terça-feira, 30 de setembro de 2014

Marco Regulatório dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu



ANPG acredita que a regulamentação e fiscalização dos cursos de especialização é um fator importante que se apresenta com muita força no sentido da garantia de direitos

O Conselho Nacional de Educação (CNE) realizou, no começo deste mês, audiência pública em Brasília para debater o Marco Regulatório dos Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu Especialização. O evento contou com a participação da sociedade civil, do Poder Público e de representantes de entidades ligadas ao meio acadêmico e ao desenvolvimento científico e tecnológico. O texto referência, em sua 12ª versão, que serviu de base para a audiência resultou de inúmeras reuniões da Comissão formada para estudar o caso, das contribuições diversas de entidades e pessoas interessadas e especialistas no tema. A expectativa do CNE é que o marco entre em vigor em 2015.

A Comissão que analisa e estuda o marco regulatório da pós-graduação lato sensu, composta por Erasto Fortes Mendonça (Presidente), José Eustáquio Romão (Relator), Luiz Fernandes Dourado, Luiz Roberto Liza Curi e Sérgio Roberto Kieling Franco, teve a sua primeira reunião para discutir o assunto em abril de 2013. Nesta ocasião, deu-se início a série de reuniões semanais para debater o parecer que resultaria dos trabalhos da Comissão que se preocupou em fazer um levantamento histórico da pós-graduação no Brasil, incluindo a evolução do conceito de especialização como pós-graduação e sua normatização.

A criação dessa Comissão atende a uma reivindicação histórica da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), que é a necessária regulamentação da pós-graduação lato-sensu (com exceção da regulamentação dos programas de residência em saúde, consideradas como Especialização, que serão analisadas separadamente, visto suas peculiaridades que devem ser levadas em consideração).

Para a entidade, a regulamentação e acompanhamento dos cursos de especialização é uma questão que se apresenta com muita força no sentido da garantia de direitos. A ANPG esteve presente na audiência e apresentou algumas contribuições ao texto orientador do marco regulatório dos Cursos de Graduação Lato Sensu Especialização, como: a necessidade da garantia da gratuidade dos cursos nas instituições oficiais de ensino público; e a previsão e oportunidade para que o pós-graduando considerado pendente em disciplinas possa recuperar essas matérias, garantindo o sucesso de sua formação; a expedição em caráter de urgência de certificação ao pós-graduando para fins profissionais ou acadêmicos; percentual de vagas para estudantes bolsistas, inclusive com cotas sociais e étnicas; garantia de condições de estruturas física (com observância das normas de acessibilidade), tecnológica, pedagógica e de recursos humanos para atendimento aos pós-graduandos e professores, entre outras.

“Acreditamos que a pós-graduação lato-sensu é um processo importante na formação de recursos humanos, que cumpre papel importante na qualificação de profissionais para o mercado, contribuindo para a reinvenção de formas de gestão dos serviços públicos e privados, instrumentos e perspectivas de trabalho, entre outros alcances”, opina Tamara Naiz, presidenta da ANPG.

A entidade defende o fim dos cursos “caça-níqueis” e a garantia da fiscalização em prol da qualidade das especializações, além de implementação, pelo MEC, de um sistema de informações aberto ao público em geral, disponibilizando os dados nacionais referentes à pós-graduação lato sensu. A ANPG acredita que é importante a criação de novos cursos aprovados pelo MEC e que haja fiscalização, inclusive, para que o pós-graduando tenha a quem recorrer no caso de descumprimento da regulamentação.

Debater a regulamentação dos cursos de pós-graduação lato sensu apresenta elementos para discutir a democratização da educação e o zelo pela qualidade das experiências formativas.

Mudanças no novo marco regulatório

Uma das mudanças previstas no novo marco regulatório dos cursos de pós-graduação lato sensu será o certificado de especialização na mesma área de conhecimento ao estudante de mestrado ou doutorado que não defender a dissertação ou a tese no final do curso. Para aproveitar a formação e transformá-la em especialização o estudante precisa ter sido aprovado na qualificação. Esta possibilidade deverá constar no regulamento do curso de mestrado ou doutorado. Essas instituições poderão certificar os estudantes independentemente de ofertarem os cursos de especialização. Também haverá a possibilidade de os alunos aproveitarem os estudos e as atividades concluídos no mestrado ou doutorado em cursos de especialização.

O novo marco também vai ampliar a possibilidade de oferecer especializações. As instituições que oferecem mestrado ou doutorado poderão ofertar especializações na mesma área.

Além dessas instituições, poderão ofertar especializações, as escolas de Governo, desde que atendam à formação e ao desenvolvimento de servidores públicos; as instituições de pesquisa científica, públicas e privadas, na mesma área de atuação; e, as instituições de ensino superior que oferecem cursos de graduação. No entanto, para ofertarem cursos de especialização lato sensu essas instituições deverão ter conceito 4 ou superior nas avaliações de curso do Ministério da Educação (MEC) – que vão de 1 a 5. A pós-graduação deverá ser oferecida na mesma área dos cursos de graduação. Atualmente o conceito exigido é 3 e não é necessário oferecer cursos na mesma área.

O novo marco estabelece também que pelo menos 75% dos professores tenham título de mestre ou doutor e que os demais tenham, no mínimo, título de especialista na mesma área em que lecionam.

Ao fim da audiência pública, o relator conselheiro José Eustáquio Romão antecipou estar convencido sobre o caráter profissional da pós-graduação lato sensu especialização e garantiu que todas as sugestões serão avaliadas pela comissão do marco regulatório. Romão ressaltou que é descartada a possibilidade de arquivar o documento atual e recomeçar as discussões do início. “O único atendimento que não vamos poder fazer é anular tudo o que foi feito e começar da estaca zero porque seria um desrespeito a todos que trabalharam até aqui”. Ainda assim, afirmou que não está descartado o agendamento para ouvir entidades e especialistas.

O relator também salientou a necessidade de rever a referência das áreas de conhecimento utilizada pela Capes a fim de preservar a interdisciplinaridade. O próximo passo será a consolidação das propostas por Romão e a apresentação da nova versão do texto orientador do marco regulatório aos membros da comissão. Se for aprovado, seguirá ao plenário da Câmara de Ensino Superior do Conselho Nacional de Educação e, em seguida, para chancela do ministro da Educação para, então, passarem a vigorar as novas regras.

22/08/2014

Da redação com informações da EBC



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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O professor e a propriedade intelectual



“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, diz a Constituição. Mas interpretações de propriedade intelectual bombardeiam sua função social e subvertem a lógica do direito autoral, criado para favorecer a criatividade, e não o lucro


Por Ladislau Dowbor


We urge Government to ensure

that in future, policy on intellectual property issues is constructed

on the basis of evidence, rather

than weight of lobbying”1

(Ian Hargreaves, Relatório sobre

propriedade intelectual para o governo britânico, maio de 2011)



(Forma de acesso ao material científico de uma pós-graduação de linha de frente do país)


Cansado das declarações empoladas e de indignações capengas, resolvi apresentar alguns exemplos práticos de como funcionam as coisas na minha área, a universidade. A ideia básica é que simplificações ideológicas e discursos irritados estão frequentemente baseados, antes de em perversidade, em falta de informação.

A geração de ideias é um processo colaborativo. Não por opção ideológica ou qualquer fundamentalismo, mas pela natureza das ideias. A internet não teria surgido sem as iniciativas dos pesquisadores militares do Darpa, mas se materializou como sistema planetário por meio do www criado pelo britânico Tim Berners-Lee, que não o teria feito se não fosse o processo colaborativo da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), onde tinha de fazer conversar pesquisadores de diversos países e gerar sinergia entre as próprias pesquisas. Mas isso não surgiria sem que brilhantes físicos inventassem o transistor e o microprocessador, fruto de pesquisas universitárias e empresariais. Os satélites que permitem que as ideias fluam em torno do planeta resultam de investimentos públicos russos e norte-americanos em pesquisas e infraestruturas espaciais.

