quarta-feira, 29 de maio de 2019

Brasil: para um país sem educação



A instabilidade política atingiu agora níveis mortais para ciência, tecnologia e educação no Brasil. A educação está literalmente desaparecendo; A ajuda internacional é urgentemente necessária.


Por Juliano Morimoto


Carnaval. Copacabana De praia. Futebol. Essas são as primeiras imagens que surgem na mente de qualquer pessoa quando o assunto é o Brasil.


Rio de Janeiro, a cidade mais famosa do Brasil.
Fonte: theculturetrip.com


Mas olhar com mais atenção para a atual instabilidade política do Brasil revela uma realidade que é tudo menos alegria e felicidade - particularmente para ciência, tecnologia e educação.

As coisas estão ruins. Não é o tipo de 'ruim' com o qual podemos viver; não é uma questão de se acostumar com novas maneiras de fazer as coisas. É ruim, no sentido de que os principais centros educacionais da América Latina podem desaparecer até o final de 2019. 

Ações recentes do governo para reduzir o orçamento das universidades federais públicas deixaram as principais instituições do país perdidas. A universidade mais antiga do Brasil, a Universidade Federal do Paraná com mais de 100 anos, passou por uma redução de 30% em seu orçamento, um total de 48 milhões de reais ( c. US $ 12,2 milhões). Infelizmente, este não é um caso isolado. Em todo o país, os cortes chegam a 5,8 bilhões de reais ( c. US $ 2,1 bilhões). 

Esta política visa diretamente as universidades públicas, que, ironicamente, são aquelas com maior reputação internacional e produtividade científica no país. De fato, mais de 90% das publicações científicas brasileiras são de universidades públicas, e todas as universidades brasileiras nas fileiras internacionais são públicas. Dados esses números, é um tanto idiota justificar os cortes dizendo que as universidades públicas não estão envolvidas em pesquisa, como sugerido pelo governo.

Protestos em Curitiba, Paraná.
Crédito: Franklin de Freitas
                                     

Mas espere! As coisas pioram

Mais de três mil bolsas de mestrado e doutorado foram canceladas em todo o país. Alegadamente, essas bolsas estavam vagas e, portanto, recuperadas pelo órgão governamental responsável por gerenciá-las (ou seja, a CAPES). No entanto, um grande número dessas bolsas de estudo já havia sido alocado para estudantes no nível universitário. Muitos estudantes planejaram seus estudos de pós-graduação e - em um país tão extenso quanto o Brasil - se mudaram para outras cidades para iniciar seu curso apenas para perceber que suas bolsas de estudo não estavam mais disponíveis. 

Instituições estão se afastando. O reitor da Universidade Federal do Paraná - Ricardo Marcelo Fonseca - manifestou sua preocupação com o futuro da educação pública no Brasil. Estudantes em todo o país organizaram protestos e comícios para expressar seu descontentamento em relação ao assunto. Um rali nacional está prevista para acontecido nas 15 th de maio. As mídias sociais, a TV e o rádio estão destacando as muitas conquistas das instituições públicas e de seus ex-alunos, na tentativa de informar a população em geral sobre a importância da educação pública para a sociedade. 

Rally organizado por alunos da Universidade Federal do Paraná, que
reuniu 15 mil pessoas. Crédito: Franklin de Freitas

Infelizmente, a política é surda. Isso ocorre porque a política no Brasil tornou-se uma maneira pública de expressar opiniões pessoais, e a voz alta e clara das pessoas em favor da educação pública permanece deliberadamente desconhecida. Portanto, precisamos de apoio internacional para proteger nossas instituições públicas. O Brasil é um país de língua portuguesa, tão grande que se tornou autocentrado na América do Sul. Como resultado, há relativamente poucas pessoas com proficiência em inglês capazes de (e interessadas em) comunicar a extensão dos problemas do país à comunidade internacional. Como brasileiros, precisamos de plataformas de mídia que nos permitam expressar as dimensões e nuances dos problemas no país, permitindo ao mundo ver a trajetória desastrosa que o Brasil adotou para seu futuro. Precisamos ter uma voz!

Se perdermos essa batalha e as universidades federais públicas forem estranguladas até a morte financeiramente, não apenas perderemos o conhecimento produzido pelas instituições públicas, mas também a oportunidade para mentes jovens e talentosas alcançarem seus sonhos e contribuírem com novas descobertas que podem mudar o futuro do mundo. Nosso planeta. 

E em um país com diferenças sociais extremas como o Brasil, a esperança de uma oportunidade de estudar é tudo o que temos.

Não deixe que eles tirem isso de nós. Por favor, compartilhe e deixe que outras pessoas conheçam a luta. 

