quarta-feira, 28 de junho de 2017

Como a casta política controla o que o brasileiro sabe



Pesquisadora da UFRJ revela, em livro, as relações íntimas entre os parlamentares e as TVs e rádios pelas quais
o país se (des)informa. Fenômeno não se limita às regiões mais pobres, ao contrário do que se pensa


Por Taís Seibt


Durante a corrida presidencial de 2002, uma grande quantidade de dinheiro foi apreendida no escritório da pré-candidata a presidente da República pelo PFL, Roseana Sarney. A descoberta do dinheiro, que seria usado como caixa 2, levou Roseana a desistir da campanha presidencial para concorrer ao senado. Filha de José Sarney, Roseana tinha a política no sangue, mas não apenas isso. Era também herdeira de um império midiático regional: a família Sarney comandou a afiliada maranhense da Rede Globo até o começo deste ano.

Natural do Maranhão e estudando no Rio de Janeiro, Pâmela Araújo Pinto decidiu analisar em sua pesquisa de mestrado, na Universidade Federal Fluminense (UFF), as tensões entre o discurso nacional e regional da mídia no episódio envolvendo Roseana Sarney. No doutorado, pela mesma instituição, quis aprofundar o estudo sobre a concentração das mídias regionais nas mãos de políticos, já que em seu estado natal a família Sarney não era um caso isolado: a afiliada ao SBT, TV Difusora, pertence a familiares do senador Edson Lobão (PMDB); parentes do senador Roberto Rocha (PSB) são donos da TV Cidade, afiliada à Record; e a Band está nas mãos de pessoas ligadas ao ex-deputado estadual Manoel Ribeiro (PTB).

A tese, defendida em 2015 e premiada pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política (Compolítica) em 2017, mapeou 392 veículos de 29 cidades do Norte e 824 veículos de 58 municípios do Sul. Pâmela encontrou mais semelhanças do que diferenças entre os dois extremos do país e observou grande sincronismo entre ascensão política e posse de mídias, sobretudo de radiodifusão.

Entre os casos mais expressivos, está a família Barbalho, no Pará, que hoje tem Helder Barbalho como ministro da Integração Nacional. Helder é filho do senador Jader Barbalho (PMDB) e herdeiro de um conglomerado de mídia afiliado à Band. No Sul, chama atenção a trajetória de Ricardo Barros, à frente do Ministério da Saúde no governo Temer. Ele tem rádios em Maringá, no interior do Paraná, sua mulher, Cida Borghetti, é vice-governadora do estado, e a filha, Maria Victoria (PP), é deputada estadual.

Casos como esses agora estão no livro “Brasil e as suas mídias regionais: estudos sobre as regiões Norte e Sul”, lançado em 21 de junho, no Espaço Multifoco, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro. Na entrevista a seguir, Pâmela, que hoje é professora substituta da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), comenta o significado e o impacto de seus achados de pesquisa para a democracia brasileira.

Por que você escolheu pesquisar a posse de mídia nas regiões Norte e Sul do Brasil?

Decidi estudar o maior (Sul) e o menor (Norte) mercado de mídia regional do Brasil, desconsiderando o Sudeste. Meu objetivo era entender como as empresas se organizam, o seu impacto nesses espaços e descobrir se havia semelhanças, pois as diferenças eu imaginava que eram certas, por questões socioeconômicas. Também procurei entender o impacto do controle da mídia nas duas regiões por políticos, pois mesmo na academia ainda se pensa que esse controle é algo apenas de regiões mais pobres, como o Nordeste. Busquei os grupos de mídias de capitais das duas áreas e também de cidades de médio e pequeno porte. Localizei grupos afiliados às grandes redes de TV (Globo, SBT, Record, Band e Rede TV), afiliados às redes de rádio (CBN, Jovem Pan, Transamérica) e ainda grupos menores e independentes desses elos com mídias nacionais.

Você reuniu uma base de dados bastante ampla nas duas regiões. Como foi esse processo? Quais foram as principais dificuldades?

Busquei entender os mercados regionais usando dados oficiais do Ministério das Comunicações e dados da Associação Nacional de Jornais (ANJ). No Ministério das Comunicações, consegui o número de emissoras de rádios, TV e retransmissoras de TV de cada estado. Em 2011, o órgão lançou a lista de sócios de outorgas de radiodifusão no país, por meio dela foi possível mapear os políticos “donos de mídias”. As informações sobre os números de jornais foram mais difíceis de conseguir, pois os dados não são gerais. Pesquisando as emissoras afiliadas às redes nacionais nos estados, percebi que não havia uma transparência neste elo com grupos nacionais. As empresas nacionais precisam de parceiras locais para levar o sinal a todo o país, mas regionalmente os afiliados muitas vezes não têm site, não divulgam a grade de programação. Tive que fazer uma verdadeira investigação para descobrir programas locais, no Youtube e Facebook, por exemplo, e também saber quais eram os donos das empresas afiliadas. A principal dificuldade foi essa, conseguir informações dos mercados menores, no interior do Brasil. Essas empresas afiliadas deveriam ter sites e prestar informações sobre o uso que fazem das concessões de radiodifusão, que afinal de contas, são públicas.

O que mais te surpreendeu ao analisar os dados?

A quantidade de políticos donos de mídia e o uso desses canais de comunicação massivos para se perpetuar no poder, regionalmente, e ter influência política regional e nacional foi o que mais chamou atenção. Identifiquei 34 políticos ligados a 26 grupos de mídia nos sete estados do Norte. No Sul, localizei 56 políticos ligados a 41 grupos, nos três estados. Muitos são eleitos consecutivamente, têm programas em suas mídias e ainda conseguem transferir essa influência a familiares. Agora mesmo eles estão representando os seus respectivos estados e atuando pelos seus interesses, como na Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI). Também observei que todos os políticos donos de mídia votaram pelo golpe que retirou a presidente Dilma do cargo.

Como você analisa o impacto dessa concentração midiática e seu uso político para a consolidação da democracia no Brasil?