O dilema do autor

Em maio de 2011, um artigo meu foi publicado na revista Latin American Perspectives, da Califórnia. Sou obrigado a publicar, pois sem isso o programa da PUC-SP, onde sou professor, não terá os pontos necessários ao seu credenciamento. Publicar um artigo normalmente significa disponibilizar uma pesquisa para que outros dela possam aproveitar e para assegurar justamente o processo colaborativo em que uns aprendem com os outros e colocam a ciência sempre alguns passos mais à frente. Em termos acadêmicos, a revista mencionada é classificada como “internacional A” pelo Qualis, e isso soma muitos pontos no currículo. A universidade funciona assim: quem não publica se trumbica, para resgatar o Chacrinha. A versão do mesmo ditado em Harvard apareceu na forma de um pequeno cartaz que puseram embaixo de um crucifixo na parede: “Foi um grande mestre, mas não publicou nada”. Com razão foi crucificado. Publicar é preciso.

Mas alguém vai ler? No século XXI, os atos de publicar e disponibilizar se dissociaram. Não são mais o mesmo processo. Quando comunicaram que o artigo foi publicado, fiquei contente, e solicitei cópia. Enviaram o link da Sage Publications, empresa com fins lucrativos que me informa que posso ver o artigo que escrevi, com as minhas ideias − artigo, aliás, sobre a nova geração de intelectuais no Brasil −, pagando US$ 25. A soma permite acessar meu artigo durante 24 horas. Mas posso ver no dia seguinte pagando outra vez e também posso dizer aos amigos que leiam meu artigo, pagando a mesma quantia. A Sage monopoliza cerca de quinhentas revistas científicas, segundo declaração em seu site. Eu, como autor, fico no dilema: tenho de publicar nessas revistas, para a minha sobrevivência formal. Mas então ninguém lê. E se disponibilizo o texto on-line, entro na ilegalidade. Ninguém me pagou por esse artigo. A Sage é generosa nas ameaças sobre o que acontece se eu disseminar o artigo que eles publicaram.2

Minha solução foi abrir espaço no meu blog e colocar o artigo em formato manuscrito, sem menção de que foi publicado na Latin American Perspectives. Muitas pessoas acessam meu site. Não vou impor aos colegas um pedágio de US$ 25, eles que já não têm muita propensão a perder tempo com os meus textos. Tenho um duplo exercício: publicar no papel para ter pontos e publicar on-line (o que curiosamente não dá pontos) para ser lido.

 Tenho de reconhecer que recebi igualmente um mimo da Sage, na forma de um e-mail: “Thank you for choosing to publish your paper in Latin American Perspectives. SAGE aims to be the natural home for authors, editors and societies”.3 O pessoal científico da Latin American Perspectives, gente que pesquisa e publica e se debruça essencialmente sobre conteúdos, não tem nada a ver com isso. Ronald Chilcote ficou espantado ao saber que tenho de pagar para ler o meu artigo. Uma empresa comercial terceirizada se apresenta de maneira simpática como “o lar de autores”, e o direito autoral consiste no autor ter o direito de ler seu artigo pagando à editora, que, aliás, não lhe pagou nada, tampouco criou coisa alguma. De onde vem esse poder? Eles sabem que tenho de publicar nas revistas referenciadas. É um pedágio sem via lateral, o que lhes permite me enviar o seguinte aviso: “The SAGE-created PDF of the published contribution may not be posted at any time”.4 Em si, é até divertido o “Sage-created PDF”, como se colocar o artigo em PDF fosse o ato da criação, e não a trabalheira que tive ao fazer o artigo, ou a construção da bagagem intelectual que tenho e que motivou o convite para escrevê-lo.

A Sage não é exceção. George Monbiot, no Guardian, apresenta a situação geral: “Ler um único artigo publicado por um dos periódicos da Elsevier vai lhe custar US$ 31,50. A Springer cobra 34,95 euros. Wiley-Blackwell, US$ 42. Leia dez artigos e pagará dez vezes. E eles detêm o copyright perpétuo. Você quer ler uma carta impressa em 1981? São US$ 31,50... Os retornos são astronômicos: no último ano fiscal, por exemplo, o lucro operacional da Elsevier foi de 36% sobre cobranças de 2 bilhões de libras. Resulta um açambarcamento do mercado. Elsevier, Springer e Wiley, que compraram muitos de seus competidores, agora controlam 42% das publicações”. Há saída para os autores? “Os grandes tomaram controle dos periódicos com o maior impacto acadêmico, nos quais é essencial pesquisadores publicarem para tentar obter financiamentos e fazer avançar sua carreira... O que estamos vendo é um puro capitalismo rentista: monopolizam um recurso público e então cobram taxas exorbitantes. Outra forma de chamar isso é parasitismo econômico”, escreve Monbiot.5

Outro importante estudo, de Glenn McGuigan e Robert Russell, constata que “o poder de negociação das faculdades e dos professores como fornecedores de propriedade intelectual é fraco. A indústria é altamente concentrada nas mãos de três editores com fins lucrativos que controlam a distribuição de muitos periódicos, inclusive os maiores e de maior prestígio. Esses fatores contribuem para um ambiente de negócios em que os editores comerciais podem aumentar os preços por falta de fontes alternativas de distribuição de conteúdo intelectual em mãos de periódicos acadêmicos”. Os autores defendem o acesso aberto à produção científica.6

Dinheiro ou criatividade

É importante aqui considerar a dimensão legal: a propriedade intelectual é temporária. Em termos jurídicos, não é um direito natural. A bicicleta é minha, posso desmontar ou guardar na garagem até enferrujar. Aliás, até isso não me parece muito correto. Se é para deixar enferrujar, melhor dar para um moleque se divirtir com ela. Mas, no caso da ideia, a própria legalidade é diferente. É por isso que copyrights e patentes valem por tempo determinado: foram criados não para defender o direito de propriedade do autor, sob forma de copyrights, ou para assegurar um pecúlio para herdeiros, mas para assegurar ao autor uma vantagem temporária que o estimule a produzir mais ideias. Quando paguei a bicicleta, é minha e ponto. A ideia que pus no papel faz parte de uma construção social. Não é porque eu a tive que ela me é temporariamente reservada (causa), mas sim porque a propriedade temporária deve estimular a criatividade (objetivo). Isso é totalmente coerente com o fato de a propriedade, conforme está na nossa Constituição, ter de preencher uma função social. O travamento do acesso à produção científica, no caso, prejudica o objetivo, que é o estímulo à criatividade.

O primeiro-ministro da Inglaterra, David Cameron, encarregou em novembro de 2010 uma comissão dirigida por Ian Hargreaves de responder a uma questão simples, que depois de ampla pesquisa foi respondida com clareza: “Poderia ser verdade que leis desenhadas há mais de três séculos com o propósito expresso de criar incentivos econômicos para a inovação por meio da proteção dos direitos dos criadores estejam hoje obstruindo a inovação e o crescimento econômico? A resposta curta é: sim”.7

Como se dá essa obstrução? O exemplo da Sage, acima, é um mecanismo. No triângulo criador-intermediário-usuário, quem manda é o intermediário, não quem cria, tampouco quem lê ou estuda, que é afinal o objeto de todo o nosso esforço. Manda quem fornece o suporte material, e este é cada vez menos necessário. E tal como Ian Hargreaves, Joseph Stiglitz e o primeiro-ministro da Grã-Bretanha, muita gente começa a se perguntar qual é o sentido desse sistema.

