domingo, 29 de novembro de 2015

Aumento dos homicídios contra mulheres negras é fruto de racismo institucional


Adital


Segundo o Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil, entre os anos 2003 e 2013, o número de homicídios contra mulheres negras passou de 1.864 para 2.875, aumentando 54%. No mesmo período, os assassinatos contra mulheres brancas caíram 9,8%, de 1.747 para 1.576. Quando comparados, os números totais revelam que as mulheres negras são 182% mais vitimadas.

Para Naiza Santos, membro de base da Comissão Ampliada de Ética e Direitos Humanos do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo (Cress-SP), os dados revelam uma realidade brutalmente desigual, baseada em fatores como discriminação cumulativa, conservadorismo e racismo institucional. Ainda assim, a assistente social ressalta que a questão histórica é indissociável.


"Estamos falando de pessoas que são discriminadas duplamente, por serem mulheres e por serem negras. Soma-se a isto a omissão do Estado na efetividade das políticas públicas, especialmente nas políticas de proteção às mulheres em situação de violência e a operacionalização do racismo institucional, presente em seus órgãos públicos, ao dispensar tratamento desigual em desfavor da população negra, destacando-se, neste caso, as mulheres negras. Esses fatores, associados à sociedade machista e conservadora, diminuem ainda mais as oportunidades de empoderamento dessas mulheres”, observa Naiza.

A diferença estatística "gritante”, para ela, está diretamente relacionada a isso, já que uma mulher em situação de vulnerabilidade tem muito mais dificuldade para sair de uma situação de violência, e o poder público desencoraja a mulher em prosseguir com a denúncia. "As mulheres negras estão na base da pirâmide social, com os piores empregos e sofrendo todo tipo de discriminação, mesmo considerando diferentes níveis de formação. Nessa situação, acabam reféns das agressões, que vão se agravando e chegam aos dados apresentados no Mapa, os quais caracterizam o feminicídio, termo defendido pelo movimento de mulheres e, recentemente, inserido na legislação penal para classificar a violência de gênero que resulta em morte das mulheres”, ressalta Naiza.

Contexto histórico

A assistente social da base do Cress-SP ainda aponta que a realidade histórica do Brasil continua a aprofundar o problema do preconceito e da discriminação racial. Para ela, os séculos de escravidão deixaram uma marca profunda em na história do país e os reflexos são sentidos até hoje, não apenas no racismo enraizado, mas na profunda desigualdade social e racial.




Essa diferenciação pode ser vista em dados, como o deste mapa de violência contra as mulheres, nas diferenças salariais entre brancos e negros para o mesmo cargo e no nível de escolarização; nos altos índices de jovens negros assassinados por agentes do Estado; na população carcerária predominantemente negra; e no acesso desigual à educação, principalmente de nível superior em instituições públicas.

"Historicamente, o corpo negro foi violado. Ainda nos dias de hoje, isso acontece. Os dados de violência contra as mulheres negras, juntamente com os dados de mortalidade da juventude negra, infelizmente, comprovam essa afirmação”, diz Naiza Santos.

Legislação de proteção

Naiza defende que, além das ações emergenciais de proteção, importantes para o fim desse ciclo de morte e discriminação, cabe ao Estado fazer valer a legislação de criminalização do racismo, já presente desde a Constituição Federal de 1988, bem como a Lei Maria da Penha. A assistente social explica que é preciso um sistema judicial que acompanhe e valorize as denúncias de racismo e violência contra a mulher, protegendo a vítima e responsabilizando adequadamente as demonstrações de racismo, discriminação e violência de gênero.


FONTE: Adital

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Apesar de tudo, o livro continua a resistir






Incluir na "ESTANTE"


Por Nadine Bayle e Alain Beuve Méry


A queda no gosto pela leitura, a chegada de novos intermediários e a multiplicação de conteúdos gratuitos alimentam a ideia de uma crise permanente. Mas as editoras e as livrarias resistem

Nesta semana, mais de 200 editoras francesas estarão presentes na Feira do Livro de Frankfurt. Com a chegada de centenas de novos romances nas prateleiras das livrarias e a corrida pelos prêmios do outono, esse é um daqueles rituais do mercado literário que nada parece conseguir mudar. Seria um paradoxo, neste momento em que as grandes livrarias e bibliotecas do mundo estão na internet e onde uma obra pode custar mais barato que um café? A seguir, os três desafios que estão mudando o mercado editorial.

Enfrentar a deserção dos leitores

Livraria Delamain, em Paris, a mais antigas da França, foi
ameaçada de fechamento
Entre 1973 e 2008, a porcentagem de pessoas com mais de 15 anos que haviam lido 20 livros ou mais durante o ano caiu de 28% para 16%, segundo a pesquisa “Práticas culturais dos franceses” do Ministério da Cultura. No total, 53% dos franceses declararam espontaneamente que haviam lido poucos livros ou nenhum na ocasião da última pesquisa sete anos atrás. “O livro atualmente faz parte da economia da atenção”, um artigo raro, resume o economista cultural François Moreau, professor na Universidade Paris-13.

Seja pela concorrência com outros tipos de lazer, seja pela falta de tempo, pela dessacralização do livro ou pelo fracionamento da leitura nas telas, desde os anos 1980 cada nova geração tem tido cada vez menos leitores do que a anterior. E parte dos leitores fracos e médios desiste a partir da adolescência. Nos meios populares, “certas formas de romances, como histórias românticas, ainda funcionam bem entre leitoras mulheres, mas o livro não oferece mais atrativo para os homens”, constata Olivier Donnat, que coordena a pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses no Ministério da Cultura. “O romance policial se elitizou e passamos de SAS [série popular de livros de espionagem] para Fred Vargas em 15 anos.”

Já o livro digital não criou novos leitores, e por isso as editoras precisam encontrar meios de crescimento através da diversificação, ainda que para isso tenha de comprar outras editoras. Após a compra da Flammarion, em setembro de 2012, Antoine Gallimard exemplificou esse princípio no programa Télérama de 22 de março de 2014. Michel Onfray, que criticou Freud e Sartre, é publicado pela Flammarion, não pela Gallimard, editora desses dois autores. O que me interessa é ter, ao lado da Folio, uma coleção de bolso popular como a “J’ai lu”, é ter Casterman, pois os quadrinhos são um setor em plena expansão, e ter um belo departamento de didáticos, complementar ao nosso…

Outro meio de combater a evasão dos leitores: “Todo mundo tem procurado mercados fora das livrarias”, conta Phi-Anh Nguyen, agente há 20 anos que trabalha especialmente para a editora especializada em livros juvenis e quadrinhos Sarbacane. “Nossos livros ainda estavam em fase de layout em nosso primeiro Salão de Frankfurt, em 2002! Desde o início tínhamos ciência de que a cessão de direitos de nossas obras era necessária para as finanças da editora”, confirma Frédéric Lavabre, fundador da Sarbacane. Em 2014, o faturamento das editoras associado às cessões de direitos (inclusive formato de bolso) avançou 5,5%, ao passo que as vendas de livros recuavam (-1,7%), segundo o Sindicato Nacional dos Editores (SNE).

