domingo, 28 de maio de 2017

Vida de presidiárias






Por Denise Maia


O sistema prisional no Brasil é desumano. Não há compromisso sério por parte do Estado para inserir essa massa carcerária de volta à sociedade. A sua linguagem é a da repressão, da condenação.

Encarceram homens e mulheres, em sua maioria pobres e negros, por delitos que não comprometem a segurança e o bem-estar da sociedade. “No que se refere ao gênero, à violência à mulher, que já vive encarcerada de diversas maneiras por essa sociedade, esses muros ficam mais visíveis”, afirma Graziela Contessoto Sereno, que trabalha no Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro.

A Verdade visitou o presídio feminino de Bangu, na capital fluminense. Lá constatamos a precariedade da situação em que vivem as detentas. Celas superlotadas por mulheres jovens envolvidas, na maior parte dos casos, com o tráfico de drogas. À medida que avança a idade, os delitos ou atos infracionários estão relacionados à questão do parceiro ou filho. Um reflexo dessa sociedade machista.

No Rio de Janeiro existem quatro unidades prisionais que recebem mulheres. Um total de 1.837 pessoas. Desde 2014, a população carcerária feminina aumentou numa proporção maior que a masculina. Para Graziela, os fatores são diversos. “Vivemos numa sociedade em que se busca tratar o problema social com prisões e não tratando as pessoas. Uma questão muito séria está relacionada à lei de drogas, que criminaliza qualquer comportamento nesse sentido como crime hediondo. A outra questão é a seletividade penal. A mulher pobre e negra é o perfil mais frequente nas unidades prisionais”. Essa realidade é descrita em detalhes no relatório temático Mulheres, Meninas e Privação de Liberdade, lançado em 2016, pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.

Graziela apresenta outras questões do relatório. “Os presídios não levam em consideração essa peculiaridade do que é ser mulher. Elas recebem apenas quatro absorventes por mês e só no presídio que possui gestantes existe um médico, que atende uma vez por semana; nas outras unidades não há. Normalmente a equipe de saúde é formada por técnicos de enfermagem e enfermeiros. O acesso a esses profissionais é feito através bilhetes, entregues pelas presas às guardas, que os encaminham aos profissionais. O contato humano do profissional da saúde com a presa depende da guarda para que aconteça”, explica.

A crise financeira do Estado do Rio de Janeiro afeta diretamente os presídios. As péssimas condições na alimentação e a falta de profissionais na área da saúde e em outros setores acabam potencializando os maus tratos nas unidades prisionais. “Um exemplo está ligado aos nossos relatórios. A Defensoria Pública solicitou que houvesse pelo menos um ginecologista em cada unidade. Mas a juíza indeferiu esse pedido e justificou que se falta ginecologista para o atendimento das mulheres que estão fora dos presídios, como garantir para as que estão presas? Essa precarização dos serviços acaba justificando a barbárie”, acredita Graziela.

A vida na prisão

No presídio feminino Talavera Bruce, visitado por nossa equipe, conhecemos as histórias dessas mulheres sofridas, corajosas, humanas, que nos receberam meio desconfiadas, um pouco monossilábicas, mas que, aos poucos, foram se sentindo à vontade e expuseram suas perdas, esperanças, arrependimentos e suas confianças numa nova vida.

Rosângela Gomes Pereira, 59 anos, é uma dessas mulheres. Está presa desde 1995. Não tem filhos. Na época tinha um companheiro e morava com ele. O pai bebia muito e batia nos irmãos e na mãe. “Saí de casa com 10 anos. Eu trabalhava muito e era espancada constantemente. Ele batia com bico de boi em qualquer parte do corpo nos quatorze filhos e na minha mãe. Fui pra rua e me juntei com as outras crianças. Dormia em caixas de papelão, pedia comida nos restaurantes, roupas na casa dos outros, ia vivendo assim. Às vezes, ele me pegava na rua, me batia e me prendia amarrada no esteio do varal, onde passava o dia inteiro. Ali eu comia, bebia, fazia xixi e cocô nas calças. Mas não adiantava. Quando ele me desamarrava, fugia de novo. Assim vivi durante muitos anos. Na rua, achava carinho com aquelas crianças. Comecei a cheirar cola. Depois, para sustentar o vício, comecei a praticar pequenos furtos. Assim fui vivendo na rua até a primeira prisão, com 20 anos, em Minas Gerais, onde fiquei seis anos”, relata.

Rosângela ficou na rua dois anos antes de ser presa. A rua e a prisão foram as suas escolas. Já tem mais de 20 anos na prisão. Nunca recebeu visita ou correspondência. Na realidade, o único contato que ainda manteve foi com a mãe, que enviava, às vezes, umas poucas cartas escritas por outra pessoa.

Nascida e criada em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, a família de Rosângela sofreu uma tragédia em 2001, durante as fortes chuvas que castigaram a cidade. Mais de 360 pessoas morreram e 400 ficaram desabrigadas. “Trinta e nove pessoas pertenciam à minha família. Sei que ainda tenho um irmão e uma irmã que estão vivos, mas não tenho contato”.

Quando perguntada sobre o porquê de nunca ter recebido visita, de pronto responde que, no começo, era muito dolorido: “Pensava que minha família não gostava de mim, nunca veio me ver. Hoje estou acostumada”, diz sem convicção, com os olhos marejados.

Na reflexão que faz dos acontecimentos de sua vida, de como é viver durante tanto tempo na solidão: “Posso falar a verdade? Estou muito arrependida, preferia ter ficado em casa, aguentando aquelas pancadarias, pois meus irmãos aturaram. Ninguém foi pra vida do crime. Eu fui a única. Todo mundo lá em casa é trabalhador, sempre muito pobre, ganhando pouco, mas ninguém manchou a família como eu”.

As lágrimas de Rosângela refletem sua intensa dor. Ninguém se acostuma com a falta de amor. “Amar uma pessoa que me ajuda é fácil, amar uma pessoa que me deseja o mal, me causa tortura, é difícil. Hoje consigo lidar com esses sentimentos. A mágoa traz doença, depressão. Para vocês verem: estou há 22 anos presa, com condicional negada mais uma vez”.

Há tempos, os objetivos dela estão bem claros. “Tenho um dinheiro guardado desses anos trabalhados aqui. Penso em construir um quartinho com banheiro. Sei fazer trabalhos manuais como crochê e quero frequentar a igreja”.

“Conheço crimes piores que o meu. Pratiquei furtos, realizei um assalto, mas não portava arma, e fui presa por seis anos em Minas Gerais. Agora estou na prisão por conta da droga, por causa de dezessete gramas de maconha e um cigarro. A juíza me condenou por tráfico de drogas. Nunca fui traficante, era apenas usuária”.

Nossa conversa com Rosângela terminou com uma mensagem que ela enviou ao jornal: “Gostaria de parabenizar o jornal por esse gesto humano. São tão poucos os que se interessam pelo nosso estado no cárcere!”.

“Não tirei de quem tinha e sim de pobre, de gente que trabalhou a vida inteira.”

Também conversamos com a detenta Márcia Valéria Gonçalves Dias, de 44 anos. Três anos e dez dias de prisão, quando a entrevistamos.

