domingo, 28 de outubro de 2012

Gilmar Mendes e a tragédia dos Guarani Kaiowá

O então presidente do STF, em dezembro de 2009, deferiu liminar suspendendo decreto presidencial que declarava a área de posse dos indígenas, que tentam retomar parte de seu território e vivem sob ameaça de fazendeiros da região.

Por Daniela Novais (do Câmara em Pauta)

Desde meados de julho, indígenas da etnia Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul (MS) no Centro-Oeste brasileiro tentam retomar parte do território sagrado “tekoha”, em Guarani, no Arroio Koral, localizado no município de Paranhos.

A terra está em litígio e, em dezembro de 2009, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto homologando a demarcação da terra, porém a eficácia do decreto foi suspensa logo em seguida pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, em favor das fazendas Polegar, São Judas Tadeu, Porto Domingos e Potreiro-Corá.

Em 29 de setembro, a Justiça Federal de Naviraí em Mato Grosso do Sul decidiu pela expulsão definitiva da comunidade Guarani-Kaiowá e, diante da decisão, os indígenas lançaram uma carta afirmando a intenção de morrer juntos, lutando pelas terras e fazem o pedido para que todos sejam enterrados no território pleiteado.

O assunto veio à tona, depois desta “carta-testamento”, que foi interpretada como suicídio coletivo, os Guarani Kaiowá falam em morte coletiva no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em nota divulgada nesta quarta (23).

Entenda – Cansados da morosidade da Justiça em agosto último, cerca de 400 indígenas decidiram montar acampamento para pleitear uma resolução. Horas depois, pistoleiros invadiram o local. Houve conflito, que resultou em indígenas feridos, sem gravidade e, com a chegada da Força Nacional, os pistoleiros se dispersaram e fugiram.

À época, o Guarani Kaiowá Dionísio Gonçalves afirmou que os indígenas estão firmes na decisão de permanecer no tekoha Arroio Koral, mesmo cientes das adversidades que terão de enfrentar, já que o território sagrado reivindicado por eles fica no meio de uma fazenda. “Nós estamos decididos a não sair mais, nós resolvemos permanecer e vamos permanecer. Podem vir com tratores, nós não vamos sair. A terra é nossa, até o Supremo Tribunal Federal já reconheceu. Se não permitirem que a gente fique é melhor mandarem caixão e cruz, pois nós vamos ficar aqui”, assegurou.

Conflito fundiário – A batalha pela retomada de terras indígenas se arrasta no Mato Grosso do Sul e o estado é responsável pelos mais altos índices de assassinatos de indígenas, que lutam pela devolução de terras tradicionais e sagradas. Já foram registrados muitos ataques, ordenados por fazendeiros insatisfeitos com a devolução das terras aos seus verdadeiros donos.

O processo continua em andamento, mas tem caminhado a passos muito lentos, já que ainda não foi votado por todos os ministros. Assim, os Guarani Kaiowá decidiram fazer a retomada da terra. Na última sexta (19) um grupo esteve em Brasília e fincou cinco mil cruzes na Esplanada dos Ministérios, em protesto e pedindo que a Justiça resolva a pendenga.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Nota sobre o suposto suicídio coletivo dos Kaiowá de Pyelito Kue


Por: CIMI Administrador

  
Indígenas Guarani-Kaiowá e Nhandeva exigem revogação da Portaria 303.
Foto: Geraldo Alckmin/CIMI-MS

O Cimi entende que na carta dos indígenas Kaiowá e Guarani de Pyelito Kue, MS, não há menção alguma sobre suposto suicídio coletivo, tão difundido e comentado pela imprensa e nas redes sociais. Leiam com atenção o documento: os Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos antepassados. Não se trata de suicídio coletivo! Leiam a carta, está tudo lá.

É preciso desencorajar a reprodução de tais mentiras, como o que já se espalha por aí com fotos de índios enforcados e etc. Não precisamos expor de forma irresponsável um tema que muito impacta a vida dos Guarani Kaiowá.

O suicídio entre os Kaiowá e Guarani já ocorre há tempos e acomete sobretudo os jovens. Entre 2000 e 2011 foram 555 suicídios entre os Kaiowá e Guarani motivados por situações de confinamento, falta de perspectiva, violência aguda e variada, afastamento das terras tradicionais e vida em acampamentos às margens de estradas. Nenhum dos referidos suicídios ocorreu em massa, de maneira coletiva, organizada e anunciada.

Desde 1991, apenas oito terras indígenas foram homologadas para esses indígenas que compõem o segundo maior povo do país, com 43 mil indivíduos que vivem em terras diminutas. O Cimi acredita que tais números é que precisam de tamanha repercussão, não informações inverídicas que nada contribuem com a árdua e dolorosa luta desse povo resistente e abnegado pela Terra Sem Males.

Conselho Indigenista Missionário, 23 de outubro de 2012

*

Leia a carta dos indígenas na íntegra:

Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi-MS para o Governo e Justiça do Brasil

Nós (50 homens, 50 mulheres e 70 crianças) comunidades Guarani-Kaiowá originárias de tekoha Pyelito kue/Mbrakay, viemos através desta carta apresentar a nossa situação histórica e decisão definitiva diante de da ordem de despacho expressado pela Justiça Federal de Navirai-MS, conforme o processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006, do dia 29 de setembro de 2012. Recebemos a informação de que nossa comunidade logo será atacada, violentada e expulsa da margem do rio pela própria Justiça Federal, de Navirai-MS.

Assim, fica evidente para nós, que a própria ação da Justiça Federal gera e aumenta as violências contra as nossas vidas, ignorando os nossos direitos de sobreviver à margem do rio Hovy e próximo de nosso território tradicional Pyelito Kue/Mbarakay. Entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena, nativo e autóctone do Mato Grosso do Sul, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós.  Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy onde já ocorreram quatro mortes, sendo duas por meio de suicídio e duas em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas.

Moramos na margem do rio Hovy há mais de um ano e estamos sem nenhuma assistência, isolados, cercado de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Passamos tudo isso para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs, avós, bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados.

Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para  jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.

Sabemos que não temos mais chance em sobreviver dignamente aqui em nosso território antigo, já sofremos muito e estamos todos massacrados e morrendo em ritmo acelerado. Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui. Não temos outra opção esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.    