Antes mesmo de seu lançamento na próxima semana, o novo “Astérix”, “O Papiro de César” (com uma tiragem de 1,8 milhão de exemplares), “suscitava expressões de interesse muito constantes, e não somente para o cinema”, afirma a Hachette. “Também há os produtos, as camisetas, quando não os parques temáticos…”

Neste momento, todos os olhares estão voltados para a televisão e o cinema, grandes consumidores de conteúdo. Cinco editores voarão para Los Angeles no dia 9 de novembro para o próximo evento organizado pelo setor, a “Shoot the Book”. E “foi em um avião que Nicole Garcia descobriu o ´Mal de Pierres´, de Milena Agus, que um amigo havia lhe emprestado e a partir do qual ela vai fazer um filme com Marion Cotillard, produzido pela Le Trésor”, conta Liana Levi, cuja pequena editora que leva seu nome e tem cerca de 20 lançamentos por ano terá três de suas obras adaptadas para o cinema em 2016. “Isso é algo inédito para nós!” Tanto que, como observa Yves Pagès, diretor da Editions Verticales, “para certos autores, ver suas obras no cinema é uma consagração maior do que vê-las nas livrarias!”.

Resistir à máquina da Amazon

Eles vêm de outros setores como comunicação, marketing, gestão, estratégias… Benjamin Cornet faz parte desses novos livreiros “nascidos” pós-Amazon. Depois de uma carreira em consultoria e um estudo de mercado, ele abriu há dois anos uma loja de 120 m² em Boulogne-Billancourt, chamada Les Mots et les Choses [As palavras e as coisas]. “Todos os dias clientes me agradecem por eu ter aberto uma loja aqui, dizendo que pararam de comprar pela internet”, ele conta. “Meu faturamento só aumenta.”

No último ano, 3.200 livrarias independentes constataram como ele que os clientes estão voltando. No final de junho, o faturamento delas teve um aumento de 5% a 9% dependendo de seu porte, em relação ao mesmo período em 2014, segundo os indicadores da Livres Hebdo. “O que chama a atenção é que o livro é não somente a indústria cultural mais antiga, mas é também a mais sólida”, observa Françoise Benhamou, especialista em economia cultural e autora de “Le livre à l’heure numérique” (“O livro na era digital”, em tradução livre, 2014). “Ele tem uma força silenciosa que se baseia na leitura pública, na lei do preço único do livro e em um imposto sobre consumo reduzido que se aplica tanto a Grey quanto a um título confidencial, e tanto à versão impressa quanto à digital.”

Isso faz da França, comparada com outros países, uma fortaleza para a Amazon. A cada nova ameaça, o governo saca o cartão vermelho, como em outubro de 2014: entre a redução de 5% sobre o preço de venda permitido pela lei Lang e os fretes gratuitos, agora é preciso escolher. “Atualmente custa menos comprar nas livrarias com um cartão de fidelidade”, comemora Guillaume Husson, delegado-geral do Sindicato dos Livreiros Franceses (SLF). “Isso funcionou e a Amazon não tem mais 15% de crescimento por ano.”

Contudo, a gigante americana das vendas online, com mais de 400 mil referências em francês em seu site, aberto em 2000, e seu e-reader Kindle, que é vendido desde o final de 2012 na França, deverá se tornar a maior vendedora de livros do país “em 2016 ou no mais tardar em 2017”, prevê a consultoria Xerfi. “Seu faturamento no setor de livros está se aproximando do da Fnac, com cerca de 500 milhões de euros (R$ 2,2 bilhões)”, explica o pesquisador editorial, Alexandre Masure. Dois terços das vendas online de livros físicos na França e metade das compras de e-books seriam feitos através do site da Amazon francesa.

“Isso não faz da Amazon um ator dominante”, relativiza o professor da Universidade Paris-13 François Moreau. “A venda pela internet é fragmentada, e o e-book continua sendo secundário. Uma das forças do livro é que ele consegue manter uma rede de livrarias ativa e viva. Um mundo no qual a Amazon acabasse com todas elas provavelmente seria muito diferente.”

Todos se lembram das livrarias independentes americanas. Esmagadas entre 2009 e 2011, quando as vendas de e-books estouraram beneficiando as lojas virtuais, elas tiveram sua revanche, tendo agora 567 pontos de venda a mais do que há cinco anos, e 302 novos membros (de 1.712), segundo a American Booksellers Association. Todas optaram por se concentrar nas vendas, em eventos e nos serviços em torno do livro físico.

Essa abordagem é bastante comum deste lado do Atlântico. Somente 200 livrarias francesas adotaram a venda de e-books, de forma direta no caso das maiores, ou através de plataformas. Não haveria um “progresso notável dessas vendas”, segundo o SLF. “A Fnac, ‘agitadora cultural’, havia forçado os livreiros a saírem de trás de seus balcões, e a Amazon está nos obrigando a exercer nossa profissão, que é a venda de livros físicos”, acredita Georges-Marc Habib, diretor da livraria parisiense L’Atelier.

Por duas vezes, em 2014 e 2015, a Associação das Livrarias Informatizadas (ALire) viajou para os Estados Unidos para buscar inspiração nas boas práticas dos americanos, em especial o sistema de divulgação dos catálogos das editoras, relata um de seus fundadores, François Millet. E assim como suas versões americanas, as grandes editoras francesas investiram no apoio logístico e na distribuição. A número um francesa, Hachette Livre, há dois anos criou uma “entrega em dois dias após feito o pedido para permitir que nossos clientes livreiros respondam mais rápido”. Todos possuem máquinas de impressão por demanda em suas filiais. “Assim como no setor automobilístico onde os carros só são fabricados depois de terem sido comprados, a solução perfeita consistirá em acrescentar à oferta de uma livraria um livro que será impresso assim que seja feita uma encomenda”, explica Eric Lévy, diretor de operações do grupo Editis. “Até 2017, esse tipo de produção será possível na Europa.”