Segundo exemplo. O MIT, principal centro de pesquisa dos Estados Unidos, há alguns anos decidiu virar a mesa: criou o OCW (Open Course Ware), que libera para o público, gratuitamente, o acesso à produção científica de todos os seus professores e pesquisadores. Estes podem se recusar, mas na ausência de instruções específicas, o padrão é que tudo apareça on-line no site <http://ocw.mit.edu>. Qualquer um pode acessar gratuita e instantaneamente cerca de 2 mil cursos. Em poucos anos, o MIT teve mais de 50 milhões de textos e vídeos científicos baixados, uma contribuição impressionante para a riqueza científico-tecnológica do planeta. O que, afinal, é o objetivo.

É interessante pensar o seguinte: quando sabem que seus trabalhos estão sendo seguidos e aproveitados em milhões de lugares, gratuitamente, professores e pesquisadores se sentem mais ou menos estimulados? Cobrar acesso pelas suas ideias seria mais estimulante? O fato fantástico de eu poder escrever em um computador, que da minha mesa acessa qualquer informação em meios magnéticos, em qualquer parte do planeta, é resultado de um amplo processo de construção social colaborativa, em que os avanços de uns permitem os avanços de outros. Na minha visão, temos de reduzir drasticamente os empolamentos ideológicos e pensar no que melhor funciona.

Terceiro exemplo. Nas três universidades de linha de frente em São Paulo − a USP, a PUC-SP e a FGV-SP −, mas seguramente também em outras instituições, há salas de fotocópia com inúmeros escaninhos de pastas de professores. Os alunos, obedientemente, mesmo nas pós-graduações, vão procurar as pastas e levam fragmentos de livros (limite de um capítulo) fotocopiados. Um capítulo isolado, para uma pessoa que está estudando e, portanto, na fase inicial de conhecimentos específicos, é mais ou menos um óvni. E o professor não tem opção, já que xerocar o livro inteiro é crime. Colocamos nesta página a foto da forma de acesso ao material científico de uma pós-graduação de linha de frente no país, no século XXI.

Numerosas universidades de primeira linha nos Estados Unidos já se inspiram no exemplo do MIT. Para os fundamentalistas da propriedade intelectual, seria interessante mencionar um comentário de Bill Gates, que cobra bem, mas entende perfeitamente para onde sopram os ventos: “‘Education cannot escape the transformative power of the internet’, says Microsoft chairman Bill Gates. ‘Within five years students will be able to study degree courses for free online’”.8 Entre nós, predomina a pré-história científica. O Creative Commons só agora começa a ser difundido. A geração de espaços colaborativos de interação científica está no limbo.9

O prazer da ideia

Eu, que não sou nenhum MIT, criei modestamente o meu blog (http://dowbor.org) e disponibilizo os meus textos on-line. Resultam muitos leitores, e muitos convites. Os meus livros continuam vendendo. Os convites por vezes me remuneram. E realmente, quando uma ideia instigante de um colega me puxa para uma pesquisa inovadora, a motivação é outra. Não é porque haveria uma cenoura no fim do processo de criação que as pessoas criam, mas pelo prazer intenso de sentir uma ideia se cristalizar na cabeça. Ao caminhar de maneira teimosa atrás de uma ideia ainda confusa na minha mente, preciso consultar, folhear e descartar ou anotar dezenas de estudos de outros pesquisadores, até que chega a excitação tão bem descrita por Rubem Alves com o conceito pouco científico de “tesão” e que Madalena Freire chama de maneira mais recatada de “paixão de conhecer o mundo”.

O potencial da ciência on-line, do open course,é que eu posso acessar quase instantaneamente o que se produziu em diversas instituições e sob diversos enfoques científicos sobre o tema que estou pesquisando, o que me permite chegar ao cerne do processo: uma articulação inovadora de conhecimentos científicos anteriormente acumulados. Esse aumento fantástico do potencial criativo que o acesso permite é que importa, e não o fato de ser gratuito. E a seleção dos bons artigos se faz naturalmente: quando me chega uma ótima análise, obviamente repasso para colegas. É um processo de seleção que decorre da própria utilidade científica da criação e permite inclusive que circulem artigos que são bons, mas de autores pouco conhecidos, que não teriam acesso aos circuitos nobres da publicação tradicional. Agora, se eu for pagar US$ 25 a cada vez que tenho de folhear um artigo para ver se contém uma inovação que contribui para a minha pesquisa, ninguém progride. Quanto ao xerox, francamente, temos de ter pena do clima, das árvores e dos alunos. E (por que não?) até dos professores.

Urge que as nossas universidades se inspirem no MIT e em outras grandes universidades que estão desintermediando a ciência, favorecendo um processo colaborativo e ágil entre os pesquisadores do país e até mesmo no plano internacional. É uma imensa oportunidade que se abre para um salto no progresso científico. O atraso, nessa área, custa caro.


Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP. É autor de A reprodução social e Democracia economômica - um passeio pelas teorias (contato http://dowbor.org).

Ilustração: Ladislau Dowbor


1 “Instamos o governo que assegure que no futuro, as políticas relativas a questões de propriedade intelectual sejam construídas sobre a base de fatos, e não do peso dos lobbies.”

2 Você pode ler meu abstract de graça (!) em http://bit.ly/g3TtXO.

3 “Obrigado por publicar seu artigo na Latin American Perspectives. O objetivo da Sage é ser o lar natural de autores, editores e sociedades.”

4 “O PDF criado pela Sage da contribuição publicada não poderá ser postado em nenhum momento.”

5 George Monbiot, “How did academic publishers acquire these feudal powers?”, The Guardian, 30 ago. 2011. Disponível em http://dowbor.org/ar/the%20guardian.doc.

6 Glenn S. McGuigan e Robert D. Russell, “The business of academic publishing”. Disponível em http://southernlibrarianship.icaap.org/content/v09n03/mcguigan_g01.html.

7 Ian Hargreaves, Digital opportunity: a review of intellectual property and growth – An independent report, maio 2011, p.1. Disponível em www.ipo.gov.uk/ipreview-finalreport.pdf.

8 “‘A educação não pode escapar do poder transformador da internet’, diz o chairman da Microsoft Bill Gates. ‘Dentro de cinco anos os estudantes poderão cursar faculdades gratuitamente on-line’”. New Scientist, 14 ago. 2010, p.23 (techcrunch.com, 6 ago.). Note-se que em junho de 2011 o Ministério de Educação, Ciência e Tecnologia da Coreia do Sul anunciou a disponibilização on-line de todos os livros-texto, para todo o sistema educacional, até 2015. Disponível em

9 Sobre a dinâmica nas universidades brasileiras, ver o grupo de pesquisa GPOPAI da USP-Leste (www.gpopai.usp.br/blogs/); o Creative Commons não é a casa da mãe joana: pode-se reproduzir e divulgar o texto, mas não usá-lo para fins comerciais nem deformá-lo ou truncá-lo e deixar de citar a fonte. O autor é lido e está protegido.



sexta-feira, 19 de setembro de 2014

DÍVIDA PÚBLICA BRASILEIRA - A soberania na corda bamba



     Reprodução


Documentário reúne opiniões de economistas, sindicalistas e professores sobre o impasse econômico; a versão completa está disponível no Youtube



Da Redação,


A dívida total brasileira no ano de 2013 chegou ao valor aproximado de R$ 4 trilhões; o pagamento de juros e amortizações alcançou R$ 718 bilhões, o que corresponde a aproximadamente R$ 2 bilhões por dia. Tudo isso representa um desembolso anual de cerca de 40% do orçamento da nação.

Essas e outras questões são temas abordados no documentário “Dívida Pública Brasileira: a soberania na corda bamba”, de Carlos Pronzato. O filme reúne diversas opiniões de economistas, sindicalistas e professores e tem a pretensão de contribuir na conscientização do povo brasileiro sobre o assunto da dívida pública.

“A sociedade brasileira tem vários problemas estruturais que impedem a melhoria das condições de vida do povo, um deles é a chamada Dívida Pública Interna”, João Pedro Stédile, economista e da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “O tema da taxa de juros e o tema do superávit primário precisa ganhar as ruas para que a população tenha conhecimento”, complementa.

