sábado, 28 de março de 2020

Educar para quê?


Com o acirramento das disputas econômicas e ideológicas, devemos nos perguntar: o que queremos das nossas escolas?

Por Anaíra Lobo e Carolina Guimarães


A Escola Técnica em Agroecologia Luana Carvalho, é uma iniciativa do
MST, cujo projeto pedagógico e manutenção são uma experiencia de
organização coletiva - Arquivo Escola

Neste mês de março, o Brasil de Fato Bahia estreia o encarte especial ‘Diálogos’ que tem como objetivo convidar você, leitor, leitora, a refletir conosco sobre alguns temas fundamentais para a construção da sociedade na qual gostaríamos de viver. Não temos a pretensão de oferecer as saídas ou respostas prontas, mas vamos colocar algumas perguntas que acreditamos serem pertinentes; nesse sentido, estreamos com o tema da Educação Pública, que não é somente um direito essencial, mas base de transformação, desenvolvimento e consolidação de uma sociedade mais justa e democrática. Nas próximas edições discutiremos também o direito à Terra, à Água, ao Alimento, à Saúde, ao Emprego e outros mais.

No final do ano passado, uma pesquisa Datafolha revelou que cerca de 70% da população brasileira defendia a total gratuidade do sistema educacional, da creche à universidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece que a educação é um direito social e é dever do Estado proporcionar os meios para o seu acesso. Esse dever está regulamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que afirma que o Estado brasileiro é responsável pela Educação Básica, que inclui a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio. Todos esses dados parecem indicar que existe um consenso sobre a importância da educação e a quem cabe provê-la, mas não é assim que tem acontecido na prática.

Apesar de, em 2014, a então presidenta Dilma Rousseff ter sancionado o Plano Nacional de Educação (PNE) – fruto de amplo debate e mobilização da sociedade civil e das entidades ligadas ao setor – que objetiva ampliar o acesso e melhorar a qualidade da educação no país, existe uma imensa dificuldade em garantir o seu cumprimento. O PNE estabelece 20 metas educacionais a serem cumpridas ao longo de 10 anos, porém, um estudo realizado em 2019 pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, revelou que 16 delas estavam estagnadas e apenas 04 foram parcialmente cumpridas. Metas, por exemplo, sobre taxas de alfabetização, universalização do acesso à pré-escola e formação de professores não atingiram os índices desejados. Agravando esse cenário, a diminuição progressiva do investimento público imposta com a aprovação da Emenda Constitucional do teto de gastos, em 2016, a atual política de asfixia financeira, tanto na educação básica quanto na superior, e o clima de intimidação com os profissionais da educação, acusados de “doutrinadores”.

Foi a partir dessas inquietações, que a reportagem conversou com as professoras Uilma Amazonas, Marta Lícia de Jesus e Zuza Jaegermann buscando traçar um panorama sobre quais os desafios, contradições e propostas que elas enxergam para a educação brasileira e baiana, a partir de suas diversas vivências. Docente da Faculdade de Educação da UFBA, a professora Uilma atuou no Programa de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR); Marta Lícia, também do quadro da Faced/UFBA, trabalha com formação de professores e políticas educacionais, além de ser dirigente do Sindicato de professores das instituições federais de ensino superior da Bahia (Apub); a professora de sociologia, Zuza é educadora do Movimento Sem Terra (MST) e membro da coordenação coletiva da Escola Técnica em Agroecologia Luana Carvalho, uma iniciativa do Movimento cujo projeto pedagógico e manutenção são uma experiência de organização coletiva. As educadoras opinaram sobre o papel da educação na formação humana e social, as disputas em torno dos conteúdos e do que pode ou não ser ensinado na escola, a desvalorização da carreira docente e as dificuldades de financiamento, hoje, focadas no debate em torno do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), em discussão na Câmara Federal.

Quem ensina?

A Meta nº15 do PNE visa garantir que até 2024 “todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam”. De acordo com o Observatório do PNE, em 2018, esse índice era de 79,9% no Brasil e 67,2% na Bahia, ou seja, ainda persistem professores sem formação específica atuando nas salas de aula. A melhoria desse índice passava pelo Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), um programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), uma fundação ligada ao Ministério da Educação. O Programa articula as Universidades Públicas e as secretarias de educação dos estados para atender às necessidades de formação de professores. No site da CAPES, o último edital do Parfor é de 2018. “A gente considerava que [o Parfor] conseguia dar um salto qualitativo na ideia de formação de professores, articulado nacionalmente com as metas e, principalmente, fechando a relação dos professores que atuam na escola pública serem formados em universidades públicas”, explica Marta Lícia. “E depois diz que quer valorizar a educação básica...”, diz Uilma. E continua: “acabar com essa política de formação de professor vai reduzindo mesmo o alcance dessa qualidade na educação básica. Porque, por exemplo, a Bahia ainda tem professores sem formação atuando em sala de aula, então por que desativou o programa? Que avaliação fez? Teve uma época que a gente garantia que na cidade de Salvador não tinha um professor em sala de aula que não tivesse formação superior... acabou, hoje a gente perdeu isso”, lamenta. E Marta completa: “e aí você deixa de pensar na melhoria salarial dos professores, de uma forma geral para pensar bônus a partir de critérios estabelecidos por planejadores que não conhecem a diversidade e chão da escola”.

