terça-feira, 28 de abril de 2015

Abertura da saúde para capital estrangeiro ameaça princípios do SUS


Por Carla Ferreira* 


Cobertura Universal de Saúde, um nome aparentemente inofensivo que oculta um plano perigoso de ajuste estrutural contra trabalhadores e usuários. No Brasil, tudo indica que essa proposta começou a ser posta em prática no apagar das luzes de 2014, quando a Câmara de Deputados aprovou a Medida Provisória 656 autorizando a entrada de capital estrangeiro no setor, antes proibida pela Lei 8.080/90.

Faltam cerca de R$ 50 bilhões de reais por ano à saúde no Brasil¹. Nosso país gastou em média 9,2% do PIB com saúde entre 2000 e 2001, segundo os últimos dados publicados pelo Ministério da Saúde². É um valor baixo. Praticamente a metade do que investe os Estados Unidos e menos do que França e Alemanha. É baixo também em relação ao que estabelece a Constituição Federal de 1988 e os 12% do PIB propostos pela Emenda Constitucional Nº 29 — que a bancada do governo no Congresso não aceita porque exige a aprovação simultânea de um outro projeto definindo uma nova fonte de recursos para substituir a Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (a CPMF, que, aliás, enquanto vigorou, não foi destinada para a saúde). O problema é que a alegada falta de recursos públicos pode se converter em justificativa para o governo brasileiro ceder às pressões do setor privado, como vem defendendo o organismo das Nações Unidas (ONU) para a saúde, a OMS.

Um forte indício de que as ideias privatizadoras defendidas pela OMS já andam circulando nos gabinetes de Brasília foi a aprovação, no final de dezembro de 2014, da MP 656. Segundo o texto aprovado, hospitais públicos e privados poderão abrir-se ao capital estrangeiro. Quer dizer, agora os hospitais brasileiros podem ser adquiridos por fundos privados estrangeiros que exploram o “negócio” da saúde mediante o lançamento de ações nas bolsas de valores de todo o mundo em busca de rendas elevadas, em negócios de risco. O que eles não dizem é que o maior risco é para a população usuária desses hospitais ou serviços.

A inspiração da nova legislação brasileira deve ser buscada na sede da OMS, em Genebra, na Suíça, e seu projeto de Cobertura Universal de Saúde. A diretora-geral da Organização, Margaret Chan, diz que a proposta tem por objetivo dar proteção financeira aos mais pobres. Porém, especialistas brasileiros, como o Professor Luiz Facchini (UFPel), advertem que a proposta esconde atrás de si o entendimento de que o direito à saúde pública deve ser restringido. Essa também é a opinião da Associação Latino-Americana de Medicina (Alames) para quem a proposta de Cobertura Nacional da Saúde segmenta a população de acordo com seu poder aquisitivo, restringindo os investimentos públicos ao atendimento apenas da parcela mais vulnerável da população, deixando o restante da sociedade entregue a planos privados³.

A adesão da OMS a uma proposta como a Cobertura Nacional da Saúde deve-se aos financiamentos de fundações privadas que a Organização depende para sobreviver desde o final dos anos 1990. Atualmente, cerca de 76% dos seus recursos provém de doações voluntárias deste tipo de fundação privada. Esse fato é o que explica a redução da liberdade da OMS para defender políticas equitativas de saúde, analisa o historiador Marcos Cueto, da Casa Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Além disso, a influência do Banco Mundial na OMS tem feito com que governos de países endividados aceitem a proposta como uma forma de obter recursos internacionais, indica o pesquisador.

Há quem pense que privatizar a saúde pode ser uma solução para o subfinanciamento e para melhorar o atendimento de saúde oferecido pelo SUS à população. A realidade, porém, é outra. Em 2014, 54,3% dos recursos aplicados em saúde já foram privados, contra 45,7% que tiveram origem pública. Isso não representou melhora na prestação dos serviços em geral. Ao contrário, só neste mês de fevereiro de 2015, a Agência Nacional de Saúde suspendeu a comercialização de 70 planos de saúde privados por descumprimento de prazos máximos para atendimento ou negativas indevidas de coberturas.

Por isso, os trabalhadores da saúde e a sociedade em geral que, em Junho de 2013, clamaram por uma saúde Padrão FIFA devem estar alertas para esse risco de mais um ataque ao SUS, agora disfarçado de ajuda aos mais pobres. A Cobertura Nacional da Saúde e a abertura do setor ao capital estrangeiro são, na verdade, uma estratégia das grandes empresas privadas do setor farmacêutico e das gestoras de fundos de investimentos de elevação de seus lucros explorando a saúde da população. E nisso estão sendo apoiadas pela OMS e encontrando representantes eficientes no governo e no Congresso brasileiros. Aliados, os políticos e empresários do setor querem excluir grande parte da população do seu direito inalienável à saúde garantido pela Constituição brasileira e pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade que fazem do SUS um sistema com bases democráticas pelos quais é preciso lutar para preservar e ampliar.

Notas

¹ Fonte: A informação é do ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, em entrevista ao Valor Econômico Setorial Saúde, publicada em agosto de 2014.
² Fonte: World Health Statistics, 2014.
³ Ver reportagem especial publicada pelo jornal Brasil de Fato, edição dos dias 11 a 17 de dezembro de 2014.


* Carla Ferreira é jornalista, Dra. em História e vice-coordenadora do Núcleo de História Econômica da Dependência Latina-Americana – HEDLA/UFRGS


quarta-feira, 22 de abril de 2015

Quando não havia corrupção no Brasil (?)

    

É comum hoje em dia ouvir dizer que durante a ditadura não havia corrupção. Ô, se havia! O que não havia era imprensa livre e Justiça que funcionasse


Por Mouzar Benedito. Foto por http://www.flickr.com/photos/pong/.


No início dos anos 1980, quando o PT foi fundado, os comunistas não gostaram dessa novidade. Diziam que o verdadeiro partido dos trabalhadores já existia, era o PCB. Tinha também o PC do B.

Além da disputa pela legitimidade na representação política dos trabalhadores, havia algo mais que irritava os comunistas: diziam que para os petistas as lutas de esquerda começaram com o movimento operário de São Bernardo do Campo (SP), no final da década de 1970.

Muitos petistas, principalmente os de origem sindical, realmente desconheciam a história da esquerda no Brasil.

Mas de um tempo para cá, os críticos desse desconhecimento da história têm embarcado num outro desconhecimento histórico, com aliados da velha direita, falam como se a corrupção no Brasil tivesse começado em 2003, quando Lula tomou posse.

A corrupção em governos petistas realmente incomoda mais do que a praticada por não petistas. A partir da campanha eleitoral de 1994, o PT foi abandonando seus princípios socialistas e adotando a bandeira da anticorrupção, ao mesmo tempo que passou a aceitar dinheiro de empreiteiras e bancos nas suas campanhas. Na época, antes de me desfiliar do partido, eu disse que se algum dia o PT chegasse ao poder iria ter corrupção, sim, pois nenhum partido é formado só de santos. Teve gente que passou a me odiar por isso.

O certo é que, tendo como grande bandeira a moralidade, qualquer ato de corrupção parece mais odioso para os outros. Além disso, a mídia é mais fiscalizadora quando o governo é teoricamente de esquerda, e até a Justiça funciona mais efetivamente.

Assim, é comum hoje em dia ouvir dizer que durante a ditadura não havia corrupção. Ô, se havia! O que não havia era imprensa livre e Justiça que funcionasse.