Bem articulada, Márcia relata que ganhou a condicional e não saiu. “Não fui porque cometi crimes”, disse. Nesse momento, as lágrimas do arrependimento chegaram com força. “Sou muito consciente das coisas que fiz. Achei que a pena que recebi foi pequena diante do mal que causei. O meu crime foi estelionato. Não tirei de quem tinha, e sim de pobre, de gente que trabalhou a vida inteira pra realizar o sonho de um filho”, conta.

Márcia detalha o que a levou à prisão. “Sempre tive acesso a muitos lugares, sempre falei muito bem. Criava uma relação de confiança e aplicava o golpe. Como nunca tive essas coisas, achava que tinha que fazer isso pra realizar os sonhos dos meus filhos, tirando os sonhos dos filhos dos outros. Isso passou a me incomodar muito quando fui presa. Na realidade, agradeço por estar na prisão. Quem sabe o que planta não teme a colheita. Sabia o que estava plantando e sabia que um dia teria que pagar. Queria uma casa de luxo. Aqui aprendo que posso morar num quartinho de aluguel”, afirma.

Mãe de quatro filhos, ela diz que prefere não ter contato com eles. “Nunca aceitei que os meus filhos viessem me visitar porque eles não têm culpa de nada. Eles têm que seguir com suas vidas. Como posso exigir que eles entrem numa cadeia?!”.

Sua vida nunca foi fácil. “Fui criada por duas senhoras bem idosas. Minha mãe é prostituta, está com 58 anos. Aparecia e sumia, sempre assim. Teve 10 filhos e deu todos. Desde nova nunca tive amor próprio. Sempre era apontada como a filha da costureira, das mulheres que me adotaram, ou como a filha da prostituta. Esses são traumas que carrego até hoje”.

Sobre a vida na cadeia, Márcia é direta: “A vida no cárcere é muito difícil. As pessoas brigam sem motivo, mutilam, jogam água fervendo, cortam com gilete, se juntam para bater na outra como se fosse saco de batata. A prisão é onde o ódio habita”.

Quando perguntamos se ela não achava que estava na hora de se libertar do chicote e reconstruir a vida fora da prisão, ela responde: “Sempre me neguei a sair daqui por medo. Medo da vida que está me esperando lá fora. Não medo de cometer crimes, disso estou curada. Fiquei sete meses sem notícias dos meus filhos. Quase fiquei louca. Meu marido falou para os meus filhos que eu tinha morrido e sido enterrada como indigente. As cartas que eu enviava para eles eram rasgadas pelo meu sogro. Através de uma amiga, meus filhos souberam que eu estava viva e continuava presa. A minha cela é um verdadeiro bunker. Estou isolada, a porta é um chapão. Quando fecham e trancam é desesperador, uma agonia que vocês não têm ideia”.

Apesar disso, Márcia não abandona a esperança de uma nova vida. “Quero sair daqui e reconstruir minha vida. Quero encontrar em mim o que nunca encontrei. Meus filhos seguiram suas vidas. Quero reconstruir a minha moral. No dia que sair da cadeia, espero me libertar da minha prisão. O que me sustenta esse tempo todo é o amor pelos meus filhos. A minha esperança vem desse amor, um amor que liberta”.

O sistema prisional brasileiro não reeduca, ao contrário, alimenta o nosso sentimento mesquinho, perverso, nos afasta do amor. Mesmo assim, numa atitude de rebeldia, ainda somos capazes de uma gentileza, de uma ternura, de expressar com lágrimas e abraços a nossa esperança. Apesar do enorme sofrimento do encarceramento da alma, ainda somos capazes de lutar pela liberdade de construir uma vida melhor.




FONTE: A Verdade

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A questão da democracia e da ditadura em "A guerra civil na França" de Marx (1)



Por Aluízio Moreira


A chamada abertura política que muitos observadores enfatizam ao se debruçarem sobre as sociedades socialistas após a Perestroika, serviu para contrapor de forma mais incisiva, o admitido antagonismo marxismo versus democracia, comunismo versus democracia. 

Os marxistas definiram o novo tipo de regime de governo, que deverá corresponder à nova realidade sócioeconômica não-capitalista,  como “ditadura do proletariado”, enquanto seus opositores identificaram aquele governo como autoritário, opressor, anti-democrático, contrapondo-o ao modelo adotado pelo mundo ocidental, burgues, como único modelo de uma sociedade democrática.

Essa identificação ditadura do proletariado/anti-democracia foi tão eficiente para a hegemonia do pensamento político liberal-burgues, que alguns partidos comunistas e de esquerda, sobretudo ocidentais, tratam de abominar o termo, seja pela simples pela sua abolição  dos seus programas, seja substituição por expressões menos comprometidas como democracia socialista, ou socialismo democrático. Aceitava-se veladamente que a inclusão da palavra democracia em suas siglas e programas, asseguraria necessariamente o caráter não-autoritário, democrático, como forma de regime.

Nem Karl Marx nem Friedrich Engels trataram em suas obras de definir democracia ou regime democrático.

A expressão “ditadura do proletariado” foi utilizada por Engels na Introdução à terceira edição (1891) alemã da obra de Marx A Guerra Civil na França, edição comemorativa ao vigésimo aniversário da Comuna de Paris de 1871, no sentido de democracia em toda sua plenitude, porquanto exercida soberanamente pela população trabalhadora de Paris. (2)

Vejamos como o Autor daquela Introdução trata o assunto.

Após traçar as linhas gerais da situação política francesa, tanto interna como externamente, sobretudo no que refere às rivalidades franco-prussianas, Engels acompanha os fatos político-militares que levarão à proclamação da Comuna de Paris. Detendo-se na análise do governo revolucionário instituído em março de 1871, observando que a maioria dos membros da Comuna era proudhonianos e blanquistas, desfechou algumas críticas aos planos econômicos dos proudhoninos, e assim se referiu aos blanquistass:

[...] os blanquistas partiam da idéia de que um grupo relativamente reduzido de homens decididos e bem organizados estaria em condições não só de apoderar-se da direção do Estado num momento propício, mas também ,desenvolvendo uma ação enérgicas e incansável, seria capaz de manter-se  até conseguir arrastar à revolução às massas do povo e congrega-los em torn o de um pequeno grupo dirigente. Isso conduziria , sobretudo, à mais rígida e ditatorial centralização de todos os poderes nas mãos do novo governo revolucionário. (2)

Nessa passagem, Engels critica nos blanquistas aquilo que era prática própria do governo napoleônico: autoritário, centralizador. Modernamente, Blanc seria considerado defensor do chamado Socialismo de Estado.

Mas apesar dessa proposta centralizadora e autoritária dos blanquistas, como se organizou de fato o poder durante o domínio da Comuna? O próprio Engels, a partir das observações que pôde fazer, relata:

Em todas as proclamações dirigidas aos franceses das províncias, a Comuna exortava à criação de uma federação livre de todas as Comunas da França com Paris, uma organização nacional que, pela primeira vez devia ser criada pela própria nação. Exatamente o poder opressivo do antigo governo centralizado – o exército, a polícia política e a burocracia – instituído por Napoleão em 1798 e que desde então cada novo governo havia herdado como um instrumento eficaz, empregando-o contra os seus inimigos – exatamente essa força é que devia ser derrubada em toda a França, como o fora em Paris. (3) 

Nessa passagem, Engels contrapõe à forma de governo centralizado e autoritário, napoleônico ou blanquista, um novo tipo de Estado que a Comuna instituiu, diferente da “velha imagem do Estado”. Nesse novo governo, “os seus próprios mandatários e funcionários”, seriam “demissíveis a qualquer tempo e sem exceção.” 