Marta Lícia, também do quadro da Faced/UFBA, trabalha com formação
de professores e políticas educacionais/ Carolina Guimarães

Quem financia?

Atualmente, a principal política de financiamento para Educação Básica, que foi resultado dos movimentos sociais ligados à educação, é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), formado por recursos provenientes dos impostos e transferências dos estados, distrito federal, municípios e com complementação da União. Antes Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), o Fundeb entrou em vigor em 2007 e avançou no sentido da ampliação do direito à educação, a partir da compreensão de que o poder público era responsável por mais de uma etapa do sistema educacional. “[Antes] era responsabilidade do Estado apenas o ensino fundamental de 8 anos. O estado brasileiro não queria saber nem de alfabetização, nem de educação infantil nem de Ensino Médio”, reflete Uilma.

Professora Uilma é docente da Faculdade de Educação da UFBA e atuou no
 Programa de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR)/
Anaira Lobo

Com a Proposta de Emenda à Constituição 15/2015, atualmente em tramitação, se objetiva tornar o Fundo em uma política de Estado, já que este tem validade até dezembro deste ano, e aumentar e o valor oriundo da União, que hoje é de 10% do valor correspondente à contribuição total dos estados e municípios. Apesar da importância da PEC para garantir o financiamento da educação, há críticas sobre o texto que recua em diversos aspectos na concepção desta política. O relatório da Comissão que analisa a PEC teve forte influência do lobby de empresários da educação privada e apresenta pontos problemáticos como a inclusão do Salário Educação – que é uma fonte extra de recursos para o sistema educacional – ao valor total do Fundo, a fragilização do Custo Aluno Qualidade (um dispositivo que calcula o investimento necessário por aluno), que seria regulamento através de Lei complementar e vinculação da transferência de recursos a resultados aferidos a partir de um sistema de avaliação geral, implantando uma “meritocracia” que desconsidera as desigualdades regionais. “Todo mundo precisa melhorar, a educação é um projeto de nação, a escola pública precisa melhorar, mas a polêmica é que eles querem introduzir uma competição na educação pública, mas o sistema não considera a diversidade”, diz Marta”.
Outra meta fundamental para a garantia do financiamento, a nº 20 do PNE, estabelece a ampliação do investimento público em educação de forma a atingir o equivalente a 10% do PIB até 2024, está praticamente inviabilizada com o teto dos gastos. Anterior a isso, em 2013 foi aprovado também a destinação para a área de 75% dos royalties do petróleo e 50% do chamado Fundo Social do Pré-Sal, outra lei também ameaçada pelos leilões das bacias do minério e com o acelerado desmonte da Petrobras.

Políticas que tratavam de modalidades ou grupos sociais mais específicos estão, quando não extremamente ameaçados, sendo extinguidos. É o caso do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que através do decreto nº 20.252 de 20 de fevereiro de 2020 extingue a Coordenação responsável pela Educação do Campo da estrutura do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “Essa relação com o poder público é construída a base de pressões, negociações e luta constante para conseguir garantir realmente o direito à educação pública. O descaso do poder público praticamente determina o fechamento das escolas do campo, todo início de ano começamos sem equipe, sem serviços gerais, sem merenda, sem livro, sem material didático. A gente demora meses para conseguir o básico que garante o direito, se não fosse a comunidade que cola junto para poder ajudar a limpar a escola, para fazer a merenda, para trazer alimento, se não fosse a equipe de educadoras militantes que doam força do trabalho todo ano e ao longo do ano, realmente isso não seria possível”, afirma Zuza.

Após 5 anos de mobilização, a Escola atua na Educação Básica, e conta
com uma parceria da Universidade Estadual da Bahia na promoção
do ensino pré-universitário/ Arquivo Escola

Quem decide o que ensinar?

Ainda que as escolas tivessem o financiamento adequado, o debate em torno da educação não deixaria de passar pelo que muita gente chama hoje de “pauta ideológica”. A discussão em torno do “conteúdo” a ser ensinado nas escolas não é nova – foram anos necessários para a aprovação, em 2018, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento que norteia a formulação dos currículos escolares por todo o país, estabelecendo as competências e habilidades mínimas que os estudantes devem desenvolver. Apesar de um avanço, a BNCC não escapou das disputas sobre o que a escola “pode” ou “não pode” falar, como questões de gênero e diversidade – no final de 2017, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação denunciou à ONU os efeitos do projeto “Escola Sem Partido” e a retirada, imposta pelo governo Temer, dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” do texto da BNCC. 

A Reforma do Ensino Médio, priorizando a carga horária de português e matemática, foi outra demonstração de uma visão conservadora para a educação. Hoje, o governo Bolsonaro aprofunda essa disputa com a narrativa da “doutrinação de esquerda” em sala de aula e uma suposta necessidade de proteção das crianças e jovens de uma educação “ideológica” – como se alguma neutralidade fosse possível nesse caso. “Essa discussão vai resvalar na mudança da política da definição dos livros didáticos e incidir diretamente no conteúdo da formação de professores. Isso tem a ver com conteúdos não só de Direitos Humanos, mas conteúdos identitários que vão, na verdade, conformar o nosso tipo de memória em relação a quem somos e quem desejamos ser, com projeto de nação”, aponta Marta referindo-se ainda ao momento de revisionismo em relação a temas da história nacional, como escravidão e ditadura militar, por exemplo. Importante ressaltar que essa discussão “ideológica” não está dissociada da econômica – o mercado da produção de livros didáticos movimenta, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) cerca de R$ 2 bilhões ao ano.