Atenciosamente, Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay

FONTE: Conselho Indigenista Missionário

domingo, 21 de outubro de 2012

A morte da Newsweek impressa e os desafios da internet



Segunda maior revista semanal dos EUA interromperá edição em papel. Anúncio acentua crise da mídia tradicional e amplia necessidade de resgatar jornalismo na rede.


Por Paulo Nogueira, no Diário do Centro do Mundo

A mídia impressa não está morrendo. Ela está é agonizando. Quanto tempo vai durar a agonia, ninguém sabe direito. O certo é que hoje jornais e revistas são menores que ontem. E amanhã serão menores do que são hoje.

Um capítulo particularmente doloroso desse declínio acaba de ser anunciado: no final deste ano, deixará de existir a edição impressa da segunda maior revista semanal de informações do mundo, a americana Newsweek. (A primeira é a Time.) Em seus dias dourados, a Newsweek teve mais de 3 milhões de exemplares de circulação.

Os restos mortais da Newsweek estarão na internet. Digo restos mortais porque, no universo digital, a Newsweek não é sombra do que foi na era pré-internet. Ela foi influente e relevante sobretudo nos anos 1960 e 1970. Na internet, é apenas um rosto – e velho – na multidão.

A causa mortis é a mesma de tantos outros jornais e revistas que vão tombando sob o impacto da internet. Menos circulação, menos publicidade, menos repercussão, menos tudo, em suma.

A notícia traz para mim sentimentos ambíguos. Em meus primeiros anos de carreira, na Veja, na década de 1980, a Newsweek era uma referência. A Veja tinha, então, um acordo com a revista pelo qual publicava alguns de seus artigos. David Jansen, o crítico de cinema, era particularmente bom, pelo menos a meus olhos.

Por esse ângulo, lamento. A Newsweek me marcou intensamente, e lendo-a aprendi muitas coisas: era uma revista muito bem escrita e muito bem editada.

Por outro ângulo, a notícia reafirma que o Diário – a poucas semanas de sair de sua fase beta para virar um site de notícias e análises – chega ao lugar certo (a internet) na hora certa.

Os leitores estão maciçamente lá, na internet. Os anunciantes, como seria de esperar, se empenham por seguir seus consumidores, e por isso vão colocando cada vez mais dinheiro na internet. Recentemente, no maior mercado do mundo, os Estados Unidos, a internet encostou na televisão em faturamento publicitário.

A perspectiva de a tv perder a liderança na publicidade nos Estados Unidos era, até há pouco, simplesmente impensável. Quem vê Mad Men tem uma ideia do que estou falando: os comerciais pareciam imortais e eles fizeram a tv ser o que é hoje. Também a tv, e isto é uma conclusão relativamente nova, vai ser castigada duramente pela internet.

Neste florescente mundo em construção, o Diário não quer ser o maior site de notícias e análises do Brasil, até porque abdicamos da desprezível cobertura de fofocas de celebridades que tanta audiência levam aos portais e tanto emburrecem e entorpecem a sociedade.

Mas lutaremos para fazer o melhor jornalismo digital do Brasil.

FONTE: Outras Palavras

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A farra das Câmaras Municipais: até quando?


Por Fr. Marcos Sassatelli (*)

Vejam que absurdo! "As Câmaras Municipais, apesar de próximas fisicamente dos moradores, são o Poder menos transparente, o mais vulnerável à corrupção, o que menos presta contas aos eleitores e um dos mais caros aos cofres públicos. O custo dos legislativos nos 5.565 municípios brasileiros ficou em quase R$ 10 bilhões (R$ 9,5 bilhões) em 2011, considerando apenas as despesas declaradas”. E ainda: "Este custo anual poderá ultrapassar os R$ 15 bilhões em 2013” (O Popular, 09/09/12, p. 18).

Como amostra desse descalabro com o dinheiro público, cito a Câmara Municipal de Goiânia. "Ao custo de R$ 206,35 milhões desde o início de 2009 até agosto deste ano, a Câmara de Goiânia gastou aproximadamente R$ 5,89 milhões com cada um dos 35 vereadores que foram escolhidos pelos 845.321 eleitores que a capital possuía em 2008”. 

Reparem! "Mesmo com custos tão elevados aos cofres públicos, a Casa registrou um total de 604 faltas (não justificadas) dos parlamentares nos últimos três anos e meio” (Ib. Leia a íntegra da reportagem, com o número de ausências não justificadas de cada vereador). Que vergonha!

É bom que se diga que os vereadores de Goiânia têm o compromisso obrigatório e, portanto, a responsabilidade de manter a presença em plenário e votar as matérias, das 9h ao meio dia, três vezes por semana. Será que isso é trabalho demais pelo salário que recebem? A situação é lamentável.

Tenho duas sugestões a dar: a primeira, a curto prazo; a segunda, a médio prazo.

A primeira sugestão: Que antes de terminar a legislatura atual, a presidência da Câmara Municipal de Goiânia e as de todas as Câmaras Municipais do Brasil abram um processo e obriguem judicialmente os vereadores a devolver aos cofres públicos o dinheiro (roubado) das ausências não justificadas. Trata-se de um dever ético. É o mínimo que pode ser feito.

A segunda sugestão: Que o Congresso tome as providências legais e constitucionais necessárias para extinguir a remuneração dos vereadores em todos os municípios e não só nos com população inferior a 50 mil habitantes (limitando-a nos municípios de até 100 mil, 300 mil e 500 mil), como reza a ementa constitucional (PEC) 35/2012, de autoria do senador Cyro Miranda (PSDB-GO) (Cf. Fernando da Fonseca Gajardoni. Pelo fim da remuneração dos vereadores. Folha de S. Paulo, 08/10/12, p. A3).

Os vereadores precisam viver de seu trabalho profissional e não do mandato político, que deve ser uma atividade voluntária.

Faço minhas as reflexões que seguem: "Em vez de legisladores pagos com dinheiro público, grande parte dos países tem conselhos de cidadãos, formados por representantes das comunidades, que não recebem salário pela atividade. O cargo de vereador é, praticamente, uma exclusividade da legislação brasileira.Na grande maioria dos países, a figura do legislador municipal inexiste. Em seu lugar, há os chamados ‘conselhos de cidadãos’, formados por representantes das comunidades e bairros, que geralmente trabalham sem remuneração ou ônus para os cofres públicos”.