Ironicamente, a Fnac, cuja política de descontos havia irritado os varejistas e provocou a lei Lang em 1981, hoje é a mais bem posicionada para resistir à Amazon. Depois de ter reduzido suas lojas dedicadas aos livros, ela apostou na associação de seu website a suas 104 lojas para encomendas e entregas. “É uma força que a Amazon não tem”, ressalta Coralie Piton, diretora do setor de livros da Fnac. “O livro não é um produto chamariz para nós, ele está presente em um de cada dois carrinhos em nossas lojas e na internet e está no centro de nossa relação com os clientes.”

Conviver com a gratuidade

A foto mostra um livro abandonado sobre um banco à margem de um rio em Loiret, esperando para ser pego por alguém que esteja de passagem. Assim como seu antigo proprietário, mais de 15 mil pessoas participaram no mês de setembro da segunda campanha “Esqueça um livro em algum lugar” lançada no Facebook. O espírito do “bookcrossing”, movimento que surgiu nos Estados Unidos e consiste em “libertar” livros etiquetados como pombos-correios para que seu percurso possa ser acompanhado, pegou na França.

Não havia mais nada de novo a dizer sobre esse tipo de troca, até que atores da internet entraram na prática. Com eles, a doação e a troca praticadas desde sempre entre amigos, vizinhos e familiares poderiam mudar de escala e de natureza. O exemplo mais recente é a startup Booxup, que em setembro levantou 310 mil euros (R$ 1,36 milhão) para melhorar seu serviço de compartilhamento de livros impressos e de encontro entre leitores, baseado na geolocalização. Ela quer introduzir a publicidade, como nos pacotes de leitura ilimitada chamados “freemium”, e vender livros.

O debate contra ou a favor da “livre” circulação do livro, que se divide quanto ao compartilhamento das receitas entre autores, editoras e livrarias, não impressiona Guillaume Decifre. “São brigas da retaguarda”, afirma o presidente do grupo Decitre, que instalou uma dezena de caixas de trocas de livros em 15 meses na região de Lyon.

O “totalmente gratuito” é característico de nossos tempos, mas como não deixar que ele destrua o modelo econômico do livro, como no caso da música e dos vídeos? Mais da metade dos leitores digitais franceses experimentam ou montam bibliotecas de clássicos com obras em domínio público, sem falar na pirataria. Efetivar vendas é um problema tão antigo quanto o comércio. “Poder folhear os livros aumenta em 10% a 15% as vendas”, segundo a livraria digital Kobo. Acima de tudo, “ao oferecer um volume, um capítulo, uma página, é possível criar comunidades de leitores que vão conversar através da internet e permitir uma divulgação comercial mais ampla”, observa Christophe Evans, pesquisador de sociologia no departamento de estudos e pesquisas da biblioteca pública de informações do Centre Pompidou.

Essa prática, já bem conhecida dos autores autopublicados que a usam para criar seu público, tem sido adotada para livros românticos, histórias em quadrinhos e literatura para jovens adultos. A editora J’ai lu, por exemplo, recrutou em fevereiro leitoras para Jennifer L. Armentrout, publicando gratuitamente em formato digital sua última obra, “Eternellement”. Eternamente… um título promissório para todo o setor editorial.


http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2015/10/14/apesar-de-tudo-o-livro-continua-a-resistir.htm


domingo, 22 de novembro de 2015

Em marcha histórica, mulheres negras atropelam racistas em Brasília


 Por Lidyane Ponciano


O dia 18 de novembro de 2015 foi um marco na história pela igualdade racial no Brasil. Milhares de mulheres negras, quilombolas, indígenas e yalorixás abriram a primeira edição da Marcha das Mulheres Negras, em Brasília, e denunciaram na capital federal a intolerância religiosa e o racismo.

Diante do Congresso Nacional, mesmo com provocação dos golpistas que pedem a volta da ditadura militar e estão acampados na Esplanada dos Ministérios, a marcha não se intimidou e seguiu em resistência. O evento teve início às 9h, no Ginásio Nilson Nelson, e seguiu até o Congresso Nacional. Eram turbantes, tranças e as cores da África, que marcavam a identidade da manifestação e ajudavam a dar corpo ao grito pelo fim do extermínio da juventude negra, contra a maioridade penal, pelos direitos das mulheres e por mais políticas públicas voltadas para negras.

A marcha também homenageou importantes personalidades negras, como Dandara, Zumbi dos Palmares, Nelson Mandela, Carolina de Jesus e Lélia Gonzalez. Por volta das 13h53, as mulheres ocuparam o Congresso Nacional, aos gritos de "Fora, Cunha” [em relação ao presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha – Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB – Rio de Janeiro – acusado de corrupção e desvio de dinheiro público para contas na Suíça, além de promover a aprovação de pautas conservadoras e contra os direitos humanos no Congresso].

Dona Aideê Nascimento, 61, candomblecista, do quilombo de Portão, município baiano, está na luta contra a discriminação há vários anos, mas levou para a marcha esperanças de dias melhores. "Aos poucos, estamos conseguindo a nossa fala e enfrentando a intolerância de todo tipo. Inclusive, nos terreiros e nas comunidades quilombolas, onde ainda não conseguimos viver com dignidade", disse.

A maranhense Amanda Costa, 21, viajou 30 horas e relata que foi vítima de racismo a caminho da marcha. Na estrada, ela saiu para almoçar com amigas e, ao reclamar da comida que estava estragada, a dona do restaurante chamou todas de macacas e que não deveriam estar ali.

"Fomos reclamar como consumidoras e ela se irritou. Mas viemos para cá lutar contra essa senhora e contra a sociedade racista. Por mais que não admitam que são racistas, quando olham um menino negro na rua, atravessam de pista. É racista quando a polícia só aborda homens negros. Sou moradora da periferia de São Luís [Estado do Maranhão] e vejo que os policias não respeitam nem os estudantes vindo da escola”, ressalta Amanda.

A marcha foi uma iniciativa de diversas organizações, entre elas a CUT [Central Única dos Trabalhadores] e coletivos do Movimento de Mulheres Negras e do Movimento Negro, além de contar com o apoio de importantes intelectuais, artistas e ativistas.