Para pagar apenas os juros da dívida os governos têm cortado repasses para setores de necessidades básicas da população como transporte, saúde e educação. Segundo Eulália Alvarenga, economista e coordenadora do núcleo MG da Auditoria Cidadã da Dívida: “a dívida interessa a todos e é de responsabilidade nossa exigir que seja auditada. Que a gente pague a dívida, mas se for legal e legítima, e que ela não seja uma dívida de espoliação do povo”.

Ditadura

A dívida pública federal começou na época da ditadura militar com o empréstimo de dinheiro dos Estados Unidos a juros flutuantes, que chegou a elevar os juros de 5% para 23%. Mesmo sendo considerada ação criminosa pela Convenção de Viena de 1969, o governo da ditadura aceitou a situação dos juros flutuantes imposta pelos EUA, o que interfere na pauta econômica do país até hoje.

A produção do documentário é feita pelo Instituto Rede Democrática-RJ, Núcleo RJ da Auditoria Cidadã da Dívida Publica e Sindipetro-RJ. A versão completa está disponível no Youtube. 


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

‘O Poder Judiciário está se submetendo às decisões do Executivo e a repressão tende a aumentar’



Por Gabriel Brito e Paulo Silva (da Redação)
 


Como já se discute em diversas correntes do movimento social, aparentemente o país sai da festa da Copa do Mundo para um tempo, ainda não calculável, de suspensão de direitos básicos, numa escalada repressiva protagonizada por toda a institucionalidade política brasileira. Prisões sumárias e inquéritos até risíveis estão na ordem do dia contra o movimento social que se vê em ascensão há um ano.

“O que a gente está vendo é a radicalização, e não dos movimentos sociais. Estamos vendo a radicalização por parte do Estado, que reprime em uma praça pública onde haveria um debate político. A radicalização parte dos governos. A questão está visível até na fala de alguns dos candidatos”, afirmou o advogado Daniel Biral, em entrevista ao Correio da Cidadania.

Biral, que é membro do grupo dos Advogados Ativistas e chegou a ser detido em 1º de julho, no centro de São Paulo, em ato que pedia liberdade a dois manifestantes recém-encarcerados, lamenta o que parece ser a nova postura do Poder Judiciário, no sentido de conceder legalidade a processos arbitrários comandados por todos os governos do país, com a duríssima atuação de seu braço policial.

“Os agentes do Poder Judiciário deveriam ser responsabilizados sobre tais decisões, mas essa é uma questão futura. Falo assim porque suas decisões não estão avaliando o conteúdo das provas contidas nos processos. As decisões têm levado em conta apenas as versões dos fatos alegadas pela polícia. Falar que, legalmente, as instituições estão cumprindo seu papel de forma democrática é uma coisa. Mas ver se essa democracia efetivamente chegou é diferente”, criticou.

A entrevista completa, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Primeiramente, que análise você faz dos protestos das últimas semanas, relativos à Copa do Mundo, e a reação dos mais distintos governos?

Daniel Biral: Parece que, desde junho do ano passado, os movimentos sociais ganharam certa visibilidade e hoje, especificamente no período pós-Copa, tais movimentos, até então recriminados efetivamente pelo aparelho policial nas ruas, começaram a sê-lo também pela justiça e pelos governos estaduais e federal. É algo que toma corpo, a ponto de termos até advogados vítimas de criminalização, já com prisões decretadas.

Correio da Cidadania: Pegando o gancho sobre a criminalização até de advogados, o que pode contar sobre o ato pela liberação dos presos, realizado na praça Roosevelt, no qual você chegou a ser preso? Como esse dia reverbera até hoje, visto que os motivadores do ato continuam encarcerados?

Daniel Biral: Aquele ato já denunciava o que estamos vivendo. E faríamos um debate exatamente para explicar à população as razões que nos levam a entender que as prisões do Rafael Lusvarghi e do Fabio Hideki foram feitas de forma ilegal. Era um debate acalorado, não poderia deixar de ser, pois além do debate e das explicações, os movimentos que ali estavam, especialmente sindicatos, conhecem os dois, principalmente o Fabio, e exigiam da polícia a liberação deles.

Vimos que mesmo sendo um debate público, em praça pública, sem ninguém cometer crime nem nada, a polícia já estava com ordem de reprimir. Inclusive de maneira só vista em períodos de Estado fascista, a exemplo do recolhimento de um livro do Marighella, tomado das mãos de um estudante.

Correio da Cidadania: Como analisa as recentes prisões, em número crescente, de ativistas políticos? O que está acontecendo no país nesse momento, em sua interpretação?

Daniel Biral: Apesar de existirem pessoas presas, temos de analisar os fatos de uma maneira macropolítica. Vivemos um período em que as pessoas tiveram mais condição de se informar. Isso também tem a ver com as redes sociais. Em rede, as pessoas começaram a se agrupar e a crise de representatividade, que foi e é a grande questão, com políticos começando a tentar debatê-la, está presente no fato de que não foi a atual representação política da democracia indireta quem, nos últimos 25 anos, conseguiu efetivar direitos sociais.

Não aconteceu. Por isso temos déficit de moradia e um dos grandes movimentos sociais que vai para as ruas todos os dias, praticamente todas as semanas, é o MTST, que está presente em todas as demandas de outros grupos também, porque eles querem fazer parte de todo o movimento popular, não apenas o de moradia.

Existem outros grupos que a partir da ideia de formar coletivos em redes começaram a agir pela eficácia da Constituição. São coletivos que têm a ver com meio ambiente, por exemplo, o que chamamos de direitos difusos e coletivos. Têm a ver com a questão da água, pela qual estamos sofrendo em SP, e vamos sofrer ainda mais... Têm a ver com o direito da mulher, direitos LGBT, enfim, todas as organizações da sociedade civil que lutam por direitos.

Tal organização não era esperada pelos antigos políticos, que viam nos partidos a maneira de atravessar a massa de gente, continuando com a mesma velha política de fazer com que as pessoas não consigam enxergar o que está acontecendo. Em colaboração com a grande mídia, claro. Tudo isso assustou o antigo político, cuja resposta foi aquela que conhecemos no período ditatorial brasileiro e, antes, em outros períodos, sempre com militarização e repressão.

O que temos hoje em dia, e não havia antigamente, é que os movimentos e coletivos são articulados em redes. Assim, mesmo que uma grande mídia tente apontar diariamente “ilações”, falar de crimes dos manifestantes, sugerir ligações entre os advogados e os manifestantes, toda e qualquer tentativa de criminalizá-los vai continuar repercutindo também na tentativa de esclarecer a população. Estão organizados de maneira articulada para que as informações que tentam ir contra os movimentos sociais, legítimos na sua concepção inicial de garantir os direitos efetivados na Constituição (ou pelo menos ali escritos), sejam esclarecidas à população.

Correio da Cidadania: Desse modo, o que entende como legado da Copa, na relação com os direitos civis mais básicos de uma democracia? A sombra do Estado de exceção é passageira ou, após a experiência desse momento, será instrumento recorrente de governos?

Daniel Biral: O que a gente está vendo é a radicalização, e não dos movimentos sociais. Estamos vendo a radicalização por parte do Estado, que reprime em uma praça pública onde haveria um debate político. A radicalização parte dos governos. A questão está visível até na fala de alguns dos candidatos. Alguns candidatos dizem: “ah, eu faria pior, eu já teria apreendido antes, teria feito a repressão ainda maior”.

E o que queremos, como sociedade civil, pelo menos falando por mim quando fui preso, é exatamente o contrário: que se permita o debate público, a ação participativa do povo, os conselhos participativos da população, de modo a termos um conhecimento um pouco mais aprofundado sobre política e sobre como atuar politicamente pelo seu bairro, pela sua cidade ou mesmo pela demanda que mais se identificar.