A concentração prejudica diretamente o nosso direito à informação e à comunicação, assegurados constitucionalmente. Saindo dos eixos urbanos, conectados à internet, vamos ter comunidades informadas diretamente e quase exclusivamente pelas mídias massivas mais tradicionais, ou seja, TV e rádio. Para piorar, nem todos os estados têm um mercado de jornais consolidado, há regiões com poucos jornais e muitos deles também são controlados por políticos. Esse cenário de controle, infelizmente, faz parte da realidade de muitas pessoas, em todo o país. Não é uma realidade apenas de cidades menores, mas de várias capitais. Temos um mercado de mídia concentrado em poucos grupos e um forte controle de mídia por políticos. Há pouca valorização de estratégias alternativas, a exemplo da mídia comunitária.

Às vésperas do julgamento no TSE, o presidente Michel Temer mandou acelerar propostas de concessões, sendo que muitas delas haviam sido solicitadas por aliados do governo. O que isso revela sobre o uso das concessões como instrumento político?

Isso expõe que as concessões são estratégicas para manutenção e fortalecimento de grupos políticos. Com mídias próprias, os políticos utilizam esses espaços para autopromoção e também para dar visibilidade a membros da sua família. Fortalecem seus grupos políticos e “atacam” os adversários em um espaço local. Imagina como deve ser concorrer com o grupo do senador Davi Alcolumbre (DEM), no Amapá? Ele é sobrinho do grupo de mídia que controla três emissoras de TV afiliadas às redes Record, Band e SBT. Até 2002, menos de 5% da população do Norte tinha acesso à rede de computadores (internet). Dez anos depois, esse índice oscila em 30%, dependendo da região, segundo dados do IBGE. A família do senador também edita um jornal gratuito que divulga ações de Davi em Brasília. Em pouco mais de uma década, ele passou de vereador para senador: em 2000, foi vereador, com 2.317 votos, depois teve três mandatos como deputado federal e, em 2014, foi eleito senador, com 131 mil votos. As mídias não foram o único fator, mas tiveram participação expressiva. Romero Jucá (PMDB) tem um grupo de mídia em Roraima, com cerca de 14 concessões de rádio e TV. Ele é senador por Roraima desde 1995 e tem ocupado cargos estratégicos em todos os governos desde então. A família Jucá controla afiliadas às redes Band e Record, além de rádios e sites. Sua ex-mulher, Teresa Jucá, foi deputada federal no estado e há seis mandatos é prefeita da capital, Boa Vista. O filho do casal, Rodrigo Jucá, também já foi deputado estadual.

O que seria necessário para barrar o uso político das concessões de radiodifusão no Brasil?

Vejo essa possibilidade como uma conquista lenta e distante, pois no nosso atual cenário a conjuntura enfraquece iniciativas de participação popular. Como pesquisadores, temos um grande desafio, o de levar a informação desse controle de mídia por conglomerados e por políticos para a população. Conscientizar sobre esse prejuízo para a democracia e sobre as possibilidades de mídias alternativas é nosso compromisso. Precisamos de estratégias para aproximar nossas pesquisas da realidade das pessoas. Por outro lado, essa mobilização também seria fruto de um amadurecimento da própria condição de cidadão e eleitor, que teria que ter uma postura menos passiva e de maior fiscalização sobre seus direitos.

Qual a importância de pesquisas como a sua nesse processo?

O trabalho sobre a mídia regional em duas regiões tão distintas ajuda a quebrar alguns tabus. Alguns deles são sobre os mercados regionais, que são subestimados nas pesquisas da área e que estão em crescimento. Esse crescimento também precisa ser visto de perto, para entender quais os impactos, quais os grupos, se há controle político. Outro preconceito é que os políticos donos de mídia estão apenas em áreas pouco desenvolvidas socioeconomicamente. A pesquisa aponta que eles estão em todo o país. A conexão econômica entre esses grupos de políticos e as mídias de referência nacional também precisa ser questionada. Não há informações ou transparência por parte dessas grandes empresas, a exemplo das redes de TV como Globo, SBT, Record, Band e Rede TV!, em relação aos parceiros regionais e à consequente exploração de outorgas de radiodifusão pública para fins privados. Muitos grupos afiliados a essas redes no Norte e no Sul não têm site, não disponibilizam sua grade de programação. Essa “flexibilidade” prejudica o monitoramento desses parceiros regionais e é cômoda para os grandes grupos, que se dizem alheios à política e imparciais.




Taís Seibt é Jornalista, faz doutorado em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tendo como foco de estudos a produção jornalística em ambiente digital. Com 12 anos de experiência em jornalismo multimídia, passou por assessorias de imprensa e redações no RS, tem participado de congressos de comunicação no Brasil e no exterior, além de ministrar cursos e palestras em empresas e universidades de todo o país.



quinta-feira, 22 de junho de 2017

A revolução dos professores



Ao recusarem a reforma educacional de Adriano Naves de Brito, professores municipais de Porto Alegre fazem seu primeiro ato de desobediência e acendem o debate sobre o uso cultural do tempo e a democracia na escola.


Por Jorge Barcellos

A Câmara discute decreto as novas diretrizes para a organização da rotina diária nas escolas da rede pública de
Porto Alegre. Na foto: Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito


No ano em que se completa o centenário da Revolução Russa, uma outra revolução tomou as escolas de Porto Alegre. A ideia de desobediência no serviço público foi ressuscitada desde quando os professores municipais rejeitaram em Assembleia Geral da Categoria, no dia 9 de março passado, as determinações do Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito contra o novo regime do tempo escolar imposto. Os professores, contrariando o que estipula a Lei 133/85, o Estatuto dos Funcionários Públicos Municipais, recusam-se a atender o disposto no Decreto nº 19.655/2017, violando assim o Inciso VII do Art. 196, por se recusarem atender uma norma baixada pela Prefeitura. Para os professores, ao contrário, sua atitude é legal porque está embasada no próprio Estatuto que diz, no mesmo artigo, inciso VI, que o servidor deve ser leal as instituições constitucionais a que serve e o inciso IX, que faculta ao servidor desobedecer às ordens “manifestamente ilegais”.