Durante o percurso, as mulheres negras seguiam cantando músicas afro e reverenciando suas ancestralidades, em defesa da cidadania. O evento também protestou contra os projetos de lei que restringem os direitos das mulheres, sobretudo, das negras, de autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. "Ô Cunha, cadê você, eu vim aqui só pra te prender”, "ai, ai, ai, ai, empurra o Cunha que ele cai”, fazia parte do coro da manifestação.

Para Andreia Roseno, da Marcha Mundial de Mulheres, a manifestação faz história no país, porque mostra que o silêncio não é mais uma realidade para elas. "Não queremos mais conviver com as opressões do racismo, do patriarcado e com capitalismo, que coloca a nossa vida de forma mercadológica”.

Lara Silva, 22, do Rio de Janeiro, também foi marchar contra as opressões apontadas por Andreia. "Estamos aqui contra o machismo, pelo bem viver, por mais condições de igualdade na saúde para nós, as mulheres negras são as que mais sofrem com a violência obstétrica”.

Quem caminhava por dentro da marcha percebia a diversidade de línguas e de culturas representadas. A indígena Thiaia Ramos, 32, da tribo Pato do Hahahahi, foi mostrar que as mulheres negras indígenas não podem mais serem invisibilizadas. "Estamos lutando por um só objetivo porque somos um povo só e falamos a mesma língua. Sempre dizem que nós (indígenas) só comemos abóbora”, afirma.

No país de maior população negra fora da África, a falta de representatividade de negros na mídia, na política e no Judiciário também foram temas de manifestação.

Ainda durante o ato, a secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT, Maria Julia Nogueira, afirmou que a marcha é a realização de um sonho e de uma luta histórica da central. "A CUT diz que é preciso não aceitar mais o racismo. A democracia só vai se consolidar quando a sociedade não permitir o racismo. Vamos dizer a esse Congresso machista e racista que a discriminação racial não dá mais nesse país”.


Para a vice-presidenta da CUT, Carmen Foro, a Marcha das Mulheres Negras escreveu uma página da história no país. "Nós queremos, agora, que o Brasil pegue o que nós produzimos e acumulamos ao longo dos séculos, e transforme em política. Temos que enfrentar, de fato, o racismo, a violência e que nos reconheçam enquanto parte de quem produz a riqueza nesse país”, definiu.

"Hoje, as mulheres negras mostram para o mundo e para o Brasil a nossa força e resistência. Dizemos ainda que queremos estar em todos os lugares. É importante marchar pela implementação de políticas públicas para as negras”, afirmou Nilma Lino Gomes, ministra das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos.

Bastante emocionada, a deputada federal Benedita da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT – Rio de Janeiro) afirmou que era um momento histórico porque a marcha traz a marca e o suor de cada movimento, das donas de casa, que conseguiram adquirir um diploma universitário.

"Não somos uma qualquer. Estamos conseguindo o nosso espaço e marchando para dizer: não aos projetos que tiram os direitos das mulheres; não à matança de jovens negros; não à violência contra as mulheres. Basta de intolerância! Não queremos retrocesso, mas queremos, sobretudo, defender o Estado Democrático de Direito”.


FONTE: Adital

sábado, 14 de novembro de 2015

Brasil ainda usa agrotóxicos já proibidos em outros países


Análise de substâncias banidas na Europa e nos EUA se arrasta há anos na Anvisa. Agência proibiu cinco delas e restringiu o uso de duas, mas várias outras seguem liberadas.



Uma lista extensa de agrotóxicos utilizados na agricultura brasileira é proibida na União Europeia (UE) e nos Estados Unidos. Além disso, o Brasil é, desde 2008, o maior consumidor de pesticidas do mundo, o que levou o jornal francês Le Monde a chamar, em tom irônico, os pesticidas de o "tempero preferido" dos brasileiros.

São permitidos para uso nas lavouras brasileiras 434 ingredientes ativos de agrotóxicos. Entre os 50 mais utilizados, 22 são proibidos em países europeus. Entraves políticos e jurídicos são os principais fatores para que substâncias perigosas continuem a ser empregadas nas plantações do Brasil.

Em 2008, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a reavaliar o uso de 14 substâncias, utilizadas na fabricação de mais de 200 agrotóxicos. Segundo avaliações internacionais, elas podem causar câncer, má formação fetal, problemas pulmonares e distúrbios hormonais.

Dessas 14 substâncias, até agora apenas cinco foram banidas (cihexatina, endossulfam, forato, metamidofós e triclorfom), e duas foram mantidas no mercado, mas com restrições de uso (acefato e fosmete).

"Poucas foram proibidas porque a indústria do agrotóxico, o Ministério da Agricultura e os fazendeiros fazem pressão para o processo de revisão não andar", critica Wanderlei Pignati, pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso. "Fabricantes de alguns produtos entraram na Justiça e conseguiram liminares para parar a análise."

A Anvisa é responsável por avaliar se a quantidade de agrotóxico presente nos alimentos é prejudicial à saúde humana. O órgão pode requerer mudanças na formulação e no método de aplicação, restringir o uso ou mesmo suspender o registro do agrotóxico.

"A proposta de nós, pesquisadores, era revisar inicialmente esses 14 para que depois fossem avaliadas outras 50 substâncias, algumas até mais perigosas do que as que estão na lista atual", afirma Pignati à DW Brasil.

Um pesquisa da Anvisa mostrou que 31% dos alimentos típicos da cesta básica comercializados no Estado de São Paulo em 2014 tinham agrotóxicos proibidos ou em quantidade além da permitida. Entre as amostras de alface analisadas, por exemplo, 60% estavam insatisfatórias. Já com o pimentão, esse número chegou a 90%.

Como funciona a regulamentação pelo mundo

Na União Europeia (UE), cada país-membro possui regulamentações próprias, mas o que prevalece são as regras determinadas pelo bloco. A Alemanha, por exemplo, baniu o uso da substância endosulfan em 1991. Pouco tempo depois, a UE também adotou a proibição, fazendo-a valer em todos os seus países – no Brasil, o ingrediente só foi banido em 2013.

Nos Estados Unidos, quem controla a regulamentação dos agrotóxicos é a Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês). Recentemente, o órgão reavaliou quase todos os ingredientes ativos usados na fabricação de pesticidas. No país, mais de 60 tipos de pesticidas são proibidos.

No Brasil, a responsabilidade pelos agrotóxicos fica nas mãos de três órgãos federais: Ministério da Agricultura, Anvisa (atrelada ao Ministério da Saúde) e Ibama (do Ministério do Meio Ambiente).