Assim, a Comuna organizou o Estado, preenchendo “todos os cargos administrativos, judiciais e do magistério através de eleições mediante sufrágio universal, concedendo aos eleitores o direito de revogar a qualquer momento o mandato concedido”. 

Mas o governo revolucionário de Paris foi mais longe:

Todos os funcionários, graduados ou modestos, eram retribuídos como os demais trabalhadores. O salário mais alto pago pela Comuna era de 6 mil francos. Punha desse modo uma barreira eficaz ao arrivismo e à caça aos altos empregos, e isso sem falar nos mandatos imperativos dos delegados aos corpos representativos que a Comuna igualmente introduziu. (4)

A Comuna de Paris, para Engels, orientou-se “no sentido de abolir violentamente o velho poder estatal, substituindo-o por outro novo e verdadeiramente democrático”.  É esse tipo de governo instituído pela Comuna de Paris, que Engels utiliza no final da sua Introdução em A Guerra Civil na França, o exemplo de ditadura do proletariado como exemplo de democracia instituída na Comuna . Textualmente:

E eis que o filisteu alemão foi novamente tomado de um saudável terror com as palavras ditadora do proletariado. Pois bem, senhores quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado. (5)

Mas não seria só o “filisteu alemão” que se horrorizaria com os termos “ditadura do proletariado” para definir um regime de novo tipo, verdadeiramente democrático. O horror à expressão atravessou épocas e fronteiras, sobretudo por se desconhecer e/ou não aceitar o sentido que os primeiros teóricos do marxismo lhes deram: ou seja, qualquer classe que venha a dominar o poder de Estado, exerce inquestionavelmente a dominação de classe, a ditadura de uma classe sobre outra, ou se preferirem que a dominação seja mais leve, exerce a hegemonia de classe, nas terminologia gramsciana.

As observações de Marx

Se Engels denomina o governo democrático da Comuna como ditadura do proletariado, Marx, nos manifestos que comporão posteriormente “A Guerra Civil na França”, refere-se à Comuna como “forma positiva” de uma “República Social”, como “República do Trabalho, reconhecendo o caráter nacional, democrático e operário do governo surgido em Paris em 1871.

Na análise que faz da Comuna, Marx, como Engels o fizera, deixa explicito seu caráter que registramos antes:

A Comuna era composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente, formada de trabalhadores ou representantes da classe trabalhadora. (6)

Continua Marx:

A Comuna não poderia ser um órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa o mesmo tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo central, a polícia foi imediatamente despojada de suas atribuições políticas e convertida num instrumento da Comuna, responsável perante ela e demissível a qualquer momento. O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos demais ramos da administração. A partir dos membros da Comuna, todos que desempenhavam cargos públicos deveriam receber salários de operário. (7)

O caráter democrático da Comuna está presente também no trato com a educação:

Todas as instituições de ensino foram abertas gratuitamente ao povo e ao mesmo tempo emancipadas de toda intromissão da Igreja e do Estado. Assim, não somente se punha o ensino ao alcance de todos, massa a própria ciência se redimia dos entraves criados pelos preconceitos de casse e o poder do Governo. (8)

Em relação à instância jurídica, “os funcionários judiciais deviam perder aquela fingida independência que só servira para disfarçar sua abjeta subordinação aos sucessivos governos, aos quais iam prestando sucessivamente, e violando também sucessivamente, o juramento de fidelidade. Assim como os demais funcionários públicos, “os magistrados e juízes deveriam ser funcionários eletivos, responsáveis e demissíveis”.

À antiga forma centralizadora de poder, sucederia o governo dos produtores pelos produtores, uma espécie de auto-administração dos trabalhadores, a partir dos distritos.

Ao tomar a Comuna de Paris como modelo de organização de uma futura sociedade democrática e comunista ali apenas esboçado, Marx não teve ilusão quanto à instituição de tal sociedade. Sabia que não bastaria ter um plano imaginário, bem elaborado, ao qual a realidade deveria se adequar. Não pretendia criar uma sociedade paradisíaca, distante do céu e da terra, nem esperava da Comuna “nenhum milagre”, pois os operários “não têm nenhuma utopia já pronta para introduzir por decreto do povo”, e na busca de sua realização “terão que enfrentar longas lutas, toda uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os homens”. (9)

Conclusão

Do que vimos até aqui, algumas questões nos ficaram bastante claras:

a) O conceito de ditadura do proletariado como foi empregado por Engels,  não elimina a constituição democrática da sociedade, de uma sociedade socialista. Tal conceito seria a expressão real da democracia operária vivenciada pela Comuna de Paris de 1871 (10), e não expressão de governo autoritário e centralizador;
b) Marx admite a organização democrática da experiência do proletariado de Paris;
c) A instituição de uma sociedade socialista, democrática, não surge por decreto, nem por ação de um grupo de heróis que dirigiriam uma ação revolucionária;
d) A vitória e consolidação de uma revolução democrática, socialista, é resultante das condições e circunstâncias concretas de uma sociedade, não por ação de um grupo de heróis que dirigiriam uma ação revolucionária, pois a realidade é mais rica que qualquer dedução filosófica e política.

Notas
1) O texto consultado foi ENGELS, Friedrich. Introdução, In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d, p. 49, vol. 2
2) Sobrea Comuna de Paris, ver nossa postagem 
3) p. 49
4) Deve ter havido um engano de Engels na referida data. Embora nas várias edições de “A Guerra Civil na França", constem a mesma data, no ano de 1798 Napoleão se encontrava em campanha militar no Oriente e Europa, só retornando a Paris nos fins de 1799, quando assumiu o poder após um golpe militar.
5) p. 51
6) p. 51
7) p. 81
8) p. 81
9) p. 81
10) p. 84
11) A Comuna de Paris durou poucos meses: de março de 1871 a maio do mesmo ano. A classe dominante desencadeou violenta repressão sobre a população de Paris, da qual resultaram 20.000 fuzilamentos, 38.000 detenções e 13.000 deportações, entre homens, mulheres e crianças.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O que fazer para revitalizar a esquerda



Por Hamilton Octavio de Souza 




Uma ta­refa bas­tante de­li­cada no Brasil atual é iden­ti­ficar e or­ga­nizar qual deve ser a atu­ação po­lí­tica da es­querda sem in­gressar no jogo dos grupos que se en­gal­fi­nham na dis­puta do apa­relho de Es­tado para ge­ren­ciar ver­sões do ca­pi­ta­lismo. E sem cair no fla-flu das tor­cidas fa­na­ti­zadas que em­ba­ra­lham emo­ci­o­nal­mente o leque ide­o­ló­gico por vo­lun­ta­rismo e opor­tu­nismo da forma mais ir­res­pon­sável e in­con­se­quente. A es­querda pre­cisa ur­gen­te­mente des­ba­ratar as bar­reiras do caos, re­de­finir ca­mi­nhos e re­for­matar o seu papel de força po­lí­tica pre­sente e in­flu­ente na vida na­ci­onal.