O que é manifestadamente ilegal no Decreto? Para os professores, o decreto contraria disposições legais superiores que estabelecem o princípio da gestão democrática: ela contraria o que dispõe o Art. 206 da Constituição Federal que estabelece a gestão democrática como princípio fundamental do Ensino; contraria o inciso IX do Art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que enfatiza a gestão democrática como forma de garantir um padrão de qualidade (inciso IX) e contraria, finalmente, os princípios da Lei 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação, que em seu artigo 2º, inciso VI, reforça a necessidade da vida escolar seguir o princípio da gestão democrática.

Brito está na ilegalidade porque violou o princípio da gestão democrática. Ele foi incapaz de estabelecer diálogo com professores para implementar suas propostas, preferindo substituir o discurso de proteção social pelo autoritarismo e pela defesa da “religião do mercado”. Sua reforma educacional é vista pelos professores como o seu contrário, repleta de conteúdos anti-educacionais: redução tempo dos períodos escolares, redução do tempo de recreio, retirada dos profissionais do ensino do contato com os alunos nos primeiros horários e nos intervalos de almoço, etc., “tudo deve continuar como está”, defendem os professores em uníssono chegando ao ponto de que o Presidente da Associação dos Moradores do Bairro Rubem Berta veio a público denunciar que a iniciativa “poderá abrir as portas das escolas para o tráfico de drogas”.

O gesto dos professores em recusar-se submeter-se as diretrizes do secretário de educação lembra em muito a ideias de Desobediência civil, obra do escritor Henry Thoureau: uma ação contrária à lei pode ser um instrumento de justiça e um ato de cidadania quando visa proteger um direito negado, no caso, o da gestão democrática do ensino. Os professores foram trabalhar, mas não do jeito que o Secretário de Educação queria e, é claro, reagiu: na sexta-feira (3/5) em edição extra do DOPA, publicou o Decreto Nº 19.695, introduzindo reformas na lei do ponto eletrônico; no dia 17 instalou sindicância contra as escolas Chico Mendes, Heitor Villa Lobos, Deputado Victor Issler e Marcírio Goulart Loureiro acusadas de protestarem contra as medidas do governo, argumento dissuasório com objetivo de perseguir os professores e no último dia 24 proibiu as escolas cederem espaços para realização de plebiscito dos seu Sindicato. Enquanto briga com professores, Brito aproveita-se do seu trabalho para inclui-lo na programação da Semana de Porto Alegre 128 atividades das escolas, ¼ da sua programação.

A reação da comunidade ao projeto de reforma de ensino reforçou os sentimentos de vinculo da comunidade escolar. As escolas municipais Marcilio Dias e Aramy Silva fizeram testes com as novas regras para provar o fracasso da iniciativa e o resultado foram enormes filas no almoço das crianças. Pais e alunos das escolas municipais fizeram passeatas no centro da cidade e na periferia contra as mudanças ”na hora de pedir votos, aparece com criancinha no colo”, diziam mães indignadas; criou-se o hastag #vemdialogarsecretario e #vemouviravozdacomunidade expressando os desejos de diálogo da comunidade escolar; o secretário municipal de educação  foi ouvido duas vezes na Câmara Municipal (1º e 14/3) e a professora Regina Scherer resumiu: “na contramão de todo o debate pedagógico proposto por diferentes pensadores e pesquisadores, a SMED está atuando no sentido de romper com a ideia de trabalho coletivo, pois uns irão planejar e outros irão trabalhar”

O movimento de resistência recebeu inúmeros apoios. A Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil no Rio Grande do Sul (CTB), o Centro de Professores do Estado declararam seu apoio ao movimento; artigos de Melissa Ferraz e Alex Fraga rebateram posições de ZH e do jornalista Davi Coimbra; professores iniciaram campanhas de arte-educação nas escolas “quando os alunos (r)existem?” ; vereadores do próprio partido do Prefeito, como o ver. Maluco do Bem (PSDB) posicionaram-se contrários as iniciativas “não transformem a educação em briga política partidária” e pais e alunos disseminaram nas redes sociais inúmeros vídeos com testemunhos contrários à proposta.

Com tanta oposição, porque o secretário insiste em suas medidas? No último dia 18 de maio, novamente reunidos, agora na Câmara Municipal, o secretário municipal de Educação, Adriano Naves Brito, em reunião presidida Cassio Trogildo (PTB), e demais vereadores, debateram novamente o decreto municipal publicado em fevereiro pelo Executivo. Os professores fizeram reunião porque aguardam uma negociação com a SMED. Fizeram uma contraproposta e não tiveram resposta. Afirmou o Vereador Dr. Thiago Duarte (DEM): “Os diretores de escola são prepostos da Smed, não são representantes sindicais. As três diretrizes priorizadas pelo governo estão contempladas na contraproposta feita à Smed. Não podemos demonizar a compensação de horas trabalhadas. O argumento foi reforçado pela Vereadora Sofia Cavedon (PT), para quem a contraproposta feita ao governo “dá conta da demanda sobre a carga horária da quinta-feira”, pois os alunos não sairiam mais antes do final do turno. “É difícil compreender a rejeição à contraproposta. ” Até para vereadores que integram a base aliada, a recusa de negociação é estranha: para André Caros (PMDB), a Smed se mostra inflexível: “A contraproposta dos pais e diretores é de 890 horas/aula por ano e 270 minutos de aula por dia, contra 800 horas/aula e 240 minutos diários aplicados pela Smed. Fica difícil entender por que não foi aceita.” O mesmo argumento foi utilizado pelo vereador Professor Alex Fraga “A Smed foi procurada por um grupo de diretores e todas as propostas foram rejeitadas. Não há disposição ao diálogo por parte do governo. Não considero que a contraproposta seja inferior ao projeto da Smed.