Para uma substância ser registrada, e com isso ganhar autorização de comercialização e uso em território brasileiro, ela precisa passar pelo aval dessas três entidades – o Ministério da Agricultura analisa a importância agronômica do pesticida; a Anvisa avalia seus efeitos tóxicos sobre a saúde humana; e o Ibama, os efeitos sobre o meio ambiente.

"Observa-se, porém, uma grande deficiência do Estado em controlar o uso de agrotóxicos, além de uma grande dificuldade em retirar os produtos do mercado depois que eles ganham o registro", afirma Marcia Sarpa de Campos Mello, toxicologista do Instituto Nacional do Câncer (Inca).

"Isso acontece porque o registro de agrotóxicos não tem validade, é tido como ad eternum", explica a especialista. No Brasil, o registro de um pesticida é valido por tempo indeterminado – uma reavaliação pode ocorrer quando há alterações de riscos à saúde ou quando o ingrediente é banido em outros países, por exemplo.

Nos Estados Unidos, por outro lado, o período da licença de um agrotóxico é de 15 anos e, na UE, de apenas 10 anos. Ambas as legislações exigem que seja provado que não há nenhum dano ao meio ambiente e à saúde humana.

"Em outros países, após um tempo de registro, as empresas devem apresentar reavaliações toxicológicas e novos estudos para provar novamente que o produto é seguro. Infelizmente, o mesmo não ocorre no nosso país", diz Mello.

No Brasil, segundo a toxicologista, as empresas fabricantes de pesticidas devem apresentar estudos que provem a segurança desses produtos para a saúde, mas apenas na ocasião do registro. Além disso, "essas pesquisas são realizadas usando animais de laboratório, como ratos, camundongos e coelhos".

Riscos à saúde

Os agrotóxicos, como o nome já diz, são substâncias que carregam riscos à saúde, tanto para os trabalhadores expostos a essas substâncias quanto para os consumidores de alimentos tratados com elas. Câncer, impotência, depressão e suicídio são algumas das possíveis consequências.

Por ano, cada brasileiro consome, em média, cerca de cinco litros de pesticidas, afirma a toxicologista do Inca, com base em dados do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag).

Segundo o Ministério da Saúde, foram registradas, entre 2007 e 2014, 34 mil notificações de intoxicação por agrotóxicos no Brasil – pesquisadores estimam, porém, que para cada caso registrado, outros 50 ocorrem sem notificação, ou com notificação errônea.

Um estudo realizado pelo Inca no município de Nova Palma, no Rio Grande do Sul, concluiu que a substância paraquate está associada ao desenvolvimento de câncer de pele em trabalhadores rurais. O herbicida, utilizado em cerca de 25 lavouras brasileiras, é proibido na Europa, mas permitido nos EUA. No Brasil, está em processo de reavaliação.

Confira abaixo alguns agrotóxicos proibidos em outros países que ainda são utilizados no Brasil.





















terça-feira, 10 de novembro de 2015

Enem, Educação, Hipocrisia




Grita contra "feminismo" no exame revela: Brasil consagra Direitos Humanos em dezenas de pactos,
mas rejeita-os na prática quando se trata de defender grupos vulneráveis



Por Mariana Vilella, Renata Ferraz e Vanessa Pinheiro *


Em 25 de outubro, o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM teve como tema de redação: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Em uma tarde, milhões de jovens brasileiros viram-se instados a refletir e dissertar sobre esse tema, caro à sociedade, dados os alarmantes números da violência doméstica, sexual, psicológica, obstetrícia, dentre outras, que atingem a mulher brasileira. A escolha gerou polêmica.

Muitos mostraram-se contrários ao tema e, ainda, criticaram o MEC por conta de um viés feminista. A hashtag #enemfeminista foi criada e imensamente utilizada por defensores e críticos da prova.

O Enem foi ideológico? Foi de esquerda? Foi correto? As avaliações devem medir critérios como respeito aos direitos humanos ou capacidade de refletir sobre os problema políticos e sociais nacionais?

O perigo é pensar que começamos essa conversa do zero. Achar que essa seja uma questão nova. É claro que a democracia pressupõe a possibilidade de refletirmos sobre as escolhas que o país fez e faz. Mas saber de onde partimos e com o que já nos comprometemos é fundamental.

Quanto ao tema da redação do ENEM, é preciso saber, em primeiro lugar, que a violência contra a mulher é, hoje, reconhecida nacional e internacionalmente como um tipo de violação contra os direitos humanos

Os direitos humanos, por sua vez, são reconhecidamente um tema pertinente à educação básica, que tem como uma de suas funções primordiais formar cidadãos. Isso nada tem a ver com partidarismo, mas com o reconhecimento de que os mais importantes agentes na defesa de uma sociedade democrática, em que o povo é soberano, é o próprio povo, que deve saber que possui direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, ou seja, direitos humanos afirmados e insusceptíveis de retrocesso.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, da qual o Brasil é signatário, já afirma o compromisso das nações de promoverem o respeito aos direitos humanos por meio do ensino e da educação. A participação da educação na consolidação de uma sociedade de paz é tão fundamental à Declaração Universal da ONU que vem exposta em seu preâmbulo, ou seja, antes dos direitos em si, como pressuposto de um país comprometido com os princípios que o texto elenca. A ONU, portanto, já reconhecia em 1948: lei sozinha não garante uma sociedade livre e justa. É também pela educação que se desenvolve o respeito aos direitos e liberdades formalmente consagrados.

No Brasil, o debate sobre os direitos humanos e a formação para a cidadania alcançou mais espaço a partir dos anos 1980 e 1990, por meio de ações governamentais e da sociedade civil visando ao fortalecimento da democracia.

O marco desse movimento é a Constituição Federal de 1988, que formalmente consagra o Estado Democrático de Direito e reconhece, entre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana e os direitos da cidadania. Desde a Constituição, o Brasil ratificou os mais importantes tradados internacionais (globais e regionais) de proteção dos direitos humanos.

No campo da educação em direitos humanos, a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal n° 9.394/1996) afirmam o exercício da cidadania e conhecimento dos direitos e deveres como uma das finalidades da educação.

Ainda, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), lançado em 2003, apoiou-se em documentos internacionais e nacionais para inserir o Brasil na “Década da Educação em Direitos Humanos”, prevista no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH). Hoje, “a prevalência dos direitos humanos” integra as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica.