Muitos livros interessantes sobre a ditadura têm sido lançados nos últimos anos, mas se escreveram algum sobre a corrupção que havia durante a ditadura, não vi. Faz falta. Acredito que era maior, bem maior, do que a que veio depois dela, pois não havia muita divulgação e nenhuma punição. Tanto que alguns militares que imaginavam que realmente a ditadura que iniciou em 1964 combateria a corrupção, quando tomaram consciência dos descalabros que havia, diziam perplexos: “Foi para isso que fizemos a revolução?”.

Começou antes de 1500

Espanha e Portugal têm uma tradição antiga de corrupção. Eram conhecidos na Europa, antes mesmo das grandes navegações, por ter uma burocracia cheia de meandros que podia ser evitada dando propinas a autoridades. Era aquilo que aparece num velho ditado: “Criar dificuldades para vender facilidades”.

Essa é uma herança que podemos, sim, chamar de maldita, mas muito pouco estudada ou lembrada. A falta de uma imprensa livre, muito conveniente para os corruptos, além de facilitar a rapina é um problema para o estudo da corrupção no Brasil. Não há muitos registros. Até o início do século XIX não tivemos nenhum jornal no país. Durante o Estado Novo, de Getúlio, entre 1937 e 45, a imprensa era totalmente censurada, e de 1964 a 1985 ela foi bastante perseguida, isto é, pelo menos a imprensa que tentava cumprir seu papel.

Aos que acreditam, ou fingem acreditar, que a corrupção no Brasil é coisa recente, vamos lembrar primeiro alguns episódios antigos.

Para começar, a construção de Salvador, determinada pelo rei de Portugal e efetivada por Tomé de Souza, foi muito superfaturada.

Dom João VI: bagagem indesejada
Com a vinda de Dom João VI e sua corte para cá, fugindo das tropas de Napoleão (ficou aqui de 1808 a 1821), a corrupção se alastrou consideravelmente. Um exemplo é o Banco do Brasil, fundado e refundado várias vezes. A primeira delas foi em 1808, por Dom João VI. Ao voltar para Portugal, em 1821, Dom João VI pegou todo o dinheiro depositado no banco. Levou tudo!

Em 1831, depois da abdicação de Dom Pedro I em favor Pedro II, o ex-imperador seguiu para a Europa no navio Warspite. Com ele, o fiel Marquês de Paranaguá, antigo ministro da Guerra. Paranaguá estava apreensivo, pois teria que viver com uma pequena aposentadoria que tinha em Portugal, não fez fortuna no governo. No navio, ele recorreu a Dom Pedro em busca de uma solução para seu problema e ouviu o seguinte do ex-imperador: “Faça o que quiser, não é da minha conta. Por que não roubou, como Barbacena?”. Barbacena, no caso, era o ex-ministro da Fazenda, Visconde de Barbacena.

E não são só os governantes e seus chegados que roubam. Durante a Guerra do Paraguai, foram contratadas tropas de caudilhos gaúchos para defender as fronteiras brasileiras, mas, segundo Júlio Chiavenato, no seu livro Voluntários da Pátria, alguns desses caudilhos não tinham tropa nenhuma, simplesmente embolsaram o dinheiro e não opuseram nenhuma resistência ao inimigo.

Nelson Werneck Sodré, em seu livro História Militar do Brasil relata caso semelhante na Guerra Cisplatina (1825-1829), que terminou com a independência do Uruguai, até então pertencente ao Brasil, com o nome de Província Cisplatina. E mais: Sodré dizia que durante o Império fornecedores do Exército enriqueciam rapidamente, passando recibo (e recebendo o dinheiro devido por isso) de mercadorias que nunca entregaram ou entregaram em quantidade ou qualidade diferente do especificado. Ele conclui: “Chega a ter a impressão de que de cada dez indivíduos nove eram desonestos ou desidiosos na defesa da moralidade administrativa das Forças Armadas. (…) Os que discordavam eram poucos e considerados criadores de caso”.

E a Igreja? Basta lembrar dos santos do pau oco, usados para levar pedras preciosas e ouro contrabandeados para a Europa, dentro de imagens.

Voltando aos tempos recentes

Sem pretender justificar a corrupção em qualquer governo, seja petista, tucano ou o que for, gostaria de ver esclarecidas algumas questões que ficaram na minha memória. Não se trata do que aconteceu pós-ditadura, não me proponho a comparar a corrupção petista com a tucana.

Mas antes de entrar no assunto ditadura, lembro, para refrescar a memória dos que falam de um tempo sem corrupção na era FHC, da compra de votos para ele aprovar a emenda da reeleição. E as privatizações escandalosas (a Vale, avaliada inicialmente em US$ 120 bilhões, foi “vendida” por US$ 3,2 bilhões, com carência de cinco anos para começar a pagar e ainda recebendo um empréstimo de US$ 1 bilhão)? Em 2001, uma CPI deveria apurar a corrupção, com 16 pontos a serem investigados, entre os quais o tráfico de influência, contribuições eleitorais irregulares, fraudes na concessão de incentivos fiscais e caixa 2 nas campanhas eleitorais, mas o presidente Fernando Henrique Cardoso conseguiu convencer vinte parlamentares a retirarem suas assinaturas do pedido de CPI e ela não foi instalada.

Isso sem falar no que vem acontecendo no governo do estado de São Paulo, nicho tucano. Por falar em estado de São Paulo, aqui governou Orestes Quércia, do PMDB. Uma parte desse partido, dizendo-se horrorizada com o governo Quércia, propôs a criação de um partido de mãos limpas, e assim surgiu o PSDB. Anos depois, Quércia, que chegou a ser comparado a Paulo Maluf, passou a ser cortejado tanto pelo PSDB quanto pelo PT, assim como o próprio Maluf.

Aliás, quanto ao PT, acho um escândalo as privatizações que vem promovendo, rotulando-as como “concessões”. Tucanou!

Memórias da “pureza” da ditadura

Ponte Rio-Niteroi. Quantos você vê? (Divulgação)
Não tenho boas fontes, tenho memória razoável e fiz uma pequena “pesquisa” sobre fatos que gostaria os que falam que durante a ditadura não havia corrupção estudassem e nos revelassem a verdade.

1. O custo das rodovias construídas no período não eram divulgados, mas algumas vezes vi notícias que vazavam dos Tribunais de Contas e, segundo elas, o custo era sempre multiplicado por dez. Uma rodovia de um milhão, por exemplo, custava dez milhões aos cofres públicos. A ponte Rio-Niterói, inaugurada em março de 1974, teve um superfaturamento “um pouquinho” maior: custou onze vezes o custo real. Nenhum jornal fez matéria sobre isso. Só o Pasquim ousou dar uma cutucada. Publicou uma foto da ponte, com uma legenda mais ou menos assim: “Ilusão de ótica: onde vocês veem uma ponte, são onze pontes”.

2. Na pequena cidade de Floresta, Pernambuco, a agência do Banco do Brasil fazia empréstimos a pessoas influentes do estado, supostamente para plantar mandioca. Mas elas nunca pagavam: alegavam que a seca destruíra os plantios que nunca foram feitos e os prejuízos eram cobertos pelo seguro agrícola. Em 1981, quando se descobriu a mutreta, calculava-se que o valor total dos “empréstimos” chegara a 700 milhões de dólares. O processo de desvio de dinheiro não foi concluído e, claro, nenhum dinheiro foi devolvido.

3. Em Pernambuco mesmo, no ano seguinte, grandes pecuaristas pediam financiamento para comprar farelo para alimentar o gado e aplicavam o dinheiro na caderneta de poupança. Essa história ficou conhecida como “fraude do farelo”.