Zuza é professora de sociologia e educadora do Movimento Sem Terra
(MST)./Arquivo Escola

E quais as alternativas? A professora Zuza reflete a partir da experiência da Escola Luana Carvalho, que funciona desde 2015 após a ocupação do prédio destinado à escola por famílias camponesas que colocaram em prática a rotina escolar junto com os educadores e educadoras do MST. “A gente percebe que quanto mais conseguimos envolver os educadores nesse projeto Político e Pedagógico (PPP) da escola do campo, mais a gente fortalece o coletivo e tem a mínima autonomia. A partir disso, a gente consegue construir experiências e elas precisam se traduzir em documentos formais, como o PPP, que possa servir como arma mesmo, como ferramenta de combate e negociação com o poder público”, diz. Para a professora do MST, há ainda brechas para trabalhar um conteúdo contextualizado ainda que tenha que dialogar com a Base. “Temos algumas experiências, como no extremo sul da Bahia onde a questão da agroecologia conseguiu ser inserida”. Após 5 anos de mobilização, a Escola atua em toda a Educação Básica e conta com uma parceria da Universidade Estadual da Bahia na promoção do ensino pré-universitário. “A gente tem vários desafios nessa transição de uma escola tradicional para uma escola emancipatória, democrática, libertadora, que forme a pessoa de maneira plena”, afirma Zuza. Para Marta, é preciso desconstruir a ideia de que a ampliação da participação e convivência com a diversidade prejudicaria a disciplina, a ordem necessária ao ambiente escolar. “Tem que ter disciplina para participar, tem disciplina para ter uma escola democrática. Olha, se alfabetiza sim, passa na universidade sim, entende? Sem com isso perder o seu processo de humanização, sem com isso perder sua capacidade de criticar a sociedade que está aí, sem com isso perder a capacidade de saber a que classe você pertence e que tipo de luta você vai ter que empreender”.

Edição: Elen Carvalho


domingo, 22 de março de 2020

A fascistização da educação pública




imagemCrédito: Marcelo Camargo/EBC
As Escolas Cívico-Militares do Governo Bolsonaro e o projeto de fascistização da educação pública


Por Rodrigo Lima


No dia 05 de setembro de 2019, o Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) assinou o Decreto nº 10.004 que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que prevê a implementação do modelo de gestão militar em 216 unidades escolares nos próximos quatro anos, sendo 54 escolas por ano.

O Pecim é voltado para escolas públicas dos ensinos fundamental e médio e será realizado em colaboração com as redes estaduais e municipais, sob coordenação do Ministério da Educação contando com o apoio do Ministério da Defesa.

A militarização das escolas de educação básica faz parte do projeto de educação do governo bolsonarista. Jair Bolsonaro, quando candidato, apresentava tal proposta no sentido de cumprir dois objetivos: combater nas escolas o que ele define como “doutrinação” ideológica e disciplinar crianças e adolescentes, sob a alegação de evitar a violência contra os professores no ambiente escolar.¹

Logo no início do seu governo, no dia 02 de janeiro de 2019, uma das primeiras medidas tomadas foi a criação da Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim), através do Decreto nº 9.665.

Contudo, o Pecim do Governo Bolsonaro não criou um modelo novo de educação autoritária e militarizada, pois o projeto de escolas cívico-militares faz parte de um processo mais amplo, que já vem sendo construído e implementado por redes estaduais e municipais de educação no país desde o final da década de 1990.

O atual modelo de militarização das escolas teve no Estado de Goiás um dos seus primeiros laboratórios, durante o primeiro mandato do tucano Marconi Perillo (PSDB) como Governador (1999-2002), quando iniciou-se a transferência da gestão de unidades escolares da rede pública estadual para a Polícia Militar do Estado de Goiás.

Durante a década de 2010 o modelo ampliou-se significativamente no contexto goiano e expandiu-se para outros estados. Segundo reportagem da Revista Época², entre 2013 e 2018, o número de unidades escolares estaduais com gestão da Polícia Militar avançou para 14 estados da Federação, saltando de 39 para 122 escolas, um aumento de 212%.

Importante ressaltar que o modelo vem sendo implementado por governos de diferentes partidos políticos, não ficando restrito apenas a governos considerados conservadores. Legendas situadas no chamado “campo progressista” também têm aderido à militarização como forma de organização e gestão educacional. Se em Goiás as escolas militarizadas foram implementadas por governos do PSDB, na Bahia o modelo foi implementado pelo Governador Rui Costa do Partido dos Trabalhadores (PT), sob o nome de “Vetor Disciplinar”.

Além do controle militar, outra característica em comum ao modelo que vem sendo implementado em diferentes regiões do país é a de que a maioria das escolas selecionadas encontram-se na periferia de centros urbanos, direcionadas para estudantes e comunidades que vivem em bairros pobres.

Sob o Governo Bolsonaro o projeto de escolas militarizadas avança de um cenário de experiências regionalizadas, coordenadas por iniciativas estaduais e municipais, para uma política nacional que conta com uma orientação geral, com diretrizes unificadoras, com metas a serem atingidas e com a disponibilidade de recursos financeiros da União destinado aos sistemas escolares, para que a implementação do Pecim seja realizada.