No ano passado, após ampla participação da sociedade civil, o Brasil aprovou, ainda, o Plano Nacional de Educação, que estabelece metas para a educação brasileira para os próximos dez anos e tem como uma de suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Ainda assim, em muitos Estados e Municípios, a menção à igualdade de gênero tem sido extremamente polemizada, em muitos casos chegando a ser excluída dos planos municipais e estaduais de educação, embora não seja questionada a ideia de uma educação para exercício da cidadania.

O que isso nos mostra é que a afirmação dos direitos humanos é aceita em termos abstratos, mas rejeitada quando se volta à proteção de grupos que sofrem violações específicas. Na prática, isso significa que temos mais facilidade em aceitar o discurso dos direitos humanos do que a sua efetivação.

O que sabemos, no entanto, após tantos anos da Declaração Universal de 1948, é que a efetivação de direitos universais passa pela compreensão e capacidade da sociedade em identificar e proteger grupos que têm seus direitos violados de formas particulares, como mulheres, negros, minorias religiosas, jovens, idosos, crianças. A educação, de acordo com todos os fundamentos citados, tem o dever de contribuir para essa compreensão.

Quanto ao tema da redação do ENEM, cumpre dizer que, dentre os objetivos balizadores do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos está justamente o fomento à igualdade de gênero, porque a questão de gênero ainda é uma das maiores fontes de injustiça social, aqui e no mundo. Dentre os tratados internacionais assinados pelo Brasil de proteção dos Direitos Humanos estão a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, no âmbito global, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, no âmbito regional.

Este ano, a ONU também lançou a campanha Global Goals, que elenca 17 metas globais a serem percorridas por todas as Nações nos próximos 15 anos. A meta de número 5 é o combate à desigualdade de gênero.

Em âmbito nacional, a Constituição Federal assegura o dever do Estado de proteger as pessoas que integram as famílias contra a violência doméstica. Desde 2006, com a aprovação da Lei Maria da Penha, o Brasil tem avançado nesse tema ao reconhecer a vulnerabilidade da segurança da mulher no âmbito doméstico e criando mecanismos para coibir a violência específica contra a mulher. O MEC também avançou, ao sinalizar que a questão de gênero é, sim, conteúdo a ser abordado no Ensino Médio e avaliado no ENEM.

O MEC, portanto, não inventou nada de novo, apenas deu um pequeno passo para o cumprimento de todos os compromissos assumidos nacional e internacionalmente por uma educação baseada nos Direitos Humanos.



 * Mariana Vilella, Renata Ferraz e Vanessa Pinheiro são fundadoras e educadoras do Pé na Escola, um negócio social de educação com foco em política, cidadania e direitos.



sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Grandes grupos econômicos controlam escolas para fomentar sua ideologia





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Por Luiz Felipe Albuquerque 

Uma das escolas que mais se destacam no Enem em todo o país, o Pensi, é de propriedade de um dos homens mais ricos do mundo: Jorge Paulo Lemann. Ele já era dono também o Grupo Eleva, outro conceituado modelo de ensino pelos resultados alcançados. A dedicação do bilionário não vem ao acaso ou se dá por inspiração. A sensibilidade é baseada na Califórnia, onde o Centro de Estudos Lemann Center funciona. Não por acaso, um dos maiores estudiosos do ensino do país, o novo reitor da Universidade Federal do Rio, Roberto Leher, detectou que grandes grupos econômicos tem atuado cada vez mais profundamente na elaboração do ensino das nossas crianças. Nada é por acaso na Pátria Educadora que não sai do papel. Mas ele não é o único preocupado com a Educação brasileira. Na reportagem que segue, o internauta descobrirá como o ensino virou filão de negócio.

A fortuna do dono de colégio Pensi, baseado no Rio de Janeiro, está avaliado em US$ 25 bilhões – são R$ 100 bilhões – mais de três vezes o orçamento do governo brasileiro para 2016. E não é apenas no ensino que o bilionário tem lançado atenção: há quem veja suas digitais também nos movimentos que pedem o impeachment da presidenta Dilma. Mas o dono da Ambev e da Burguer King nega. Veementemente.

Reitor da UFRJ preocupado com a estratégia sobre a
Educação
Nesta reportagem de Luiz Felipe Albuquerque, publicada originalmente no site Brasil de Fato, o reitor da UFRJ fala sobre a preocupação que a entrada em cena de grandes grupos econômicos devem trazer para queles que se preocupam com a Educação Brasileira.

Um grande negócio. É assim que o novo reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Roberto Leher, enxerga o novo momento da educação brasileira.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ traça um panorama do atual estágio da educação no Brasil, e as conclusões não são nada animadoras.

Para Leher, que tomará posse nesta sexta-feira (3), os recentes processos de fusões entre grandes grupos educacionais, como Kroton e Anhanguera, e a criação de movimentos como o Todos pela Educação representam a síntese deste processo.

No primeiro caso, ocorre uma inversão de valores, em que o primordial não é mais a educação em si, mas a busca de lucros exorbitantes por meio de fundos de investimentos. No segundo, a defesa de um projeto de educação básica em que a classe dominante define forma e conteúdo do processo formativo de crianças e jovens brasileiros.

O movimento Todos Pela Educação é uma articulação entre grandes grupos econômicos como bancos (Itaú), empreiteiras, setores do agronegócio e da mineração (Vale) e os meios de comunicação que procuram ditar os rumos da educação no Brasil.

Para o professor, o movimento se organiza numa espécie de Partido da classe dominante, ao pensarem um projeto de educação para o país, organizarem frações de classe em torno desta proposta e criar estratégias de difusão de seu projeto para a sociedade.

“Os setores dominantes se organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano”, observa o professor.

Confira a entrevista:

Muitos setores denunciam a atual mercantilização da educação brasileira. O que está acontecendo neste setor?

De fato há mudanças no que diz respeito a mercantilização da educação, diferente do que acontecia até 2006 no Brasil. Os novos organizadores dessa mercantilização são organizações de natureza financeira, particularmente os chamados fundos de investimento.

Como o próprio nome diz, os fundos de investimentos são fundos constituído por vários investidores, grande parte estrangeiro, como fundos de pensão, trabalhadores da GM, bancos, etc, que apostam num determinado fundo, e esse fundo vai fazer negócios em diversos países.