Referências









Juliano Morimoto. Dr Morimoto é um pesquisador no campo da ecologia evolutiva. Seus tópicos de pesquisa incluem Nutrição, Ambiente de Desenvolvimento, Simbiontes e Reprodução. Ele é apaixonado por estatísticas e está desenvolvendo novas maneiras de usar o Machine Learning para analisar dados de comportamento animal. O Dr. Morimoto é membro da Sociedade Lineana e membro da Royal Society of Biology.


domingo, 19 de maio de 2019

A herança universitária elitista contra os ecos da universidade popular



Pelo menos em sua maioria, as universidades públicas brasileiras não possuem mais o caráter elitista de outrora. A parte favelada, pobre, preta, LGBT, indígena, quilombola e tudo mais que representa a diversidade brasileira quer uma universidade realmente inclusiva e plural


Por Joaquim Alves da Silva Jr.* (publicado 17/05/2019 14h59)


Juventude, diversa e pensante, saiu às ruas para protestar contra a redução de verbas para a
educação pública e também para exigir novas formas de se pensar a formação 
universitária no país


"O conhecimento é para todos, você não entende isso porque é branco!" - Trecho do filme "O Abraço da Serpente"


Grande parte da população brasileira assiste consternada o processo de destruição dos fundamentos mínimos do Estado de Bem-Estar Social construídos no Brasil nos últimos trinta anos. Junta-se o toque fascistoide e entreguista implementados na base dos comandos dos bancos e do imperialismo capitalista.

Mas a intenção é falar da destruição do setor público da educação, em especial o ensino superior, partindo de uma experiência recente enquanto participante de parte das assembleias estudantis que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro decorrentes do anúncio dos cortes das bolsas na pós-graduação e nos outros níveis de ensino.

Alguns dados divulgados na internet para contextualizar a atual configuração dos estudantes nas universidades públicas federais: dois entre três discentes provêm de famílias cuja renda não ultrapassa 1,5 salário mínimo per capita. Aproximadamente 50% dest@s se autodeclaram pret@s ou pard@s. Como se não bastasse, as mulheres são a maioria nos cursos técnicos e de graduação.

Os dados são claros: pelo menos em sua maioria, as universidades públicas brasileiras não possuem mais o caráter elitista de outrora. Por tal motivo, a redução no orçamento das universidades não caracteriza somente uma chantagem inconstitucional de baixo nível, como também um projeto anunciado de eugenia aos modos tupiniquins. A intenção é clara: a dominação do ensino superior privado que obstruirá às pessoas com menor nível de renda o acesso ao ensino superior.

Como demonstram os dados do Atlas da Violência, a possibilidade de uma pessoa negra se manter viva no Brasil depende do nível educacional alcançado, evidenciando o cenário tenebroso por vir. Será certa a intensificação da morte de pessoas pretas e pobres, com anuência do Estado e da nossa sociedade rançosamente escravista.

Na verdade, até aqui não há novidades quanto ao histórico político da colônia tupiniquim. O Estado agiu ativamente na exclusão das porções negras da sociedade. Aliás, em quase todos os momentos de mudança institucional importante, o que ocorreu foi o reforço da cidadania de segunda classe para a população negra.

A República Velha é resultado de um golpe latifundiário-militar que relegou as populações negras outrora em condição de escravos às ruas sem qualquer tipo de apoio ou direitos. O Estado Novo de Vargas implantou o racismo institucional, fechou a primeira organização de representação preta brasileira, chegando inclusive a expulsar as poucas professoras negras atuantes no magistério.

A militarização das favelas decorrente da ditadura empresarial-militar segue de vento em popa. Aliás, o próprio surgimento da ciência no Brasil tem uma dimensão fortemente eugenista (Leia O Espetáculo das Raças - Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 1993).

Em muito lembra os exemplos recentes do atual governo: entre idas e vindas, a Capes anuncia a volta das bolsas, mas somente para os programas classificados com notas altas, remetendo à histórica forma elitista de apoio às universidades mais prestigiadas e localizadas fundamentalmente nas regiões sul e sudeste do país.

Há um extenso material abordando o cenário catastrófico dos cortes do orçamento do ensino superior em relação às populações mais pobres, bem como o contra-argumento relativo ao impacto positivo da expansão das universidades pelo país.

Se até recentemente as favelas e os contingentes populacionais pobres eram tidos como "objeto" de pesquisa, atualmente boa parte deste mesmo "objeto" está presente nas universidades, ocupando as carteiras e lousas a partir dos seus lugares de fala, em grande medida graças aos programas de cotas raciais e de permanência estudantil.

Pessoas pretas, do meio rural e de comunidades tradicionais, que muitas vezes ainda são as primeiras da família a vivenciar o ambiente universitário, veem os estudos como uma oportunidade de vida, e não como mais um degrau a ser conquistado tendo carros e viagens para a Europa como prêmio. Além disso, adquire-se pensamento crítico da sua realidade e o impulso por transformá-la, tal como preconizado pelo mestre Paulo Freire.

Agora a lógica é diferente, pois não bastam apenas o retorno dos direitos. A parte favelada, pobre, preta, LGBT, indígena, quilombola e tudo mais que representa a diversidade quer uma universidade realmente inclusiva, plural, permeável à sociedade.