Após a assinatura do Decreto nº 10.004/2019, 15 estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará, Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e o Distrito Federal³ aderiram ao modelo de escola cívico-militar, a ser iniciado no ano de 2020.

A adesão foi feita por estados governados pelos seguintes partidos políticos: PSL, PT, PDT, Novo, PSDB, DEM, PHS, PP, MDB, PDT, PSC e PSD, siglas que aparentemente apresentam-se como antagônicos no espectro político-ideológico, mas que estão em acordo com o projeto de militarização das escolas que foi elaborado e organizado pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.

Antes de avançarmos na análise do Pecim e suas implicações na educação brasileira, é importante, a título de esclarecimento, diferenciarmos as escolas cívico-militares dos tradicionais colégios militares existentes no país.

Os colégios militares tiveram sua origem em 1889, nos últimos meses de existência do Império, com a criação do Imperial Colégio Militar que foi instalado na cidade do Rio de Janeiro em março daquele ano, atendendo uma demanda dos militares por uma instituição escolar que preparasse os filhos dos integrantes do Exército.

Atualmente, existem 14 colégios militares no país, localizados nas cidades do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, Manaus, Brasília, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Juiz de Fora, Campo Grande, Santa Maria, Belém e São Paulo (este em fase de construção).

Eles estão diretamente ligados ao Sistema Colégio Militar do Brasil, que é subordinado ao Exército Brasileiro e ao Ministério da Defesa. O ingresso nestas instituições, que ofertam ensino fundamental e médio, se dá por meio de concursos públicos ou amparo regulamentar que é uma forma de ingresso que atende as demandas educacionais de dependentes dos militares. São escolas frequentadas por um seleto grupo de estudantes, com perfil de renda familiar muito alta. O custo de um aluno dos colégios militares chega a ser três vezes maior do que o de quem estuda em escolas da rede pública.⁴

São escolas que sustentam seus planos pedagógicos em um modelo autoritário, baseado na disciplina e hierarquia:

É neste cenário que se inserem os Colégios Militares, educandários fortemente ancorados nos valores éticos e morais, nos costumes e nas tradições cultuados pelo Exército Brasileiro. É deste somatório que emerge a identidade do Sistema, o diferencial capaz de gerar vínculo, apego e sentimento de pertença aos Colégios. Como estabelecimentos de ensino filiados aos códigos do Exército, os Colégios Militares sustentam-se sobre os mesmos pilares: a hierarquia e a disciplina. Esta peculiaridade, que os distinguem no todo maior da educação nacional, reforça a imagem que os Colégios Militares vieram lapidando ao longo de mais de cento e vinte anos: sua marca particular .⁵
Além dos colégios ligados ao Exército, também existem colégios mantidos pela Marinha, pela Força Aérea, pelo Corpo de Bombeiros e pelas Polícias Militares estaduais, que organizam escolas próprias, geridas diretamente por estas instituições.

Ainda que preze pela organização a partir de uma doutrina militar, o modelo de escolas cívico-militares proposto pelo Governo Bolsonaro difere substancialmente dos colégios militares. Se estes servem para preparar uma pequena elite de estudantes, tendo como um dos principais objetivos a manutenção do ciclo de privilégios das famílias dos militares, o primeiro atenderá uma ampla massa de estudantes pobres e carentes, com o objetivo de disciplinar e militarizar o ensino, como um mecanismo de controle social da pobreza e dos movimentos sociais ligados à educação, além de servir como uma base de difusão do nacionalismo de direita e contemplação de bases sociais ligadas ao bolsonarismo, como é o caso dos militares da reserva que poderão atuar nessas instituições.

O modelo autoritário e disciplinador proposta pela política educacional do Governo Bolsonaro fica explícito no documento⁶ criado pelo Ministério da Educação para as Ecim. O “Manual das Escolas Cívico-Militares”, divulgado no mês de fevereiro de 2020, apresenta a concepção do modelo educacional e aborda vários aspectos sobre a forma de organização escolar.

O documento de 342 páginas é subdividido nos seguintes tópicos: Regulamento das Ecim; Projeto Político-Pedagógico; Projeto Valores; Normas de Apoio Pedagógico; Normas de Avaliação Educacional; Normas de Psicopedagogia Escolar; Normas de Supervisão Escolar; Normas de Gestão Administrativa; Normas de Conduta e Atitudes; Normas de Uso de Uniformes e de Apresentação Pessoal dos Alunos e Cartilha para os Responsáveis.

A lógica de funcionamento de um quartel permeia toda a organização escolar. A direção escolar será composta por diretor e vice-diretor civis, escolhidos conforme critérios estabelecidos por cada secretaria estadual de educação, que serão assessorados por um Oficial de Gestão Escolar, um militar que terá entre outras atribuições a de atuar na supervisão às atividades da gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa, agindo como uma espécie de tutor dos diretores. Ele será o elo de ligação da escola com o Ministério da Defesa.

Subordinados diretamente ao Oficial encontram-se os “monitores”, um corpo de militares que atuará diretamente com os/as alunos/as. A estrutura organizacional da escola toma ares de quartel, pois todos os setores da escola, da secretaria à biblioteca, contarão com a figura de “Chefes”, que realizarão a supervisão das atividades, e “Divisões” como nova forma de denominação dos departamentos. A militarização e o controle estarão presentes em todo o ambiente escolar.