Em geral, os fundos fazem fusões, como é o caso da Sadia e Perdigão no Brasil. Mas é o mesmo grupo que também adquiri faculdades e organizações educacionais com o objetivo de constituir monopólios.

Esse processo levou a Kroton e a Anhanguera – fundo Advent e Pátria – a constituírem, no Brasil, a maior empresa educacional do mundo, um conglomerado que hoje já possui mais de 1,2 milhão de estudantes, mais do que todas as universidades federais juntas.

O que muda com essa nova forma de mercantilização da educação?

O negócio do investidor não é propriamente a educação, é o fundo. Ele investiu no fundo e quer resposta do fundo, que cria mecanismos para que os lucros dos setores que eles estão fazendo as aquisições e fusões sejam lucros exorbitantes. É isso que valoriza o fundo.

A racionalidade com que é organizada as universidades sob controle dos fundos é uma racionalidade das finanças. São gestores de finanças, não são administrados educacionais. São operadores do mercado financeiro que estão controlando as organizações educacionais.

Toda parte educacional responde uma lógica dos grupos econômicos, e por isso eles fazem articulações com editoras, com softwares, hardwares, computadores, tablets; é um conglomerado que vai redefinindo a formação de milhões de jovens.

No caso do Brasil, cinco fundos têm atualmente cerca de 40% das matrículas da educação superior brasileira, e três fundos têm quase 60% da educação à distância no Brasil.

Quais os interesses dessas grandes corporações para além do econômico?

A principal iniciativa dos setores dominantes na educação básica brasileira é uma coalizão de grupos econômicos chamado Todos pela Educação, organizado pelo setor financeiro, agronegócio, mineral, meios de comunicação, que defendem um projeto de educação de classe, obviamente interpretando os anseios dos setores dominantes para o conjunto da sociedade brasileira.

Em outras palavras, os setores dominantes se organizaram para definiram como as crianças e jovens brasileiros serão formados. E fazem isso como uma política de classe, atuam como classe que tem objetivos claros, um projeto, concepções clara de formação, de modo a converter o conjunto das crianças e dos jovens em capital humano.

Enquanto isso a Pátria Educadora não sai do papel

Em última instância, é com isso que eles estão preocupados: em como fazer com que a juventude seja educada na perspectiva de serem um fator da produção. Essa é a racionalidade geral, e isso tem várias mediações pedagógicas.

A aparência é de que estão preocupados com a alfabetização, com a escolarização, com o aprendizado, etc. E de fato estão, mas dentro dessa matriz de classe, no sentido de educar a juventude para o que seria esse novo espírito do capitalismo, de modo que não vislumbrem outra maneira de vida que não aquela em que serão mercadorias, apenas força de trabalho.

De que maneira eles interferem nas políticas educacionais do Estado?

Como sociedade civil, os setores dominantes buscam interferir nas políticas de Estado. O Todos pela Educação conseguiu difundir a sua proposta educativa para o Estado, inicialmente por meio do Plano Nacional de Educação (PNE) – que aliás foi homenageado com o nome Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, em referência ao movimento. Com isso definiram em grandes linhas o que seria o PNE que está vigente.

Articulam por meio de leis, mas também da adesão de secretários municipais e estaduais às suas metas, aos seus objetivos. Articulam com o Estado, que cria programas, como o programa de ações articuladas, em que a prefeitura, quando apresenta um projeto para o desenvolvimento da educação municipal, tem que implicitamente aderir às metas do movimento Todos pela Educação.

Temos um complexo muito sofisticado que interage as frações burguesas dominantes, as políticas de Estado e os meios operativos do Estado para viabilizar esta agenda educacional.

Mas como se dá isso na prática?

Quando um município faz um programa de educação para a sua região, ele já deve estar organizado com base no princípio de que existe uma idade certa para educação, que os conteúdos não devem se referenciar nos conhecimentos, mas sim no que eles chamam de competências, que o professor não deve escapar deste currículo mínimo que eles estão desenvolvendo por meio de uma coerção da avaliação.

A escola que não consegue bons índices no Idep [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] é penalizada, desmoralizada, sai nos jornais, e isso cria um constrangimento que chega ao cotidiano da sala de aula, e as prefeituras pressionadas por esses índices acabam sucumbidos às fórmulas que o capital oferece. A mais importante delas é comprar sistemas de ensino, apostilas, que são fornecidos pelas próprias corporações.

O professor está em sala de aula, recebe apostilas, exames padronizadas que foram feitos pela corporação, e na prática, ao invés do professor desenvolver um papel intelectual, criador, ele tem que ser muito mais um aplicador das cartilhas, um entregador de conhecimento, e isso obviamente esvazia o papel do professor que tem consequências diretas com o processo de formação.

A formação esperada do educador não é uma formação enquanto intelectual, mas sim como alguém que sabe desenvolver técnicas para aplicar aquelas pacotes que as corporações preparam.

E há resistências a isso?

Existe um complexo de situações onde as resistências, as tensões são muito grandes, o que traz infelicidade aos professores e aos estudantes, mas tudo isso é muito difuso. As resistências acontecem na forma de lutas sindicais, quando fazem greve criticando a chamada “meritocracia”, os sistemas de avaliação.

Aparecem aqui e ali, mas é forçoso reconhecer que existe um complexo de controle sobre as escolas que restringem muito a margem de manobra dos trabalhadores da educação para desenvolverem um projeto pedagógico autônomo e crítico.

Essa situação é agravada quando a própria direção da escola, que deveria pensar como a escola se auto governa, vem sendo ressignificada como um papel de gestão. O diretor e os coordenadores são pensados como gestores na lógica de uma empresa, que deve cumprir metas, fiscalizar o cumprimento delas e tentar atingir essas metas de todas as formas.

Assuntos estratégicos com sotaque inglês
Temos uma mudança de referências quando a própria equipe de coordenação da escola se torna uma equipe de gestores. No documento Pátria Educadora há uma possibilidade de punição dos professores que não cumprirem as metas.

Por sinal, o Pátria Educadora é um dos programas carro chefe do governo federal. Como você avalia este documento?

Não casualmente, esse documento foi elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), atualmente dirigido pelo ministro Mangabeira Unger. Ele parte de um diagnóstico de que o modelo de desenvolvimento baseado em commodities se esgotou com a crise mundial, com seus preços despencando depois daquele período de ouro entre 2004 e 2009.

Com a desvalorização dessas commodities, Mangabeira chama atenção para o fato de que o Brasil deveria buscar outra forma de inserção na economia mundial que não fosse apenas de commodities.