A opção me­câ­nica por este ou aquele lado das vá­rias ques­tões em con­flito não tem con­tri­buído em nada para tirar a es­querda do pân­tano po­lí­tico. A tra­je­tória dessa fra­gi­li­zação pode ser re­me­tida a 1989, mas é certo que a si­tu­ação de­sandou de vez a partir de junho de 2013. É pre­ciso con­si­derar também a con­jun­tura in­ter­na­ci­onal, as ma­no­bras do ca­pi­ta­lismo após a crise econô­mica de 2008, as ex­plo­sões mi­gra­tó­rias, as ondas con­ser­va­doras e de di­reita, a re­or­ga­ni­zação mun­dial da eco­nomia, mas, es­pe­ci­fi­ca­mente, o fun­da­mental é apurar como vi­ta­lizar a frag­men­tada es­querda bra­si­leira.

Só uma força po­lí­tica de es­querda or­ga­ni­zada e atu­ante pode se con­trapor às bar­bá­ries pro­du­zidas pelo ne­o­li­be­ra­lismo. Só uma força po­lí­tica de es­querda in­te­grada e apoiada pela mai­oria do povo – no­ta­da­mente pelos tra­ba­lha­dores das mais va­ri­adas ati­vi­dades pro­fis­si­o­nais – pode cons­truir ca­minho se­guro para uma so­ci­e­dade justa, igua­li­tária, livre e de­mo­crá­tica para todos. Só uma força po­lí­tica de es­querda com cre­di­bi­li­dade ética e le­gi­ti­mi­dade po­pular pode com­bater de forma efi­ci­ente e du­ra­doura as prá­ticas da cor­rupção e os des­mandos pra­ti­cados com os re­cursos pú­blicos.

É im­pres­cin­dível re­co­nhecer os graves pro­blemas da de­si­gual­dade rei­nante no país; a ur­gência de mu­danças es­tru­tu­rais no sis­tema po­lí­tico e no mo­delo de de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial; a gri­tante ne­ces­si­dade de se as­se­gurar os di­reitos fun­da­men­tais (tra­balho, mo­radia, saúde, edu­cação, cul­tura, lazer) para todos; a ime­diata in­versão dos va­lores de uma so­ci­e­dade ex­clu­dente (in­di­vi­du­a­lismo, con­cen­tração, ga­nância, bru­ta­li­dade) por va­lores de uma so­ci­e­dade so­li­dária (co­le­ti­vi­dade, dis­tri­buição, ge­ne­ro­si­dade e ci­vi­li­dade). É igual­mente im­pe­rioso que os tra­ba­lha­dores en­trem na luta pra valer.

A to­mada de cons­ci­ência exige per­cepção dos fa­tores que con­cor­reram para a fra­gi­li­zação da es­querda ao longo do pro­cesso his­tó­rico e ao mesmo tempo von­tade para rein­ter­pretar fatos, dis­cursos e aná­lises con­ta­mi­nados pelos equí­vocos e des­vios nas prá­ticas da es­querda. O ob­je­tivo é ali­mentar o diá­logo e en­ri­quecer o am­bi­ente pro­pício ao for­ta­le­ci­mento da es­querda, não apenas de seu ar­senal po­lí­tico e pro­gra­má­tico como também de sua or­ga­ni­zação en­quanto força real para atu­ação con­creta na so­ci­e­dade, trans­formar a re­a­li­dade e com­bater as ma­zelas ge­radas pelo ca­pital.

Me­mória e apren­di­zado

Temos sido en­re­dados há muitos anos por falsos di­lemas, os quais nos afastam de pos­turas e agendas com­pa­tí­veis e con­se­quentes com o campo pró­prio da es­querda. A partir da der­rota de Lula na eleição pre­si­den­cial de 1989, o PT – e es­pe­ci­al­mente o lu­lismo – ca­mi­nhou para a apro­xi­mação com as forças, pro­postas e po­lí­ticas do centro li­beral e da di­reita ne­o­li­beral, re­a­li­zando um ver­da­deiro mas­sacre na es­querda do par­tido, seja su­fo­cando al­gumas li­de­ranças e cor­rentes, seja com o ex­purgo de grupos e pes­soas que ou­saram cri­ticar e se opor ao cau­di­lhismo se­me­lhante ao dos par­tidos tra­di­ci­o­nais da di­reita.

Vale lem­brar que não toda, mas boa parte da es­querda or­ga­ni­zada exis­tente hoje nasceu de ex­purgos re­a­li­zados pelo lu­lismo dentro do PT, como o PSTU e o PSOL. Sem contar os mi­lhares de pe­tistas de es­querda que dei­xaram o par­tido de­cep­ci­o­nados com os rumos e as prá­ticas ado­tadas pelo lu­lismo, se abri­garam em al­guma outra le­genda ou sim­ples­mente ab­di­caram de nova vida par­ti­dária. Muitos mi­li­tantes aguer­ridos e qua­li­fi­cados foram vi­o­len­ta­mente to­lhidos em seus so­nhos e ideais sim­ples­mente porque não acei­taram o man­do­nismo e os des­vios po­lí­ticos e éticos da cú­pula do lu­lismo.

As ma­ni­fes­ta­ções de 2013, a co­meçar das lutas do Mo­vi­mento Passe Livre (MPL), des­per­taram di­fe­rentes seg­mentos da so­ci­e­dade – desde os grupos black blocs, anar­quistas, so­ci­a­listas até as aco­mo­dadas classes mé­dias – para a força e a in­fluência das ruas no jogo po­lí­tico ins­ti­tu­ci­onal e, o mais ino­vador e trans­for­mador, sem a tu­tela do PT, do lu­lismo e do go­verno fe­deral. Ao tentar res­ta­be­lecer o con­trole das ruas e ao negar res­postas efe­tivas às de­mandas dos pro­testos, a he­ge­monia pe­tista ficou des­mo­ra­li­zada. Vale lem­brar que a Dilma se re­e­legeu em 2014 com o apoio de apenas 38% dos elei­tores, sendo que 62% dos elei­tores não as­su­miram qual­quer com­pro­misso com a can­di­data do lu­lismo.

Apesar de todas as provas de que o PT é do­mi­nado pelo lu­lismo e que o lu­lismo não passa de uma ge­leia geral fi­si­o­ló­gica, que sempre atuou muito mais a favor da di­reita e da bur­guesia do que a favor da es­querda e dos tra­ba­lha­dores, al­guns se­tores da es­querda ainda se sub­metem aos apelos da cú­pula do lu­lismo para blindá-lo dos inú­meros crimes pra­ti­cados contra os seg­mentos so­ciais mais ne­ces­si­tados de ser­viços e re­cursos pú­blicos, sem contar que tais se­tores são usados re­pe­ti­da­mente como massa de ma­nobra nos mo­mentos em que o pró­prio lu­lismo pre­cisa mos­trar força para se in­serir no jogo da bur­guesia.

