia). A associação entre bolivarianismo e socialismo, no entanto, é questionável segundo a própria biógrafa de Bolívar, a jornalista peruana Marie Arana, editora literária do jornal americano The Washington Post. De acordo com ela, esse “bolivarianismo” instituído por Chávez na Venezuela foi inspirado nos ideais de Bolívar, tais como o combate a injustiças e a defesa do esclarecimento popular e da liberdade. Mas, segundo a biógrafa, a apropriação de seu nome por Chávez e outros mandatários latinos é inapropriada e errada historicamente: “Ele não era socialista de forma alguma. Em certos momentos, foi um ditador de direita”.

O que se tornou o bolivarianismo na Venezuela?

Quando assumiu a Presidência da República em 1999, Chávez declarou-se seguidor das ideias de Bolívar. Em seu governo uma assembleia alterou a Constituição da Venezuela de 1961 para a chamada Constituição Bolivariana de 1999. O nome do país também mudou: era Estado Venezuelano e tornou-se República Bolivariana da Venezuela. Foram criadas ainda instituições de ensino com o adjetivo, como as escolas bolivarianas e a Universidade Bolivariana da Venezuela.

Mas esse regime que Chávez chamava de bolivarianismo era comunista?

Não, apesar de o ex-presidente venezuelano ter usado o termo “Revolução Bolivariana” para referir-se ao seu governo. A ideia era promover mudanças políticas, econômicas e sociais como a universalização à educação e à saúde, além de medidas de caráter econômico, como a nacionalização de indústrias ou serviços. Chávez falava em “socialismo do século XXI”, mas o governo venezuelano continua permitindo a entrada de capital estrangeiro no País, assim como a parceria com empresas privadas nacionais e estrangeiras. Empreiteiras brasileiras, chinesas e bielo-russas, por exemplo, constroem moradias para o maior programa habitacional do país, o Gran Misión Vivienda Venezuela, inspirado no brasileiro Minha Casa Minha Vida.

O Brasil “virou uma Venezuela”?

Esta afirmação não faz sentido. O Brasil é parceiro econômico e estratégico da Venezuela, mas as diretrizes do governo Dilma e do governo de Nicolás Maduro são bastante distintas, tanto na retórica quanto na prática.

Os conselhos populares são bolivarianos?

Não, e aqui o engano vai além do uso equivocado do adjetivo. Parte da Política Nacional de Participação Social, os conselhos populares seriam a base de um complexo sistema de participação social, com a finalidade de aprofundar o debate sobre políticas públicas com representantes da sociedade civil. Ao contrário do alegado por opositores, os conselhos de participação popular não são uma afronta à democracia representativa. Conforme observou o ex-ministro e fundador do PSDB Luiz Carlos Bresser-Pereira, os conselhos estabeleceriam “um mecanismo mais formal por meio do qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas [da população]”.


Texto postado originalmente em:

http://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-e-bolivarianismo-2305.html


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Conclusão ou Considerações Finais?



Por Aluizio Moreira


Repetidamente alguns alunos da graduação ou mesmo de pós-graduação, durante a elaboração da monografia, indagam-me se a última parte dos elementos textuais é CONCLUSÃO, CONSIDERAÇÕES GERAIS OU CONSIDERAÇÕES FINAIS, uma vez que se deparam ora com uma, ora com outra denominação.

Se nos reportarmos à ABNT NBR 14724:2011 (Trabalhos Acadêmicos), NBR 6022:2003 (Artigo em publicação periódica cientifica impressa), NBR 10719: 1989 (Relatórios Técnico-científicos) ao apresentarem as estruturas constitutivas dos trabalhos acadêmicos, artigos e relatórios, registram a palavra CONCLUSÃO (e não Considerações Finais) na última parte correspondente aos elementos textuais, entendida esta como dedução extraída dos resultados do trabalho. 

Algumas Instituições do Ensino Superior no entanto, defendendo o ponto de vista de que a palavra CONCLUSÃO traz implícito o sentido de que a pesquisa, ao seu término, atingiu resultados absolutos, portanto que não admite restrições, nem contestações, advogam os que adotam o uso das expressões CONSIDERAÇÕES FINAIS ou CONSIDERAÇÕES GERAIS(1). Neste caso a palavra consideração/considerações implicaria admitir, ao contrario de Conclusão, que a pesquisa apenas possibilita reflexões não definitivas, contestáveis, suscetíveis de revisões, argumentam seus defensores.