4. Entre 1977 e 1980, o governo abriu uma linha de crédito para financiamento de exportações brasileiras para a Polônia, e o governo polonês ofereceu como garantia títulos podres, que ficaram conhecidos como “polonetas”. Alguns bilhões de dólares (que na época valiam muito mais do que hoje) foram para o ralo.

5. Escândalo da Capemi. A Caixa de Pecúlios, Pensões e Montepio, fundada e dirigida por militares, tinha um plano privado de aposentadorias que arrecadou muito dinheiro de civis também. Alegando que precisava diversificar suas ações, a Capemi foi contratada em 1980 para desmatar uma área em que seria instalada a usina de Tucuruí. Não desmatou e o dinheiro sumiu. Quem aplicou nessa aposentadoria privada, dançou. E não era pouca gente: tinha dois milhões de associados aos planos de previdência privada.

6. Em 1981, havia muitas denúncias de corrupção e chegou a ser criada uma CPI para apurar denúncias como o chamado “escândalo Lutfalla”, de tráfico de influência de Paulo Maluf para a concessão de altos empréstimos do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, atual BNDES) a empresas da família Lutfalla, à qual pertence Sylvia Maluf, esposa do ex-governador, em estado pré-falimentar. Entre as denúncias a serem apuradas, havia também muitos empréstimos suspeitos da Caixa Econômica Federal e corrupção nos Correios. Mas o partido governista, o PDS (Partido Democrático Social), tinha maioria e conseguiu abortar a CPI.

 7. Escândalo Delfin. O Grupo Delfin, de Ronald Levinshohn, era a maior empresa privada de crédito imobiliário quando, em 1982, uma reportagem do jornalista José Carlos de Assis mostrou que ele tinha uma dívida de 60 bilhões de cruzeiros com o BNH… e pagou dando dois terrenos avaliados em 9,2 bilhões.

 8. Em 1978, o governo publicou uma foto da frota de navios comprados, se me lembro bem, para a Fronape – Frota Nacional de Petroleiros. Eram uns trinta navios. Mas um jornalista, usando uma lupa, viu que todos os navios tinham o mesmo nome. Ou seja, era um navio só. Era uma imagem montada. Quanto dinheiro terá sido embolsado nessa história?

 9. Mordomias, denunciadas pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1976, durante o governo Geisel: os altos salários e as vantagens indevidas chamadas “mordomias” dadas a altos funcionários do governo. Até hoje a palavra mordomia tem sentido pejorativo.

10. Tem uma história estranha que não entendi direito, de dois cheques do Banco Econômico, no valor de US$ 53 milhões, em 1976, que não foram honrados e o ministro Ângelo Calmon de Sá, do governo Geisel, com voz no Conselho Monetário Nacional, mandou a conta para o Tesouro, que pagou tudo.

11. No final de 1977 ou início de 1978, faltavam alguns meses para vencer o contrato de concessão da Light – do Rio de Janeiro – para um grupo canadense. A empresa, então, seria entregue de graça para o Brasil, dali uns meses. Mas o governo não esperou: comprou a dita cuja pelo valor de mercado, então, quem recebeu uma baita grana de graça foi o grupo canadense. Claro que muita comissão rolou por baixo dos panos.

12. Em 1974, a inflação foi de cerca de 35%, mas o ministro Delfim Netto decretou que tinha sido de 14%, e todos os salários, por exemplo, foram reajustados por esse índice, baixando violentamente a renda dos trabalhadores.

13. Segundo a revista Times, numa edição de 1981, empresas europeias deram 140 milhões de dólares em propinas e suborno para autoridades brasileiras, para pegarem uma fatia da construção da usina de Itaipu. Rolou tanta grana na construção que muita gente defendia que o Brasil não pagasse a dívida contraída para ela, dizendo que os que emprestaram sabiam que o dinheiro era desviado.

14. Uma coisa que considero escandalosa era a sujeição ao FMI – Fundo Monetário Internacional. Metodicamente vinha aqui uma mulher desse vampiro internacional dar ordens. Chamava-se Ana Maria Jul. Mandava demitir gente, cortar dinheiro de áreas sociais, mandava e desmandava. Era uma coisa tão horrorosa que escandalizava gente de quase tudo quanto era tendência política. Tanto que até Tancredo Neves, quando se candidatou a presidente, falou sobre o FMI: “Não vou pagar a dívida com a fome do povo brasileiro”.

Enfim, é muita coisa para ficar lembrando, puxando pela memória, tentando pesquisar. Quem quiser que continue a pesquisa. Sugiro alguns assuntos:

1.Empréstimo de 30 bilhões de cruzeiros ao Grupo Coroa, para compra uma empresa falida.

2.A construção da primeira usina atômica de Angra dos Reis. Quanto custou?

3.A construção de dezenas de estádios de futebol, todos com apelidos terminados em “ão”: Castelão (em Fortaleza), Vivaldão (em Manaus) e muitos outros. Quanto custaram aos cofres públicos?

4.A construção dos aeroportos do Galeão e de Cumbica.

5.As dívidas dos usineiros do Nordeste, que nunca foram pagas (continuam não sendo, ao que parece).

6.O dinheiro – muito dinheiro! – para socorrer vítimas das secas, no Nordeste, ia sempre parar nas mãos de “coronéis”, enquanto o povo morria à míngua. Aliás, nessa história lembro dos poços artesianos construídos depois da ditadura, para abastecer cidades do Nordeste. Em Serra Talhada, Pernambuco, devia ter um deles. Mas quando foram ver, o tal poço tinha sido feito na fazenda do deputado Inocêncio de Oliveira, virou propriedade dele.


domingo, 19 de abril de 2015

PMDB: decifra-me ou te devoro


Para manter a vocação hegemônica que o acompanha desde a fundação, o PT abre mão da
vocação transformadora que justifica sua presença no cenário politico.
(Créditos da foto: Marcos Oliveira/Agencia Senado)

Por Pedro Tierra*


O impulso transformador

A eleição de Lula para Presidente da República em 2002, significou um deslocamento da sociedade rumo à centro-esquerda. Ao contrário do que pode pensar o marqueteiro – que costuma se atribuir aquela vitória – a conquista resultou de mais de duas décadas de construção de uma força social, política e cultural que fincou raízes profundas na sociedade brasileira. Se observarmos o impulso que significou a vitória do PT, nas ruas e no parlamento, o quadro confirmará essa leitura.

Lula obteve 61,27% dos votos contra 38,73% de José Serra. O Partido dos Trabalhadores elegeu 91 deputados – apenas 17,7% do total – contra 72 deputados do PSDB – equivalentes a 14% do total. As linhas se cruzaram com os tucanos numa tendência de declínio e o PT em vigorosa ascensão. O mais significativo, porém é registrar o descompasso entre a votação para o executivo, nos dois casos e a votação para a representação parlamentar.

Os movimentos políticos realizados pelo candidato durante a campanha, como o lançamento da “Carta aos Brasileiros”, a própria escolha do Vice, José Alencar, um grande empresário de sucesso no ramo da indústria têxtil, dão notícia da habilidade política e da capacidade do Lula de lidar com o universo simbólico, não apenas dos setores populares, mas do conjunto da sociedade brasileira. A escolha aderiu como uma luva à mensagem que ele desejava emitir para o país.

Os números obtidos nas eleições parlamentares para a Câmara e para o Senado, naquele momento, confirmam a percepção de que a sociedade buscava uma alternativa à esquerda para conduzi-la depois de oito anos de vigência do projeto neoliberal liderado pelos tucanos.

