Por Pedro Tierra*
O impulso transformador
A eleição de Lula para Presidente da República em 2002, significou um deslocamento da sociedade rumo à centro-esquerda. Ao contrário do que pode pensar o marqueteiro – que costuma se atribuir aquela vitória – a conquista resultou de mais de duas décadas de construção de uma força social, política e cultural que fincou raízes profundas na sociedade brasileira. Se observarmos o impulso que significou a vitória do PT, nas ruas e no parlamento, o quadro confirmará essa leitura.
Lula obteve 61,27% dos votos contra 38,73% de José Serra. O Partido dos Trabalhadores elegeu 91 deputados – apenas 17,7% do total – contra 72 deputados do PSDB – equivalentes a 14% do total. As linhas se cruzaram com os tucanos numa tendência de declínio e o PT em vigorosa ascensão. O mais significativo, porém é registrar o descompasso entre a votação para o executivo, nos dois casos e a votação para a representação parlamentar.
Os movimentos políticos realizados pelo candidato durante a campanha, como o lançamento da “Carta aos Brasileiros”, a própria escolha do Vice, José Alencar, um grande empresário de sucesso no ramo da indústria têxtil, dão notícia da habilidade política e da capacidade do Lula de lidar com o universo simbólico, não apenas dos setores populares, mas do conjunto da sociedade brasileira. A escolha aderiu como uma luva à mensagem que ele desejava emitir para o país.
Os números obtidos nas eleições parlamentares para a Câmara e para o Senado, naquele momento, confirmam a percepção de que a sociedade buscava uma alternativa à esquerda para conduzi-la depois de oito anos de vigência do projeto neoliberal liderado pelos tucanos.
Merece uma reflexão o comportamento do PMDB, a agremiação política com maior capilaridade, com maior presença regional e nos municípios, com forte raiz popular, mas desprovida de um projeto nacional desde a morte trágica do seu líder mais reconhecido, o Dr. Ulysses Guimarães, condutor do processo constituinte. A partir da morte do Dr. Ulysses, o PMDB se decompôs em torno de lideranças regionais expressivas. Expressivas, mas regionais. E se afastou daquele exercício fecundo que foi protagonizado até à Constituinte pela Fundação Pedroso Horta, espaço de formulação programática que prestou serviços relevantes ao partido. Ao partido e ao país.
É possível afirmar que, conscientemente ou não, explicitamente ou não, diante da impossibilidade de unificar-se em torno de uma candidatura nacional, o PMDB traçou um projeto estratégico para construir uma inevitabilidade: “não se governa o Brasil sem o PMDB”. Uma opção vivida por outros partidos no mundo, inclusive em tradições distantes do “liberal-desenvolvimentismo” do PMDB, se assim podemos definir.
O Partido que somou forças pelo impedimento de Collor, se dividiu sob a liderança de Quércia diante do governo FHC. Assumiu Ministérios importantes – Justiça (Nelson Jobim) Transportes (Odacir Klein) – e se opôs, não poucas vezes, ao governo no Parlamento, nos dois mandatos. Uma posição contraditória, frágil, que refletia a falta de coesão interna do Partido em torno de um programa, o que abriu espaço para as negociações de varejo que conduziram a uma prática fisiológica definitivamente associada à imagem do partido. Aderiu de tal modo, ao final do segundo mandato, que compôs a “Grande Aliança” com Serra Presidente (PSDB) e Rita Camata Vice (PMDB) na chapa que disputou contra o PT em 2002.
Depois de um ano de governo Lula, e de árduas negociações entre os dois partidos concluiu-se um processo que resultou na adesão do PMDB ao governo com a participação em três Ministérios de peso: Comunicações, Minas e Energia e Previdência Social, a partir de 2004.
Um rápido flash-back para tornar o quadro mais compreensível. Ao realizar seu X Encontro Nacional, entre 18 e 20 de agosto de 1995, em Guarapari-ES, o Partido dos Trabalhadores produziu a inflexão tática necessária para se propor a disputar “o centro do espectro político do país”, leia-se PMDB. Depois de duas derrotas consecutivas de Lula para Presidente em 1989 e em 1994, o PT, por escassa maioria, concluiu que deveria ampliar seu arco de alianças para além das tradicionais parcerias da Frente Brasil Popular: PDT, PSB, PCdoB com quem marchara nas disputas anteriores e fora derrotado eleitoralmente. Lula deixava a Presidência do Partido para dedicar-se com maior liberdade às atividades e articulações políticas do Instituto Cidadania, onde poderia atuar com maior desenvoltura e agilidade sem os pesados sistemas de controle das instâncias partidárias formais, solidamente ancoradas na cultura política “assembleísta” do Partido. Ainda amargaríamos a derrota de 1998, mas estava aberto o caminho para o triunfo de 2002.
Os movimentos da esfinge
Observa-se, assim, uma linha de convergência entre o objetivo estratégico do PT de alcançar o governo federal, eleger Lula, e pôr em andamento o Projeto Democrático Popular e o projeto não explícito do PMDB: “Não se governa o Brasil sem o PMDB”. O final do governo Lula coroa um pacto destinado a ser mais duradouro que o anterior, firmado com os tucanos: o PMDB aponta Michel Temer, como vice na Chapa de Dilma Rousseff. Desta vez, uma proposta vitoriosa, nas eleições de 2010. A construção da base desse acordo foi obra de mãos experientes, mas nunca foi digerida plenamente pela base militante do PT. E, de algum modo, sacrificou um dos seus principais artífices: o Ministro José Dirceu.