Ora, na verdade uma das características da ciência, do conhecimento científico, é sua falibilidade, seu caráter não absoluto, não definitivo acerca dos resultados obtidos sobre o objeto de investigação do pesquisador. A palavra conclusão não implica numa situação conflituosa com essas características.

Para Ruiz (2006, p. 76) a conclusão teria como finalidade “reafirmar sinteticamente a ideia principal e os pormenores mais importantes” colocados naquela produção particularizada do conhecimento. É como se expressa Fachin (2003, p. 165), “um arremate final” resultante “dos dados obtidos ou dos fatos observados” naquela pesquisa. Não é outro o entendimento de Salomon (2010, p. 349): “A conclusão representa o momento para o qual caminhou todo o desenvolvimento do trabalho”. Reforça Máttar Neto (2003, p. 171): A conclusão objetiva “reorganizar as informações e interpretações discutidas durante o desenvolvimento do texto” [. . .]

Ou seja, a conclusão não transcende as deduções verificadas nesta ou naquela investigação, não está para além do resultado alcançado numa determinada pesquisa. 

É a conclusão a que cheguei!

_____
(1) Não se trata de uma tendência geral. Nos Manuais de orientação de monografia as IES PUC-Rio, PUC-SP, PUC-Minas, PUCRS, Presbiteriana Mackenzie, entre outras, seguem a denominação que consta nas Normas da ABNT.


Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA E NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724. Informação e Documentação – Trabalhos Acadêmicos. Apresentação. Rio de Janeiro, 2011.
______.  NBR 10719. Apresentação de Relatórios Técnico-Científicos. Rio de Janeiro, 1989.
______. NBR 6022. Informação e Documentação – Artigo em publicação periódica cientifica impressa. Apresentação, 2003.
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
MÁTTAR NETO, João Augusto. Metodologia científica na era da Informática. São Paulo: Saraiva, 2003.
RUIZ, João Álvaro. Metodologia científica: guia para eficiência nos estudos. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006.
SALOMON, Délcio Vieira. Como fazer uma monografia. 12. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Consciência negra livre de machismo


    
O Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir


Por Jarid Arraes

O mês de novembro é conhecido nacionalmente como o mês da Consciência Negra, data oficializada no dia 20. Um grande ícone da resistência negra contra o racismo na ocasião é a memória de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e grande guerreiro pela libertação da população negra no período escravocrata do Brasil. Por causa de sua coragem incisiva, Zumbi é celebrado como inspiração e símbolo do mês da Consciência Negra.

No entanto, embora Zumbi seja um grandioso exemplo para homens e mulher negros e toda a militância negra no Brasil, muitas figuras importantes acabaram sendo esquecidas ou foram apagadas da História – sobretudo protagonistas femininas, tais como a companheira de Zumbi, a guerreira quilombola Dandara dos Palmares.

Muitas pessoas desconhecem a história de Dandara e um dos maiores motivos para esse esquecimento é a própria educação brasileira, que não menciona sua existência. Mas seu apagamento é responsabilidade também dos historiadores, ou mesmo dos movimentos sociais, uma vez que mulheres negras como ela são preteridas até por militantes negros ou ativistas feministas. De fato, a invisibilidade de Dandara é apenas uma das evidências do que o racismo machista da cultura brasileira é capaz: milhares de mulheres negras vivem hoje em situações de abuso, violência, ausência de direitos e esquecimento.

Ana Flávia Magalhães Pinto: "São poucos os dados
que circulam, por exemplo, sobre a princesa
Aqualtune e Dandara". (Foto: Arquivo pessoal) 
Para a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, esse quadro é bastante sintomático e revela uma das faces de um contexto social extremamente hostil contra as mulheres negras. “As histórias de resistência são normalmente contadas a partir da ação de uma liderança. Numa sociedade organizada a partir de valores machistas e racistas, como a nossa, não surpreende que a maioria das narrativas apresente as mulheres negras, quando muito, como coadjuvantes.” Para ela, ainda que as atuações de Ganga Zumba e Zumbi tenham sido decisivas na vida do Quilombo de Palmares, ainda temos muito o que aprender sobre as práticas de resistência mantidas por outras pessoas, com destaque para as mulheres.