A razão é que a iniciativa não é feita em nome de uma exigência universal, de estudantes e professores, mas do capital que o projeto da administração representa, mas seu verdadeiro caráter negativo é submeter o tempo escolar ao tempo da produção . Diz o professor Gerson Rocha: ”. Numa escola municipal da creche Porto Alegre, existem 600 crianças. O refeitório tem 60 lugares. A escola se organizou há mais de década para que todos os alunos possam, em segurança acompanhados dos professores, tomar seu café e almoçar. Alguns são alunos com deficiência, outros são muito pequenos e outros já na fase adulta, mas que precisam de apoio. A maioria precisa ser acompanhada, pois são desvalidos de tudo, vítimas da miséria de todas as formas, produzida pelo sistema que Junior[Nelson Marchezan Jr, prefeito de Porto Alegre] defende. Pelas contas de Junior, a fila de 540 aguardando o almoço dos demais 60, não lhes roubará tempo de estudos. Para o Junior, não há problemas em comer pouca carne, comer em cinco minutos, expor crianças de 6 anos a alunos adultos num recreio caótico, Junior nunca visitou um dia de uma escola municipal. Para Junior, importante é o número de horas do professor na escolasem necessariamente trabalhar. Júnior tem prazer em não pagar 15 minutos ao dia de intervalo (o recreio) para o professor.

Os professores sabem que estão por detrás da proposta os interesses de uma mentalidade de defesa da rentabilidade, ideologia produtivista que agora deseja invadir o universo escolar, como se sabe, “tempo é dinheiro”. Por esta razão nada mais natural para o secretário de educação do que iniciar sua reforma educativa pela disciplinarização do uso do tempo na escola. O tempo sempre cumpriu papel decisivo no capitalismo desde a introdução dos métodos de racionalização de Frederick Taylor (1856-1915) e tais métodos não param de se atualizar: a reforma do ponto eletrônico por Marchezan é apenas a etapa já prevista de seu plano de disciplinarização do espaço escolar.

Reunião com o Secretário Municipal de Educação. Na foto, o Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito. Reunião com o Secretário Municipal de Educação. Na foto, o Secretário Municipal de Educação, Adriano Naves de Brito.

Porque disciplinar o uso do tempo é tão importante para a política educacional de Brito? Sabemos que definir o que se pode experiência e perceber do tempo é fonte de poder. A cultura tem seu próprio ritmo de tempo, produto de sua história, assim como a comunidade escolar. O problema é que o tempo que transcorre na escola é diferente da fábrica – “cada coisa tem seu tempo”, afirmam os professores. O que deseja Marchezan: desvincular a experiência do uso do tempo escolar de todo o contexto cultural estabelecido pela comunidade, de toda necessidade de alunos e professores. Seu ponto de partida é a abstração social do dinheiro, antes um meio marginal que foi transformado durante a modernidade num fim em si mesmo como descreve Robert Kurz em seu Dinheiro Sem Valor(Lisboa, Antígona, 2014). É a tentativa de inversão da relação da comunidade com o tempo escolar, expressão da necessidade de introduzir no mundo sensível da educação municipal a lógica do tempo da economia capitalista reificada pelo dinheiro. A lógica perversa do rendimento domina o pensamento de Brito e o levou a acreditar que os professores aceitariam livremente que o trabalho escolar pudesse ser convertido em trabalho abstrato, definido pelo tempo medido. Logo os professores vieram em uníssono, como os jovens de 2013, “não é por 15 minutos”, recusa a um projeto que pretende transformar o espaço funcional da escola em espaço funcional do capital.

A proposta de Brito quer impor um ritmo de tempo externo, morto e vazio, deseja levar a escola a seu pesadelo, absurdo pedagógico que acontece porque o secretario desconhecem que o tempo do trabalho escolar não é equivalente ao tempo da produção: há tempo para festas, encontros, almoços coletivos, tempos que são considerados desperdício na visão fetichista do capital das autoridades de plantão. A história está repleta de exemplos de usos diferentes do tempo e a disciplina capitalista do tempo é justamente a luta contra o tempo da comunidade de irmãos.

Brito tem um imperativo: professor, “use o tempo intensamente! ”, imperativo que é o sintoma do nível delirante da racionalidade empresarial cujo caráter neurótico está em substituir a busca da felicidade e desenvolvimento pleno pelo produtivismo e tecnologia, como é apontado por Dany-Robert Dufour em El Delírio Ocidental” (Barcelona, MRA Editores, 2014). A imposição desse sistema de aceleração permanente é sem sentido no universo escolar: é vazio porque é sem laços culturais e quer impor uma tecnologia do uso do tempo (Foucault) de uma estrutura (fábrica) sobre outra (escola). Sob o pretexto de aumentar o rendimento do tempo escolar, a proposta mata a qualidade da vida e do tempo vivido na escola, elimina o fim cultural e humano do tempo escolar: quanto mais tempo se economiza no interior da escola em nome do rendimento, menos tempo de aprendizagem e de convívio se dispõe. A irracionalidade desta concepção está no fato de considerar supérfluos tempos de convívio do professor com o aluno fora do ambiente de sala de aula, no refeitório e no recreio, cuja consequência é transformar os próprios trabalhadores em escravos a se consumirem numa espécie de servidão voluntária.