Merece uma reflexão o comportamento do PMDB, a agremiação política com maior capilaridade, com maior presença regional e nos municípios, com forte raiz popular, mas desprovida de um projeto nacional desde a morte trágica do seu líder mais reconhecido, o Dr. Ulysses Guimarães, condutor do processo constituinte. A partir da morte do Dr. Ulysses, o PMDB se decompôs em torno de lideranças regionais expressivas. Expressivas, mas regionais. E se afastou daquele exercício fecundo que foi protagonizado até à Constituinte pela Fundação Pedroso Horta, espaço de formulação programática que prestou serviços relevantes ao partido. Ao partido e ao país.

É possível afirmar que, conscientemente ou não, explicitamente ou não, diante da impossibilidade de unificar-se em torno de uma candidatura nacional, o PMDB traçou um projeto estratégico para construir uma inevitabilidade: “não se governa o Brasil sem o PMDB”. Uma opção vivida por outros partidos no mundo, inclusive em tradições distantes do “liberal-desenvolvimentismo” do PMDB, se assim podemos definir.  

O Partido que somou forças pelo impedimento de Collor, se dividiu sob a liderança de Quércia diante do governo FHC. Assumiu Ministérios importantes – Justiça (Nelson Jobim) Transportes (Odacir Klein) – e se opôs, não poucas vezes, ao governo no Parlamento, nos dois mandatos. Uma posição contraditória, frágil, que refletia a falta de coesão interna do Partido em torno de um programa, o que abriu espaço para as negociações de varejo que conduziram a uma prática fisiológica definitivamente associada à imagem do partido. Aderiu de tal modo, ao final do segundo mandato, que compôs a “Grande Aliança” com Serra Presidente (PSDB) e Rita Camata Vice (PMDB) na chapa que disputou contra o PT em 2002.

Depois de um ano de governo Lula, e de árduas negociações entre os dois partidos concluiu-se um processo que resultou na adesão do PMDB ao governo com a participação em três Ministérios de peso: Comunicações, Minas e Energia e Previdência Social, a partir de 2004.

Um rápido flash-back para tornar o quadro mais compreensível. Ao realizar seu X Encontro Nacional, entre 18 e 20 de agosto de 1995, em Guarapari-ES, o Partido dos Trabalhadores produziu a inflexão tática necessária para se propor a disputar “o centro do espectro político do país”, leia-se PMDB. Depois de duas derrotas consecutivas de Lula para Presidente em 1989 e em 1994, o PT, por escassa maioria, concluiu que deveria ampliar seu arco de alianças para além das tradicionais parcerias da Frente Brasil Popular: PDT, PSB, PCdoB com quem marchara nas disputas anteriores e fora derrotado eleitoralmente. Lula deixava a Presidência do Partido para dedicar-se com maior liberdade às atividades e articulações políticas do Instituto Cidadania, onde poderia atuar com maior desenvoltura e agilidade sem os pesados sistemas de controle das instâncias partidárias formais, solidamente ancoradas na cultura política “assembleísta” do Partido. Ainda amargaríamos a derrota de 1998, mas estava aberto o caminho para o triunfo de 2002.

Os movimentos da esfinge

Observa-se, assim, uma linha de convergência entre o objetivo estratégico do PT de alcançar o governo federal, eleger Lula, e pôr em andamento o Projeto Democrático Popular e o projeto não explícito do PMDB: “Não se governa o Brasil sem o PMDB”. O final do governo Lula coroa um pacto destinado a ser mais duradouro que o anterior, firmado com os tucanos: o PMDB aponta Michel Temer, como vice na Chapa de Dilma Rousseff. Desta vez, uma proposta vitoriosa, nas eleições de 2010. A construção da base desse acordo foi obra de mãos experientes, mas nunca foi digerida plenamente pela base militante do PT. E, de algum modo, sacrificou um dos seus principais artífices: o Ministro José Dirceu.

O processo eleitoral de 2014 aponta para o esgotamento do pacto e de um ciclo que buscou retomar o desenvolvimento com a consolidação de um mercado interno de massas, viabilizado por políticas eficazes de combate à pobreza – Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida –, de inclusão social – Política de Valorização do Salário Mínimo, Bolsa Família –, redução das desigualdades regionais – descentralização dos investimentos federais em infraestrutura –, geração de emprego – obteve as mais baixas taxas de desemprego da história do país – e melhoria na renda das classes populares.

A coincidência da queda nas taxas de crescimento econômico dos últimos anos com a crise do sistema representativo e dos partidos políticos, aprofunda o desgaste inevitável de uma relação política turbulenta que tensiona sobretudo as relações internas do PMDB, parte dele empenhado em construir seu próprio projeto nacional, parte buscando respostas mais imediatas que em geral se traduzem em disputas de espaço no aparelho público ou disputas regionais que contrapõem segmentos do partido ou o partido como conjunto contra seus aliados nacionais. Em particular contra o PT.

A franca oposição pela direita ao governo, liderada por Eduardo Cunha, depois de submeter o PT e o Governo Dilma a uma humilhante derrota ao assumir a Presidência da Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros – hábil herdeiro dos métodos que garantiram a longevidade da presença de Sarney no cenário político do país – no Senado, apresenta um desafio à imaginação política do PT e do Governo Federal para a condução do 2º mandato da Presidente Dilma Rousseff.

É necessário examinar as condições atuais do PMDB, tendo nas mãos, novamente, o controle das duas casas do parlamento, e a preparação das eleições municipais de 2016 como prólogo da disputa presidencial de 2018. Terá, o PMDB, consolidado as bases para relançar-se unificado, em torno de uma candidatura própria desde a morte do Dr. Ulysses Guimarães? Formular um programa para o país, buscar um nome que lhe dê um rosto para costurar uma aliança que o reconheça como força hegemônica. Esses são os desafios do partido mais capilar e menos orgânico em ação no cenário político do país. Um partido que aprendeu a manejar com habilidade e competência suas bancadas no Congresso. Observe-se que a bancada do PMDB nas últimas quatro eleições para a Câmara dos Deputados oscilou entre 14,2% e 17% dos eleitos. No entanto o partido detêm mais uma vez, em 2015, a presidência das duas Casas.   

Não é improvável que o PMDB, depois de impor sucessivas derrotas a um PT combalido, em temas importantes da agenda conservadora: a redução da maioridade penal, o financiamento privado de campanhas eleitorais e o PL 4330, o da Terceirização que busca sepultar as conquistas dos trabalhadores desde a CLT, construa uma alternativa de afastamento em relação ao PT e ao governo Dilma e se volte para o objetivo de ocupar um espaço no campo conservador agora não mais como linha auxiliar do PSDB, mas como líder.

Para o PT, particularmente, está posta, ao inaugurar o segundo mandato de Dilma Rousseff, em janeiro último, a necessidade política de repor na agenda pública a questão da “governabilidade social” – sem abrir mão das necessárias alianças parlamentares, em duas palavras dividir o PMDB – para assegurar os avanços exigidos pelas urnas, particularmente no segundo turno, na direção de um novo ciclo ancorado em mobilizações sociais dos setores populares contemplados pelo projeto político que liderou.