É certo que o político, aquele que toma o poder, sempre vai ter na mão a “legalidade” de uma composição de palavras, que parece o grande chavão para a polícia atuar de maneira repressiva, através da ideia de “manutenção da ordem pública”. É subjetiva essa “manutenção da ordem pública” e acredito que debate político não subverta a ordem pública. Mas já vimos que a repressão a um debate que não subverte a ordem pública está sendo realizada.

Ainda vamos sofrer muito mais até a alteração dessa mentalidade e cultura, que não permitem ao movimento social exigir mudanças de direcionamento no foco político do administrador público. A repressão tende a aumentar, infelizmente.

Correio da Cidadania: Já que em suas palavras a repressão tende a aumentar, é válido lembrar que, apesar de tudo, as decisões do poder executivo e legislativo, além da atuação da polícia (quem vai para o corpo a corpo nas manifestações) são largamente noticiadas e em boa medida criticadas. No entanto, como advogado, como você enxerga a atuação do poder judiciário neste contexto?

Daniel Biral: A grande vocação de todo advogado que me faz estar na rua. Há apenas um ano, porque antes não tinha ligação alguma com movimento social. Era o famoso ‘advogado coxinha’. E fui às ruas exatamente para verificar a efetividade da Constituição, porque pelas informações que fomos captando da televisão, e também de outros meios de comunicação, me parecia que ela estava sendo totalmente rasgada. Fui para a rua esperando que o poder judiciário resguardasse os direitos da população, resguardasse as leis de direito à manifestação.

Mas as últimas sentenças do judiciário são completamente contraditórias. Inclusive, os agentes do poder judiciário deveriam ser responsabilizados sobre tais decisões, mas essa é uma questão futura. Falo assim porque suas decisões não estão avaliando o conteúdo das provas contidas nos processos. As decisões têm levado em conta apenas as versões dos fatos alegadas pela polícia.

Portanto, a justiça não está verificando a legalidade dos atos a respeito de cometimento de crimes dentro de um inquérito policial, mesmo em fase administrativa. A justiça está apenas ratificando tais atos. O poder judiciário está se submetendo às decisões de um órgão executivo, uma vez que a polícia é parte do poder executivo.

O que está acontecendo é uma sombra muito grande para todo mundo do meio jurídico, inclusive em relação a minha prisão, da Silvia Daskal, além de outros, como do Benedito Barbosa, há anos envolvido nos movimentos de moradia, e agora da Eloisa Samy, execrada por uma ligação que fez para clientes, ou conhecidos, que teriam mandados de busca e apreensão. Ora! No direito, nós agimos como advogados e tentamos esclarecer ao nosso cliente todas as nuances do processo e ao que ele está sujeito perante as leis. É isso que ela fazia. Enquadrá-la ao lado de toda a organização criminosa que dizem ter descoberto é muito complicado.

Ficamos preocupados com tudo o que a justiça tem feito. Outro exemplo veio do ex-presidente do Supremo, Marco Aurélio Mello, que antes mesmo de qualquer decisão chegar ao STF já se manifestou sobre a condição de se extraditar ou não a Eloisa, alegando que as instituições aqui funcionam de forma democrática. Mas o que vivemos de um ano pra cá mostra que muito desse Estado democrático de direito em que pensávamos estar não existe na prática.

Posso até dar dados. Por exemplo, a polícia judiciária, instituída para investigar, não consegue fazê-lo nem em 15% dos casos de homicídio. E resolve apenas 1%. Uma mostra de como é uma instituição falida. Não consegue cumprir sua determinação institucional. E vemos o mesmo em todas as esferas administrativas do poder público, com exemplos na educação, na saúde...

Falar que, legalmente, as instituições estão cumprindo seu papel de forma democrática é uma coisa. Mas ver se essa democracia efetivamente chegou é diferente.

Correio da Cidadania: Diante de tudo que aqui debatemos, como se posicionarão os Advogados Ativistas? De que maneira pretendem atuar e se organizar nos próximos tempos?

Daniel Biral: Bom, se até lá não formos presos, vamos continuar na rua dando todo o apoio e orientação aos coletivos e para as pessoas que queiram conhecer um pouco mais do direito, daquilo que realmente está escrito e vale. Ainda mais porque precisaremos de apoio, por ser um coletivo de advogados que questiona toda a legitimidade dos órgãos e juízes que se colocam contra o povo, contra aqueles que reivindicam, patriotas que tentam ajudar o país levando demandas às ruas, querendo que o poder público realmente cumpra seu papel. Continuaremos orientando tais pessoas e apoiaremos todos os projetos que consigam estabelecer novas ações sociais perante o poder público.

Instituímos a “Quinta da Resistência”, na praça Roosevelt, um lugar público, para sempre debatermos e trocarmos conhecimento com outros grupos, coletivos e pessoas. Fica o convite para as pessoas irem à praça nas quintas, pois estaremos lá.

É como no filme Matrix. A gente tomou a pílula certa, e estamos com um conhecimento maior do que o permitido. Assim, vamos lutar para que a verdade prevaleça em todos os casos, inclusive em favor dos presos políticos que agora amargam a violência política do Estado.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Politica em ritmo de eleição: entre “avanços” e “recuos”, quem perde e quem ganha



Por Aluizio Moreira


A agressividade que se tem verificado nos meios de comunicação, entre os adeptos dos três primeiros colocados na corrida para a presidência da república, chega a beirar o absurdo. Por vezes chega a evidenciar um fanatismo de tal monta, como se a escolha de um dos candidatos e não do outro, fosse uma questão de vida ou morte. E isto entre eleitores que fazem parte de uma elite “pensante”, sobretudo no meio acadêmico, que se autoconsidera de esquerda.

Fala-se em retrocesso, se se defende tal candidato ou candidata de determinado partido, em avançar mais se se apoia tal candidato ou candidata de outro partido. Resta definir qual retrocesso e qual avanço. Retrocesso ou avanço não deixa de ser mudança, para frente ou para trás.

Mas na verdade o que deveria motivar o eleitor (me dirijo ao intelectual formador de opinião que se considera de esquerda) numa eleição seja minoritária ou majoritária, seria a questão da contribuição que essa eleição traria para a organização popular, objetivando a implantação da real transformação da sociedade.  Isto porque não entendo ser de esquerda, aquele que simplesmente, e comodamente, defende o status quo, apostando na humanização de um sistema, que jamais poderá ser humanizado.

É claro que a eleição, por si só, não transforma alguma coisa, como pensava (e ainda pensa) a tendência bernsteniana que apostava (e ainda aposta) na transformação da sociedade pela via parlamentar. Ou o povo toma em suas mãos a tarefa de transformar, ou tudo permanecerá como tem sido até hoje: mudamos as pessoas no poder, mas em sua essência, a sociedade continua a mesma. 

Ou seja, ajudamos a perpetuar a sociedade capitalista, cuja lógica de sua reprodução repousa na apropriação e concentração da riqueza por uma ínfima parcela da população, na manutenção do sistema cuja base é a propriedade privada dos meios de produção, na conservação do lucro como forma de realização do capital.

Os “avanços” que muitos apregoam como prova insofismável das mudanças, apenas “mudaram” situações; podem até ter melhorado os ganhos salariais, ou o aumento do número de pessoas que ingressam nas universidades, uma maior “fartura” na mesa do trabalhador. Ganhos salariais que no primeiro dia de sua vigência, já estão corroídos pelos aumentos dos preços das mercadorias; ingressam nos cursos superiores, assinando um contrato de financiamento com instituições bancárias; matam a fome com alimentos cultivados com agrotóxicos e geneticamente modificados. (Em relação aos alimentos, enquanto a China, EUA, França, Alemanha, Sri Lanka, entre outros, adotam medidas contra o uso de agrotóxicos e transgênicos, o governo brasileiro financia empresas que investem neste tipo de negócios).