Ana Flávia também chama a atenção para o papel coletivo dos quilombos como o Quilombo dos Palmares; algo que jamais poderia existir sem a atuação cotidiana das mulheres negras. “Infelizmente, são poucos os dados que circulam, por exemplo, sobre a princesa Aqualtune e Dandara. Apesar de estarmos falando de um quilombo, que pressupõe a ação de muitos, esse conhecimento limitado acaba nos aprisionando em modelos de combate ao racismo e às desigualdades nos quais as ações construídas individualmente parecem mais eficientes do que as garantidas pela ação coletiva”, pontua. De fato, o valor coletivo do combate ao racismo é de tremenda importância – e as pessoas que menos recebem reconhecimento, atenção e espaço frequentemente também fazem parte de outros grupos ditos minoritários, tais como as pessoas LGBT e as mulheres.

Na perspectiva de Ana Flávia, que é também militante do Movimento Negro, a análise desse contexto deve compreender as especificidades do racismo sofrido por homens e por mulheres, enxergando cada grupo com suas demandas diretas e relacionadas ao gênero. “Como as agressões cometidas contra os homens negros, via de regra, passam por ações brutais que resultam frequentemente em morte trágica, a violência racial que atinge as mulheres negras acaba tendo menos visibilidade. Acontece que, por exemplo, quando analisamos os dados das mortes maternas, das decorrentes de doenças evitáveis, controláveis e causadas por exposição a altos níveis de estresse, verificamos que as mulheres negras estão vulneráveis a fins tão trágicos quanto os homens”.

A violência trágica que atinge as mulheres negras tem suas nuances relacionadas à saúde física e mental, assim como estão intimamente interligadas à violência policial existente no país. O caso da auxiliar de limpeza Cláudia Silva Ferreira é um dos mais recentes exemplos que podem ser citados: baleada por uma polícia racista e arrastada pelas ruas como se não fosse uma pessoa humana, Cláudia foi mais uma mulher negra violada e assassinada pelo Estado brasileiro, que ainda legitima e promove ações de extermínio contra a população negra.

As mulheres negras brasileiras são mortas rotineiramente pelo racismo: o atendimento médico é intencionalmente negado ou atrasado, a violência obstétrica é uma realidade alarmante e a violência doméstica e sexual contra as mulheres negras tem números epidêmicos, além de serem vítimas dos maiores índices de estupro. De uma forma ou de outra, as mulheres negras acabam mortas; não obstante, a violência cometida contra os homens negros, seus filhos, pais, irmãos ou companheiros também acomete as mulheres negras de diversas formas.

Segundo Ana Flávia, além das múltiplas violências que as atingem diretamente, as mulheres negras também sofrem com os ataques cometidos contra outros membros de seu grupo familiar e sua comunidade. “Os números alarmantes que atestam a vigência de práticas genocidas contra jovens negros apontam para o impacto nefasto que essas mortes têm causado na vida de milhares e milhares de mulheres. As denúncias feitas por grupos de solidariedade entre mães vítimas da violência do Estado, como as Mães de Maio, são uma amostra do estrago que o racismo tem promovido na vida das mulheres negras. A afirmação do direito à vida é um ponto central na luta sintetizada no Dia Nacional da Consciência Negra”, explica.

Por todos esses fatores, o Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir.

A consciência que empodera a mulher negra

Laís Fialho: "Todos devem repensar
as opressões que reproduzem, até os
que acham que já problematizam o
suficiente." (Foto: Arquivo pessoal)
Laís Fialho é acadêmica de História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e batuqueira dos grupos de Maracatu Ingazeiro, também de Maringá, e da Nação Porto Rico, de Recife. A estudante é um impressionante exemplo de empoderamento e da transformação que a consciência negra – sobretudo da própria negritude – pode fazer por uma mulher e seu meio social.

Ela conta: “Quando criança. eu estudei num colégio particular, era bolsista. Era violentada psicologicamente e simbolicamente o tempo todo. Eles me chamavam de macaca, de Cirilo, achavam que eu não tinha nenhuma característica feminina por não ter cabelos longos, claros e lisos e as maçãs do rosto rosadas – e por isso me tiravam o direito de me achar feminina também. Quando mais velha, eu era preterida em todos os outros espaços: os meninos que ficavam comigo sempre precisavam esconder isso por algum motivo”. Fialho só começou a entender sua situação quando entrou na Universidade e teve acesso a discussões mais efetivas sobre o racismo.