A questão que nos interpela: terá o PT a esta altura energia política e disposição para fazê-lo? Aparentemente o Governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores puseram o pé numa armadilha: optou, o governo, por uma condução conservadora – implementar o ajuste – para enfrentar a conjugação de crises: campanha da oposição conservadora por não reconhecer os resultados das urnas; campanha do cartel da mídia contra a Petrobrás, com o objetivo de inviabilizar a maior empresa do país e retirar dela as condições de conduzir o modelo de partilha na exploração do pré-sal; respaldar a condução por parte do Judiciário das novas etapas da "Operação Lava-a-jato" e apostar nos resultados catastróficos do ajuste sobre o conjunto da economia do país: queda da atividade econômica, recessão, desemprego etc. como parte da estratégia de retorno ao governo. O tempo dirá sobre as consequências dessa escolha.

Com que discurso o governo mobilizará seus defensores, se o conjunto das medidas do ajuste recai sobretudo em cima dos ombros dos setores sociais que elegeram Dilma? A cada dia que passa vai-se cristalizando uma situação de distanciamento entre o governo e sua base social/eleitoral. Vide pesquisas de opinião dos últimos meses. O resultado pode ser uma ruptura. O que deixaria o governo na condição de refém da governabilidade parlamentar sob hegemonia do PMDB em franco deslocamento para a direita ou, numa segunda hipótese, a economia reage, o país volta a crescer e Dilma recupera a popularidade mas constata que já perdeu, vítima de inanição, o principal instrumento político de sua ascensão ao governo do país: o Partido dos Trabalhadores.

Em nome de manter a vocação hegemônica que o acompanha desde a fundação, o PT está abrindo mão da vocação transformadora que justifica sua presença no cenário político do Brasil. Corre o risco de perder as duas.


*Pedro Tierra – É Presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo
    

FONTE: Carta Maior

quarta-feira, 15 de abril de 2015

'Lei da terceirização é a maior derrota popular desde o golpe de 64'


Por Wanderley Preite Sobrinho


Para Ruy Braga, professor da USP especializado em sociologia do trabalho, Projeto de Lei 4330 completa desmonte iniciado por FHC e sela "início do governo do PMDB"

Especialista em sociologia do trabalho, Ruy Braga traça um cenário delicado para os próximos quatro anos: salários 30% mais baixos para 18 milhões de pessoas. Até 2020, a arrecadação federal despencaria, afetando o consumo e os programas de distribuição de renda. De um lado, estaria o desemprego. De outro, lucros desvinculados do aumento das vendas. Para o professor da Universidade de São Paulo (USP), a aprovação do texto base do Projeto de Lei 4330/04, que facilita a terceirização de trabalhadores, completa o desmonte dos direitos trabalhistas iniciado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na década de 90. “Será a maior derrota popular desde o golpe de 64”, avalia o professor em entrevista a CartaCapital.

Embora o projeto não seja do governo, Braga não poupa a presidenta e o PT pelo cenário político que propiciou sua aprovação. Ele cita as restrições ao Seguro Desemprego, sancionadas pelo governo no final de 2014, como o combustível usado pelo PMDB para engatar outras propostas desfavoráveis ao trabalhador, e ironiza: “Esse projeto sela o fim do governo do PT e o início do governo do PMDB. Dilma está terceirizando seu mandato”.

Leia a entrevista completa:

CartaCapitalUma lei para regular o setor é mesmo necessária?

Ruy Braga: Não. A Súmula do TST [Tribunal Superior do Trabalho] pacificou na Justiça o consenso de que não se pode terceirizar as atividades-fim. O que acontece é que as empresas não se conformam com esse fato. Não há um problema legal. Já há regulamentação. O que existe são interesses de empresas que desejam aumentar seus lucros.

CCQual a diferença entre atividade-meio e atividade-fim?

RB: Uma empresa é composta por diferentes grupos de trabalhadores. Alguns cuidam do produto ou serviço vendido pela companhia, enquanto outros gravitam em torno dessa finalidade empresarial. Em uma escola, a finalidade é educar. O professor é um trabalhador-fim. Quem mexe com segurança, limpeza e informática, por exemplo, trabalha com atividades-meio.

CCO desemprego cai ou aumenta com as terceirizações?

RB: O desemprego aumenta. Basta dizer que um trabalhador terceirizado trabalha em média três horas a mais. Isso significa que menos funcionários são necessários: deve haver redução nas contratações e prováveis demissões.

CCQuantas pessoas devem perder a estabilidade?

RB: Hoje o mercado formal de trabalho tem 50 milhões de pessoas com carteira assinada. Dessas, 12 milhões são terceirizadas. Se o projeto for transformado em lei, esse número deve chegar a 30 milhões em quatro ou cinco anos. Estou descontando dessa conta a massa de trabalhadores no serviço público, cuja terceirização é menor, as categorias que de fato obtêm representação sindical forte, que podem minimizar os efeitos da terceirização, e os trabalhadores qualificados.

CCPor que os trabalhadores pouco qualificados correm maior risco?

RB: O mercado de trabalho no Brasil se especializou em mão de obra semiqualificada, que paga até 1,5 salário mínimo. Quando as empresas terceirizam, elas começam por esses funcionários. Quando for permitido à companhia terceirizar todas as suas atividades, quem for pouco qualificado mudará de status profissional.

CCComo se saíram os países que facilitaram as terceirizações?

RB: Portugal é um exemplo típico. O Banco de Portugal publicou no final de 2014 um estudo informando que, de cada dez postos criados após a flexibilização, seis eram voltados para estagiários ou trabalho precário. O resultado é um aumento exponencial de portugueses imigrando. Ao contrário do que dizem as empresas, essa medida fecha postos, diminui a remuneração, prejudica a sindicalização de trabalhadores, bloqueia o acesso a direitos trabalhistas e aumenta o número de mortes e acidentes no trabalho porque a rigidez da fiscalização também é menor por empresas subcontratadas.

CCE não há ganhos?

RB: Há, o das empresas. Não há outro beneficiário. Elas diminuem encargos e aumentam seus lucros.

CCA arrecadação de impostos pode ser afetada?

RB: No Brasil, o trabalhador terceirizado recebe 30% menos do que aquele diretamente contratado. Com o avanço das terceirizações, o Estado naturalmente arrecadará menos. O recolhimento de PIS, Cofins e do FGTS também vão reduzir porque as terceirizadas são reconhecidas por recolher do trabalhador mas não repassar para a União. O Estado também terá mais dificuldade em fiscalizar a quantidade de empresas que passará a subcontratar empregados. O governo sabe disso.

CCPor que a terceirização aumenta a rotatividade de trabalhadores?

RB: As empresas contratam jovens, aproveitam a motivação inicial e aos poucos aumentam as exigências. Quando a rotina derruba a produtividade, esses funcionários são demitidos e outros são contratados. Essa prática pressiona a massa salarial porque a cada demissão alguém é contratado por um salário menor. A rotatividade vem aumentando ano após ano. Hoje, ela está em torno de 57%, mas alcança 76% no setor de serviços. O Projeto de Lei 4330 prevê a chamada "flexibilização global", um incentivo a essa rotatividade.

CCQual o perfil do trabalhador que deve ser terceirizado?

RB: Nos últimos 12 anos, o público que entrou no mercado de trabalho é composto por: mulheres (63%), não brancos (70%) e jovens. Houve um avanço de contratados com idade entre 18 e 25 anos. Serão esses os maiores afetados. Embora os últimos anos tenham sido um período de inclusão, a estrutura econômica e social brasileira não exige qualificações raras. O perfil dos empregos na agroindústria, comércio e indústria pesada, por exemplo, é menos qualificado e deve sofrer com a nova lei porque as empresas terceirizam menos seus trabalhadores qualificados.

CCO consumo alavancou a economia nos últimos anos. Ele não pode ser afetado?