E a minha hipótese é que eles estão sinalizando nesse documento que o Brasil deveria ser uma espécie de plataforma de exportação, assim como já existe na fronteira norte do México, em alguns países asiáticos – o modelo chinês foi isso nos anos 90, de ser um local em que a força de trabalho é muito explorada, recebe um treinamento específico que permite uma exploração muito grande, e esses países entram em circuitos de produção industrial de maneira subalterna, explorando o que seriam sua vantagens comparativas: baixo custo de energia, da força de trabalho, baixa regulamentação ambiental, e isso daria vantagens competitivas novamente ao país.

O drama é que a concepção do Pátria Educadora tem como correspondência a ideia de que a formação da maior parte da força de trabalho no Brasil deve ser por um trabalho mais simples, e isso tem consequências pedagógicas muito grande.

Se é para formar para o trabalho simples, a maior parte das escolas podem ser instituições estruturadas para a formação de um trabalho de menor complexidade, que seria desdobrados em processos de formação técnica de cursos de curta duração, cujo exemplo mais conhecido é o Pronatec, em que grande parte dos cursos são aligeirados para a formação de uma força de trabalho simples – tanto aquela que já estará inserida no mercado quanto aquela que constitui o que podemos denominar de um exército industrial de reserva.

O documento Pátria Educadora altera a racionalidade da organização da escola quando vislumbra escolas que vão formar forças de trabalho de menor complexidade. É importante destacar que no documento encontramos uma formulação muito perigosa de enormes consequências para o futuro da educação brasileira, que é a referência que o Mangabeira faz da adoção de um modelo tipo SUS (Sistema Único de Saúde).

O que é isso?

O modelo SUS teve como objetivo assegurar o direito ao atendimento à saúde de maneira universal, e isso poderia ser feito tanto pelo órgãos públicos quanto pelas entidades privadas.

Quando Mangabeira reivindica o modelo SUS, claramente está sinalizando que a formação do conjunto da classe trabalhadora deveria ser feita em nome de uma suposta democratização, realizada tanto pelas instituições públicas quanto pelas organizações privadas.

Isso é congruente com o PNE aprovado em 2014, ao estabelecer que a verba pública é aquela utilizada nas instituições públicas, mas também em todas as parcerias público-privadas, como o FIES, PROUNI, Ciências Sem Fronteira, PRONATEC, Pronacampo, sistema S, tudo isso entra como recurso público.

A rigor, estamos diante de uma política que pode indiferenciar as instituições públicas e privadas em detrimento do público, já que as corporações também se acercam da educação básica.

Em setembro acontecerá o 2° Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (Enera), em Brasília. Como o Enera se insere nesta conjuntura?

Tenho uma expectativa muito positiva em relação ao segundo Enera. No primeiro Enera tivemos a constituição de outra perspectiva pedagógica para a educação brasileira, que foi a Educação do Campo, uma conceituação do que seria uma educação pública voltada para o campo, mas com um horizonte de formação humana que ultrapassa o campo.

Foi certamente uma proposta que promoveu sínteses brilhantes entre uma perspectiva crítica que vem do campo marxista, da ideia da escola unitária, do trabalho, ao compreender que o trabalho deveria ser um elemento simbólico, imaginativo, capaz de nos constituir como seres humanos, e que portanto a escola é o lugar da cultura, da arte, da ciência, da tecnologia, e não uma instituição livresca. É uma instituição que tem interação com o mundo, com a vida, com os processos de trabalho, com a produção real da cultura em diversos espaços, como pensar no que significa a agricultura no Brasil.

Foi uma proposta pedagógica que promoveu sínteses incorporando pensamento critico marxista, tradição latino-americana de educação popular, particularmente com Paulo Freire, e criou bases para um pensamento pedagógico socialista.

O segundo Enera, a meu ver, está desafiado pela conjuntura a fazer um balanço do que foi essa mercantilização e de como o capital está tentando se apropriar do conjunto da educação básica.

Ao fazer essa reflexão, certamente o Enera vai ajudar a criar bases para uma perspectiva de educação pública unitária capaz de contrapor a educação frente à lógica de movimentos empresariais como o Todos pela Educação.

Pode haver incorporações de elementos novos na nossa reflexão sobre a pedagogia socialista que respondam desafios da ofensiva do capital, mas sobretudo respondam os anseios que estão pulsando em todo o país em torno da educação pública.

Como as últimas greves na educação?

Podemos problematizar a fragmentação das lutas pela educação, o fato de que muitas vezes são lutas econômicas e corporativas, que estão vinculadas as políticas municipais e estaduais, mas não tenho dúvidas de que essas lutas que estão pulsando no país estão enfrentando aspectos dessa pedagogia do capital, criticando a meritocracia, a racionalidade das competências e dos sistemas centralizados de avaliação, o uso de cartilhas.

Temos críticas reais a essa lógica de controle que o capital está buscando sobre a educação básica, mas precisamos sistematizar isso com outros fundamentos pedagógicos, e aprofundando a experiência que foi construída a partir do primeiro Enera.

No segundo Enera acredito que novas dimensões para essa pedagogia socialista vão ser esboçados, e não como o resultado de um processo em que os especialistas de educação do MST vão se reunir e pensar o que seria essa agenda.

Ao contrário, como resultado de uma articulação de movimentos que estão fazendo educação pública e estão buscando uma educação criativa, que estão fazendo as lutas de resistências com as greves, mobilizações, com a participação de estudantes.

Esta riqueza de produções que estão em circulação nas lutas em defesa da educação pública que podem criar uma sistematização maior. Creia condições para que possamos ampliar esta aliança entre experiências da luta urbana com as que vieram do campo, produzindo novas sínteses e novas possibilidades para que a classe trabalhadora tenha sua própria agenda para o futuro da educação pública.

É um processo longo e exigirá um esforço organizativo e intelectual de enorme envergadura. Temos que ter uma produção pedagógica mais sistematizadas, mais profunda, para criarmos a base desse pensamento pedagógico crítico, que assegure uma formação integral, mas uma educação que recusa a divisão dos seres humanos em dois grupos: um que pensa e mando, outro que executa e obedece.

Sai da rua e entra na escola: Lemann é o homem do Pensi

Essas bases para uma proposta socialista estão sendo gestadas nas lutas, mas com o ENERA podemos ganhar um momento de qualidade no terreno da elaboração, articulação e organização em defesa desse projeto de novo tipo.




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