Evidente que a politica, está presente em” todos os aspectos da vida humana” como salientou Reinaldo Dias na sua obra Ciência politica (2013, p.6-7), e diz respeito a questões tão diversas como a inclusão social dos indivíduos, a melhoria da qualidade de vida da população, a participação do povo nas decisões  que afetam a coletividade, a biodiversidade, embora em nossa sociedade, a população seja induzida ideologicamente pela classe hegemônica (no poder ou fora dele), a relacionar a politica apenas com o ato de votar periodicamente. Mas não devemos esquecer também, que a politica implica em relação de poder, poder este que é constituído por uma diversidade de instituições burocráticas, administrativas e repressivas, que se concentra no Estado, como detentor desse poder numa sociedade de classes.

Na verdade, o poder politico representa determinados interesses de determinada classe social, que para manter sua hegemonia como classe, necessita da legitimação de todo povo, através das eleições parlamentares.

As divergências que se apresentam numa disputa eleitoral na sociedade capitalista como a nossa, são divergências de grupos  que se assenhoreiam ou procuram assenhorear-se do poder, a fim de assegurar/ampliar a defesa de seus interesses/compromissos de classe. Os parlamentares não deixam de ser seus representantes, por mais que afirmem que defendem os interesses do povo. 

Com maiores ou menores conflitos, as falsas contradições entre as diversas tendências neoliberais, são apresentadas sob o manto da politica do “avançar mais”, da “nova politica”, do “fazer diferente”.


domingo, 14 de setembro de 2014

Uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar o sistema político é juridicamente possível?



Por Murilo Gaspardo



Durante esta semana, compreendida entre os dias 1º e 7 de setembro, ocorrerá, em todo o Brasil, o processo de votação do “Plebiscito Popular por uma Constituinte Exclusiva Soberana do Sistema Político”, organizado por diversos movimentos e organizações da sociedade. Como se sabe, a iniciativa decorre de um duplo diagnóstico:

1) o Brasil precisa de uma urgente reforma do sistema político, a fim de conferir maior legitimidade e efetividade à nossa democracia, diante da crise do atual modelo representativo;

2) o Congresso Nacional não se revela capaz de executar satisfatoriamente tal missão, em decorrência dos bloqueios de diversos tipos de interesses (poder econômico, partidos políticos, os próprios parlamentares etc.) a qualquer forma de transformação estrutural e emancipatória no Brasil. Diante disso, encontra-se em curso esta grande mobilização pela realização de uma Constituinte para reformar o sistema político.

Uma das críticas que esta iniciativa tem recebido refere-se à sua impossibilidade jurídica, pois a proposta não se enquadraria dentro das hipóteses e dos limites estabelecidos pelo Art. 60 da Constituição Federal para emenda constitucional – e de fato não se enquadra, de maneira que não seria viável uma reforma política deste tipo empreendida pelo Poder Constituinte Derivado e dentro dos marcos normativos da Constituição.

Entretanto, a proposta se refere a uma manifestação do Poder Constituinte Originário, e este reside permanentemente no povo, que pode exercê-lo sempre que entender necessário de forma autônoma e incondicionada. Ocorre que os críticos da proposta também utilizam um argumento de caráter conceitual, de acordo com o qual o Poder Constituinte Originário é, por definição, ilimitado, de maneira que, não poderia haver uma prévia limitação de sua atuação à temática da “reforma do sistema política”.

Ora, se tal Poder não pode ser previamente limitado (ou limitado por terceiros), nada impede que ele estabeleça limites para sua própria atuação, ou seja: se o Poder Constituinte Originário “pode tudo” (há controvérsias sobre isto, por exemplo, a compreensão dos direitos humanos como limites materiais ao próprio Poder Constituinte), por que não poderia decidir atuar apenas para reformar o sistema político?

Além disso, este Poder do povo não tem como fundamento as normas constitucionais vigentes, mas a legitimidade.

Nesse sentido, a ideia de Tercio Sampaio Ferraz Júnior (2001, p. 186 – 190), segundo a qual o ordenamento jurídico é composto tanto por “normas (repertório do sistema”) como por “regras de calibração (estrutura do sistema)”, pode ajudar na reflexão.

As “regras de calibração” permitem mudanças no “padrão de funcionamento” do sistema jurídico sem que ele deixe de funcionar, sem que entre em colapso. Essas mudanças ocorrem em situações em que surgem demandas do ambiente (da sociedade) que não são respondidas satisfatoriamente pelo sistema. Uma mudança possível é a do “padrão legalidade” para o “padrão legitimidade” de funcionamento do sistema jurídico.

Foi o que ocorreu, no exemplo utilizado pelo autor, no julgamento do Tribunal de Nuremberg, após a segunda Guerra Mundial: “não havia normas superiores de Direito Internacional Penal que, à época, tipificassem o genocídio como crime, sendo aceito o princípio nullum crimen nulla poena sine lege (não há crime nem pena sem lei prévia)”.  Portanto, não havia como responsabilizar adequadamente os criminosos nazistas dentro do “padrão legalidade” de funcionamento do sistema jurídico internacional. Diante disso, mudou-se o funcionamento do sistema penal internacional para “um padrão de legitimidade, regido pelo princípio de exigências fundamentais e vida na sociedade internacional”.

Ora, no atual contexto político brasileiro, o que se observa é, justamente, uma demanda da sociedade por uma reforma política de caráter estrutural, mas o sistema jurídico-político (partidos políticos, Congresso Nacional, procedimentos de emendas constitucionais e de produção de leis) não tem se mostrado capaz de responder satisfatoriamente a esta demanda. Ou seja: não se pode esperar uma reforma política estrutural dentro do “padrão legalidade” de funcionamento do sistema jurídico.

Entretanto, há muitos elementos da atual “crise da democracia representativa brasileira” (crescimento das abstenções nas eleições, queda da militância partidária voluntária, manifestações de junho de 2013 e seus desdobramentos, falta de autenticidade dos programas partidários, esvaziamento do conteúdo substantivo dos debates eleitorais, domínio do poder econômico sobre os processos político-decisórios, corrupção etc.) que comprometem severamente a capacidade de as instituições políticas, juridicamente reguladas, cumprirem suas funções primordiais (gerar legitimidade, permitir a mediação democrática dos conflitos sociais etc.), não obstante, formalmente, o sistema aparente estar íntegro (eleições periódicas, liberdade de imprensa etc.).

Uma Constituinte exclusiva e soberana para reformar o sistema político não seria, pois, possível dentro do funcionamento do sistema jurídico brasileiro operando no “padrão legalidade”, mas perfeitamente viável se calibrado para o “padrão legitimidade”.

As questões, portanto, são verificar se há elementos suficientes para justificar a mudança da calibração do sistema para o “padrão legitimidade” e como aferir legitimidade de um projeto como este, ou seja, como demonstrar que há um consenso da sociedade em torno desta proposta.

A realização do “Plebiscito Popular” representa um passo fundamental para encontrar as respostas para tais questões e, a partir de seus resultados, outras ações devem ser desenvolvidas.


terça-feira, 9 de setembro de 2014

O que é Creative Commons e por que usá-la?


Por Emerson Alecrim


Introdução

Aqui no InfoWester, respondemos com frequência a duas perguntas: "posso publicar os artigos de vocês em meu blog/site?" e "o que é Creative Commons?". As respostas para estas perguntas são bastante relacionadas, afinal, é por uma licença Creative Commons que os textos do InfoWester podem ser utilizados em outros meios.

O problema é que muita gente não entende exatamente o que é Creative Commons. Se este o seu caso, não se preocupe: este artigo foi escrito justamente para esclarecer as dúvidas sobre o assunto. Vamos lá?

O que é Creative Commons?

Creative Commons (CC) é, na verdade, uma entidade sem fins lucrativos criada para permitir maior flexibilidade na utilização de obras protegidas por direitos autorais. A ideia é fazer com que um autor/criador possa permitir o uso mais amplo de seus materiais por terceiros, sem que estes o façam infringindo as leis de proteção à propriedade intelectual.