O conflito ainda está longe de ser resolvido. No ultimo dia 18 de maio, Brito esteve na Câmara Municipal de Porto Alegre para discutir as reformas: “Somos intransigentes a respeito de três diretrizes: a carga de quatro horas/aula por dia, que é a ideal para a aplicação do turno inverso, com períodos de 45 minutos; 17 períodos de aula semanais, e fim das reuniões pedagógicas no horário de aula”, disse o secretário. A respeito da contraproposta feita por pais de alunos e diretores da escola, que defende a ampliação das disciplinas de matemática e português no terceiro ciclo; 16 períodos de aulas de 50 minutos por semana, com carga de quatro horas e 30 minutos diárias (270 minutos) e 890 horas/aula por ano, o secretário afirmou que “Não houve acordo”. Segundo o secretário, 80% das escolas cederam a nova rotina.” Nas redes sociais, os problemas da rede de ensino municipal  continuam, principalmente, o da carência de professores. No programa Jornal do Almoço, Brito garante que na próxima segunda feira, 100% como se já fosse um consenso a proposta do executivo. Não é. Uma convocatória do Movimento de Familias das Escolas chama uma paralisação em protesto no próximo dia 29 de maio. Manifestos continuam sendo apregados nas redes sociais, como a de uma professora, que prefere não ser identificada. É extenso, mas vale apena transcrever: “Por favor, a SMED e a prefeitura podem responder, por que, então, os Conselhos Escolares não estão sendo respeitados? Por que suas decisões referentes a nova rotina foram ignoradas? Como PROFESSORA, ou seja, faz parte do meu trabalho questionar, pensar acerca, sugerir, criticar, buscar soluções efetivas, sem superficialidade e paliativos, acerca da minha própria prática e de tudo que me é imposto sem contextualização; em prejuízo do meu trabalho, do funcionamento escolar; e/ou sem as mínimas condições para que se efetive. Desta forma, estou autorizada, tenho o direito de saber porque estão desrespeitando tanto esta rede, sua história, seu trabalho? A realidade dos Contextos escolares e as PESSOAS que realmente/cotidianamente ali estão? 

Ainda vivemos, mesmo engatinhando, numa DEMOCRACIA, portanto, o papel da mantenedora é dar SUPORTE EFETIVO à Rede, às escolas, ao trabalho pedagógico, ao funcionamento escolar, a aprendizagem efetiva. Suporte que não se baseie em números e estatísticas, pois, a Comunidade escolar é feita por pessoas; não somos empresa e lidamos TODOS nós, na rede municipal, com algo muito sério e importante, com a Educação Popular, inclusiva, pública. Precisamos buscar realmente a amenização e a resolução dos problemas graves e concretos que já temos, evitando criar mais ou novos problemas mediante a disfunção burocrática numa gestão que não valorize a educação e não respeite seus profissionais. Sem valorização e respeito às Comunidades, à realidade e ao trabalho dos professores da rede, não melhoraremos índices de proficiência algum; não reduziremos problemas de RH e nossas crianças, continuarão apresentando/enfrentando dificuldades, pois sua aprendizagem efetiva depende de toda uma rede de apoio (ampliação e manutenção dos atendimentos e de saúde, SIR, no LA e nos projetos das escolas; assistência social, políticas públicas voltadas verdadeiramente para a educação pública e para estas Comunidades, entre muitos outros…) que realmente funcione.” A pressão do secretário é grande porque apropria-se dos Diretores das Escolas, mas nada garante que a luta dos professores por respeito as suas condições de trabalho irá diminuir.

Tudo isso acontece porque Brito tem um sonho: estabelecer na escola o modo de produção fordista, transformar o professor e os alunos quase em robôs, extorquir-lhe o máximo, sugá-los até a última gota, forma que vê para transformar a escola no espelho da fábrica. Cabe aos professores mostrar que este sonho é, em realidade, um pesadelo.


Jorge Barcellos é Historiador, Doutor em Educação, autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014), mantém a coluna Democracia e Política do Jornal O Estado de Direito



sexta-feira, 16 de junho de 2017

Socialismo ou igualitarismo?



Por Aluizio Moreira




Diante de um mundo marcado por tantas organizações e indivíduos que se autodenominam socialistas, julgamos necessário tecermos alguns comentários iniciais com o objetivo de procurar guiar nosso trabalho. 

Os estudos de síntese histórica do movimento socialista, geralmente retroagem à antiguidade como marco inicial do pensamento e prática socialistas. Nos pensamentos e práticas dos cínicos, discípulos de Antístenes, dos estóicos seguidores de Zenão, nas comunidades heréticas e anabatistas da Idade Média, passando por Thomas Morus, Campanella e os utopistas da primeira metade do século XIX, de uma ou de outra forma, teriam sido os antecessores do moderno socialismo.

Os mais ortodoxos refutam que o socialismo tenha surgido tão cedo, e vinculam-no à sociedade capitalista, admitindo que as relações sociais de produção que engendraram a burguesia, criara seu “coveiro” e forjara os instrumentos dos parricidas: a teoria e práticas revolucionárias, o socialismo científico, em outras palavras. É bom que se frise isto: o socialismo seria fruto da sociedade capitalista, teria nascido com o proletariado, portanto um não existiria sem o outro.

Diante disso, uma questão se impõe; o que distinguiria um socialista de hoje de um “pretenso” socialista de ontem?

Nos parece que o problema giraria em torno de duas questões fundamentais: a propriedade e a prática política, o que nos ajudaria a distinguir um socialista de um igualitarista.

No que se refere à propriedade, dir-se-ia que para o socialista “autêntico”, a abolição da propriedade privada dos meios de produção, é condição sine qua non para a construção de uma sociedade socialista. Portanto, defender socialismo sem tocar na propriedade privada daqueles meios, seria mero “igualitarismo jurídico”, no máximo igualitarismo econômico e/ou igualitarismo social. Mas segundo Max Beer em “História do Socialismo e das Lutas Sociais”, os carpocráticos já condenavam a propriedade privada; os anabatistas defendiam sua abolição. Para Petitfils  no seu “Os socialistas Utópicos”, os cínicos condenavam-na; Thomas Morus se refere em “abolir a ideia de propriedade individual e absoluta” em sua “Utopia” e no mesmo sentido, em "Socialismo", Paul Sweezy cita Winstanley.

Como vimos, desde cedo organizações e pensadores já condenavam a propriedade privada.