O processo eleitoral de 2014 aponta para o esgotamento do pacto e de um ciclo que buscou retomar o desenvolvimento com a consolidação de um mercado interno de massas, viabilizado por políticas eficazes de combate à pobreza – Luz para Todos, Minha Casa Minha Vida –, de inclusão social – Política de Valorização do Salário Mínimo, Bolsa Família –, redução das desigualdades regionais – descentralização dos investimentos federais em infraestrutura –, geração de emprego – obteve as mais baixas taxas de desemprego da história do país – e melhoria na renda das classes populares.
A coincidência da queda nas taxas de crescimento econômico dos últimos anos com a crise do sistema representativo e dos partidos políticos, aprofunda o desgaste inevitável de uma relação política turbulenta que tensiona sobretudo as relações internas do PMDB, parte dele empenhado em construir seu próprio projeto nacional, parte buscando respostas mais imediatas que em geral se traduzem em disputas de espaço no aparelho público ou disputas regionais que contrapõem segmentos do partido ou o partido como conjunto contra seus aliados nacionais. Em particular contra o PT.
A franca oposição pela direita ao governo, liderada por Eduardo Cunha, depois de submeter o PT e o Governo Dilma a uma humilhante derrota ao assumir a Presidência da Câmara dos Deputados, e Renan Calheiros – hábil herdeiro dos métodos que garantiram a longevidade da presença de Sarney no cenário político do país – no Senado, apresenta um desafio à imaginação política do PT e do Governo Federal para a condução do 2º mandato da Presidente Dilma Rousseff.
É necessário examinar as condições atuais do PMDB, tendo nas mãos, novamente, o controle das duas casas do parlamento, e a preparação das eleições municipais de 2016 como prólogo da disputa presidencial de 2018. Terá, o PMDB, consolidado as bases para relançar-se unificado, em torno de uma candidatura própria desde a morte do Dr. Ulysses Guimarães? Formular um programa para o país, buscar um nome que lhe dê um rosto para costurar uma aliança que o reconheça como força hegemônica. Esses são os desafios do partido mais capilar e menos orgânico em ação no cenário político do país. Um partido que aprendeu a manejar com habilidade e competência suas bancadas no Congresso. Observe-se que a bancada do PMDB nas últimas quatro eleições para a Câmara dos Deputados oscilou entre 14,2% e 17% dos eleitos. No entanto o partido detêm mais uma vez, em 2015, a presidência das duas Casas.
Não é improvável que o PMDB, depois de impor sucessivas derrotas a um PT combalido, em temas importantes da agenda conservadora: a redução da maioridade penal, o financiamento privado de campanhas eleitorais e o PL 4330, o da Terceirização que busca sepultar as conquistas dos trabalhadores desde a CLT, construa uma alternativa de afastamento em relação ao PT e ao governo Dilma e se volte para o objetivo de ocupar um espaço no campo conservador agora não mais como linha auxiliar do PSDB, mas como líder.
Para o PT, particularmente, está posta, ao inaugurar o segundo mandato de Dilma Rousseff, em janeiro último, a necessidade política de repor na agenda pública a questão da “governabilidade social” – sem abrir mão das necessárias alianças parlamentares, em duas palavras dividir o PMDB – para assegurar os avanços exigidos pelas urnas, particularmente no segundo turno, na direção de um novo ciclo ancorado em mobilizações sociais dos setores populares contemplados pelo projeto político que liderou.
A questão que nos interpela: terá o PT a esta altura energia política e disposição para fazê-lo? Aparentemente o Governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores puseram o pé numa armadilha: optou, o governo, por uma condução conservadora – implementar o ajuste – para enfrentar a conjugação de crises: campanha da oposição conservadora por não reconhecer os resultados das urnas; campanha do cartel da mídia contra a Petrobrás, com o objetivo de inviabilizar a maior empresa do país e retirar dela as condições de conduzir o modelo de partilha na exploração do pré-sal; respaldar a condução por parte do Judiciário das novas etapas da "Operação Lava-a-jato" e apostar nos resultados catastróficos do ajuste sobre o conjunto da economia do país: queda da atividade econômica, recessão, desemprego etc. como parte da estratégia de retorno ao governo. O tempo dirá sobre as consequências dessa escolha.
Com que discurso o governo mobilizará seus defensores, se o conjunto das medidas do ajuste recai sobretudo em cima dos ombros dos setores sociais que elegeram Dilma? A cada dia que passa vai-se cristalizando uma situação de distanciamento entre o governo e sua base social/eleitoral. Vide pesquisas de opinião dos últimos meses. O resultado pode ser uma ruptura. O que deixaria o governo na condição de refém da governabilidade parlamentar sob hegemonia do PMDB em franco deslocamento para a direita ou, numa segunda hipótese, a economia reage, o país volta a crescer e Dilma recupera a popularidade mas constata que já perdeu, vítima de inanição, o principal instrumento político de sua ascensão ao governo do país: o Partido dos Trabalhadores.
Em nome de manter a vocação hegemônica que o acompanha desde a fundação, o PT está abrindo mão da vocação transformadora que justifica sua presença no cenário político do Brasil. Corre o risco de perder as duas.
*Pedro Tierra – É Presidente do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo
FONTE: Carta Maior
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