Não por acaso, o relato de Fialho dialoga com milhares de mulheres negras. Episódios de discriminação na infância, objetificação sexual e dificuldade para compreender a dimensão do sofrimento gerado pelo racismo fazem parte dos depoimentos compartilhados por muitas mulheres negras que atuam politicamente, seja no movimento negro ou feminista.

Fialho ainda salienta que o racismo sofrido pelas mulheres negras nem sempre é tão explícito e escandaloso, por isso é muito mais difícil denunciá-lo e convencer as pessoas de que aquelas atitudes são racistas. “O racismo que a mulher negra sofre é mais sutil, ele impõe uma submissão e um silenciamento. Nós nunca nos sentimos a vontade pra denunciar essa opressão que sempre está ligada em maior grau a raça ou gênero, porque está ligado á nossa subjetividade. É sempre muito sutil e ardiloso”. Para ela, são as sutilezas que oprimem as mulheres negras. “Ás vezes nos fazem nos sentir como loucas e paranoicas, mas não, o problema não é nosso. Todos devem repensar as opressões que reproduzem, até os que acham que já problematizam o suficiente”, destaca.

O caminho rumo ao empoderamento pode ser árduo, já que a invisibilidade e a misoginia se unem contra a emancipação da mulher negra, atingindo sua autoimagem e percepção de papel no mundo. “O racismo sofrido pelas mulheres negras, ao meu ver, é multifacetado, velado e cruel. São precisos anos de terapia e autoafirmação pra nós mulheres negras nos sentirmos um pouco confortáveis sobre isso, pra poder sequer falar do assunto. Nossa autoestima é mais frágil, construída a partir de outros pressupostos”, afirma Laís Fialho, referindo-se, por exemplo, ao constante ataque à aparência física e à invalidação da mulher negra enquanto sujeito.

Um exemplo recente desse mecanismo perverso pode ser visto no último programa voltado ao Teleton 2014, que aconteceu no SBT. Na ocasião, o dono da emissora e apresentador Silvio Santos insinuou, em forma de “piada”, que a atriz Julia Olliver, de apenas 11 anos, não poderia continuar na carreira artista com o cabelo crespo e natural que tem. Embora muitas pessoas tenham encarado a atitude do apresentador como uma brincadeira, para as meninas negras a realidade é bem diferente e dolorosa. Afinal, “brincadeiras” como as do bilionário demarcam um espaço construído pelo racismo, que destina às mulheres negras papéis muito limitados, estereotipados e cheios de condições, entre elas está a de se submeter ao alisamento dos fios naturais.

Por isso, o caminho para o empoderamento da mulher negra passa pela articulação de suas experiências e vivências pessoais, destacando sua tomada de consciência a respeito das questões de gênero e raça. Sem essa possibilidade, se torna muito mais difícil construir uma autoestima saudável – sobretudo porque as oportunidades de melhoria de vida lhes são constantemente negadas, seja por causa do racismo ou por causa da misoginia. “A opressão e a intolerância aparecem de várias formas em todos os espaços possíveis. Quando não estamos sendo invisibilizadas por sermos negras, somos por sermos mulheres, por estarmos transgredindo o status quo, por sairmos dos espaços privados e ocuparmos espaços públicos. Isso aperreia muito”, relata Fialho.

“As pessoas não se incomodam quando eu as sirvo, mas quando transgrido a ordem e ocupo espaços de visibilidade, com falas empoderadas, com um discurso coerente e inteligente; as pessoas se assustam, como se não fosse possível uma negra ter acesso a esse tipo de discussão. É esse tipo de susto que eu gosto de dar”, conta Fialho. A acadêmica conta que faz questão de expôr suas opiniões e críticas, principalmente no que diz respeito á expropriação cultural negra. “É legal fazer eles pensarem que a raiz daquilo é negra, é divertido lidar com as caras espantadas deles por eu ter conhecimento disso. Eles esperam isso de um homem, talvez até negro, mas de uma mulher negra não, esperam só que a gente dance até o chão (não que isso não seja legítimo, eu também faço as vezes)”. Falar com propriedade, ocupar espaços e se impor são transgressões diárias para as mulheres negras.