E quanto à prática política para o estabelecimento de uma sociedade de novo tipo? Babeuf crê no golpe armado; Saint-Simon confia a tarefa aos esclarecidos (fosse da classe explorada ou exploradora)  e a velha sociedade se extinguiria por si mesma; Louis Blanc aposta na democracia parlamentar  na República como iniciadores do processo de transição para o socialismo; August Blanqui reserva esse encargo a um partido de elite, ainda não operário, que faria a revolução; Winstanley acreditava nos pobres, os únicos interessados em abolir a velha ordem; Weitling depositava suas esperanças nas massas exploradas; Marx atribui esse papel à classe operária: Lenin acreditava na aliança Operário-Camponesa.

Bem, neste ponto parece que o impasse estaria criado: o socialismo como negação da propriedade privada remontaria à antiguidade e à Idade Média, já como prática só seria possível numa sociedade industrializada, na medida em que a transformação seria uma tarefa do proletariado. No entanto cumpre-nos destacar que as críticas à propriedade privada nos antigos e medievais funcionavam como um retorno ao estado natural, ou à posse irrestrita e individual dos bens, ou à posse restrita da propriedade por cada membro da sociedade, ou ainda a um processo de estabelecimento da propriedade comum para um determinado grupo social, não para a sociedade como um todo. E para Morus, na sua “Utopia” nem mesmo os bens pessoais deveriam existir. Para Sweezy no entanto, o socialismo não defende a abolição de toda e qualquer propriedade, mas a propriedade privada dos meios de produção, restringindo a propriedade desses meios de produção ao poder público.

Quanto à prática que estabeleceria a sociedade socialista, as discussões permanecem até hoje desde a eficácia de um golpe armado por um grupo de “vanguarda” revolucionária, à possibilidade da via parlamentar, ao caráter inelutável do papel histórico do operariado como classe revolucionária.  Sobre a especificidade da implantação do socialismo na América Latina, admite-se que dada sua singularidade, o socialismo será heterodoxo diante de outras experiências, pois se orientará na busca de novos personagens como nas   comunidades eclesiais de base e no movimento social do campo.

Nesta altura será esclarecedor nos lembrarmos de um trecho da mensagem de Marx e Engels dirigida ao Comitê Central da Liga dos Comunistas em 1850: “Para nós não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova”.

Nesta afirmativa de Marx está o divisor de águas entre um socialista revolucionário, um comunista, de um lado, e um socialdemocrata, um igualitarista, de outro.

REFERENCIAS

BEER, Max. História  do Socialismo e das Lutas Sociais. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d
MORUS, Thomas. A Utopia. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983.
PETITFILS, J. Os socialistas utópicos. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
SWEEZY, Paul. Socialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.


sábado, 10 de junho de 2017

Terceirização significa superexploração



Pedro Vieira


O jornal A Verdade entrevistou Odete Reis, formada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1993, e atualmente auditora fiscal do trabalho, do Ministério do Trabalho. Odete Reis participou, entre os anos de 2013 a 2015, de uma ação nacional de fiscalização em uma grande empresa de teleatendimento. Na época, foram emitidos por volta de 800 autos de infração contra as empresas Oi, Telefônica (Vivo), Net, e os bancos Santander, Bradesco, Itaú e Citibank. Essas empresas contratavam a empresa Contax S.A. para realizar serviços de teleatendimento. Porém, a auditoria verificou que a terceirização era ilícita e que os empregadores reais eram as empresas contratantes. A ação, que gerou R$ 300 milhões em multas, verificou um alto índice de adoecimento dos trabalhadores, causado principalmente pela forma predatória de organização do trabalho baseada na intensificação da força de trabalho e na gestão pautada pelo assédio moral. Se naquela época a terceirização representava um retrocesso para os trabalhadores, hoje, após aprovação na Câmara dos Deputados do PL 4302/98 (que permite a terceirização em qualquer setor de uma empresa) é ainda mais. Leia a seguir a entrevista e entenda melhor os impactos da terceirização na vida dos trabalhadores.

A Verdade – Atualmente a terceirização é permitida apenas nas atividades-meio de uma empresa. O que muda com ela sendo permitida também nas atividades-fim?

Odete Reis – Até agora, não há uma regulamentação sobre terceirização. O que temos é a Súmula 331 do TST, que permite a terceirização no caso de atividades-meio, como, por exemplo, serviços de conservação, higiene e vigilância. Claro que há um imenso descumprimento da legislação, sendo inúmeros os casos de terceirização irregular. O que o PL 4.302 faz é chancelar essa prática, que, obviamente, se for sancionada pelo presidente, aumentará em grandes proporções o número de empresas e trabalhadores terceirizados.

Os terceirizados recebem salários 25% menores e têm a jornada de trabalho maior que os contratados diretos. Como você explicaria esses fatos?

Segundo pesquisa feita pela própria CNI, 85,6% das empresas que terceirizam o fazem com o objetivo de reduzir custos. Para que seja, dessa forma, economicamente vantajoso contratar por intermédio de outra empresa, a redução dos custos deverá sair de algum lugar, não é isso? Daí o resultado: salários menores, mais horas trabalhadas (segundo pesquisa CUT/Dieese, por volta de três horas semanais a mais), pouco investimento em saúde e segurança do trabalho, etc. A precarização das condições de trabalho resultante da prática de terceirização vem sendo objeto de inúmeras pesquisas. Ocorre ainda como resultado dessa forma de contratação uma rotatividade mais elevada entre os terceirizados (tempo médio de permanência no trabalho para os terceirizados de 2,6 anos e para os contratados diretos, 5,8 anos), além de uma grande fragmentação e enfraquecimento sindical.

Algumas pesquisas apontam que a maioria dos acidentes de trabalho, inclusive os com vítimas fatais, acontecem principalmente entre os terceirizados. Você acredita que esses dados são a realidade no mundo do trabalho?