Os falsos di­lemas nos afastam sempre das pos­turas e das pro­postas que devem nor­tear a es­querda. No mo­mento, forças he­gemô­nicas pautam para a so­ci­e­dade duas op­ções: uma, apoiar a es­ta­bi­li­zação po­lí­tica do go­verno Temer, o que sig­ni­fica for­ta­lecer o ajuste econô­mico ne­o­li­beral con­forme as re­gras do Con­senso de Washington, que prevê a re­dução do papel do Es­tado e a pri­va­ti­zação de quase tudo para a ex­plo­ração do mer­cado, com con­sequên­cias da­nosas aos di­reitos fun­da­men­tais da po­pu­lação (edu­cação, saúde, trans­porte, mo­radia etc.); e outra, apostar na de­ses­ta­bi­li­zação po­lí­tica do go­verno Temer, com o agra­va­mento das crises po­lí­tica, econô­mica, so­cial e ins­ti­tu­ci­onal, de tal ma­neira que o pre­si­dente possa ser subs­ti­tuído sob a ba­tuta do Con­gresso Na­ci­onal, com opção de outro go­verno tão ou mais com­pro­me­tido com as pro­postas ne­o­li­be­rais.

Não faz o menor sen­tido a es­querda em­barcar na ale­a­tória dis­puta entre fac­ções da bur­guesia, di­vi­didas entre o apoio ao Temer e a busca de uma al­ter­na­tiva ao Temer. Também não faz o menor sen­tido en­trar no jogo do lu­lismo, que en­cena agora o papel de opo­sição, faz su­posta cam­panha para an­te­cipar as elei­ções tão so­mente para di­fi­cultar even­tual con­de­nação de Lula nos vá­rios pro­cessos em que é réu. Em­barcar no es­tertor do lu­lismo, agora des­ven­dado e de­gra­dado po­lí­tica e eti­ca­mente, seria jogar mais uma pá de cal na es­querda e re­tardar ainda mais a sua in­serção nas classes tra­ba­lha­doras. A or­ga­ni­zação e o for­ta­le­ci­mento da es­querda podem passar pelo pro­cesso elei­toral, mas não podem se es­gotar nas elei­ções. Di­fe­ren­te­mente do lu­lismo, que tem pro­jeto pes­soal de poder, a es­querda deve visar, fun­da­men­tal­mente, o pro­jeto de trans­for­mação real e es­tru­tural da so­ci­e­dade.

Foco e se­le­ti­vi­dade

A es­querda está sendo es­ti­mu­lada a en­trar no pro­cesso su­ces­sório de ma­neira ata­ba­lhoada, mais uma vez, antes mesmo de qual­quer re­flexão mais apro­fun­dada sobre a sua pró­pria con­for­mação po­lí­tica, ide­o­ló­gica e pro­gra­má­tica; antes mesmo de uma boa aná­lise crí­tica sobre os go­vernos do PT, sobre o papel do lu­lismo e a re­lação do pe­tismo com a con­jun­tura de crise no seio da es­querda e nos mo­vi­mentos so­ciais po­pu­lares, sin­di­cais, da ju­ven­tude e dos tra­ba­lha­dores. Como pensar na li­qui­dação do atual go­verno, he­rança di­reta do lu­lismo, sem a ur­gente e es­sen­cial re­com­po­sição de uma força re­al­mente livre da po­lí­tica de con­ci­li­ação de classes que imo­bi­lizou a es­querda em tantos anos de ne­o­li­be­ra­lismo?

A re­fe­rência da es­querda não pode ser o que levou o país ao de­sastre econô­mico e so­cial, que trans­formou a es­pe­rança po­pular em pe­sa­delo para os tra­ba­lha­dores, que levou de­ses­pero aos po­bres e de­sa­lento aos jo­vens. A re­fe­rência da es­querda não pode ser quem adota e pra­tica a des­po­li­ti­zação do povo e a de­ge­ne­ração da ética pú­blica. A re­fe­rência da es­querda não pode ser ja­mais o que des­pertou, ali­mentou e for­ta­leceu de 2002 a 2016 os se­tores mais con­ser­va­dores e de di­reita da so­ci­e­dade bra­si­leira. Afinal, quem bancou a pre­sença de Temer nas chapas de 2010 e 2014 e as ali­anças com PMDB, PP, PRB, PTB, PSD e ali­mentou tantos focos do re­a­ci­o­na­rismo?

A re­fe­rência da es­querda só pode ser a cons­trução de fer­ra­mentas de luta ava­li­zadas pelos tra­ba­lha­dores e pelos mo­vi­mentos so­ciais, com or­ga­ni­zação desde a base da so­ci­e­dade, de baixo para cima, com in­clusão, in­de­pen­dência e ampla de­mo­cracia, de tal ma­neira que tenha prin­cí­pios, va­lores e pro­postas que não se con­fundem com os pro­gramas dos par­tidos tra­di­ci­o­nais da bur­guesia. A es­querda só terá o res­peito e a con­fi­ança dos tra­ba­lha­dores e do povo bra­si­leiro no mo­mento em que se li­vrar dos males do lu­lismo. Assim como a es­querda mun­dial se re­novou ao re­provar os crimes do sta­li­nismo, a es­querda bra­si­leira pre­cisa su­perar o lu­lismo para se re­en­con­trar com os tra­ba­lha­dores e com todos os que so­nham e lutam por um Brasil justo e igua­li­tário, livre e de­mo­crá­tico.

O que fra­gi­liza a es­querda não é a exis­tência da di­reita e do con­ser­va­do­rismo na so­ci­e­dade bra­si­leira. O que fra­gi­liza a es­querda é ser con­fun­dida com a ge­leia geral do lu­lismo, pagar por erros e des­vios dos go­vernos pe­tistas e ser com­pla­cente com esse es­pólio abo­mi­nável des­pe­jado nas costas dos tra­ba­lha­dores e do povo. Pre­ci­samos re­tomar a ini­ci­a­tiva da luta po­lí­tica sem re­pro­duzir erros do pas­sado re­cente.

Pre­ci­samos apostar no fu­turo com uma frente po­pular de es­querda capaz de agregar par­tidos, mo­vi­mentos so­ciais e todos que queiram cons­truir outro rumo para o Brasil. Só assim te­remos novos tempos de es­pe­rança.

http://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12300-o-que-fazer-para-revitalizar-a-esquerda


FONTE: Controversia

sábado, 13 de maio de 2017

Em defesa do materialismo histórico (*)


Por Aluizio Moreira


Tornou-se bastante comum, sobretudo no meio acadêmico, decretar-se o fim ou a falência do materialismo histórico. Os argumentos são os seguintes:

- as mudanças ocorridas no chamado mundo comunista (fim da URSS, desagregação do Leste Europeu, queda do muro de Berlim), implicariam também no fim do pensamento marxista e obviamente, por consequência, do materialismo histórico como sua parte constitutiva; 

- o materialismo histórico é portador de uma visão linear da história, segundo a qual as sociedades desenvolvem-se sempre num mesmo sentido, passando por várias etapas, necessariamente sucessivas umas às outras. 