Os conselheiros "são escolhidos pela própria população e costumam reunir-se periodicamente para discutir temas relativos à cidade, numa pauta equivalente à que é cumprida pelos vereadores no Brasil. No entanto, nenhum deles sobrevive da política e sim das suas atividades profissionais. As reuniões acontecem em auditórios públicos, sem a estrutura física de uma Câmara Municipal, nem funcionários ou servidores comissionados à disposição”.

Segundo o advogado José Paulo Cavalcanti, o formato do Legislativo brasileiro é único e são poucos os países com estrutura federativa equivalente à do Brasil. Como, na maioria dos países, não há remuneração, "o número de conselheiros é maior e as comunidades ficam melhor representadas”.

Em alguns países - como Portugal - ainda se costuma pagar um jetom por sessão aos conselheiros, para repor o dia de trabalho que deixam de cumprir nas suas profissões. Mas não há nenhuma outra vantagem.

Questiona ainda José Paulo: "Tirar dinheiro da saúde, da educação, para pagar vereadores, não existe. São 5% do orçamento do município, que destina 10% à saúde. Não seria melhor que a saúde tivesse 15% e não existissem vereadores?”. "No Brasil, os vereadores são assistentes sociais de luxo. Não há nada que eles façam que um conselheiro não possa fazer melhor”. 
(Vereador remunerado é minoria no mundo: 
http://www.gxp.com.br/2012/05/29/vereador-remunerado-e-minoria-no-mundo/- Guaxupé, 08/10/12 - Reproduzido do Jornal do Commercio - Política - 29/05/2012). 

Quem sabe os novos vereadores assumam essa bandeira de luta e um dia tudo o que foi dito se torne realidade no Brasil! É o que muitos desejam e esperam.

(*) Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra

FONTE: Adital

domingo, 7 de outubro de 2012

“Na verdade, o povo não tem poder algum”

Para o jurista Fábio Konder Comparato, imprensa alternativa pode contribuir para forjar uma mentalidade democrática entre a população, acostumada com séculos de submissão

Aline Scarso (da Reportagem)


O jurista Fábio Konder Comparato
Foto: Sérgio Lima/Folha Imagem
Reconhecido pela defesa das causas de movimentos sociais, como o MST, e crítico ferrenho da última ditadura civil- militar (1964-1984), o jurista Fábio Konder Comparato acredita que o Brasil ainda está longe de ser um Estado verdadeiramente democrático. De acordo com ele, os brasileiros ainda têm a mentalidade e os costumes marcados por séculos de escravidão e precisam se desvencilhar da submissão e passividade. Para tanto, segundo o jurista, é preciso ampliar a educação cívica e política e aproveitar ao máximo a imprensa alternativa para denunciar essa opressão. Confira a entrevista exclusiva concedida ao jornal Brasil de Fato.    

Brasil de Fato – Professor, no próximo ano a Constituição Federal completa 25 anos. Na sua avaliação o Brasil conseguiu alcançar um patamar de país democrático, que respeita os direitos sociais e as liberdades individuais, ou ainda há muita diferença entre o que está estabelecido na lei e o que está posto na prática?

Fábio Konder Comparato – Exatamente aquilo que acaba de dizer por último. Essa diferença entre o que está na lei e o que existe na prática não é de hoje, é de sempre. E o que caracteriza a vida política brasileira é a duplicidade, com a existência de dois ordenamentos jurídicos: a organização oficial e a organização real. E também no sentido figurado há duplicidade, ou seja, o verdadeiro poder é dissimulado, é oculto. Nós encontramos na Constituição a declaração fundamental no artigo 1º, parágrafo único de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. Mas na verdade, o povo não tem poder algum. Ele faz parte de um conjunto teatral, não faz parte propriamente do elenco, mas está em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores e para vencer isso não basta mudar as instituições políticas, é preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais. E a nossa mentalidade coletiva não é democrática. O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Não sabe que é um regime político em que ele tem o poder em última instância e que ele deve decidir as questões fundamentais para o futuro do país. Não sabe que ele deve não somente eleger os seus representantes, mas também poder de destituí-los. O povo não sabe que ele deve ter meios de fiscalização contínua dos órgãos do poder, não apenas do Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário, que se verificou estar corrompido até a medula, com raras e honrosas exceções.  

E por que essa mentalidade?

Ora, essa mentalidade coletiva é fruto de quase quatro séculos de escravidão. Quando Tomé de Souza desembarcou no Brasil em 1549 trouxe o seu famoso regulamento de governo, no qual tudo estava previsto, mas só faltava uma coisa, a constituição de um povo. Havia funcionários da metrópole, havia um contingente de indígenas, havia o começo da escravidão, mas não havia povo. E nós não chegamos a constituir esse povo ao longo da nossa história porque o poder sempre foi oligárquico, ou seja, de uma minoria de grandes proprietários e empresários com apoio do contingente militar e da Igreja Católica. Assim nós chegamos ao século 21 numa situação de duplicidade completa. Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que até hoje permanece intocável, dizendo que nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular. Não existe a possibilidade de democracia sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. E o chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem de séculos essa mentalidade de submissão, de passividade. Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Nós vemos isso cotidianamente, nunca nos insurgimos contra uma lei que consideramos injusta, mas simplesmente nós desviamos da proibição legal.

E como mudar essa mentalidade, professor?