Na ótica da batuqueira, as mulheres negras detém um tipo de conhecimento que a sociedade desvaloriza, que é o conhecimento popular. Por enfrentarem obstáculos em todas as esferas sociais, o empoderamento das mulheres negras é, segundo ela, mais lento e difícil. No entanto, o resgate cultural é uma das ferramentos de efetivação desse processo, algo que pode ser trabalho no mês da Consciência Negra, usando como oportunidades os eventos voltados ao tema. Fialho conta, por exemplo, que na cidade onde mora só é possível ver iniciativas públicas ou privadas para a discussão das questões raciais no período de novembro. Nas palavras da estudante, o mês da Consciência Negra ainda é encarado como uma espécie de folclore e em muitos casos o assunto é tratado de forma rasa. No entanto, isso é somente mais uma evidência da importância da data.

“É nesse mês que as escolas chamam nosso grupo de maracatu pra contar um pouco sobre a importância de ecoarmos nossos tambores como forma de resistência à cultura hegemônica branca e cristã. É nesse momento que são chamados os grupos de capoeira. É nesse momento que as cozinheiras preparam pratos típicos pra mostrar a riqueza da culinária afro. Esses espaços também são majoritariamente ocupados por homens negros, não podemos negar. Mas existe sim uma brecha que como eu citei é o empoderamento e o conhecimento. Se nós mulheres negras nos impomos e dizemos a eles que sabemos, temos fundamento, e queremos nos fazer ouvir, eles são obrigados a nos deixar falar. É aí que sambamos na cara da sociedade machista e racista, que antes de tudo é capitalista – quando precisam usar nosso conhecimento, mesmo que pra vender uma imagem de politicamente correto, precisam recorrer a nós, detentoras desse conhecimento”, finaliza Fialho.

Novembro das mulheres

A discussão racial no Brasil precisa avançar e conquistar novos terrenos e o crescimento do Feminismo Negro no país é um exemplo dessa necessidade, que arde antes de tudo nos núcleos onde mulheres negras se reúnem para debater e construir novas perspectivas. Os grupos feministas negros devem servir de exemplo para que outras feministas e integrantes do movimento negro possam desenvolver um padrão de autocrítica, para que as especificidades das mulheres negras não sejam sufocadas ou esquecidas dentro dos espaços de militância.

Em um país que ainda torce o nariz para o Dia da Consciência Negra, sob argumentos estapafúrdios que mascaram a discriminação racial, a mobilização das mulheres negras vem com toda força para romper paradigmas. Nos últimos meses, temos testemunhado vários indicativos de mudança, como o protesto organizado contra a série global Sexo e as Nêga – as mulheres negras incomodaram, e muito, o status quo. Outro exemplo notável, citado pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, é a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que acontecerá no dia 13 de Maio de 2015, em Brasília. Coletivos, instituições e militantes de todo o Brasil já estão se mobilizando e planejando a participação na Marcha, promovendo rodas de conversa, ciclos de debates e atividades em seus estados.

Essa movimentação é inspiradora e empoderadora para as mulheres negras e precisa ser reconhecida. Laís Fialho conhece bem o valor disso tudo: “Me sinto muito feliz por estar inserida num movimento de mulheres negras que têm se colocado cada vez mais em evidência, denunciando o racismo e as opressões de classe e gênero. Audre Lorde nos diz que não há hierarquia de opressões e que é preciso ser combativa contra todas. Me emociono com a sororidade que estamos construindo de preta pra preta. Acho que o feminismo precisa de nós, assim como nós do feminismo”, afirma.

Entre depoimentos e argumentos, a reflexão assertiva é de que o mês da Consciência Negra deve ser cada vez mais o mês da mulher negra, do reconhecimento de sua luta no passado e no presente e da incansável batalha pelo fim do machismo racista em todas as áreas de nossa sociedade. Ancestralidade, política e resistência se unem, por fim, na loa de Maracatu deixada por Laís Fialho, que fecha a entrevista cantando: “As mulheres da minha nação são guerreiras, batuqueiras, baianas e Yalorixás, conhecem a fundo os segredos do mundo com o brilho da Oxum e a coragem de Oyá. Kolofé! Axé mulheres guerreiras, mulheres de fé!”.

Foto de capa: Antônio Cruz/ABr

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