As entidades de representação estudantil estarão totalmente subordinadas à direção escolar, perdendo sua autonomia e liberdade de organização, o que fere frontalmente a Lei do Grêmio Livre (Lei n° 7398/1985). Segundo o Regimento das Ecim, os/as estudantes só poderão participar das organizações associativas se forem autorizados pela direção da escola e supervisionados por um orientador civil ou militar.

Os/as estudantes tampouco poderão estabelecer relações com organizações e/ou entidades “estranhas” à escola sem o conhecimento do Diretor. Tais regras, além de serem inconstitucionais, revelam a preocupação do controle total sobre os/as estudantes e suas organizações, uma forma de cerceamento das mobilizações, o que consiste numa resposta conservadora e autoritária a movimentos estudantis recentes, como as ocupações de escolas.

Com relação aos trabalhadores em educação das escolas cívico-militares, ainda que o Manual não toque diretamente em temas relativos à sindicalização, reuniões sindicais na escola, participação em mobilizações, lutas e greves da categoria, é possível supor que um ambiente militarizado, controlado e organizado por militares da reserva impactará negativamente na organização dos/as trabalhadores/as em educação, com restrições e perseguições de todo tipo.

O sistema disciplinar das Ecim baseia-se em normas de condutas e atitudes que estabelecem recompensas e punições, criando um sistema de pontos para avaliar o comportamento dos/as estudantes, assim como um regime de imposições e castigos, apontando para uma formação educacional autoritária, na qual os/as estudantes se comportam com receio de possíveis punições. Um ambiente escolar pautado pelo medo.

A militarização está presente em todos os aspectos da vida escolar. Os alunos terão de realizar o hasteamento diário da bandeira nacional, permanecer em ordem unida, e as turmas terão de se deslocar no ambiente escolar em forma e em passo ordinário. O manual prevê rondas dos monitores militares no interior da escola com o objetivo de controle das ações dos/as alunos/as.

O uso do uniforme e apresentação dos/as estudantes também implica numa série de imposições, como o tamanho das saias para as meninas (na altura dos joelhos), um modelo único de corte de cabelo para os meninos e a restrição do uso de acessórios.

Além da militarização das escolas, o modelo das escolas cívico-militares cumpre um papel político fundamental para o Governo Bolsonaro, ao contemplar amplamente os militares inativos das Forças Armadas, das polícias militares e do corpo de bombeiros militares. Eles atuarão nas escolas como prestadores de tarefa por tempo certo (PTTC), que é definida enquanto a execução de atividades de natureza militar por militares inativos, em qualquer área da administração pública. Nesta modalidade, os militares recebem 30% de remuneração sobre o valor dos seus vencimentos, além de serem contemplados com auxílios transporte e alimentação, para o exercício da atividade.

No caso das Ecim a primeira contratação dos militares no regime de PTTC valerá inicialmente por 12 meses, podendo ser renovada de forma sucessiva, tendo como limite inicial o período de 10 anos, que também poderá ser renovado. A partir deste regime de contratação, os militares da reserva receberão um aumento considerável em suas remunerações, para um tipo de vínculo que pode se estender para toda a vida.

Grande parte da verba anual dos R$ 54 milhões previstos pelo MEC para a implementação das Ecim, será destinada para o pagamento dos salários dos militares que atuarão nas escolas.⁷ O Pecim prevê a necessidade de um quantitativo de 18 militares para uma escola com mil alunos matriculados. Desta forma, Bolsonaro conseguirá atender uma base social considerável, mantendo os militares da reserva coesos como um dos pilares de sustentação do bolsonarismo.

À guisa de conclusão cabe analisar o quanto as escolas cívico-militares cumprem o papel de formação de segmentos importantes da população nos marcos da doutrinação militar e da ideologia autoritária de extrema-direita propalada pelo Governo Bolsonaro. Em sua guerra ideológica e cultural contra o movimento estudantil e suas entidades, professores e seus sindicatos e contra as universidades públicas e os institutos federais, sob a falsa bandeira de combate ao “marxismo cultural”, o líder da extrema direita brasileira aposta na expansão das escolas cívico-militares enquanto um referencial do seu projeto educacional.

O Pecim, portanto, consiste em um projeto de fascistização das escolas de educação básica brasileiras. Nacionalismo, militarismo, autoritarismo, controle e disciplinamento são bases do movimento político e social conservador que orientam as políticas educacionais do Governo Bolsonaro. A título de comparação, o modelo de massificação das escolas cívico-militares encaixa-se perfeitamente nos moldes do pensamento educacional do fascismo italiano. Em 1935, Cesare Maria De Vecchi, ministro da educação nomeado por Benito Mussolini, deu o seguinte depoimento sobre o modelo de militarização das escolas implementado na Itália Fascista:

elimina-se toda separação entre vida civil e vida militar; são demolidas as barreiras existentes entre as instituições civis e as instituições militares; opera-se uma íntima fusão entre as beneméritas Organizações juvenis, as gloriosas Forças Armadas e a Escola; a educação militar, assumindo um altíssimo valor moral, torna-se um elemento substancial da educação geral; e à Escola, principalmente, cabe a honrosa e lisonjeira missão da formação do italiano novo, do Cidadão Soldado.⁸ 
Qualquer semelhança não é mera coincidência!