A reivindicação passa nesse momento não somente por mais investimento no ensino público de qualidade e gratuito, mas também pela transformação do modo de produzir conhecimento, tendo como critério-fim o intenso intercâmbio social. São claros e cristalinos o ecos para a emergência de uma Universidade Popular!

Neste sentido, há um lado bom do atual momento pelo qual devemos agradecer ao Sr. Bolsonaro. Ele conseguiu motivar, talvez pela primeira vez na história, a união da comunidade acadêmica pela defesa da universidade pública, num frutífero momento de reflexão entre o velho e o novo modo de fazer política estudantil.

É também chegada a hora de as entidades estudantis, associações docentes e de servidores públicos pararem de reproduzir o jogo de poder enfadonho e fragmentador para vislumbrar a facilitação do processo pragmaticamente político de mobilização pela defesa do ensino público.

Tal momento não é privilégio do Brasil. Os ataques às universidades estão ocorrendo em várias partes do planeta, nas mais diversas áreas, refletindo na ruptura de pesquisas em andamento, bem como a perseguição e a fuga de intelectuais.

Este momento decorre da expansão das notícias falsas como estratégias para deslegitimar o conhecimento crítico, manipular processos eleitorais e desestabilizar governos. Lutar pelo acesso e poder de construção do conhecimento tomou proporções globais.

Carl Sagan, um dos mais importantes intelectuais e divulgadores científicos da história, defendia que só temos duas opções: ou nos transformamos numa sociedade do conhecimento, ou seremos qualquer outra coisa (Leia: Carl Sagan - O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo, Companhia das Letras, 2006).

A "qualquer outra coisa" está aí nos governando, tomando decisões baseadas na alienação social.

Se não demonstrarmos a importância da produção do conhecimento para a sociedade, a ciência continuará a não fazer sentido e, por isso, será dispensável. Restará a ideia da "terra plana", mesmo que tal impropério seja divulgado de forma esquizofrênica em meios tecnológicos advindos da pesquisa científica.

É hora de sair para as ruas e enfrentar a repressão anunciada para sensibilizar a população em relação ao cenário obscuro que a falta de investimento no ensino público pode gerar. É um momento da história sem volta.


* Doutorando em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ


sexta-feira, 10 de maio de 2019

O desmonte da ciência e a fuga de cérebros



Num país que já investe pouquíssimo em pesquisa, governo impõe novos cortes, amplia a fuga de cérebros e bloqueia caminhos que permitiram superar atraso criativo e técnico


"Marcha pela Ciência", com apoio do SBPC. Acontece desde 2017


Por Juliana Sayuri, no Nexo


O governo de Jair Bolsonaro determinou o contingenciamento de R$ 29 bilhões do orçamento federal em 2019. A medida foi publicada em uma edição extra do Diário Oficial de 29 de março de 2019.

O maior afetado, em termos absolutos, foi o Ministério da Educação, que teve congelados R$ 5,8 bilhões — cerca de 25% do orçamento originalmente previsto para pasta no ano. No Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, foram retidos R$ 2,1 bilhões, que representam 42% do total previsto para 2019.

O bloqueio de dinheiro não atinge despesas obrigatórias, como salários dos órgãos federais. E, segundo o Ministério da Economia, à medida que houver mais arrecadação ao longo do ano, os recursos podem voltar a ser liberados. Mas o contingenciamento tem um impacto imediato sobre as chamadas despesas discricionárias — que vão desde custos de emissão de passaporte até bolsas de estudo.

Nesse cenário, um setor estratégico é diretamente afetado: a pós-graduação no Brasil. Isso inclui dois dos principais órgãos federais de fomento à produção científica nacional: o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

A retenção de recursos levantou, mais um vez, um debate recorrente sobre a importância de investimentos em educação e ciência no Brasil, diante de um quadro de retração de verbas em anos recentes. Abaixo, o Nexo recupera esse histórico e mostra os impactos de curto e longo prazo dos cortes de orçamento nas verbas para a pós-graduação nas universidades, principal responsável pela produção científica no país.

Bolsonaro e as universidades

“Poucas universidades têm pesquisa”, disse o presidente Jair Bolsonaro, em entrevista à rádio Jovem Pan, em 8 de abril de 2019.

Sem citar dados ou fontes de informação, Bolsonaro criticou o que chamou de aparelhamento ideológico de instituições de ensino superior. Mencionou, como exemplo, a “manifestação burra” de “100 garotos” que o trataram como “racista, machista e homofóbico”, o que provocou o cancelamento da visita à Universidade Mackenzie, em São Paulo, em 27 de março de 2019.

Desde a campanha presidencial, em 2018, Bolsonaro fez diversas declarações nessa linha, ecoando as críticas que o escritor Olavo de Carvalho faz às universidades como centros de difusão de um suposto “marxismo cultural”.