É uma boa pergunta, mas a resposta vai ser um tanto desalentadora. Essa mentalidade e costumes foram forjados por uma instituição política colonial, depois imperial e falsamente republicana, mas, sobretudo, pela vigência do sistema capitalista, que entrou em vigor no Brasil no ano do descobrimento. E o sistema capitalista tem essa característica específica, o poder é sempre oculto e dissimulado. Os grandes empresários dizem que não são eles que fazem a lei, mas na verdade são eles que fazem o Congresso Nacional. São eles que dobram os presidentes da República. E os grandes empresários atualmente são os grandes banqueiros, os personagens do agronegócio, os industriais e os grandes comerciantes. Agora, por exemplo, o Partido dos Trabalhadores (PT) acabou admitindo na esfera federal, porque não havia outro jeito, a aprovação de um novo Código Florestal que favorece abertamente os grandes proprietários agrícolas. Então veja, para mudar tudo isso é preciso um trabalho longo e contínuo de educação cidadã. Isto evidentemente a partir de um trabalho de contínua denúncia dessa situação oligárquica. Mas a denúncia dessa situação hoje na sociedade de massas passa necessariamente pelos órgãos de comunicação de massa que estão nas mãos dos grandes empresários. Então a situação é muito pior do que a gente poderia imaginar, mas o importante é não desanimar, não perder o impulso no sentido da denúncia completa. Nenhum sistema de poder permanece em vigor se é desmoralizado perante o público. Nós temos poucas possibilidades de desmoralizar o sistema capitalista, mas uma delas que temos que aproveitar até o fim é a imprensa corajosa e lúcida como é o caso de Caros Amigos e Brasil de Fato.

Para além da imprensa, o que os movimentos sociais e sindicais, que cumpriram um papel importante de desmoralização da última ditadura militar, poderiam fazer?

O grande problema dos sindicatos que se revelou hoje é que eles não têm espírito público. Eles defendem em geral muito bem os interesses da classe trabalhadora, mas muitas vezes os meios empregados para essa defesa vão contra o interesse público. Quero dar um exemplo que vai provocar um certo escândalo. Eu sou radicalmente contra a greve no serviço público porque o grande prejudicado não é o governo, é o povo. A greve foi um instrumento legítimo de defesa dos trabalhadores nas empresas privadas porque atinge diretamente os interesses dos empresários. No serviço público é diferente. Veja o que aconteceu nas Universidades Federais. Todas entraram em greve. Os alunos declararam greve. Ora, os alunos das Universidades Públicas têm o privilégio de não pagar mensalidades. E como é que são sustentadas essas Universidades?  

Com o dinheiro do povo, e digo mais, com o dinheiro do povo mais pobre porque 70% dos impostos desse país são indiretos, ou seja, quem tem menos paga mais. É por isso que nós precisamos ampliar a educação cívica e política no sentido amplo da palavra. Eu criei, juntamente com alguns companheiros, há mais de vinte anos a Escola de Governo. Foi apenas um início e eu gostaria que fossem multiplicadas as escolas de formação cívica. Na periferia é preciso multiplicar esse tipo de ensino para que o povo comece desde já a se revoltar. Se fulano vier pedir votos para vereador ou prefeito, é preciso saber quem é o fulano, quem o mandou, quem é o responsável por sua candidatura.    

Hoje os trabalhadores menos precarizados do Brasil são justamente os servidores públicos porque têm condições reais de questionar a sua situação de trabalho ao enfrentar o seu patrão, que é o governo. Não seria um pouco radical não legitimar a greve no setor como instrumento de luta para conquistar e manter direitos?

Em primeiro lugar, a greve no serviço público não é tradicional, é muito recente. Em segundo lugar, ao invés da greve é preciso estabelecer instrumentos de proteção especial para os servidores públicos como, por exemplo, tribunais de arbitragem, estabilidade, garantia de aumento nos vencimentos pelo menos de acordo com o índice inflacionário e assim por diante. Tudo aquilo que é para favorecer os servidores públicos e lesa o patrimônio do povo deve, a meu ver, ser denunciado e banido. É uma questão que precisa ser mudada.  

O senhor disse sobre a existência de oligopólio nas empresas de comunicação no Brasil. Se o Executivo, Legislativo e Judiciário não fazem nada contra algo que é proibido pela Constituição, que atitude o povo pode tomar?

Eu acho que cada um tem uma missão e particularmente acredito que cumpri a minha. Eu procurei o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propondo que se fizesse uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão, pela não regulamentação dos dispositivos constitucionais sobre os meios de comunicação de massa. O Conselho não aceitou. Então eu procurei o Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que aceitou e a ação foi proposta, que é a ação de inconstitucionalidade por omissão número 10. Mas essa é uma medida meramente política. Do ponto de vista jurídico, o eventual ganho de causa não vai significar muita coisa porque dará uma recomendação ao Congresso Nacional para regulamentar a Constituição. Mas é preciso utilizar- se dessa ação para denunciar o controle que a mídia exerce sobre o Congresso Nacional. E exerce também sobre o Executivo porque o Advogado Geral da União que, de acordo com a lei, está sobre a imediata supervisão do Presidente da República, deu parecer contrário à ação.  

Até hoje ainda existem instituições criadas pela última ditadura civil-militar como é o caso da Polícia Militar. E apesar das denúncias dos movimentos sociais e de estudantes sobre a violência sistemática cometida pela Corporação, parece que o Estado finge que não acontece nada. Diante disso, o que se fazer?

Bom, em primeiro lugar, não são todos os movimentos sociais que protestaram contra o morticínio [na chácara] de Várzea Paulista [no interior de São Paulo, onde policiais da Rota – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – mataram nove pessoas no dia 11 de setembro]. E eu fiquei surpreso com o fato da Arquidiocese de São Paulo ter protestado contra as declarações religiosas de um candidato a prefeito da cidade de São Paulo, mas não ter dito nada sobre esse morticínio planejado e executado friamente. Foram abatidas nove pessoas com 61 tiros. Não houve arranhão em nenhum policial militar. Pois bem, quero lembrar que a Organização das Nações Unidas acaba de se pronunciar insistindo na supressão da Polícia Militar. Esta é uma proposta que eu venho defendendo há vários anos pois não faz nenhum sentido a organização de uma polícia no estilo de forças armadas, porque isso é uma trágica herança do regime empresarial militar.    

FONTE: Brasil de Fato

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Tempos idos e vividos I


Por Aluizio Moreira


O tempo avança implacavelmente, e cada vez mais rápido, e muitas coisas que acontecem no presente, nos remetem sempre para o passado (sem qualquer saudosismo), como indicativo de alguma coisa permanentemente humana que nos acompanha através do tempo e que diz respeito a todos os povos, ontem como hoje.

A partir do surgimento da propriedade privada dos meios de produção, é inquestionável o conflito entre o meu e o nosso, entre o individuo e a comunidade, entre o público e o privado.