As escolas cívico-militares do Governo Bolsonaro também retomam princípios do modelo educacional autoritário vigente durante a ditadura empresarial-militar, que durou entre 1964 e 1985, no qual disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social da Política Brasileira serviam para legitimar o regime e seus valores e que tinham no autoritarismo na organização do cotidiano escolar um de seus pilares. Através da hierarquia, do disciplinamento e do medo, os militares cercearam qualquer possibilidade de pensamento crítico e autônomo das crianças e adolescentes da época. O Governo Bolsonaro toma essa inspiração e vai além, ao inserir militares da reserva na gestão direta de escolas públicas de educação básica. A ditadura empresarial-militar não foi tão ousada!

Plano de Governo de Jair Bolsonaro: “O CAMINHO DA PROSPERIDADE Proposta de Plano de Governo” (slide 46). Disponível em: 
<https://static.cdn.pleno.news/2018/08/Jair-Bolsonaro-proposta_PSC.pdf> Acesso em 10 fev. 2020.
CAMPOREZ, Patrick. Número de escolas públicas militarizadas no país cresce sob o pretexto de enquadrar os alunos. Revista Época, 2018. Disponível em
<https://epoca.globo.com/numero-de-escolas-publicas-militarizadas-no-pais-cresce-sob-pretexto-de-enquadrar-os-alunos-22904768> Acesso em 10 fev 2020.
TOKARNIA, Mariana. Quinze estados e DF aderem ao Programa das Escolas Cívico-Militares. Agência Brasil, 2019. Disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-10/quinze-estados-e-df-aderem-ao-programa-das-escolas-civico-militares> Acesso em 12 fev 2020.
CAFARDO, Renata. Estudante de Colégio Militar custa três vezes mais que o de escola pública. Portal Uol, 2018. Disponível em 
<https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/08/26/estudante-de-colegio-militar-custa-tres-vezes-mais-que-o-de-escola-publica.htm> Acesso em 12 fev 2020.
SISTEMA COLÉGIO MILITAR DO BRASIL.Diretoria de educação preparatória e assistencial, Ministério da Defesa, 2020. Disponível em 
<http://www.depa.eb.mil.br/sistema-colegio-militar-do-brasil> Acesso em 12 fev 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Subsecretaria de fomento Às escolas cívico-militares. Manual das escolas cívico-militares. Disponível em: <http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Attachments/837270/RESPOSTA_PEDIDO_ECIM_Final.pdf> Acesso em 12 fev 2020.
O GLOBO. Verba do Mec para escolas cívico-militares vai pagar salário de oficiais da reserva. Globo, 2019. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/verba-do-mec-para-escolas-civico-militares-vai-pagar-salario-de-oficiais-da-reserva-23986061> Acesso em 12 fev 2020.
DE VECCHI, Cesare apud HORTA, José Silvério Baia. A educação na Itália fascista (1922-1945). Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 47-89, jan./abr. 2009. (pg. 73)

Referências

ANPEPP – Associação Nacional de Pesquisas e Pós-Graduação em Psicologia. Escolas cívico-militares: seriam uma boa alternativa para a educação em valores sociais e morais? 2019. Disponível em: <https://www.fe.unicamp.br/pf-fe/noticia/5912/carta-pesquisadores-psicologia-educacional-escolas-militares.pdf.> Acesso em 12 fev. 2020.

EDUCAÇÃO BÁSICA. Memórias da Ditadura, 2020. Disponível em 
<http://memoriasdaditadura.org.br/educacao-basica/> Acesso em 12 fev. 2020.

HORTA, José Silvério Baia. A educação na Itália fascista (1922-1945). Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 47-89, jan./abr. 2009.

KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.

ROSA, Cristina Souza da. Pequenos soldados do fascismo: a educação militar durante o governo Mussolini. Revista Antíteses, Londrina, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 621-648.

VELOSO, Ellen Ribeiro; OLIVEIRA, Nathália Pereira de. Nós perdemos a consciência? apontamentos sobre a militarização de escolas públicas estaduais de ensino médio no estado de Goiás. In: OLIVEIRA, Ian Caetano de; SILVA, Victor Hugo Viegas de Freitas (org.). Estado de exceção escolar: uma avaliação crítica das escolas militarizadas. Aparecida de Goiânia: Escultura, 2016. p. 71-84.

https://natrincheiradasideias.wordpress.com/2020/02/26/as-escolas-civico-militares-do-governo-bolsonaro-e-o-projeto-de-fascistizacao-da-educacao-publica-no-brasil


FONTE: Portal PCB

domingo, 15 de março de 2020

137 anos do falecimento de Karl Marx





No dia 14 de março de 1883, faleceu em Londres, um dos mais importantes pensadores que a humanidade conheceu. Independentemente das mudanças ocorridas no mundo do socialismo que culminou com o fim da URSS, a influencia de suas teorias sobre os mais diversos aspectos da sociedade humana, permanece ainda hoje. Mesmo que o mundo contemporâneo tenha sofrido grandes transformações que nos distanciam do século XIX, o essencial do seu pensamento continua a mobilizar "corações e mentes" na defesa e na busca da implantação do comunismo como inevitabilidade histórica.   
A seguir, as palavras com as quais Friedrich Engels homenageia Karl Marx.   
A.Moreira - Mundo do Socialismo 



Discurso Diante do Tumulo de Karl Marx
Friedrich Engels
(17 de Março de 1883)


A 14 de Março, um quarto para as três da tarde, o maior pensador vivo deixou de pensar. Deixado só dois minutos apenas, ao chegar, encontrámo-lo tranquilamente adormecido na sua poltrona — mas para sempre.