Com uma licença Creative Commons, um compositor pode permitir que outros artistas utilizem algumas de suas composições criando uma mistura de ritmos, por exemplo; um escritor pode disponibilizar um artigo e permitir que outros autores o utilizem, seja publicando em outros meios, seja aplicando parte do conteúdo em um novo texto, seja utilizando o original, mas efetuando mudanças, enfim.

Graças à internet, esse "espírito colaborativo" se tornou muito maior. O problema é que as leis de proteção aos direitos autorais são por demais rígidas e, muitas vezes, acabam atrapalhando a vontade de muitos criadores de não só cederem seus materiais, como também de utilizar criações de outras pessoas que também querem compartilhar seu trabalho.

Com a Creative Commons, autores e criadores podem permitir o uso de suas obras de maneira muito mais flexível. Eles conseguem decidir como e sob quais condições seus materiais podem ser utilizados por terceiros. Um exemplo: um escritor pode permitir a qualquer pessoa o uso e a alteração de um texto de sua autoria, exceto em aplicações comerciais. Note que, neste caso, a licença Creative Commons dá mais liberdade de uso à obra, mas não tira do autor original a possibilidade de geração de renda: ele pode cobrar pelo uso do texto no caso de atividades con fins lucrativos.

Para compreender melhor, vamos analisar o uso da Creative Commons pelo InfoWester. O site tem uma página que explica como os artigos podem ser utilizados. Nela, mostramos como utilizamos a licença Creative Commons. As mesmas informações aparecem quando o leitor clica na imagem que representa a iniciativa. Veja quais são:

Você pode copiar, distribuir, exibir e executar a obra, além de criar outras derivadas sob as seguintes condições:

- Atribuição: você deve dar crédito ao autor original, da forma especificada pelo autor ou licenciante*. Isso quer dizer que você deve informar quem é o autor original da obra;

- Uso não-comercial: você não pode utilizar esta obra com finalidades comerciais, por exemplo, para colocá-la em uma revista paga;

- Compartilhamento pela mesma licença: se alterar, transformar ou criar outra obra com base nesta, você somente poderá distribuir o material resultante sob uma licença idêntica a esta.

(* No caso do InfoWester, a simples menção do nome do site mais seu endereço (link) é suficiente, por exemplo: "Fonte: InfoWester - http://www.infowester.com".)

Essa é, basicamente, a licença de uso dos artigos do InfoWester. Note, no entanto, que na mesma página da declaração há duas notas semelhantes a estas:

- Para cada novo uso ou distribuição, você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra;

- Qualquer uma destas condições pode ser renunciada, desde que você obtenha permissão do autor.

Quanto a este último aspecto, eis um exemplo que a explica:

Suponha que você tenha uma agência de comunicação e queira utilizar a música de um cantor, disponível sob uma licença Creative Commons, em uma propaganda de TV. O problema é que esta é uma atividade comercial, portanto, você não pode utilizar o material do referido autor para este fim. Entretanto, você pode entrar em contato com o artista para negociar uma permissão.

Perceba que a Creative Commons oferece várias combinações de licenças. Você pode ter, por exemplo, uma obra que permite uso comercial e outra que não permite. Ou você pode ter um trabalho que não permite a criação de obras derivadas, por exemplo. Tudo o que você precisa fazer é deixar claro estas condições. Na internet, a maneira mais prática de se fazer isso é disponibilizando um link ou mesmo um selo da Creative Commons que direcione para uma página que descreva suas condições. Como? O tópico a seguir explica.


Como faço para disponibilizar minha obra em Creative Commons?

Se você tem um blog, cria artigos e os publica na internet, trabalha com fotos e imagens, é músico, entre outros, pode disponibilizar suas obras sob uma licença Creative Commons facilmente. Não é necessário ir em escritórios de registros, pagar taxas, contratar especialistas em direitos autorais, nada disso.

A disponibilização de materiais em Creative Commons é simples. Basta visitar o site oficial - creativecommons.org - ou sua versão brasileira - creativecommons.org.br - e procurar um link que trate de publicação (geralmente, este é bem visível). Depois, surgirá uma página onde você responderá um breve questionário para determinar o que pode e o que não pode ser feito com a sua obra.

Você também pode incluir informações adicionais, como o formato de sua criação: áudio, vídeo, imagem, texto, etc. Terminada esta etapa, basta clicar em "Escolha uma Licença" ou em um botão equivalente. Isso fará com que um código-fonte que exibe uma figura declarativa da Creative Commons seja gerado para você incluí-lo em seu blog/site. Nesta mesma página é possível obter orientações sobre como divulgar sua obra como Creative Commons caso você não tenha um site.



Escolhendo uma licença Creative Commons

Ao colocar o código em questão em seu site, uma figura semelhante a esta será exibida:


Clicando na imagem acima, uma página aparecerá e informará ao usuário as condições de uso da obra que você determinou no questionário.

Você deve ter notado que a Creative Commons, na verdade, não determina uma única licença, mas sim um conjunto delas, já que você pode definir uma combinação de possibilidades de uso. Isso mostra o quão flexível é a Creative Commons.

Como surgiu a Creative Commons?

Quando uma pessoa cria uma obra, ela tem direitos sobre sua criação. Para isso, existem leis de proteção à propriedade intelectual. O problema é que, com o surgimento da internet, o uso ilegal de materiais protegidos - "pirataria" - cresceu consideravelmente, razão pela qual muitos países passaram a praticar cada vez mais restrições para proteger os direitos dos criadores. No entanto, o tempo revelou que essas regras beneficiaram mais as empresas - gravadoras e editoras de livros, por exemplo - do que os autores. Isso é visível no meio musical, onde os CDs são caríssimos, fazendo com que o número de compradores diminua cada vez mais e a obra do autor acabe sendo divulgada para uma quantidade menor de pessoas.

Na expectativa de flexibilizar a utilização, a execução e a distribuição de obras é que surgiu a Creative Commons, uma iniciativa de Lawrence Lessig, professor da Universidade de Stanford. A primeira formalização das licenças Creative Commons foi feita em 2001, nos Estados Unidos.

A preocupação de Lawrence iniciou-se neste país, onde a questão dos direitos autorais chegou a um extremo considerado insuportável por muitas pessoas. É tanta limitação que, segundo Lessig, até crianças podem ser tidas como infratoras se utilizarem material alheio em suas pesquisas escolares. Certamente, a maioria dos autores de tais obras discorda disso.

No Brasil, o projeto Creative Commons é muito bem apoiado. O Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas é a entidade responsável por adaptar a Creative Commons à realidade do país e por incentivar a sua adoção.

Sites interessantes sobre o assunto

Além do endereço oficial, há muitos sites na internet que podem te ajudar a encontrar conteúdo sob Creative Commons. Eis alguns deles:

- dig.ccmixter: site que disponibiliza músicas gratuitas para serem usadas para os mais diversos fins e as classifica em categorias como games, vídeos e festas;

- Flickr Creative Commons: página do Flickr onde o usuário pode encontrar imagens disponíveis sob Creative Commons;

- Creative Commons Search: página da própria Creative Commons que reúne links para variados mecanismos de pesquisa que realizam buscas considerando as licenças.

Finalizando

Generosidade intelectual. Os frutos de se compartilhar ideias e criações são os mais benéficos que existem. A internet deixou evidente o espírito colaborativo que há entre muitos indivíduos. Além disso, a Web mostra que a criatividade e a competência não se limitam a grandes corporações e que há muita gente de talento em toda parte do mundo. A Creative Commons se encaixa nestes contextos para que as pessoas possam usufruir de obras sem medo de infringir regras e para que se sintam livres para distribuir aquilo que criaram ou que encontraram.