Universidades públicas são responsáveis por 95% da produção científica brasileira, de acordo com o relatório “Research in Brazil”, realizado pela empresa americana de análise de dados Clarivate Analytics, a pedido da Capes, e divulgado em 2017. Entre 2011 e 2016, foram publicados mais de 250.000 artigos científicos, em todas as áreas do conhecimento, levando o país à 13ª posição na produção científica global.

Em geral, as pesquisas desenvolvidas por mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos são financiadas com recursos de agências estaduais e federais de fomento, via bolsas de estudos e apoio a projetos científicos.

Entre as estaduais estão as fundações de amparo à pesquisa, como Fapesp, de São Paulo, Faperj, do Rio, e Fapemig, de Minas Gerais. As principais agências federais são a Capes, vinculada ao Ministério da Educação, e o CNPq, vinculado ao Ministério da Ciência. Ainda no plano federal, há o Fundo Nacional do Desenvolvimento Científico-Tecnológico, que é a base da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), também vinculada ao Ministério da Ciência.

Individualmente, os pesquisadores registram suas produções científicas, como publicação de livros e artigos, patentes, orientações, na Plataforma Lattes, do CNPq. O desempenho dos programas de pós-graduação, por sua vez, passa pela avaliação do SNPG (Sistema Nacional de Pós-Graduação), com informações coletadas na Plataforma Sucupira, da Capes.

Entre os critérios de avaliação estão a produção científica e a formação de mestres e doutores. Os cursos recebem notas de 1 a 7 (notas 1 e 2 são consideradas insuficientes e provocam o descredenciamento dos cursos; notas 6 e 7 são consideradas de destaque e dentro padrões internacionais de excelência). Em geral, programas melhores atraem mais pesquisadores e mais investimentos para pesquisa.

O caso do CNPq

Segundo a Lei Orçamentária Anual de 2019, a verba prevista para o CNPq corresponde a R$ 912 milhões (R$ 785 milhões para bolsas e R$ 127 milhões para projetos científicos). Entretanto, para pagar as bolsas e os projetos já iniciados, seria necessário, no mínimo, R$ 1,2 bilhão.

O CNPq apoia atualmente cerca de 80 mil bolsistas e 11 mil projetos. O déficit na ordem de R$ 300 milhões pode comprometer o pagamento de bolsas e projetos a partir de setembro/outubro de 2019.

Em 15 de abril de 2019, o CNPq encaminhou e-mails a coordenadores de projetos aprovados na Chamada Universal de 2018 informando a suspensão da implementação de novas bolsas. A Chamada Universal é um dos editais mais tradicionais da agência, voltado para pesquisas científicas, de tecnologia e de inovação em todas as áreas do conhecimento.

Em 5 de dezembro de 2018, o órgão tinha publicado a aprovação de 5.572 projetos, envolvendo 2.516 bolsas de várias modalidades, em um total de R$ 200 milhões.

Desde 2018, a situação crítica do CNPq vem sendo discutida publicamente. Em carta aberta, divulgada em 9 de agosto de 2018, o engenheiro elétrico e então presidente da entidade Mario Neto Borges alertou que as limitações orçamentárias impostas para 2019 poderiam limitar lançamento de editais e contratações de novos projetos.

“Cada real que se destina à pesquisa científica e cada minuto que se permite à inteligência e criatividade brasileiras exercitarem a busca por soluções, nos mais diferentes campos, vão sempre render frutos e benefícios para o país. […] Hoje o Brasil tem investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento da ordem de 1,2% do seu Produto Interno Bruto, o que compreende os dispêndios privados e públicos — é muito pouco. Para que possa alcançar novos potenciais e realizar diferentes objetivos, o Brasil precisa ampliar esse percentual para ao menos 2% de seu PIB”, escreveu Borges.

O caso do Capes

A Capes apoia atualmente 93,5 mil bolsistas na pós-graduação, além de 105 mil profissionais de educação básica e 245 mil beneficiados por programas em 750 cursos de 110 instituições, em cerca de 600 cidades.

Consultada pelo Nexo, a agência informou que, de acordo com Lei Orçamentária Anual de 2019, o orçamento previsto é de R$ 4,2 bilhões — destes, R$ 3 bilhões se destinam ao pagamento de bolsas no país e no exterior, incluindo as modalidades de mestrado, doutorado, pós-doutorado, estágio sênior, especialização, entre outras.

“Este orçamento é suficiente para a Capes cumprir suas obrigações [de 2019]. Até o momento, não foi comunicado contingenciamento de recursos”, afirmou a agência ao Nexo, por e-mail, em 16 de abril de 2019. Desde 2018, entretanto, a questão ronda a agência.

Em 1º de agosto de 2018, Abilio Baeta Neves, cientista político e à época presidente da Capes, publicou ofício endereçado ao então ministro Rossieli Soares da Silva, relatando que os recentes cortes trariam “impactos graves” para seus programas de fomento, implicando a suspensão do pagamento de todos os bolsistas de mestrado, doutorado e pós-doutorado a partir de agosto de 2019. De acordo com o ofício, projetos de formação e programas de cooperação internacional seriam interrompidos.