O que o proletariado combativo europeu e americano, o que a ciência histórica perderam com [a morte de] este homem não se pode de modo nenhum medir. Muito em breve se fará sentir a lacuna que a morte deste [homem] prodigioso deixou.

Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da Natureza orgânica, descobriu Marx a lei do desenvolvimento da história humana: o simples facto, até aqui encoberto sob pululâncias ideológicas, de que os homens, antes do mais, têm primeiro que comer, beber, abrigar-se e vestir-se, antes de se poderem entregar à política, à ciência, à arte, à religião, etc; de que, portanto, a„pro-dução dos meios de vida materiais imediatos (e, com ela, o estádio de desenvolvimento económico de um povo ou de um período de tempo) forma a base, a partir da qual as instituições do Estado, as visões do Direito, a arte e mesmo as representações religiosas dos homens em questão, se desenvolveram e a partir da qual, portanto, das têm também que ser explicadas — e não, como até agora tem acontecido, inversamente.

Mas isto não chega. Marx descobriu também a lei específica do movimento do modo de produção capitalista hodierno e da sociedade burguesa por ele criada. Com a descoberta da mais-valia fez-se aqui de repente luz, enquanto todas as investigações anteriores, tanto de economistas burgueses como de críticos socialistas, se tinham perdido na treva.

Duas descobertas destas deviam ser suficientes para uma vida. Já é feliz aquele a quem é dado fazer apenas uma de tais [descobertas]. Mas, em todos os domínios singulares em que Marx empreendeu uma investigação — e estes domínios foram muitos e de nenhum deles ele se ocupou de um modo meramente superficial —, em todos, mesmo no da matemática, ele fez descobertas autónomas.

Era, assim, o homem de ciência. Mas isto não era sequer metade do homem. A ciência era para Marx uma força historicamente motora, uma força revolucionária. Por mais pura alegria que ele pudesse ter com uma nova descoberta, em qualquer ciência teórica, cuja aplicação prática talvez ainda não se pudesse encarar — sentia uma alegria totalmente diferente quando se tratava de uma descoberta que de pronto intervinha revolucionariamente na indústria, no desenvolvimento histórico em geral. Seguia, assim, em pormenor o desenvolvimento das descobertas no domínio da electricidade e, por último, ainda as de Mare Deprez.(1*)

Pois, Marx era, antes do mais, revolucionário. Cooperar, desta ou daquela maneira, no derrubamento da sociedade capitalista e das instituições de Estado por ela criadas, cooperar na libertação do proletariado moderno, a quem ele, pela primeira vez, tinha dado a consciência da sua própria situação e das suas necessidades, a consciência das condições da sua emancipação — esta era a sua real vocação de vida. A luta era o seu elemento. E lutou com uma paixão, uma tenacidade, um êxito, como poucos. A primeira Rheinische Zeitung[N47] em 1842, o Vorwärts![N126] de Paris em 1844, a Brüsseler Deutsche Zeitung[N53] em 1847, a Neue Rheinische Zeitung em 1848-1849(2*), o New-York Tribune[N62] em 1852-1861 — além disto, um conjunto de brochuras de combate, o trabalho em associações em Paris, Bruxelas e Londres, até que finalmente a grande Associação Internacional dos Trabalhadores surgiu como coroamento de tudo — verdadeiramente, isto era um resultado de que o seu autor podia estar orgulhoso, mesmo que não tivesse realizado mais nada.

E, por isso, Marx foi o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos, tanto absolutos como republicanos, expulsaram-no; burgueses, tanto conservadores como democratas extremos, inventaram ao desafio difamações acerca dele. Ele punha tudo isso de lado, como teias de aranha, sem lhes prestar atenção, e só respondia se houvesse extrema necessidade. E morreu honrado, amado, chorado, por milhões de companheiros operários revolucionários, que vivem desde as minas da Sibéria, ao longo de toda a Europa e América, até à Califórnia; e posso atrever-me a dizê-lo: muitos adversários ainda poderia ter, mas não tinha um só inimigo pessoal.

O seu nome continuará a viver pelos séculos, e a sua obra também!

Friedrich Engels

sábado, 14 de março de 2020

‘O governo declarou guerra aos índios’






Bernardo Mello Franco e Fernanda Godoy – Em entrevista ao GLOBO, antropólogo diz que Bolsonaro tem ‘obsessão primitiva’ com exploração de terras indígenas. Para ele, missionários buscam ‘desconectar’ povos de sua cultura.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro avalia que a escalada do desmatamento e a pressão sobre povos indígenas piorou após a eleição de Jair Bolsonaro

Numa palestra recente, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse que governar é criar desertos. Ele usou a metáfora para descrever a relação dos donos do poder com o meio ambiente. “Quem já andou pela Amazônia sabe que a grande realização de todo prefeito é derrubar as árvores e cimentar a praça”, comenta.

Crítico de obras faraônicas da ditadura militar e dos governos petistas, o professor da UFRJ considera que a situação ficou ainda pior desde a posse de Jair Bolsonaro. Ele atribui a escalada do desmatamento a uma aliança da gestão atual com os setores mais atrasados da economia, que derrubam a floresta para plantar soja e extrair minério. O avanço das motosserras tem aumentado a pressão sobre os povos indígenas, que o antropólogo estuda desde a década de 1970. “O que eles querem é acabar com os índios no Brasil”, afirma.