- o materialismo histórico é entendido exclusivamente como análise econômica das sociedades, a partir das categorias modos de produção, forças produtivas, relações de produção. 

Vejamos cada uma destas argumentações 

PRIMEIRO ARGUMENTO: MUDANÇAS NO MUNDO COMUNISTA = FIM DO MATERIALISMO HISTÓRICO.

É um argumento de uma pobreza indescritível. É como se comparativamente, a crise da democracia liberal a partir de 1920 que possibilitou o advento do nazi-fascismo na Europa, pusesse fim aos princípios do liberalismo.

Aos defensores dessa brilhante conclusão, falta um mínimo de compreensão da relação teoria/prática. Desconhecem por exemplo, um princípio elementar do materialismo histórico: a prática social, que como etapa final do processo do conhecimento, deverá confirmar ou não as conclusões e generalizações teóricas elaboradas pelo pensamento. 

Todo processo de conhecimento parte da contemplação/observação viva do real para o pensamento abstrato e   deste para a prática. Posto  em   execução   o   que existia  como   pensamento abstrato, o que irá confirmar ou refutar aquele pensamento é o experimento, no caso da história, não o experimento laboratorial, mas a prática social.

Constatando-se por essa prática sua não-correspondência com o pensamento abstrato, nada mais cientifico do que reformular o pensamento e consequentemente a prática ou vice-versa, sem que isso resulte no abandono das formulações teóricas essenciais.

A instituição do socialismo na ex-URSS, e demais países do socialismo real, seguiu esse processo: tratou-se de aplicar a uma realidade, o que existia ao nível do pensamento abstrato, construído paulatinamente a partir das primeiras críticas socialistas (e não socialistas, diga-se de passagem) à sociedade capitalista dos meados do século XIX, incluindo aqui os chamados precursores do marxismo, historicamente considerados socialistas utópicos. 

Evidentemente, até a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia em outubro de 1917, nenhuma experiência de uma sociedade socialista fora possível, a não ser a Comuna da Paris de 1871 que acenou para a possibilidade dos trabalhadores assumirem o poder, abolindo os privilégios da classe dominante na época. Por outro lado, tampouco encontrava-se à disposição dos revolucionários russos, qualquer receituário elaborado pelo pensamento socialista de como seria organizada tal sociedade, a não ser princípios gerais como: a) implantação  de novos tipos de relações de produção extinguindo a propriedade privada dos meios de produção; b) estabelecimento de um novo tipo de Estado que  representasse o controle hegemônico do poder político e do poder econômico pelos trabalhadores; c) possibilidade do livre acesso das pessoas aos conhecimentos e à cultura.

Esses preceitos a serem materializados, não foram criados de forma aleatória, mas tiveram por base a crítica de uma realidade econômico-social específica: a sociedade capitalista. A apreensão dessa realidade possibilitou ao nível do pensamento abstrato, formulações de uma práxis dentro do que permitia o pensamento socialista de então (início do século XX).

Mudanças foram empreendidas, mas a prática social, em muitos casos, revelou algumas inconsistências, ou seja, a prática social não correspondeu ao pensamento abstrato. Nessa situação, o que fazer? Reorientar a prática a partir das reformulações do pensamento abstrato. Não foi o que aconteceu na Rússia após a Revolução de Outubro de 1917, apesar das políticas de nacionalização e da extinção da propriedade privada dos meios de produção, impostas pelo Estado, vistas como fundamentais e urgentes para a implantação do socialismo. Os resultados apresentados mostraram-se bastante problemáticos para aquela nova sociedade. Os dirigentes soviéticos tiveram que recuar, permitindo a entrada do capital estrangeiro, a descentralização da economia e incentivo à participação do capital privado nacional de alguns setores das produção industrial. A adoção da Nova Economia Politica (NEP), dos planos quinquenais, se resolveram alguns daqueles problemas agravados pela 1ª Guerra Mundial, como o soerguimento da economia   como um todo, deixaram outros sem serem resolvidos e até mesmo novos problemas surgiram: a burocratização, a resistência ao estabelecimento do controle operário pelos Sovietes, a centralização do poder, o gigantismo do Estado, o persistente dilema produção de bens de consumo x produção de bens de produção, o déficit habitacional. . . tudo isso contribuiu para o pioramento da situação econômico-social e política na ex-URSS, culminando com as mudanças propostas pelo Governo Gorbatchev, no sentido de reorientar os rumos daquela sociedade em direção ao socialismo.

É verdade que essas crises não se limitaram à ex-URSS, Os demais países socialistas parece que de repente “descobriram” suas próprias crises, se bem de magnitudes diferentes.  

As crises são produtos de uma realidade sob determinadas circunstancias, não são criações das ideias. Como não são as ideias que criam as realidades. Assim não é pela decretação do fim das primeiras que  os problemas das segundas serão resolvidos. Afinal não foi o marxismo enquanto sistema de ideias que produziu  a sociedade socialista do passado, mas homens reais, viventes, com todas suas potencialidades e limitações, atuando num mundo real. Não tem sentido portanto, abominar a concepção materialista das história, porque determinada realidade foi vitimada por crises ou deixaram de existir. 

SEGUNDO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRIO = VISÃO LINEAR DA HISTÓRIA

Não é de hoje que o materialismo histórico é acusado de transmitir uma visão linear da história. 

Inicialmente é necessário que entenda-se que o marxismo não deve ser visto como um sistema de ideias unívocas ou coletâneas de princípios invariáveis. Isso significa que não podemos considera-lo como um conjunto de ideias imutáveis nem como um repositório de ideias homótonas. Seria preciso que o marxismo não fosse dialético, nem refletisse um pensamento criador. A diversidade e a mutabilidade  das ideias dentro do marxismo são tão evidentes que basta ter um contato mais estreito com as produções de Kautski, Lênin, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bordiga, Gramsci, Miliband, Likacs, Goldman. . .

Não negamos que alguns marxistas deixem transparecer e até mesmo admitam uma visão linear da história, mas isso não nos autoriza considerar que o materialismo histórico, necessariamente indica essa concepção.

Muitos dos que atribuem esse viés de linearidade ao próprio Marx, referem-se quase sempre a essa passagem do Prefácio à “Contribuição à Crítica da Economia Política”: “Em caráter amplo, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade”

Ora, admitir que são ´”épocas progressivas”, não significa dizer que um modo de produção tenha sido sucedido e venha a suceder outros predeterminadamente, naquela ordem, ou que não tenha coexistido, mas é reconhecer que as forças produtivas em cada um desses modos se apresentam em níveis distintos de adiantamento umas em relações às outras, ou seja, a máquina a vapor só poderia ter surgido  com base no conhecimento cientifico e tecnológico atingido pela sociedade moderna capitalista e não no modo feudal de produção. Assim como o moinho equipado com eixo dentado é próprio da sociedade feudal e jamais teria existido sob o modo antigo ou comunal primitivo. 