A nova gestão, entretanto, não abordou a questão das restrições orçamentárias publicamente. Em conferência na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), em 13 de março de 2019, o engenheiro civil e atual presidente da Capes Anderson Correia defendeu a expansão da pós-graduação no país. Correia informou que o total de programas passou de 2.265 para 4.296 em gestões anteriores, de 2006 a 2017. Sem citar cifras, afirmou que o país precisa aumentar investimentos e formar mais mestres e doutores.

Ricardo Vélez Rodríguez, que foi ministro da Educação nos primeiros três meses de governo Bolsonaro, e agora seu sucessor, Abraham Weintraub, ambos defensores do combate ao “marxismo cultural”, não comentaram os cortes orçamentários. Ao contrário do que defende Correia, Weintraub desconsidera destinar mais investimentos às universidades.

Questionado pelo jornal O Estado de S. Paulo sobre os projetos ministeriais para as universidades federais, em 10 de abril de 2019, dois dias após assumir a pasta, o ministro afirmou que o país “gasta muito” nas universidades.

Em nota ao Nexo, a Capes declarou que, enquanto fundação pública, está alinhada à política conduzida pelo Ministério da Educação. “Não nos cabe comentar a posição do ministro sobre o sistema universitário”, acrescentou.

Weintraub também afirmou que a produção científica “é baixa” — o que não é verdade. Segundo dados da Web of Science, plataforma internacional de indexação de citações científicas da Clarivate Analytics, compilados a pedido do Jornal da USP, as 50 instituições que mais publicaram pesquisas científicas nos últimos cinco anos no Brasil incluem 44 universidades (36 federais, 7 estaduais e 1 particular), 5 institutos de pesquisa e 1 instituto federal de ensino técnico. São as “fábricas de conhecimento”, segundo a expressão do jornalista Herton Escobar.

Em entrevista ao Nexo, a bioquímica Helena Nader, professora da Universidade Federal de São Paulo, argumenta que recursos para ciência e educação não são “gastos”, mas “investimentos”. “É uma fábrica de montagem: você começa com a educação, que vai gerar ciência, que vai gerar tecnologia, que vai gerar inovação. É isso que move o desenvolvimento de um país”, diz Nader.

O histórico da pós-graduação

No início da década de 2000, o Ministério da Educação passou a investir na expansão das instituições federais, aumentando o número de cursos de graduação e pós-graduação fora das capitais, com especial atenção às regiões Norte e Nordeste do país.

Em 2004, o orçamento das instituições federais de ensino superior envolvia cerca de R$ 12 bilhões. Na época, 18 novas universidades foram fundadas e 173 campi de instituições federais foram instalados no interior do país. Em 2014, o orçamento superou R$ 40 bilhões.

A expansão foi acompanhada por incentivos para ampliação do acesso ao ensino superior, mediante programas como o ProUni (Universidade Para Todos). Na época, também foram formuladas ações para inclusão de indígenas e negros nos programas de pós-graduação, como as políticas afirmativas de cotas raciais.

As iniciativas de expansão aconteceram durante a gestão de Fernando Haddad no Ministério da Educação, entre 2005 e 2012. O programa elaborado pelo adversário de Bolsonaro nas eleições de 2018 é um dos alvos da “Lava Jato da Educação”, anunciada pelo presidente em 2019.

Ao longo da última década, os investimentos destinados a bolsas do CNPq e da Capes tiveram altos e baixos, conforme mostram os gráficos da série histórica, a partir de dados levantados pelas agências a pedido do Nexo. Entre 2009 e 2014 os investimentos acompanharam as políticas de expansão da pós-graduação, mas, na sequência, tiveram cortes sucessivos.


                                                                                           Fonte: Capes


A maior parte do orçamento das agências se destina ao pagamento de bolsas. Na Capes, por exemplo, do orçamento de R$ 6 bilhões em 2014, R$ 5,1 bilhões foram direcionados para bolsas (R$ 1,8 bilhão para o programa Ciência Sem Fronteiras). No CNPq, do orçamento de R$ 1,2 bilhão em 2017, R$ 1 bilhão foi para bolsas.




                                                                                          Fonte: CNPq



O número de matrículas na pós-graduação saltou de 48 mil para 203 mil entre 2002 e 2014, segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) citados em relatório da SESu (Secretaria de Educação Superior), unidade do Ministério da Educação responsável por coordenar processos da Política Nacional de Educação Superior.

O número de programas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) triplicou no país, informa o relatório Mestres e Doutores 2015, o mais recente da série. Elaborado pelo CGEE (Centro de Gestão e Estudos Estratégicos), o estudo também indica um boom na formação de mestres e doutores entre 1996 e 2014. Segundo dados da Plataforma Lattes de 2016, são 371 mil mestres e 227 mil doutores no Brasil.