Sim, essa é a realidade. Com a terceirização há um aumento do desrespeito aos limites da exploração do trabalho. Os trabalhadores terceirizados são expostos a jornadas mais exaustivas, são menos treinados que os trabalhadores diretos, os salários são mais baixos, com pagamento por produtividade, pressionando o trabalhador a intensificar mais o trabalho, muitas vezes além dos seus limites físicos e mentais. A rotatividade elevada e os vínculos de trabalho mais instáveis também reduzem suas resistências à exploração. Várias pesquisas apontam um número bem mais elevado de acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho entre os trabalhadores terceirizados. Segundo estudo do Dieese/CUT, de cada cinco acidentes de trabalho, inclusive os que resultam em morte, quatro acontecem com terceirizados. Segundo o auditor fiscal do trabalho Vitor Filgueiras, no artigo “Terceirização e acidentes de trabalho na construção civil” (2015), nas obras da Copa do Mundo de 2014, sete dos nove trabalhadores mortos eram terceirizados. Há ainda um estudo desse mesmo autor em que são mostrados dados alarmantes sobre o trabalho análogo ao escravo e a relação com a terceirização. Foram analisados os dez maiores resgastes nos anos de 2010 a 2014 (50 ações fiscais). Desse total, 44 ações envolveram terceirizados, e do total de 4.183 trabalhadores resgatados, 3.382 eram trabalhadores terceirizados (somente 801 eram contratados diretos).

Em casos de não cumprimento das leis trabalhistas, quais são as garantias que o trabalhador possuirá, uma vez que trabalha para uma empresa sendo contratada por outra?

Este é outro ponto nefasto do PL 4.302. O referido PL prevê que a responsabilidade da contratante será subsidiária, e não solidária. Com a responsabilidade solidária, o trabalhador poderia acionar judicialmente as duas empresas ao mesmo tempo (terceirizada e contratante) por direitos não pagos. Agora, somente se não houver mais bens a serem penhorados da empresa terceirizada, processo que pode levar anos, é que a contratante poderá ser acionada.

Para finalizar, hoje com a estrutura e o corpo de funcionários que o Ministério do Trabalho possui, você acha possível garantir fiscalização justa às empresas?

Não, de forma alguma. Existe uma grande defasagem de auditores fiscais do trabalho, e não há expectativa de novos concursos. Há, ao contrário, vários auditores prestes a se aposentar, o que agravará ainda mais a situação atual. A legislação prevê um número mínimo de 3.640 auditores fiscais, no entanto somos 2.500 em atividade no país.

Importante ressaltar ainda que o número mínimo previsto na legislação brasileira é bem inferior ao preconizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que é de um auditor fiscal do trabalho para cada 20 mil pessoas da População Economicamente Ativa (PEA).

Gostaria de acrescentar que, a despeito de o PL ser sancionado, ainda temos “armas” para lutar contra a precarização do trabalho e a terceirização. A Constituição Federal prevê, como princípios fundamentais, os valores sociais do trabalho e a preservação da dignidade humana.

Cito o artigo publicado no dia 23 de março, de Valdete Souto Severo, doutora em direito do trabalho e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região: “De acordo com a unanimidade da doutrina constitucional, um dos efeitos básicos de um direito fundamental é negar legitimidade a toda norma (anterior ou posterior) que o negue. Pois bem, o PL 4302 nega todo o projeto de sociedade ‘livre, justa e solidária’ que garante ‘desenvolvimento nacional’, erradique a pobreza, reduza as desigualdades e promova ‘o bem de todos’. De modo ainda mais direto, nega o direito fundamental à relação de emprego (artigo 7º, I), à irredutibilidade de salário (art. 7º, VI), às férias (art. 7º, XVII), à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII), apenas para citar os exemplos mais óbvios”.

E continua: “E se o argumento da inconstitucionalidade não animar, mantém-se a mesma possibilidade, hoje já existente, de exame do caso concreto, a fim de aferir se a opção administrativa de terceirizar, mesmo sendo lícita, não promove redução ou supressão de direitos fundamentais trabalhistas. Nesse caso, tal opção é nula, por força do que dispõe o artigo 9º da CLT. Do mesmo modo, se verificada a caracterização da figura do empregador ‘dividido’ de forma fictícia, entre prestador e tomador, basta invocar o artigo 2º da CLT para justificar o reconhecimento do vínculo de emprego direto. Aliás, o próprio PL 4302 dispõe, em seu artigo 22, que ‘presentes os elementos constitutivos da relação de emprego previstos na CLT’, restará configurado o vínculo de emprego entre a tomadora e os trabalhadores.


FONTE: A Verdade

sábado, 3 de junho de 2017

Dossiê: as florestas ameaçadas do Brasil


Floresta Nacional do Aripuanã, no Amazonas, uma das unidades de conservação
ameaçadas

Estudo aponta: governo e Congresso têm projetos para eliminar 80 mil km² de áreas protegidas — equivalentes à superfície de Portugal. Veja as ameaças, para ajudar a enfrentá-las


Por Jaime Gesisky, no WWF Brasil



Um desmonte de quase 80 mil quilômetros quadrados – equivalente ao território de Portugal – em áreas protegidas federais no Pará, Amazonas e Santa Catarina é o que está prestes a acontecer no Brasil. São parques nacionais, reservas biológicas e florestas nacionais que deveriam estar sob o mais rigoroso cuidado devido à sua importância mundial, mas que sofrem neste momento um ataque sem precedentes promovido com o apoio de setores do governo e do Congresso Nacional e de interesses contrários ao meio ambiente.

O conflito não é novo. A novidade é a abrangência e a estratégia de desmanche da investida.

De um lado estão produtores rurais que ocupam irregularmente ou gostariam de ocupar essas áreas protegidas, empresas de mineração ou grileiros de terras públicas.

De outro, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que colocou o Brasil ao final da década passada na posição de líder mundial em extensão de áreas protegidas.

Na medida em que um dos lados ganha mais força, o impacto nas áreas protegidas pode resultar em mais desmatamento da Amazônia, com prejuízo às metas brasileiras para a redução das emissões de gases de efeito estufa na Convenção do Clima das Nações Unidas, além de implicar o desmonte do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) e ameaçar os compromissos assumidos pelo país na Convenção da Diversidade Biológica (CDB).

O alerta está em um dossiê lançado hoje pelo WWF-Brasil.