FONTE: InfoWester

sábado, 6 de setembro de 2014

O Direito Achado na Rua



Professor da UnB defende a necessidade de romper paradigmas e colocar a justiça a serviço do povo, contemplando as reivindicações dos movimentos sociais

Por Maíra Streit


Professor José Geraldo Sousa sugere a implantação de
um Direito menos opressor e mais democrático
“Kant e Fichte buscavam o país distante pelo gosto de andar lá no mundo da lua / Eu por mim tento ver, sem viés deformante / O que pude encontrar bem no meio da rua”. Os versos de Epigrama Hegeliano nº 3, de Karl Marx, inspiraram o jurista Roberto Lyra Filho a pensar uma nova concepção do Direito, que poderia emergir das ruas, dos espaços públicos.

Nela, a ideia de justiça vai muito além de normas e sanções, tampouco se restringe às leis. Lyra acreditava que era hora de construir um Direito que levasse em conta as constantes transformações sociais, o apelo dos movimentos populares, as lutas coletivas pela ampliação da cidadania. Em outras palavras, era preciso colocar o Judiciário a serviço do povo.

O pensamento ganhou força e, após a morte do jurista, em meados dos anos 1980, surge na Universidade de Brasília (UnB), onde foi professor, o curso de extensão “O Direito Achado na Rua”. Hoje, trata-se de uma linha de pesquisa e um movimento teórico-político que tem como principal incentivador o também professor de Direito e ex-reitor da UnB, José Geraldo Sousa Junior.

E é ele quem conversa com a Fórum, nesta entrevista, sobre a necessidade de se construir um Direito menos burocrático e opressor, que possa atender – de fato – as reivindicações de grupos excluídos. A intenção é que não apenas a população deva se submeter às leis, mas que as leis possam, também, se submeter à população. Ele fala sobre a importância de provocar a discussão entre estudantes, professores e pesquisadores, ampliando o debate sob um viés mais politizado.

Revista FórumDe onde surgiu o termo “O Direito Achado na Rua”? Qual foi a origem desse movimento?

José Geraldo - Essa expressão, claramente metafórica, foi criada pelo jurista Roberto Lyra Filho, professor da UnB, um dos principais formuladores do pensamento jurídico crítico brasileiro. Para ele, o Direito devia também ser achado na rua, como criação social e expressão de legítima organização da liberdade, traduzindo o processo de emancipação dos oprimidos e dos excluídos. Curiosamente, ao construir a metáfora, o professor Lyra Filho se inspirou em Marx, a partir de um poema do pensador, no qual, mostrando o idealismo alemão projetado para “o mundo da lua”, revelou a sua intenção de se voltar para o que pudesse “encontrar bem no meio da rua”. Poeta também, o professor Lyra Filho afirmou que queria aplicar ao seu campo de pesquisa, o Direito, a mesma intencionalidade, ou seja, “achá-lo na rua”, ali onde nasce o clamor dos espoliados e dos oprimidos.

Marshal Berman, em “Tudo que é sólido desmancha no ar”, mostra que é exatamente na rua, quando reivindica dignidade, cidadania e direitos, que a multidão se transforma em povo. E, entre nós, além de Castro Alves (“A praça, a praça é do povo…”), também Cassiano Ricardo celebrou a “rua da reivindicação social, onde mora o acontecimento”, uma experiência que desde as jornadas de junho do ano passado, passamos a experimentar de modo renovado.

Fórum – Pode-se dizer que falta credibilidade ao poder Judiciário para que os cidadãos se sintam realmente representados? Por quê?

José Geraldo - Sim e os próprios juízes, conscientes das limitações da cultura legalista de sua formação e dos obstáculos corporativos ao cumprimento mais politizado de sua função social, têm manifestado clareza sobre essa perda de credibilidade e têm se organizado para também se comprometerem política e teoricamente, com a realização da democracia. Seu conformismo funcional acaba fazendo da própria lei “promessa vazia”.

Por isso a importância de movimentos como o do chamado “direito alternativo”, ou organizações como a associação “Juízes para a Democracia”. Cuida-se de abrir a hermenêutica do jurídico para a tarefa de realização daqueles direitos que, embora ainda não legislados, já se inscrevem num cotidiano de realizações próprio ao trabalho da democracia. A nossa própria Constituição, em seu artigo 5º, esclarece que aquele elenco de direitos não exclui outros que derivem da natureza do regime (a democracia), ou dos princípios que a balizam (os direitos humanos). É a esse processo de criação permanente de direitos que o filósofo Claude Lefort denomina de “invenção democrática”.

FórumA quem serve a Justiça brasileira, tal qual está? Esse sistema mais normativo e positivista acaba favorecendo uma parcela específica da população?

José Geraldo - Institucionalizado no seu conservadorismo, quase estamental, identificado com os valores da classe e das elites intelectuais nas quais seus membros são majoritariamente recrutados, o Judiciário se isola no formalismo e fica distante das lutas sociais por reconhecimento de novos direitos, incapaz de abrir-se a outros modos de determinação do Direito. É o que afirma o constitucionalista Gomes Canotilho, recomendando que o “olhar vigilante sobre as exigências do justo” se inspire em teorias da sociedade e da justiça, atento às práticas sociais legítimas ou a programas como “O Direito Achado na Rua”, em sua consideração, um importante movimento político-teórico surgido na Universidade de Brasília.

FórumEm “O Direito Achado na Rua”, a rua aparece como uma metáfora dos espaços públicos e de luta dos movimentos sociais populares. O senhor acredita que o povo está mais consciente de seus direitos? Ou, pelo menos, está mais mobilizado?

José Geraldo - Com certeza. As jornadas de junho do ano passado transformaram as ruas em espaços de reivindicação social, resgatando o protagonismo popular para a criação de direitos. No fundo, é o aprofundamento do processo de redemocratização que vivenciamos desde o final da ditadura, com a Constituinte de 1987-1988, quando se inaugurou um sistema ativo de participação social expandindo a concepção de democracia, já não apenas representativa, mas também direta. Daí a importância do decreto que instituiu o Sistema Nacional de Participação Social, instrumento muito importante para ajudar a fazer o trânsito da cultura do favor, orientada pela tutela do coronelismo, do clientelismo, do filhotismo, do mandonismo, do cunhadismo, tão bem descritos nas obras de Sérgio Buarque, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Darcy Ribeiro; e instaurar uma cultura republicana de direitos, mediada pelo resgate da dignidade da política. Compreende-se, assim, a recusa dos detentores de privilégios e das elites, em reconhecer a legitimidade das estratégias de participação previstas, notadamente a partir da Constituição de 1988, fortalecedoras da participação e do controle social.

FórumEm uma declaração, o senhor afirmou que “continua a haver Direito além da lei, fora da lei e até mesmo contra a lei”. O que isso quer dizer exatamente?

José Geraldo - É que Direito e Lei não se confundem. Basta ver o processo legislativo e as muitas “armações” para elaborar a legislação. Veja que a luta dos movimentos sociais já é o embrião de novos direitos que vêm substituir exatamente a primeira resposta conservadora, em geral criminalizadora, por meio da qual se procura imobilizar o protagonismo social.

Outra não foi a função do modelo de segurança social traduzido em legislação que limitava a ação dos movimentos sociais, quando exerciam a crítica, a capacidade de organização e a sua própria participação na cena política. Estão aí as Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos, para indicar a necessidade de Justiça de Transição como condição para o reaprendizado da prática institucional democrática.

Fórum Esse movimento nasceu dentro da universidade. Qual a importância de discutir o tema com esses futuros profissionais?

José Geraldo - Fomentar no desempenho profissional, desde a sua formação, que seu agir não é apenas técnico, mas também político; que não se presta somente para conservar o mundo, mas para agir no sentido de sua transformação, em direção à solidariedade e à justiça.


Para saber mais, assista ao documentário realizado pelo Centro de Produção Cultural e Educativa (CPCE) da UnB, em 1993, sobre “O Direito Achado na Rua



FONTE: Revista Fórum Semanal

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