Em 2014, a taxa de desemprego era de de 24,5% entre doutores recém-titulados e de 34,2% entre mestres — números considerados altos em relação a outros países; nos Estados Unidos, por exemplo, é de 2,1%. Em 2014, a taxa geral de desemprego no Brasil foi de 4,8%.

Neste contexto, a expansão da pós-graduação é criticada por alguns autores, pois as universidades e os mercados não conseguem absorver esses profissionais. Em entrevista à BBC Brasil, o biólogo Marcelo Hermes-Lima, professor da Universidade de Brasília, criticou a proliferação “alucinada” de cursos de pós-graduação, que estaria priorizando quantidade, e não qualidade da formação acadêmica.

Em entrevista ao Nexo, o biólogo Fernando Reinach, ex-professor da Universidade de São Paulo, também critica o crescimento desordenado. “O primeiro ponto para pensar a pós-graduação é: qual é o tamanho desejado dela? O Brasil, um país pobre e cheio de carências, precisa desta área, mas qual o tamanho ideal desta área? Quantos mestres e doutores devemos formar? É uma discussão difícil, mas que deve ser feita”, diz Reinach.

Em 2016, durante o governo de Michel Temer, foi aprovada a Emenda Constitucional 95, a chamada PEC do Teto, que limita gastos do orçamento federal. Na esteira da emenda, em vigor desde 2017, foram feitos congelamentos e cortes sucessivos nos orçamentos da Capes e do CNPq, que provocaram diversas reações de cientistas e acadêmicos.

Em entrevista à agência DW, o físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, se referiu às recentes políticas de austeridade como um risco “ao desenvolvimento e à própria soberania nacional”.

Os impactos para pesquisadores

Atualmente, pesquisadores enfrentam um conjunto de impactos econômicos, sociais e políticos, o que compromete o desenvolvimento de estudos científicos e, como consequência, o desenvolvimento de inovação e tecnologia para o país.

Impasses

Estresse, depressão e ansiedade:

Segundo um estudo feito com mais de 2.000 estudantes de 26 países, publicado na revista científica Nature Biotechnology em março de 2018, os pós-graduandos têm seis vezes mais chance de sofrer depressão e ansiedade do que o restante da população. Enquanto o artigo apontava causas como pressões da dinâmica acadêmica (por exemplo, a relação orientando-orientador), leitores da revista publicaram comentários com suas próprias ideias a respeito do problema, apontando outros fatores como o baixo valor de bolsas e a falta de perspectiva de emprego (dentro e fora da universidade) como catalisadores de estresse e ansiedade.

Falta de perspectiva profissional:

Doutores recém-titulados têm buscado bolsas de pós-doutorado, como alternativa diante da falta de oportunidade no mercado de trabalho, tanto na iniciativa privada como nas instituições públicas de pesquisa. Entretanto, conforme reportagem da BBC, não há bolsas para todos: no primeiro calendário de 2018, dos 2.550 pedidos recebidos pelo CNPq, por exemplo, foram concedidas apenas 363 bolsas.

Bolsas defasadas:

Embora disputadas, as bolsas disponíveis estão defasadas desde 2013, data do último ajuste. Nas duas agências, Capes e CNPq, a bolsa de pós-doutorado é de R$ 4.100; a de doutorado, R$ 2.200; e a de mestrado, R$ 1.500. Em fevereiro de 2019, a ANPG (Associação Nacional de Pós-Graduandos) lançou uma campanha pedindo atualização dos valores. Em geral, a condição de bolsista implica “dedicação exclusiva”, isto é, não é permitido exercer outras atividades remuneradas com vínculo empregatício.

Desemprego e subemprego:

Pesquisadores têm migrado para outras atividades ou recorrem a subempregos. Professores têm feito bicos como Uber ou pedido emprego no farol. A crise profissional não é um fenômeno só no Brasil: em editorial de julho de 2018, a revista científica Nature usou a expressão “geração perdida” para se referir a jovens doutores nos Estados Unidos e na Europa.

Fuga de cérebros:

Diante da falta de perspectiva profissional no país, também voltou à tona a discussão sobre o fenômeno da “fuga de cérebros”. Expressão datada da década de 1960, o “brain drain” se refere ao êxodo de profissionais de alto nível educacional, motivados pela busca de melhores condições de trabalho no exterior. “Um hiato de investimento desincentiva o pesquisador. Sem empresas e universidades que absorvam esse profissional, ele vai embora do Brasil se tiver talento”, comentou o bioquímico Hernan Chaimovitch, ex-presidente do CNPq, à rádio Jornal da USP no Ar.