Assim, a primeira lembrança que me vem à mente, unindo o passado ao presente, relaciona-se a alguns acontecimentos ocorridos ano passado. Refiro-me ao movimento dos indignados que eclodiu na Europa, iniciado mais exatamente na Espanha nos fins de 2011, e que ganhou dimensão mundial. E continua acontecendo mais recentemente, num movimento sincrônico de protestos populares contra a crise econômica que marca o cenário dos principais países da Europa. 

Como a História, guardadas as devidas proporções, é pontilhada de momentos de ações para além do individualismo, indicando que não há soluções para os problemas da humanidade senão na ação coletiva, décadas atrás, o sentido e o significado da ação política vinculava-se às questões da coletividade humana, muito presentes entre a juventude secundarista e universitária.

Pensávamos nós, nos anos 60 que, como parte de uma  juventude compromissada com o futuro (tinha meus vinte anos), deveríamos deixar de lado as preocupações e os planos de realizações pessoais de lado, envolvendo-nos numa luta na qual o coletivo falava mais alto.

Ainda ressoa em meus ouvidos, palavras de ordem presentes nas passeatas estudantis:

“Liberdade para todos os povos!”
”Pelo fim da exploração do homem pelo homem!” 
“Pela autodeterminação dos povos!”

Há inclusive uma frase na voz de Paulo Autran na peça “Liberdade, Liberdade” de Flávio Rangel e Millor Fernandes (encenada nos idos de 1965), que nunca mais esqueci e sempre me acompanha:

“Sempre que mais de meia dúzia de pessoas se reúnem, a liberdade individual cede aos interesses coletivos!”. 

Interesses coletivos que veríamos institucionalizados num novo tipo de sociedade, mais justa e mais humana.

Foi no clima dos anos 60, naquele contexto histórico que escrevi em 1962 no mural do colégio onde cursava o antigo Colegial o seguinte poema: 

"CANTO COLETIVO
     Aluizio Moreira

Não canto um poema só.
Essas mensagens que trago,
Tantos trazem como cantam,
Porque o canto não é só meu.

As palavras que emprego
Que escrevo como latino
São vozes plantadas na terra
Por homem branco europeu.
São falas de africano
São gritos de asiático
São hinos de toda gente
Que não se curvam nem morrem.
São penas
São mãos,
São armas
Que se levantam de vez
São cantos do homem livre
Que todo mundo entende.

Se calam Granada
Indonésia
Porto, Tóquio
Santiago
Não calarão os milhões
De seres humanos que nascem
Que trazem palavras novas
Amores-rosas-palavras
Pra alimentar o poema
E o retempero da lâmina.

Não canto o poema só.
Essas mensagens que trago
Tantos trazem como cantam
Porque o canto não é só meu
Pois quantos  cantam a mesma rima
Tecendo o mesmo tecido
De fibras tão diferentes
E por mais diferentes que sejam
A língua, a forma e o verso!"


Não são simples arroubos juvenis de uma geração, hoje de idosos. É o que há de permanente na História da humanidade.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Massacre do Carandiru


A tragédia, 20 anos depois 

A impunidade em relação ao Massacre do Carandiru é sintomática de um poder público e de parte de uma sociedade que defende e estimula o autoritarismo e a exclusão.

Por Glauco Faria e Igor Carvalho

E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos
(Haiti, Caetano Veloso e Gilberto Gil)

“Quando eu cheguei de volta ao quinto andar, dei de cara com três policiais. Todos armados. Quando eles me viram, perguntaram o que eu estava fazendo ali. Disse que tinha carregado todos os corpos para baixo, e o tenente havia me mandado subir para a cela. Um deles segurava uma argola com muitas chaves, que eram dos cadeados do andar inteiro. Aí ele me falou: ‘Vai ter que acontecer um milagre em sua vida.’ Perguntei: ‘Por quê?’. Ele respondeu: ‘Vou escolher uma chave, se eu torcer na fechadura e abrir o cadeado, você fica vivo. Se não, vamos executar você agora.’ Aquilo foi o maior milagre da minha vida, ele escolheu a chave e ela abriu o cadeado. Ele bateu a porta atrás de mim e eu senti até o vento nas costas. Não levei o tiro. Dentro da cela tinham umas 40 pessoas, espremidas. Muitos deles feridos à bala. Me lembro da loucura que estava naquele lugar, os caras procuravam, desesperadamente, pó de café para colocar nos buracos da bala, para estancar o sangue.”

O relato acima é de Sidney Sales. Zagueiro amador e um dos fundadores do “Cascudinho”, time de futebol que, em 2 de outubro de 1992, conquistou o campeonato interno da Casa de Detenção do Carandiru. Morador da 504E, ele subia esfuziante as escadas do Pavilhão 9. Sales foi encarcerado depois de ser capturado pela Polícia Federal, em 1987, por roubar 17 bancos e sete caminhões. Terminou de cumprir sua pena em 1994, na Penitenciária de Mirandópolis. Alguns minutos após a final daquele torneio interno de futebol, sua vida mudou.

Apesar do êxito futebolístico, aquela sexta-feira, que antecedia o primeiro turno das eleições municipais em todo o País, não terminou bem para Sales. “A briga começou umas 13h30”, recorda o zagueiro. Barba (Antonio Luís do Nascimento) vendeu maconha para o Coelho (Luís Tavares de Azevedo), que ficou de acertar o pagamento uma semana depois. O calote de Coelho os colocou frente a frente, para matar ou morrer, pela dívida. “A lei da cadeia é assim: quando dois líderes de facções brigam, ninguém se envolve, e a briga só acaba quando um morre”, conta Sales. Nenhum dos dois morreu e Coelho foi levado para a enfermaria. Dali em diante, o governo do estado de São Paulo e a Polícia Militar apresentaram ao mundo o sintoma mais agudo da falência do sistema prisional brasileiro.

Com a saída de um dos líderes, os grupos decidiram se confrontar. Armados com estiletes, facas e sarrafos partiram para o embate. Agentes penitenciários se viram cercados por aproximadamente cem homens e decidiram fugir do setor. Ao sair, passaram o cadeado. O Pavilhão 9 pertencia, agora, aos presos.