RB: Essa mudança é danosa para o consumo, o que inevitavelmente afetará a economia e a arrecadação. Com menos impostos é provável que o dinheiro para transferência de renda também diminua.

CCQual a responsabilidade do PT e do governo Dilma por essa derrota na Câmara?

RB: O governo inaugurou essa nova fase de restrição aos direitos trabalhistas. No final de 2014, o governo editou as medidas provisórias 664 e 665, que endureceram o acesso ao Seguro Desemprego, por exemplo. Evidentemente que a base governista - com PMDB e PP - iria se sentir mais à vontade em avançar sobre mais direitos. Foi então que [o presidente da Câmara] Eduardo Cunha resgatou o PL 4330 do Sandro Mabel, que nem é mais deputado.

CCPara um partido de esquerda, essa derrota na Câmara pode ser considerada a maior que o PT já sofreu?

RB: Eu diria que, se esse projeto se tornar lei, será a maior derrota popular desde o golpe de 64 e o maior retrocesso em leis trabalhistas desde que o FGTS foi criado, em 1966. Essa é a grande derrota dos trabalhadores nos últimos anos. Ela sela o fim do governo do PT e marca o início do governo do PMDB. A Dilma está terceirizando seu mandato.

CCA pressão do mercado era mesmo incontornável?

RB: Dilma deixou de ser neodesenvolvimentista a partir do segundo ano de seu primeiro mandato. Seu governo privatizou portos, aeroportos, intensificou a liberação de crédito para projetos duvidosos e agora está fazendo de tudo para desonerar o custo do trabalho. O governo se voltou contra interesses históricos dos trabalhadores. O que eu vejo é a intensificação de um processo e não uma mudança de rota. Se havia alguma dúvida, as pessoas agora se dão conta de que o governo está rendido ao mercado financeiro.

CCA terceirização era um dos assuntos preferidos nos anos 90, mas não passou. Não é contraditório que isso aconteça agora?

RB: O Fernando Henrique tentou acabar com a CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] por meio de uma reforma trabalhista que não foi totalmente aprovada. Ele conseguiu passar a reforma previdenciária do setor privado e a regulamentação de contratos por tempo determinado. O governo Lula aprovou a reforma previdenciária do setor público e agora, com anos de atraso, o segundo governo Dilma conclui a reforma iniciada por FHC.

CCMas a CLT não protege também o trabalhador terceirizado?

RB: A proteção da CLT é formal, mas não acontece no mundo real. Quem é terceirizado, além de receber menos, tem dificuldade em se organizar sindicalmente porque 98% dos sindicatos que representam essa classe protegem as empresas em prejuízo dos trabalhadores. Um simples dado exemplifica: segundo o Ministério Público do Trabalho, das 36 principais libertações de trabalhadores em situação análoga a de escravos em 2014, 35 eram funcionários terceirizados.

CCA bancada patronal tem 221 parlamentares, segundo o Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar). Existe alguma relação entre o tão falado fim do financiamento privado de campanha e a aprovação desse projeto?

RB: Não há a menor dúvida. Hoje em dia é muito simples perceber o que acontece no País. Para eleger um vereador em São Paulo paga-se 4 milhões de reais. Para se eleger deputado estadual, são 10 milhões. Quem banca? Quem financia cobra seus interesses, e essa hora chegou. Enquanto o presidente da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], Paulo Skaf, ficou circulando no Congresso durante os últimos dois dias, dando entrevista, conversando com deputados e defendendo o projeto, sindicalistas levavam borrachada da polícia. Esse é o retrato do Congresso brasileiro hoje: conservador, feito de empresários, evangélicos radicais e bancada da bala.

http://www.cartacapital.com.br/economia/lei-da-terceirizacao-e-a-maior-derrota-popular-desde-o-golpe-de-64-2867.html


FONTE: Portal do PCB

domingo, 12 de abril de 2015

A ampliação da banalidade penal


Por Isabel Lima e Natália Damazio, da Justiça Global



O tema da redução da maioridade penal retornou com força no debate público com a votação no Congresso Nacional da PEC 171/93, aprovada nesta semana na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que propõe a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Amplos setores da sociedade e organismos internacionais de direitos humanos têm manifestado preocupação e repúdio à proposta que representa grave ameaça aos direitos humanos dos jovens no Brasil. O discurso dos parlamentares favoráveis à redução tem sido marcado pelo obscurantismo e omissão de dados estatísticos de forma a manipular a flagrante ineficácia da medida na diminuição dos índices de violência no país.

Ilegal e inconstitucional, o texto da PEC poderia ser imediatamente enterrado pela jurisprudência internacional, por órgãos como as Relatorias Especiais de Crianças e Adolescentes da ONU e OEA (Organização dos Estados Americanos). O Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF), o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA já apontaram o retrocesso democrático que seria gerado pela redução da maioridade penal. Além dessa proposta, alimentada pelo medo e por discursos sensacionalistas e eleitoreiros sobre a violência, outros projetos que preveem o aumento do tempo de internação para adolescentes autores de ato infracional ou que criam novas razões para restringir a liberdade dos jovens, merecem atenção e repúdio, já que igualmente representam retrocessos nos direitos humanos e violam normativas nacionais e internacionais sobre justiça juvenil.

O endurecimento das leis e o encarceramento em massa da população têm sido apresentados por setores conservadores do poder público como o caminho para mudança no quadro da segurança. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, entre 2000 e 2014 a população prisional saltou de 233 mil para 567 mil presos, enquanto entre 2002 e 2012 houve aumento de 13,4% dos homicídios no país, de acordo com o Mapa da Violência de 2014. Dados que nos permitem afirmar que o recrudescimento da criminalização e o superencarceramento, marcados pelo racismo institucionalizado no país, não representam diminuição da violência e da insegurança. Punir sem enfrentar o que produz e mantém a violência só gera mais violência.

Além do desdém às leis e às estatísticas sobre segurança pública, os defensores da redução da maioridade penal parecem demonstrar profundo desconhecimento das violações que já acontecem nas unidades socioeducativas. Essas instituições têm reproduzido fielmente o falido modelo dos presídios para adultos. Apostam no caráter punitivo e repressivo, em detrimento de um trabalho efetivamente socioeducativo como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Tortura, homicídios, agressões físicas, tratamentos humilhantes, falta de atividades pedagógicas, precário acesso à saúde e insalubridade são a tônica nessas masmorras juvenis repletas de meninos e meninas que têm em comum trajetórias marcadas pela precariedade das políticas públicas e negação de direitos.

A Unidade Socioeducativa do Espírito Santo (UNIS), por exemplo, é alvo de medidas provisórias da Corte Interamericana de Direitos Humanos desde 2011, em virtude das sistemáticas violações de direitos. Tais medidas já foram renovadas sete vezes, demonstrando que a superlotação e os maus-tratos não são ocasionais, mas estruturais.

Ao contrário do que é veiculado massivamente, atos infracionais cometidos por adolescentes representam uma porcentagem ínfima no quadro geral da violência no País. A Secretaria Nacional de Segurança Pública aponta que atos infracionais praticados por adolescentes entre 16 e 18 anos – faixa etária alvo da proposta de redução da maioridade penal – representam 0,9% do total de crimes cometidos no Brasil, sendo que atos infracionais análogos aos crimes de homicídio e tentativa de homicídio representam apenas 0,5%. Por outro lado, segundo o Mapa da Violência, 30 mil jovens são assassinados por ano no país, dos quais 77% são negros. São, portanto, as maiores vítimas da violência, não os responsáveis pela atual conjuntura de segurança pública.