Segundo o documento, o potencial do estrago é enorme. Basta dizer que um dos projetos em tramitação no Congresso Nacional, o PL 3751, torna caducos todos os atos de criação de unidades de conservação cujos proprietários privados não foram indenizados no período de cinco anos.

Para se ter uma ideia do impacto dessa proposta, o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) calculou em 56 mil quilômetros quadrados a extensão de terras privadas ainda não indenizadas no interior de UCs federais, mas o número poderia chegar a 100 mil quilômetros quadrados, segundo o próprio instituto.

Caso aprovada, a proposta representaria o desaparecimento de aproximadamente dez por cento das áreas protegidas em UCs federais no país, que somavam, em agosto passado, 788 mil quilômetros quadrados.  Isto é dez por cento do total do território protegido das UCs federais.

A proposta apresentada pelo deputado Toninho Pinheiro (PP-MG) em 2015 também impede a criação de novas UCs sem “prévia e justa” indenização em dinheiro e é apenas um dos projetos que tramitam no Congresso, exemplares do fenômeno que a literatura acadêmica trata como PADDD, do inglês Protected Area Downgrading, Downsizing and Degazettement (redução, recategorização e desafetação de áreas protegidas).

Alto impacto

A ofensiva contra as UCs vem ganhando força desde dezembro do ano passado, a partir da publicação de medidas provisórias pelo presidente Temer, destaca o dossiê do WWF-Brasil. O alvo principal era a Floresta Nacional do Jamanxin, criada para conter o desmatamento na região da BR-163, no Pará.

A exposição de motivos assinada pelo ministro do Meio Ambiente, Zeca Sarney, chamava a atenção para a alta taxa de desmatamento ilegal na Flona Jamanxim, problema atribuído aos conflitos fundiários remanescentes e à atividade garimpeira ilegal na região de grande potencial aurífero na Bacia do Tapajós.

Outra medida provisória editada no mesmo dia tinha como justificativa a passagem de uma ferrovia para transporte de grãos. A Flona Jamanxim perdia ali 57% de seu território, que deixavam de ser protegidos ou passavam a ser menos protegidos, com a liberação de atividade econômica. Mas o estrago ficaria bem maior no Congresso.

O texto do dossiê lembra que, antes, no início de fevereiro, um grupo de parlamentares da bancada do Amazonas recebeu aceno favorável do ministro Eliseu Padilha (Casa Civil) de que o Planalto encamparia proposta de mudança em UCs no Estado, que compromete mais um milhão de hectares atualmente protegidos.

O lobby tem como alvo a extinção ou redução de cinco unidades de conservação criadas em 2016, em áreas previamente regularizadas do ponto de vista fundiário: a Reserva Biológica Manicoré, o Parque Nacional de Acari, a Floresta Nacional de Aripuanã, a Floresta Nacional de Urupadi e a Área de Proteção Ambiental Campos de Manicoré.

Em abril, comissões especiais do Congresso Nacional alteraram as medidas provisórias editadas por Temer em dezembro, ampliando o tamanho do dano ambiental, para mais de um milhão de hectares que deixam de ser protegidos. O avanço contra as UCs no Pará foi comemorado no plenário pelo senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), uma espécie de ícone da luta contra as UCs no Congresso. Segundo o senador, o resultado das votações, a ser confirmado pelo plenário antes de ir à sanção presidencial, “oferece oportunidade aos produtores rurais de regularizarem suas áreas e atividades produtivas”.

Documentos a que o WWF-Brasil teve acesso mostram que o ataque às áreas protegidas já havia ganho aliados dentro do próprio governo. Em nota técnica, o Ministério de Minas e Energia endossa interesses dos mineradores de ouro que atuam na região do Tapajós e sobretudo da empresa Brazauro Recursos Minerais, subsidiária da Eldorado Gold, com sede no Canadá.

A nota alega que a empresa havia investido US$ 76 milhões no projeto “Tocantizinho”, no qual planeja investir mais de meio bilhão de dólares. O MME contabilizou ainda dezenas de autorizações de pesquisa e permissões de lavra garimpeira, que teriam de ser ressarcidos por conta da alteração de limites das UCs proposta pelo governo, além de mais de 250 requerimentos de lavra garimpeira na região.

Santa Catarina

Além de a ampliação do Parque Nacional do Rio Novo (uma medida compensatória as reduções propostas) ter sido barrada pelo Congresso, o ICMBio calcula que a Floresta Nacional do Jamanxim perca quase 815 mil hectares de seu território com base nas propostas aprovadas nas comissões. A perda para a biodiversidade também é grande na alteração dos limites da Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, que protegem nascentes de rios que formam as bacias do Xingu e do Tapajós.

“Temos de lembrar dos compromissos assumidos no Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA), que apoia a gestão de UCs na Amazônia, com aportes de recursos externos. Os financiadores deverão cobrar explicações sobre o que está ocorrendo no Brasil”, adverte Maurício Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil.

O avanço contra as UCs nas votações de abril extrapolou os limites da Amazônia e alcançou até o Parque Nacional de São Joaquim em Santa Catarina, que teve seus limites alterados, por pressão de produtores rurais instalados na região. Trata-se de uma área de remanescentes de mata de araucária, importante na recarga de aquíferos, segundo o ICMBio. Na votação da Medida Provisória 756, o Parque perdeu 20% de seu território.

Mato Grosso

Também em abril, em outro expediente apressado, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso aprovou em primeira votação projeto que extingue o Parque Estadual Serra Ricardo Franco, uma área de proteção integral de mais de 158 mil hectares, criado há 20 anos.

O pretexto apresentado pelos deputados foi o fato de a região estar bastante desmatada, não justificando a manutenção do status de área protegida. O Parque abriga fazendas do chefe da Casa Civil de Temer, Eliseu Padilha, que teve os bens bloqueados no final do ano passado pela Justiça do Mato Grosso por degradação ambiental. Sinal que de que a ofensiva às UCs não se limita às áreas federais.



FONTE:   Outras Palavras

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