No Prefácio à edição russa do “Manifesto do Partido Comunista” em 1882, Marx, após considerar como “iminente e inevitável”  o desaparecimento “da moderna propriedade burguesa”, referindo-se à Europa, se detém no caso da Rússia czarista admitindo o florescimento do capitalismo e da “propriedade territorial burguesa.”, observando que mais da metade das terras era possuída em comum pelos camponeses, e sem querer prognosticar as transformações futuras pelas quais passaria aquele pais, refere-se à possibilidade da Comuna Rural passar diretamente “a uma das mais alta forma comunista da  propriedade fundiária”, ou seguir “o mesmo processo de dissolução que encontra sua expressão” na história do Ocidente. Ou seja, enquanto no Ocidente europeu da destruição da propriedade comunal da terra na fase de transição foi uma das pré-condições para o estabelecimento do capitalismo, na Rússia, Marx não descartava a possibilidade da passagem da sociedade ainda feudal para a comunista, ou  seguir o modelo europeu.

Bastante significativa é a abordagem feita no volume 2, Tomo I, Capitulo XXV d”O Capital” no qual o filosofo alemão trata da “Teoria Moderna da Colonização”. Após reconhecer a situação colonial dos Estados Unidos na época em que o capitalismo tinha se estabelecido na Europa Ocidental, comenta a forma escravista moderna da produção econômica naquele país americano, e aponta os obstáculos para o avanço do capitalismo naquela formação social. Não há qualquer referencia a uma possível fase comunal primitiva antecedendo o escravismo da época colonial, nem tampouco faz intermediar um período feudal necessário entre aquele escravismo  a produção capitalista que se descortinava. Mostra inclusive como o processo de acumulação originária do capital nos Estados Unidos dar-se-ia de forma diferente da que se processou na Europa, sobretudo na chamada “mãe pátria”.

TERCEIRO ARGUMENTO: MATERIALISMO HISTÓRICO = ANÁLISE ECONÔMICA

Tão ferrenha quanto a crítica ao materialismo histórico como visão linear da história, é a que o concebe como análise exclusivamente econômica da sociedade.

André Piettre comete o absurdo de definir o materialismo histórico como sendo “ao mesmo tempo uma visão econômica da história e uma visão histórica da economia”. Mas ao lado dos que explicitamente assim o conceituam, há os que mesmo sem considera-lo como tal, ao discorrerem sobre o materialismo histórico, implicitamente deixam transparecer essa visão, pois reduzem suas análises exatamente aos elementos econômicos sem nenhuma referência aos elementos extra-econômicos, como se esses últimos não fizessem parte da concepção materialista da história. 

Engels em carta a Bloch, escrita em setembro de 1890, assim expõe o materialismo histórico:

A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela – as formas políticas da luta de classes, e seus resultados, as constituições que uma vez vencida uma batalha a classe triunfante redige etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro  dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se  num sistema de dogmas – também exercem  sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante. 

Para Engels, se não houvesse essa inter-relação entre os níveis econômicos, políticos, jurídicos, filosóficos, mas apenas os fatores econômicos, analisar a história “seria mais fácil que resolver uma simples equação de primeiro grau”. 

Giorgui Plekhanov, egresso do movimento narodnik (movimento camponês na Rússia), um dos introdutores do marxismo na Rússia nos finais do século XIX, também rebateu as críticas feitas ao materialismo histórico por sua suposta predominância dos fatores econômicos. Menciona na sua obra “Concepção Materialista da História”, como elementos dessa concepção, além da economia, o direito, o regime estatal, a arte, a ciência, a psicologia social, a literatura, os ritos simbólicos. . . isso escrito em 1895. 

De onde os falsificadores do materialismo histórico tiraram essa ideia de reduzir a sociedade humana ao econômico? Pelo menos na literatura marxista em princípio isso não está presente. Sobretudo entre os clássicos.
 
OBRAS CONSULTADAS

BERBECHKINA, A. et al. Que é o Materialismo Histórico? Trad. I. Chalaguina, Moscou: Progresso, 1987.
BUKHARIN, Nikolai. Tratado de Materialismo Histórico. Trad. Edgard Carone. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d
HARNECKER, Marta. Conceitos fundamentais do Materialismo Histórico. São Paulo: Global, 1981.
MARX, Karl. Contribuição da Economia Política. Trad. Maria Helena B. Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1977.
_________. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, s/d. 3 vols.
MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder, Petrópolis: Vozes, 1988.
PIETTRRE, Andre. Marxismo.. Trad. Paulo Mendes Campos, Waltensir Dutra e Maria da Glória Ribeiro da Silva, Rio de Janeiro: Zahar, 19969.
PLEKHANOV, G. A concepção Materialistas da História. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.





(*) Este artigo foi publicado originalmente sob o título "Materialismo histórico: visão econômica da História ou visão Histórica da Economia?" Campina Grande-PB,   REVISTA ARIÚS,  1995, v. 6, p.5-12

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Temer abre Brasil ao exército dos EUA



Na foto de capa da página oficial do Exército Sul dos sEstados Unidos,
(htttps://www.facebook.com/ArmySouth/), soldados norte-americanos
parecem debruçados sobre a Amazônia.

Na Amazônia, tropas dos EUA convidadas a exercício militar. Em SP, um centro de tecnologia militar norte-americano. E um “Convênio de Intercâmbios e Operações” que sequer passou pelo Congresso


Por Ricardo Senra, na BBC


Tropas americanas foram convidadas pelo Exército brasileiro a participar de um exercício militar na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia em novembro deste ano.

Segundo o Exército, a Operação América Unida terá dez dias de simulações militares comandadas a partir de base multinacional formada por tropas dos três países da fronteira e dos Estados Unidos.

Descrita pelas Forças Armadas como uma experiência inédita no Brasil, a base internacional temporária abrigará itens de logística como munição, aparato de disparos e transporte e equipamentos de comunicação, além das tropas. O Exército afirma que também convidou “observadores militares de outras nações amigas e diversas agências e órgãos governamentais”.

A operação é parte do AmazonLog, exercício militar criado pelo Exército brasileiro a partir de um atividade feita em 2015 pela Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Hungria, da qual o Brasil participou como observador.

À BBC Brasil o Exército brasileiro negou que a atividade sirva como embrião para uma possível base multinacional na Amazônia, como aconteceu após o exercício da Otan citado como base para a atividade.

“Não. Ao contrário da Otan, a qual é uma aliança militar, o trabalho brasileiro com as Forças Armadas dos países amigos se dá na base da cooperação”, responderam porta-vozes do Exército.

“Com uma atividade como essa, busca-se desenvolver conhecimentos, compartilhar experiências e desenvolver confiança mútua”, afirmou a corporação.

Apesar do ineditismo do comando multinacional na região amazônica, esse não é o primeiro exercício mútuo entre as Forças Armadas de Brasil e EUA no país. No ano passado, por exemplo, as Marinhas das duas nações fizeram uma atividade preparatória para a Olimpíada no Rio de Janeiro, envolvendo treinamentos com foco antiterrorismo.

Em 2015, um porta-aviões americano passou pela costa do Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro para treinamento da Força Aérea Brasileira (FAB).

Entre as metas da operação prevista para novembro, segundo o Exército brasileiro, estão o aumento da “capacidade de pronta resposta multinacional, sobretudo nos campos da logística humanitária e apoio ao enfrentamento de ilícitos transnacionais”.