O Carandiru poderia receber até 3,3 mil pessoas; no fatídico dia, abrigava mais de 7 mil detentos. No pavilhão da contenda estavam mais de 2,2 mil presos, segundo dados da Pastoral Carcerária. Sales tinha uma função privilegiada dentro da comunidade prisional. “Eu era faxineiro. A faxina é o coração da cadeia, é de quem tem acesso às áreas que os outros não têm; é solto mais cedo, volta mais tarde.” Entre idas e vindas, ele conseguiu um artefato que o diferenciava dos demais e o tornou importante ali. “Eu tinha uma pedra de paralelepípedo. Como não tinha marreta no presídio, eles tinham que usar minha pedra para fazer faca, isso se tornava uma troca de favor.” Por conta de sua ocupação, Sales não podia se alinhar com nenhuma facção, por isso, manteve-se fora da briga.

“Eu carreguei 35 corpos”

Eram 14h30 quando o secretário de Segurança Pública Pedro Franco de Campos pediu o reforço da Tropa de Choque, conforme o próprio coronel Ubiratan Guimarães, comandante da operação. O conflito entre as duas facções se intensificou, até o momento em que os presos notaram que a polícia já estava posicionada do lado de fora. “Nesse momento, houve um consenso: não era para brigarmos entre nós. O João, o Barba, o Leitão e os líderes começaram a gritar que a briga era contra a polícia.” De forma desorganizada e baseada na lógica do grito, os presos montaram barricadas de fogo, ateado em colchões, e improvisaram todo tipo de armamento. “Fazíamos isso com frequência, se cortassem a luz e a água, não duraríamos dois dias, não havia nem estoque de alimentos, ficava tudo no Pavilhão 6.”

Cena do filme Carandiru: não há exagero
nos "rios de sangue" que correm no
filme (Reprodução)
O governador de São Paulo, à época, era Luiz Antonio Fleury Filho (PMDB). Ele foi informado do tenso cenário na Casa de Detenção por volta das 15h, pelo secretário Campos. O mandatário do governo paulista estava em Sorocaba, interior do estado. Até as 16h20, houve alguns parcos movimentos rumo à negociação, mas nenhuma tentativa efetiva na prática. José Ismael Pedrosa, diretor geral da Casa de Detenção, teria montado um grupo para negociar, mas foi impedido por policiais. “Um oficial chegou a apontar uma arma para ele”, conta o promotor Norberto Joia, que trabalhou no caso do coronel Ubiratan e também dos demais réus do processo. João Benedito de Azevedo Marques, na ocasião secretário da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), confirma a versão. “É bom que se diga: o Pedrosa negociava quando abruptamente alguns policiais, de arma em riste, o retiraram da frente dos presos e começaram a invasão, comandados pelo coronel Ubiratan. “O Ismael [Pedrosa] não teve chance de conversar com a gente, a polícia queria invadir, mas acho que ele facilitou para os policiais entrarem”, relata Sales.

A ordem ou “permissão” para invadir chegou após dez minutos, eram 16h30. “Você que está no local, avalie e faça o que tem de fazer”, teria dito o secretário Campos ao coronel Guimarães. Nesse momento, 362 policiais militares começam a invadir o Pavilhão 9. Eles estão acompanhados de 13 cães, da raça Pastor Alemão, e mais metralhadoras alemãs, fuzis M-16, punhais, escopetas calibre 12, facas, baionetas, revólveres e um lança-bombas.

“Não tinham reféns, e eles estavam isolados principalmente no quinto pavimento; o térreo já estava dominado pelos policiais e os outros pavilhões estavam tranquilos. O que se recomendava era a negociação proposta por Pedrosa”, argumenta Joia. Mesmo após ser determinada a invasão, outro equívoco grave, segundo o promotor. “O correto era que o 2º Batalhão de Choque entrasse, até porque ele conhecia a planta do Pavilhão. Mas quem fez a invasão foi a Rota [Rondas Ostensivas Tobias Aguiar], cujos policiais provavelmente tinham efetuado a prisão de alguns dos detentos do local.”

Na avaliação do coronel Ubiratan, mesmo após as manifestações de rendição da maioria dos presos, era necessário agir. A Rota invade os dois primeiros andares, o Comando de Operações Especiais da Polícia Militar ocupa o terceiro andar e o quinto pavimento fica sob a responsabilidade do Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar. Sales se recorda da primeira impressão sobre a invasão. “Quando me falaram, e ouvi, que os homens [policiais] estavam entrando e atirando, eu estava no quinto andar, mas pensei que devia ser bala de borracha, como fizeram em outra rebelião no próprio Carandiru, um ano antes. Não esperava por tudo aquilo: poucos segundos depois, comecei a ouvir os gritos das pessoas, era muito barulho de tiro. Aí subiu o cheiro de pólvora, e eu entendi que seria diferente dessa vez”, lembra Sales.

Desde o primeiro instante, ficou patente o ímpeto genocida da missão. No primeiro andar, houve pouca resistência, alguns sacos com urina e fezes são arremessados contra os policiais. Mesmo assim, os policiais matam todos os presos de 11 celas. Os corredores medem pouco mais de dois metros de largura, e os agentes do Estado se colocam em duas filas: uma será responsável pelo lado esquerdo, e a outra pelo lado direito. Os homens sem fardas estão dentro das celas, com as portas fechadas, e muitos deles nus, demonstrando estarem desarmados. Um sinal evidente de rendição. Mesmo assim, as armas são colocadas nos guichês (buracos nas portas das celas) e acionadas. Disparam a esmo. Matam.

A chacina sobe os andares e caminha para o fim. Há corpos empilhados, e os rios vermelhos de sangue, que aparecem no filme Carandiru, de Hector Babenco, não são metafóricos ou exageros narrativos. De fato, existiram. Terminado o massacre, os presos que sobreviveram começam a carregar os corpos dos mortos. Muitos presos que fingiram ter morrido e que se jogaram nas pilhas de cadáveres, são descobertos e assassinados. Para encontrar os defuntos falsos, alguns policiais enfiavam a baioneta em seus pés, se houvesse reação, atiravam, para matar. Outros conseguiram escapar.