Os argumentos abundam e uma questão se impõe: o que motiva essa guerra contra os adolescentes e jovens pobres e negros? É fundamental, em oposição ao caminho atualmente traçado, que o poder público e sociedade se coloquem no rumo definitivo da defesa intransigente dos direitos e da dignidade humana de crianças e adolescentes. Uma mudança estrutural no quadro da violência passa pela compreensão da necessidade e urgência de se garantir a vida e a liberdade da juventude pobre e negra no Brasil.


FONTE: Adital

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O familiar "Homo ignorans"


Que será a racionalidade? Um caminho para o conhecimento? 
Ou a busca de suposta superioridade moral, para disfarçar
preconceitos e busca e privilégios? 

Por Ladislau Dowbor


O homo sapiens todos conhecemos. Inclusive a maior parte da teoria econômica e das teorias das transformações sociais se baseia numa compreensão otimista de que o homem absorve conhecimentos, confronta-os com os seus objetivos racionalmente entendidos, e procede de acordo. Quando erra, analisa os erros e corrige a sua visão para não repeti-los.

Naturalmente, é agradável pensarmos que somos, conforme aprendi na escola, animais racionais, racionalidade que nos separaria confortavelmente dos animais. As minhas dúvidas aumentam proporcionalmente à minha idade, o que significa que são elevadas. Pensar que somos mais do que somos é uma atitude muito difundida. A bíblia já abre com o tom adequado: Deus nos criou à sua imagem e semelhança, o que implica por virtude dos espelhos que somos semelhantes nada mais nada menos que a Ele. O tamanho desta pretensão, e o fato de passar tão desapercebida e natural, já mostra a que ponto a nossa racionalidade pode ser adaptada ao que é agradável, mas não necessariamente ao que é verdadeiro.

Pensar na dimensão irracional da nossa inteligência, ou nas raízes interessadas e ideologicamente deformadas do que nos parece racionalmente verdadeiro, é muito interessante. Existe um termo simpático para isto, que é a racionalização. Fazemos uma construção racional em cima de fundamentos profundamente enterrados na confusão de paixões, medos, ódios e sentimentos contraditórios. Quanto maior o preconceito – no sentido literal, raiz emocional que assume a postura antes do entendimento – maior parece ser a busca do sentimento de superioridade moral.

Devemos lembrar como foram denunciados e massacrados ou ridicularizados os que lutaram pelo fim da escravidão, pelo fim da discriminação racial, pelos direitos de organização dos trabalhadores, pelo voto universal, pelos direitos das mulheres? Hoje é a mesma luta pela redução das desigualdades, pelo fim da destruição do planeta, pela democratização de uma sociedade asfixiada por interesses econômicos. Aqui precisamos de muito bom senso e generosidade. Ou seja, emoções e indignações sim, mas apoiadas na inteligência do que acontece no mundo e visando o interesse maior de todos, e não no interesse particular de defesa dos privilégios.

Aqui realmente é preciso de muita ignorância, ou seja, desconhecimento (voluntário ou não), para não se dar conta dos desafios reais. O aquecimento global é uma ameaça real, mas a direita tende a negar, como se o termômetro e a medida dos gazes de efeitos de estufa fossem de esquerda. O desmatamento generalizado do planeta está levando a perdas de solo fértil em grande escala, quando iremos precisar de mais área de plantio. A vida nos mares está sendo esgotada pela sobrepesca e em 40 anos, segundo o WWF, perdemos 52% da vida vertebrada no planeta. É um desastre planetário espantoso, mas não aparece na mídia comercial. Os dados sobre a inviabilização ambiental do planeta são hoje amplamente comprovados. Mas as opiniões se dividem: é questão de opinião ou de conhecimento dos dados?

No plano social é mais impressionante ainda: até Davos escuta e divulga as pesquisas da Oxfam, do Banco Mundial e das Nações Unidas, dos inúmeros institutos de pesquisa estatística em todos os países sobre a desigualdade crescente da renda. Pior, temos agora os dados da desigualdade do patrimônio acumulado das famílias – 85 famílias são donas de mais riqueza acumulada do que 3,5 bilhões de pessoas na base da pirâmide social – gerando tensões insustentáveis, mas em Wall Street enchem a boca e declaram “greed is good”, é bom ser ganancioso. Sobre esta desigualdade de patrimônio uma das principais fontes é o Crédit Suisse, que tem boas razões para entender tudo de fortunas familiares. Vamos tampar os olhos e fazer de conta que acreditamos que é possível manter a paz política e social num planeta onde 1,3 bilhões não têm acesso à luz elétrica, 2 bilhões não têm acesso a fontes decentes de água, 850 milhões passam fome. Tem sentido acreditar no bom pobre¸ que se resigna e aceita, quando hoje até no último degrau da pobreza há uma consciência do direito a ter uma escola decente para o filho, saúde básica para a família? Aqui já não são apenas os olhos e os ouvidos que estão tapados, e sim a própria inteligência.

E porque toda esta riqueza acumulada no topo não serve para as reconversões tecnológicas que nos permitam salvar o planeta, e para financiar as políticas sociais e inclusão produtiva capaz de reduzir as desigualdades? Basicamente porque está situada em paraísos fiscais, aplicada em sistemas de especulação financeira, sequer interessada em investimentos produtivos tradicionais. Os 737 grupos que controlam 80% das atividades corporativas do planeta são essencialmente grupos financeiros. Fonte? O Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica. São recursos que não só se aplicam em especulação financeira em vez de investimento produtivo, como migram para paraísos fiscais onde não pagam impostos. O Economist estima que sejam 20 trilhões de dólares, um pouco menos de um terço do PIB mundial.

O Brasil tem cerca de 520 bilhões de dólares em paraísos fiscais, da ordem de 25% do PIB. O HSBC que o diga. Mas no Brasil a grande vitória é a eliminação da CPMF que cobrava ridículos 0,38% sobre movimentações financeiras. No Brasil a direita identifica o culpado pelas dificuldades atuais: não o desvio de recursos através da máquina financeira, mas os excessos de gastos sociais do governo. Ainda bem que temos a corrupção para canalizar a atenção e os ódios. O uso produtivo dos recursos não seria mais inteligente?

Não há nenhuma confusão sobre as dimensões propositivas: se estamos destruindo o planeta em proveito de uma minoria que pouco produz e muito especula, trata-se de tributar a riqueza improdutiva para financiar as políticas tecnológicas, ambientais e sociais indispensáveis aos equilíbrios do planeta. Com Ignacy Sachs e Carlos Lopes apontamos rumos básicos no documento Crises e Oportunidades em Tempos de Mudança, não são ideias que faltam: falta muita gente que tampa o sol com a peneira dos seus interesses se dar conta dos desafios reais que enfrentamos.

Confesso que ando preocupado. Parece que quanto maior a bobagem declarada, maior o sentimento de superioridade moral. E o ódio, esta eterna ferramenta dos preconceituosos, é um sentimento agradável quando se consegue encobrir o interesse com um véu de ética. Nesta nossa guerra permanente entre o frágil homo sapiens e o poderoso e arrogante homo ignorans, a olhar pelo mundo afora, e pelos gritinhos histéricos de extremistas por toda parte – sempre em nome de elevados sentimentos morais e com amplas justificações racionais – o direito ao ódio parece superar todos os outros. Pobre Deus, nosso semelhante.


sábado, 4 de abril de 2015

A igualdade de gênero e as barreiras do conservadorismo religioso

Koinonía

No Brasil do século XXI, as mulheres continuam largando em desvantagem. Com salários menores que os dos homens, ainda que exercendo as mesmas funções; muitas vezes, cumprindo jornadas de trabalho duplas ou triplas; sub-representadas em espaços de decisão ou tendo sua visibilidade condicionada ao ponto de vista sexista, como acontece na publicidade; mais vulneráveis à violência e à discriminação; elas ainda têm pela frente o desafio lidar com uma cultura cheia de conservadorismos, dentre os quais o de base religiosa – cujos defensores e simpatizantes têm atacado boa parte das conquistas e reivindicações relacionadas à igualdade de gênero. 