Segundo Ildeu Moreira, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira de Progresso da Ciência), inicia-se uma “desarticulação geral”. “A ciência descontinuada é muito difícil recuperar. Se você desmonta grupos de pesquisa, aquela experiência vai embora. Depois, você precisa começar do zero. Gastam-se anos, gasta muito mais recursos. Na prática, significa que uma parcela muito significativa dos recursos que o Brasil investiu nos últimos anos vai se perder”, avaliou, em entrevista à BBC, em agosto de 2018.

Por que investir em ciência?

Nas universidades são desenvolvidas pesquisas em diversas áreas do conhecimento, incluindo experimentos de laboratórios (que podem produzir medicamentos novos, por exemplo), estudos de campo (que podem desenvolver técnicas para agricultura, entre outros) e trabalhos teóricos (que podem contribuir para a compreensão de questões políticas, por exemplo).

O ministro Abraham Weintraub sinalizou, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo de 10 de abril de 2019, que há áreas prioritárias para receber recursos e outras não, como a filosofia.

Instituições como a Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) criticaram a fala do ministro.

Atualmente, há diferenças na distribuição de recursos financeiros de acordo com as áreas do conhecimento — a maioria é destinada a campos das ciências biológicas e exatas. Segundo a Anpuh (Associação Nacional de História), as ciências humanas ficam com cerca de 10% dos orçamentos.

Em março de 2019, a SPBC publicou manifesto crítico aos últimos contingenciamentos orçamentários. Redigido na cidade cearense de Sobral, o manifesto foi endossado por mais de 30 associações científicas do país.

O Nexo conversou com dois especialistas para discutir os impactos das restrições orçamentárias, os modelos atuais e as alternativas possíveis para o financiamento de pesquisas da pós-graduação.

Helena Nader: bioquímica, professora da Universidade Federal de São Paulo e presidente da SBPC entre 2011 e 2017

Fernando Reinach: biólogo, ex-professor da Universidade de São Paulo e integrante do conselho do Instituto Serrapilheira (instituição privada de fomento à ciência)

Por que investir em ciência e educação?

HELENA NADER Qualquer nação desenvolvida chegou ao estágio de desenvolvimento que chegou graças a acreditar e investir em educação e ciência. Sem educação, não há mão de obra qualificada para, inclusive, aprender e usar as metodologias desenvolvidas por outros países. Sem ciência, não há desenvolvimento de metodologias próprias, tecnologias, inovações, conhecimento.

Estive recentemente na Coreia e fiquei impressionada com a história do desenvolvimento científico lá. Um antigo rei mudou um alfabeto inteiro, que era inacessível, partindo do princípio: o povo tem mãos, mas não consegue escrever; o povo tem olhos, mas não consegue ler. Enfrentando resistências, ele deu uma ordem para mudar o alfabeto, para que todos conseguissem ler e escrever. Conhecimento é uma forma poder, que deve ser compartilhada. Neste contexto, o Brasil está andando na direção oposta, na contramão da história.

As universidades públicas respondem por mais de 95% da ciência produzida no país, cujo impacto varia, como toda ciência, de acordo com as áreas. De todo modo, segundo estudo recente da Clarivate Analytics, o impacto da ciência brasileira aumentou; a internacionalização da ciência brasileira está aumentando, embora ainda esteja aquém de outros países.

Todas as universidades federais estão produzindo ciência, o que é bom. Não adianta concentrar as pesquisas no eixo Rio – São Paulo – Minas Gerais. Universidade, como dizia Anísio Teixeira, não foi feita para guardar conhecimento. Biblioteca guarda conhecimento. Universidade é para gerá-lo.

FERNANDO REINACH Antes de tudo, precisamos diferenciar ciência e educação. A educação, que é essencial e deve ser proporcionada ao país todo, é uma história. A ciência desenvolvida na pós-graduação, que formará cientistas e especialistas, é outra história. Uma minoria vai para mestrado, doutorado, pós-doutorado. Nenhum país razoável quer que ‘todo mundo’ faça doutoramento ou pode exigir que ‘todo mundo’ seja cientista.

Neste contexto, o primeiro ponto para pensar a pós-graduação é: qual é o tamanho desejado dela? O Brasil, um país pobre e cheio de carências, precisa desta área, sim, mas qual o tamanho ideal dela? Quantos mestres e doutores devemos formar? É uma discussão difícil, mas que deve ser feita.

Sempre se quer níveis máximos de investimentos – e, por questões corporativas, nenhum núcleo de pesquisa vai dizer ‘tenho investimento demais, vamos repassar para outros’. Há uma tendência de não querer abrir mão de nada, de não querer fechar programa de pós-graduação que é mal-avaliado ou laboratório que não produz. Na verdade, esta é a hora de depurar o que é bom e o que é ruim.

Antes de tudo, precisamos saber qual é o dinheiro disponível para investimento. Depois, qual é a melhor maneira de investi-lo? Se cortes forem inevitáveis, como fazê-los? Um corte horizontal, que afeta todo mundo, acaba cortando pesquisas boas e ruins. Um corte vertical, que diferencie pesquisas boas e ruins, seria melhor. Até hoje, porém, os cortes não foram feitos a partir de um critério de qualidade, mas de quantidade. Onde estão os melhores indicadores? Vamos investir onde as melhores pesquisas estão sendo desenvolvidas.