“Eu carreguei 35 corpos”, relata Sales, que em seguida foi mandado para fora do Pavilhão 9. “Fizeram, então, um corredor polonês, e davam coronhadas, pancadas com cassetetes, mandavam os cachorros morderem e davam murros e pontapés. Nesse momento, eles contavam até dez e liberavam a saída do pavilhão por grupos.” Um sadismo indisfarçável permeava as ações de alguns dos agentes da operação. “O primeiro que vinha na próxima fila era pego por eles, e tinha um policial mascarado que enfiava a baioneta na barriga e soltava o cachorro em cima. O cachorro mordia a cara inteira do sujeito, depois o mascarado dava um tiro e soltava ele no vão do elevador.”

Segundo testemunhas, muitos dos carregadores de corpos foram assassinados após terminarem o serviço. Para o egresso Sales, tratava-se de uma “queima de arquivo”. “Era uma forma de garantir que hoje eu não estaria aqui, contando essa história.” Até hoje, uma das maiores divergências do massacre se refere ao número de mortos. O número oficial, 111, não é aceito por muitos sobreviventes, bem como por muitos movimentos sociais e familiares de vítimas. “Cento e onze eram os que tinham pai e mãe que os procuraram, os demais nem foram contados. Morreram umas 250 pessoas. Eu distribuía pão e alimentação no presídio, naquele dia sobrou uma caixa. Eram 2,5 mil pães em cada caixa, não morreu tudo isso, mas nunca sobrou tanto pão. Sentimos falta, depois, de umas 250 pessoas.” Embora não especifique um número exato, a Pastoral Carcerária também contesta a contagem de assassinados.

A perícia só chegou ao Carandiru às 23h. O trabalho de colheita de provas se estende até às 3h, já do dia 3 de outubro. Era dia de votação do primeiro turno das eleições municipais. A reportagem de Fórum encontrou Campos, que nunca falou com a imprensa a respeito do assunto. O hoje procurador de Justiça não quis comentar o massacre. “A imprensa nunca saberá minha versão sobre esse assunto, nunca darei uma entrevista”, disse à reportagem.

Quando se encerram os trabalhos periciais, policiais voltam para passar o “pente-fino” no pavilhão. Mais 13 pessoas, que estavam escondidas, morrem. “Eu nunca vi nada como aquilo, tem gente que compara ao massacre de Auschwitz. Quem viveu, nunca esquecerá. Vai sonhar com isso pelo resto da vida.” O relatório elaborado pela Comissão Organizadora de Acompanhamento para os Julgamentos do Caso do Carandiru mostrou que 80% das vítimas ainda esperavam uma sentença definitiva da Justiça e só nove presos tinham recebido penas acima de 20 anos. Dos mortos, 51 tinham menos de 25 anos e outros 35 tinham entre 29 e 30 anos. Na data do massacre, os casos de homicídios representavam 8% do total de detentos do Carandiru.

Ao longo dos anos, uma dúvida que o julgamento terá que responder é a respeito das armas encontradas com policiais, supostamente em poder dos presos. O laudo pericial corrobora a tese dos presos. O documento afirma que não houve tiros de dentro para fora, somente de fora para dentro. Sales rechaça a possibilidade de haver armas de fogo entre os presos. “Não tinha arma de fogo, meu irmão, não ia ficar esperando polícia entrar para trocar tiro.” Para Sales, muitas das versões contadas posteriormente para justificar a ação policial não fazem sentido. “Depois da chacina, os policiais colocaram umas armas forjadas lá. Tiveram uns idiotas que saíram dizendo que tínhamos seringas com sangue contaminado com HIV. Por favor, uma arma atinge quilômetros, você acha que eu vou para cima de um policial de escopeta e metralhadora com uma seringa?”, questiona. “Foi uma operação mal planejada e mal executada, não houve resistência alguma, apenas um lado atacou. Aliás, as armas que, alegadamente, seriam dos presos eram plantadas. Não havia armas e nem reféns, não era uma rebelião, era apenas uma briga entre presos”, argumenta Azevedo Marques.

Sidney Sales sobrevivente do
massacre do Carandiru: "O Estado
é o maior culpado daquela tragédia.
O Fleury e o Pedro Campos sem
dúvida são os responsáveis.
Foram incompetentes e
 despreparados".

Após 20 anos, Sidney Sales se tornou pastor e dono de três instituições que abrigam, gratuitamente, pessoas com dependência química. Atende, ao todo, 130 pessoas, sendo que 25 são egressos do sistema penitenciário. No sossego de seu lar, em Várzea Paulista, interior de São Paulo, o missionário decreta o que, para ele, foi determinante para que o 2 de outubro se tornasse uma marca na história de São Paulo. “O Estado é o maior culpado daquela tragédia. O [Luiz Antonio, governador à época] Fleury e o Pedro Campos sem dúvidas são os responsáveis. Foram incompetentes e despreparados”, sentencia.

“Nunca mais vou me esquecer do que vi naquele dia 2 de outubro. Quando entrei na Casa de Detenção, vi muitas manchas de sangue espalhadas pelo chão, pelas paredes, pelos colchões, marcas de balas. Os sinais de um massacre”, conta Azevedo Marques. “Algo que nos chamou a atenção foi a quantidade de marcas de tiros, nas paredes com menos de 1,20 metro. Se juntarmos esse dado com outro, que é o fato de 70% dos presos terem morrido com tiros na cabeça ou no tórax, perceberemos que eles foram executados enquanto estavam de joelhos, imobilizados, portanto”, aponta.

Sales revela uma de suas principais mágoas, após a tragédia ocorrida no Carandiru. “Uma tristeza minha foi ver o Ubiratan Guimarães ser eleito deputado. Isso foi desumano, como podem eleger alguém que matou a sangue frio 250 pessoas? Legitimaram o massacre.” O sentimento de revolta reforçava o desejo de vingança que brotou em muitos dos que vivenciaram o horror daquele momento. “Entre nós, presos, havia um ‘trato’, cada um que saísse mataria todo policial que passasse em sua frente.”