Por vezes, justificada de forma dogmática, a desigualdade traduz-se de muitas maneiras, inclusive em números. De acordo com pesquisa feita por uma grande agência de empregos, as mulheres ganham em média 30% menos que os homens. E quanto menor é a exigência de qualificação para o cargo, maior a diferença salarial.

Alexya Salvador, diaconisa da Igreja da Comunidade
Metropolitana de São Paulo: "nos espaços religiosos,
onde os valores patriarcais são a base, jamais haverá
lugar para uma prática que estimule a igualdade
e a justiça". FOTO: Yahoo
Na representação política, embora tenha crescido em comparação com a última legislatura, a bancada feminina – com 51 deputadas – representa apenas 10% da Câmara. Número que contrasta com o tamanho do eleitorado feminino brasileiro: mais da metade (52%) do total. Enquanto isso, países como a Costa Rica e Argentina têm em torno de 40% de parlamentares mulheres. Por aqui, o percentual de mulheres na representação política oficial subiu apenas 7% em três décadas. 

Em sua face mais radical, a da violência, a desigualdade de gênero vitima, fatalmente, uma mulher a cada hora e meia, com um terço dos crimes ocorrendo dentro de casa. O Brasil é o número sete de 84 países do ranking de homicídios de mulheres no mundo. Reconhecendo a gravidade do problema, também pressionado por acordos internacionais e pelo movimento de mulheres, o governo brasileiro instituiu, recentemente, uma lei que tipifica o feminicídio, endurecendo as penas para quem incorre nesse delito, entre outras medidas. 

Sob ataque 

Apesar do avanço, conquistas e reivindicações seguem em jogo. Bandeiras como os direitos sexuais e reprodutivos vêm sendo questionadas por parte de um grupo expressivo de parlamentares conservadores, no qual se destacam as vozes evangélicas. 

Atualmente, são 78 evangélicos entre deputados e senadores. Parte deles vem se notabilizando por justificarem posições políticas com argumentos baseados na religião – especialmente, a respeito de questões que se referem ao aborto e a homoafetividade. Na bancada feminina são 10 evangélicas, cinco delas – Clarissa Garotinho (Partido Republicano – PR – Rio de Janeiro), Christiane Yared (Partido Trabalhista Nacional – PTN – Paraná), Eliziane Gama (Partido Popular Socialista – PPS – Maranhão), Tia Eron (Partido Republicano Brasileiro – PRB – Bahia e Rosângela Gomes (PRB – Rio de Janeiro) – eleitas com mais de 100 mil votos.

O deputado Eduardo Cunha tem se destacado por projetos
como o que tipifica o aborto como crime hediondo ou o
que cria o dia do "Orgulho Heterossexual"
FOTO: Agência Brasil
Para Magali Cunha, professora da Universidade Metodista de São Paulo e especialista na Área de Mídia, Religião e Política, a atuação dessas mulheres, em geral, têm sido invisibilizada, embora haja exceções. 

"Clarissa Garotinho – que carrega o apelido de seu pai – está entre aquelas que tiveram votações das mais expressivas ao lado de Christiane Yared. Esta última tem aparecido mais por se articular com Eduardo Cunha, ocupando, atualmente, a diretoria da Frente Parlamentar Evangélica. A invisibilidade da mulher nos espaços de poder pela mídia é uma reprodução do que acontece nas igrejas”, analisa.

Em relação à bancada feminina, para os defensores de direitos humanos, o maior receio é que as novas presenças evangélicas tornem seu perfil mais conservador, seguindo a tendência do grupo de parlamentares que se identifica como evangélico – liderado por Eduardo Cunha [Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro] – e tem travado uma verdadeira luta contra os direitos sexuais e reprodutivos e LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais]. 

Antes de figurar entre os suspeitos do mais recente escândalo de corrupção do país, Cunha ficou conhecido por projetos de lei como o 7382/2010, que penaliza a discriminação contra heterossexuais; o 1672/2011, que institui o Dia do Orgulho Heterossexual, a ser comemorado no terceiro domingo de dezembro; e a 7443/2006, que dispões sobre a inclusão do tipo penal de aborto como modalidade de crime hediondo. 

A pressão da bancada evangélica, inclusive, fez com que a lei do feminicídio deixasse de se estender às mulheres trans. O projeto de lei foi alterado para que o crime somente se enquadre na nova tipificação se o sexo da vítima estiver especificado na carteira de identidade. Isto é, mesmo em se tratando de homicídios baseados na questão de gênero, o feminicídio só se aplica às mulheres cisgênero. 

Igrejas e igualdade de gênero? 

Membro de igrejas pentecostais durante boa parte de sua vida – assim como o deputado Cunha -, Valéria Cristina Vilhena destaca que esse tipo de tradição religiosa nem sempre foi identificada com o conservadorismo que, hoje, ameaça direitos de grupos como as mulheres. 

"A religião cristã evangélica pentecostal – tradição da qual venho -, bem no seu início, foi reconhecida por pesquisadores como ecumênica e inclusiva para mulheres e negros. Tal histórico, infelizmente, não se estabeleceu. Ao contrário, a tradição cristã que prevaleceu foi a da exclusão. Frida Vingren, por exemplo, esposa da Gunnar Vingren – um dos fundadores do pentecostalismo brasileiro – foi invisibilizada na história oficial das Assembleias de Deus. Ela foi esquecida, embora tenha trabalhado muito ao lado do seu companheiro pelo crescimento das Assembleias de Deus no Brasil”, lembra.

Valéria observa que os evangélicos, em geral, são bastante abertos ao mercado, às novas tecnologias, à mídia, mas em relação aos direitos das mulheres ainda reproduzem a misoginia. Destaca também que os espaços sagrados são, comumente, utilizados para os mais variados fins, como venda de bíblias, livros, discos, realização de shows gospel e bazares. "E não usaríamos esses mesmos espaços para a promoção da igualdade? Para o diálogo, para o combate às violências? Por que não? A não utilização é pecado de omissão diante da escancarada desigualdade entre homens e mulheres na sociedade. O que já é uma violência”, questiona. 

Existem igrejas que já fazem isso, como a da Comunidade Metropolitana de São Paulo. Segundo sua diaconisa, Alexya Salvador, nos cultos, encontros e momentos de formação, a pregação inclui a luta pela igualdade, seja ela de gênero, orientação sexual, direitos civis, religião, etc. Alexya, que é uma mulher trans, acredita que nos espaços religiosos onde os valores patriarcais são a base, jamais haverá lugar para uma prática que estimule a igualdade e a justiça. 

"A religião, seja ela qual for, deve ser, antes de mais nada, lugar de igualdade e justiça. Igualdade pressupõe justiça e por isso não há como separar suas realidades. Só haverá um caminho de justiça: se a religião se propuser a vivê-la em suas comunidades. Daí sim, o caminho que se fará é de conscientizar a sociedade sobre os valores do Reino de Deus, que, por sua vez, nos comunica a igualdade, a justiça e a fraternidade”, lembra.


FONTE: Adital

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