‘Reaproximação’

A operação vem no esteio de uma série de novos acordos militares pelas Forças Armadas de Brasil e Estados Unidos e visitas de autoridades americanas a instalações brasileiras com o objetivo de “reaproximar” e “estreitar” as relações militares entre os dois países.

Em março, o comandante do Exército Sul dos Estados Unidos, major-general Clarence K. K. Chinn, foi condecorado em Brasília com a medalha da Ordem do Mérito Militar. O comandante americano visitou as instalações do Comando Militar da Amazônia, onde a atividade conjunta será realizada em novembro.

De acordo com a Defesa dos Estados Unidos, o Exército Sul é responsável por realizar operações multinacionais com 31 países nas Américas do Sul e Central.

Um dia antes de o Exército americano inaugurar um centro de tecnologia em São Paulo para “desenvolver parcerias com o Brasil em projetos de pesquisa com foco em inovação”, em 24 de março, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês.

Na ocasião, o secretário Flávio Basilio, da Secretaria de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa (Seprod) afirmou que o documento funciona como “base para se estabelecer qualquer tipo de cooperação bilateral com os Estados Unidos”.

Acordos de intercâmbio como esse não precisam de aprovação do Congresso Nacional. “É mais um passo no sentido de nos reaproximar dos americanos, possibilitando parcerias importantes na área tecnológica que representarão um incentivo importante para a nossa Base Industrial de Defesa e para o País como um todo”, disse o secretário.

Em 3 de abril, o Ministério da Defesa anunciou em evento na embaixada americana que o Brasil e os Estados Unidos desenvolverão “um projeto de defesa” em conjunto.

O ministério não respondeu aos pedidos de entrevista da BBC Brasil para comentar os acordos fechados com os Estados Unidos e os detalhes sobre o projeto bilateral.

Já a embaixada dos Estados Unidos em Brasília disse que o país “está satisfeito de ter sido convidado junto a outras nações parceiras regionais para participar” do exercício na Amazônia e que “busca expandir e aprofundar parcerias de defesa com o Brasil”.

“Durante o último ano, nós finalizamos uma série de compromissos-chave relacionados a Defesa (entre EUA e Brasil)”, afirmaram porta-vozes da embaixada americana. “Olhando para o futuro, outros acordos estão em discussão, incluindo suporte logístico, testagem e avaliação em ciência e tecnologia e trocas científicas.”

Em outubro, haverá um novo encontro sobre a indústria de Defesa dos dois países, em Washington. O Exército brasileiro também trabalha para organizar a ida de um batalhão de infantaria do Brasil para treinamento uma brigada do Exército americano em Fort Polk, na Lousiana, no segundo semestre de 2020.

Tríplice fronteira

A base da atividade será a cidade de Tabatinga (AM), que faz fronteira com Letícia (Colômbia) e Santa Rosa (Peru).

A BBC Brasil visitou a região no início desse ano – na ocasião, militares e policiais federais disseram que não são capazes de evitar a realização de atividades ilícitas como tráfico de armas e drogas pelos imensos rios da região.

Mas apesar de citar crimes transfronteiriços nos documentos do Amazonlog, o Exército afirmou que o foco da atividade é de preparação para situações humanitárias.

Questionada pela reportagem sobre como as Forças Armadas dos EUA poderiam apoiar o Brasil em áreas como violência e tráfico de drogas, armas e pessoas, a embaixada americana afirmou que “o Brasil é um parceiro confiável e respeitável”, que as forças armadas dos dois países “têm áreas de conhecimento e experiência que compartilham rotineiramente umas com as outras” e que “a maioria das atividades bilaterais de cooperação em defesa entre nossas forças armadas são trocas entre especialistas”.

“É um exercício inédito no âmbito da América do Sul. É a primeira vez que vamos montar uma base logística internacional”, diz o general Theofilo Gaspar de Oliveira, responsável pelo Comando Logístico da Força, em Brasília, e um dos organizadores do AmazonLog.

“Um dos objetivos é fazer uma fiscalização maior na região e criar uma doutrina de emprego para combater os crimes transfronteiriços, que afetam aquela região na famosa guerra de fronteira que hoje alimenta a nossa guerra urbana existente nos grandes centros”, afirma o general, em vídeo promocional do evento.

Análise

Para o cientista político João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, “a aproximação do Exército brasileiro ao dos Estados Unidos sinalizaria uma mudança de postura entre os dois países, que agora têm novos presidentes”.

“Esta maior aproximação seria uma ruptura do que vem acontecendo desde 1989, que é um afastamento dos EUA pelo Exército do Brasil”, diz Martins Filho.

“No fim da Guerra Fria, o Brasil se deparou com um país (EUA) que era aliado estratégico e que de repente começou a agir de forma totalmente independente, como superpotência única. Isso provocou uma reação de hiperdefesa da Amazônia e de afastamento.”

Ele cita o acordo para a construção de submarinos com a França em 2011 e a compra de caças suecos em 2013 como exemplos desse afastamento e diz que, por ora, os anúncios entre as Forças Armadas brasileiras e americanas não devem ser “superestimados”.

“Do discurso para a prática há sempre um intervalo”, diz.

Fundador e líder do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Unesp e coordenador de Segurança Internacional, Defesa e Estratégia da Associação Brasileira de Relações Internacionais, o filósofo Héctor Luis Saint Pierre “diverge gentilmente” do colega.

Saint Pierre cita a atenção dos Estados Unidos sobre a situação política na Venezuela – Donald Trump citou o país em conversas com Michel Temer e com os presidentes da Argentina, Peru e Colômbia.

“Há um respeito na América do Sul pela escola militar brasileira. Então, o Brasil é um parceiro estratégico para a formação doutrinária dos militares do continente. Se os EUA têm a simpatia do Exército do Brasil, é mais fácil espalhar sua mensagem entre os militares sul-americanos”, diz.

“Uma alternativa a ser pensada seria uma intenção dos EUA de quebrar a expectativa de uma parceria sul-americana neste momento político”, diz. “A Venezuela é uma problema quase de honra para os Estados Unidos.”

O especialista também cita o crescimento da China como produtor de equipamentos militares e armamento.

“Há uma grave preocupação nos EUA com o incremento do comércio da China com a América Latina também em termos de armamento. Os EUA gastaram US$ 650 bilhões com Defesa – a China gastou menos de 10% disso, mas ainda assim já esta produzindo porta-aviões com bom nível tecnológico. Se os Estados Unidos conseguem se aproximar o Brasil para sua zona de influência, eles estancam este prejuízo”, afirma.

Para o professor, a aproximação americana também poderia ser motivada por interesses econômicos.

“Tenho notado oficiais defendendo a tese de que não precisamos de autonomia tecnológica nas Forças Armadas se podemos contar com parcerias com países como os Estados Unidos. Normalmente se imagina que um oficial militar, do país que for, seja um nacionalista. Mas essa é uma perspectiva liberal nas Forças Armadas que vem ganhando força.”

O professor explica: “Hoje a questão estratégica está subordinada ao negócio. A indústria do armamento é a que mais floresce no mundo. Não é preciso uma guerra: a ameaça de guerra já é suficiente para mover este tipo de negócio. Muitas atividades militares, inclusive, são muito mais guiadas pelos negócios militares do que por uma lógica política”, afirma.


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