Hoje, ele traz no corpo as chagas da violência. É paraplégico. Uma troca de tiros com ex-policiais, a quem chama de “justiceiros”, o imobilizou. “O crime não foi uma opção, foi uma consequência. Hoje, tenho alguma consciência social, mas na juventude, não pude ir para uma faculdade e não tive acesso à educação. Mas, como todo jovem, queria um carro, uma namorada bonita e uma roupa da moda”, lembra. O pastor, zagueiro e escritor do livro Paraíso Carandiru, sua autobiografia, demonstra ceticismo em relação às instituições. “Não confio e nem acredito no Estado, no Judiciário e na polícia.” Ele encerra com um discurso de tolerância: “A consciência dessas pessoas deve ser a condenação delas. Eu não desejo a prisão para nenhum deles, pois sei o quanto é difícil sobreviver lá dentro.”

Massacre impune

Vinte anos depois da maior chacina do sistema prisional brasileiro, nenhum responsável foi punido. O caso do Massacre passou primeiro pela auditoria militar, já que se tratava de crime praticado por policiais da corporação, e depois o processo teve que ser adequado para o Tribunal do Júri. “Na Justiça Militar, o trâmite foi rápido, até porque os olhos do mundo todo estavam voltados para o caso”, lembra Norberto Joia. O caso chegou à Justiça Comum em 1994.

Um dos problemas que atrasou o andamento do processo foi uma decisão de pronúncia anulada, remetendo o julgamento dos crimes de lesão corporal de volta para a Justiça Militar e mantendo os homicídios na Justiça Comum.

O coronel Ubiratan Guimarães era um dos réus do processo, mas acabou indo a julgamento separado dos demais. “O que o favorecia, o fato de ser deputado estadual e ter foro privilegiado, o prejudicou depois”, conta Joia. O militar foi eleito suplente na Assembleia Legislativa em 1994 e chegou a assumir as funções de parlamentar em dois períodos. Assim, seu processo correu em separado dos demais. No entanto, em 1998, ele não conseguiu a reeleição e perdeu o foro privilegiado, com seu caso voltando à primeira instância.

O julgamento de Ubiratan ocorreu em junho de 2001, resultando em sua condenação a 632 anos de prisão por 102 homicídios e cinco tentativas. Apesar da condenação, ele recorreu em liberdade e, no ano seguinte, foi eleito deputado estadual por São Paulo, enquanto tramitava o recurso da sua defesa. Por conta disso, o julgamento do seu recurso foi realizado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, composto pelos 25 desembargadores mais antigos do estado. Embora tanto o relator quanto o revisor tenham ratificado a validade do julgamento e da decisão dos jurados, outros 20 magistrados absolveram o policial, aceitando a alegação do advogado de defesa, Vicente Cascione, de que os jurados queriam a absolvição do réu, e não a sua condenação, devido à elaboração confusa dos quesitos apresentados ao júri.

“Foi uma decisão surpreendente e inusitada em termos de legislação. Os magistrados interpretaram a vontade do júri.” A polêmica decisão, aliás, obrigou que fossem feitas duas redações do acórdão. A primeira versão resumia a decisão desta forma: “Acolheram a nulidade relativa aos quesitos de excesso doloso, quanto ao estrito cumprimento do dever legal e quanto à inexigibilidade de outra conduta, pelo que declararam absolvido o réu no julgamento pelo Tribunal do Júri.” Ou seja, dava-se a entender que o órgão especial contrariava a decisão dos jurados, causando inúmeras manifestações contrárias. O texto foi reescrito, por unanimidade dos magistrados, uma semana depois: “Deram provimento, por maioria de votos, para acolher uma das preliminares de nulidade, pelo que reconheceram a absolvição do réu pelo Tribunal de Júri.” Ou seja, a mudança estabelecia que os juízes haviam “reconhecido” o que teria sido a vontade dos jurados de absolver Ubiratan. Esse “esforço de interpretação” foi negado por dois jurados favoráveis à condenação e dois que votaram pela absolvição, ouvido à época pelo jornal Folha de S.Paulo. Segundo eles, a decisão do júri era pela sentença condenatória.

O fato de os outros réus ainda não terem ido a julgamento reforça a sensação de impunidade. “Alguns réus que respondiam por lesões corporais tiveram seus crimes prescritos; outros morreram”, conta Fernando Pereira da Silva, promotor que atualmente é responsável pelo caso. O grande número de acusados explica a lentidão do trâmite. “O que tornou o processo demorado é que diversas formalidades legais precisaram ser cumpridas. Um erro da promotoria no cumprimento dos ritos judiciais poderia livrar um réu”, avalia. “O processo tem mais de 13 mil páginas, isso sem contar os anexos. É um dos maiores da cidade, com certeza do 2º Tribunal de Justiça, de Santana, é o maior.

Silva cita um dos procedimentos que serão realizados para exemplificar a dificuldade do processo. “Um dos requerimentos pedidos pela promotoria foi o confronto balístico. A realização desse exame será feita pelo Instituto de Criminalística (IC). Isso significa que todas as armas utilizadas por policiais no dia do massacre serão confrontadas com todos os projéteis encontrados na Casa de Detenção, bem como os que foram retirados dos cadáveres. Isso vai demandar uma dedicação quase que absoluta do IC”, explica. “Para que se tenha ideia, as armas nem foram encaminhadas ao IC, ainda. Ou seja, é impossível fazer uma previsão de quando esse julgamento ocorrerá e quando teremos um veredito.”

“O legislador penal nunca imaginou que um processo pudesse ter tantos réus”, pondera Norberto Joia. Em setembro de 2011, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou um recurso por parte da defesa dos réus e decidiu manter a decisão de levar a júri os 76 acusados pelo massacre, mas ainda não há previsão para que os réus sejam julgados. “Os tenentes da época viraram coronéis, um deles é comandante da Rota, imagine a pressão que significa para um jurado comum… Além disso, quanto mais demora o julgamento, mais esquecidos ficam os fatos.” E essa distância temporal, aliada a um possível recrudescimento da cultura autoritária no Brasil nesse período, pode favorecer a defesa dos réus. À época, a ação da polícia no Massacre foi condenada por 53% dos paulistanos entrevistados pelo Datafolha, enquanto 29% concordavam com a ação. Será que, hoje, o resultado seria o mesmo? “Esse é um júri com forte caráter ideológico, se uma pessoa entrar com a ideia de que bandido bom é bandido morto, é impossível qualquer argumento da promotoria que o faça votar pela condenação dos réus.” F

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