É mais fácil esbravejar diante dos cortes e pedir a volta de um número, sem discutir se esse é o número ideal. Esta é uma oportunidade para brigar por uma avaliação da produção científica.

É sustentável o modelo atual? Há alternativas?

HELENA NADER Era um modelo sustentável, mas não na visão de que educação e ciência são ‘gastos’. Educação, ciência, tecnologia, inovação e cultura não são gastos, são investimentos. A classe política precisa enxergar esses fatores como o possível “turning point” da economia do país. Reduzir investimentos nessas áreas é bloquear o futuro, uma falta de visão estratégica. É uma fábrica de montagem: você começa com a educação, que vai gerar ciência, que vai gerar tecnologia, que vai gerar inovação. É isso que move o desenvolvimento de um país.

O argumento de que os programas de pós-graduação cresceram demais também é uma visão não real. Nos levantamentos de dados do número de doutores por mil habitantes – e o Brasil está abaixo da Argentina. Como crescer? O Brasil possuía cerca de 700 pesquisadores por milhão de habitantes em 2010, enquanto Israel 8.000, por exemplo [segundo a Unesco]. Concordo que precisamos rever a pós-graduação, principalmente o modelo de avaliação. [O processo de expansão] foi muito bom e inclusive alavancou a ciência brasileira.

Antigamente, fazia-se uma tese que ia parar em uma prateleira. Atualmente, uma tese se desdobra em mais trabalhos, dependendo do assunto. Isso posicionou o Brasil na 13ª posição de publicações, como referência de algumas áreas. Dizer que temos muitos doutores é uma falácia. Estamos aquém, na realidade. Precisamos formar doutores não só para as universidades, mas para o mercado, para a indústria. O que também precisamos rever é o diálogo da universidade com a sociedade. Não conseguimos até agora, como nos Estados Unidos e na Europa, uma via para nos comunicarmos com a sociedade. É uma autocrítica.

FERNANDO REINACH O modelo básico é similar a este no mundo todo: doutores desenvolvem pesquisas e se formam nas universidades, vão se tornar pesquisadores nas instituições de excelência e vão levar o conhecimento produzido a outras instâncias. A pesquisa é financiada pelo governo federal e depois vai para o mercado.

Novamente, a questão é o tamanho da ciência e da tecnologia, o que varia de país para país. No Brasil, há investimento de instituições como o Serrapilheira [da qual o entrevistado é conselheiro], que financia um número pequeno de pesquisadores de excelência. Entre as diferentes áreas do conhecimento desenvolvidas no Brasil, como deve ser feita a divisão de recursos? Áreas científicas (biológicas, exatas, humanas), afinal, são divisões arbitrárias e é difícil imaginá-las igualmente contempladas.

Um exemplo: fui professor da Universidade de São Paulo, onde há pesquisa de sânscrito no departamento de Letras. É importante? Sim, certamente. Mas sânscrito deve estar incluído em todos os departamentos de Letras de todas as universidades brasileiras? Não. Mas, então, qual é o número ideal? 2 ou 500? Em vez de ter essa discussão de fundo, cada departamento defende seu número de vagas e de verbas.

Num mundo ideal, tudo isso deveria ser discutido com transparência: os governantes deveriam prestar contas, consultar, informar metas embasadas em dados. Essas decisões deveriam ser norteadas por levantamentos, e não por componentes ideológicos que um ou outro julga mais importante – ou então acontece uma queda de braço entre a ciência e o Ministério da Economia, sendo que este último sempre acaba ganhando. No fundo, essas decisões dizem respeito ao projeto que o país quer para o futuro.


sábado, 4 de maio de 2019

Quem tem medo de Paulo Freire?


Bolsonaro e Olavo de Carvalho tentam bani-lo com gritos e xingarias. Que tolos: quanto mais berram, mais dão razão ao educador que dizia: “a classe dominante brasileira jamais desjeará que as maiorias sejam lúcidas”


por Sérgio Haddad




Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha de S.Paulo, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil. 

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião. 

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.  

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática. 

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar. 

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor. 

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”. 

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório. 

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”.

E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos — tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça –, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma. 

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas. 

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte. 

Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais. 

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais. 

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no PSOL).

Seus livros se espalharam pelo mundo. Pedagogia do Oprimido ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado. 

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire. 

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada. 

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos. 

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria. 

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso. 

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro. 

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político. 

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta. 

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado. 

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses. 

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro O Caminho se Faz Caminhando, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”. 

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em Pedagogia da Indignação. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?” 

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em Política e Educação Popular, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas —referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”. 

Não é muito distante do que está ocorrendo hoje no Brasil. 

FONTE:  OUTRAS PALAVRAS

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