Há muito tempo não se falava tanto em ameaças aos índios no Brasil. Por quê?

Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas. O grande capital quer as terras, e os evangélicos querem as almas.

Existe uma frase famosa atribuída a um índio americano: “Nós ficamos com a Bíblia e vocês ficaram com a terra”. Os grandes interesses econômicos, que sempre tiveram a posse do Estado, agora se uniram ao fundamentalismo religioso. Isso é uma coisa relativamente nova no Brasil. E muito preocupante.

Onde o governo entra nisso?

Este governo tem três braços: o econômico, o religioso e o militar. Os militares veem os índios como ameaça à soberania. Os evangélicos tratam os índios como pagãos que devem ser convertidos. E o grande capital quer privatizar ao máximo o território brasileiro, o que significa reduzir as reservas ecológicas e as terras indígenas.

O projeto é abrir novas áreas para o extrativismo mineral e derrubar mais floresta para abrir pasto e plantar soja.

O Brasil está retomando sua vocação de colônia de exportação de produtos primários. Tivemos o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café e o ciclo da borracha. Agora temos o ciclo da soja e da carne.

Bolsonaro nomeou um missionário para o setor da Funai que cuida dos índios isolados. O que isso significa?

Os cristãos fundamentalistas acreditam que é preciso converter até o último pagão, e os índios isolados são os clientes ideais para esse projeto.

O objetivo dos missionários é desconectar os índios das suas condições culturais e materiais de existência. Isso significa separar os povos deles mesmos. Destruir o que há de indígena nos povos indígenas.

   "Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos
indígenas", afirma Viveiros de Castro.
Foto: Ana Branco/ Agência O Globo

É um projeto especialmente sinistro porque está ligado a um programa econômico de desterritorializar os índios para permitir a entrada da mineração. Os missionários são fanáticos, mas os estrategistas do Estado não são.

Desde 1987, a política oficial da Funai era evitar o contato e garantir a proteção dos índios isolados. Essa política sempre foi combatida pelos missionários. Agora também passou a ser combatida pelo governo.

Como vê as declarações do presidente sobre os índios?

São declarações racistas e repugnantes. Essa história de que o índio “está evoluindo” e “cada vez mais é um ser humano igual a nós”… Bolsonaro faz declarações racistas e xenófobas, na medida em que trata os índios como se fossem estrangeiros. Essas falas estimulam a a violência, como se fossem uma licença para matar.

O Brasil tem um governo que declarou guerra aos povos indígenas. O governo Bolsonaro vê os índios como um obstáculo, como algo que precisa acabar. Os governos anteriores nunca atacaram os índios dessa forma.

Qual é o projeto de Bolsonaro para os povos indígenas?

Ele não tem projeto nenhum. Quem tem um projeto é o grande capital, que usa o Bolsonaro como uma espécie de leão de chácara.

O horizonte intelectual do Bolsonaro vai até a bateia do garimpeiro. Ele tem um imaginário do Velho Oeste, uma obsessão primitiva com a ideia de ficar rico com o ouro.

Este é o governo da terra arrasada. Querem desescrever a Constituição de 1988, que não é nenhuma maravilha, mas representou um grande avanço na conquista de direitos e na proteção dos índios.

Por que os militares veem a demarcação de terras indígenas como ameaça à soberania?

Os militares vivem na paranoia de que o Brasil está sob ameaça perpétua de invasão. No plano econômico, a internacionalização da Amazônia já aconteceu há muito tempo, mas eles não dão a mínima.

Como vê os ataques do Planalto a ONGs ambientalistas?

Existem ONGs de todos os tipos, mas o governo só ataca as que difundem práticas de justiça ambiental e social. E esses ataques agradam aos militares, que sempre se viram como donos do território nacional.

O senhor também fez críticas duras aos governos Lula e Dilma. Qual a diferença entre as gestões do PT e a atual?

Fui muito crítico ao modo como os governos Lula e Dilma concebiam o desenvolvimento econômico. A construção da usina de Belo Monte foi uma monstruosidade, uma iniciativa criminosa. Sem falar nas interações bizarras entre os governos do PT e as empreiteiras.

Apesar de tudo, o que estamos vivendo hoje é muito pior. Antes você já tinha garimpeiros invadindo terras indígenas, mas a Polícia Federal ia lá e tentava retirá-los. Agora o governo quer destruir a Funai e incentivar o garimpo.

O que nós temos hoje no Brasil é um projeto de destruição. Bolsonaro já disse que não chegou para construir, e sim para derrubar.

Outra coisa sinistra é a relação do poder com os porões da ditadura, com um submundo que emergiu. Vivemos num país em que a distância entre a milícia e o governo se tornou infinitesimal, para usar um eufemismo.

Como define o espírito deste governo?

O sentimento predominante no governo e em sua base de apoio é o ressentimento. Ele se manifesta nos ricos que não toleram ver a empregada indo à Disney e nos pobres que pararam de ascender socialmente por causa da crise.

O Brasil é um país que não aboliu a escravidão, um país racista. A frase do Paulo Guedes sobre as empregadas indo à Disney pertence ao universo moral da escravidão.

As classes dominantes do Brasil sempre foram eficazes em manter o povo num estado de abjeção intelectual. Darcy Ribeiro já dizia que a crise da educação não é uma crise, é um projeto.

A incapacidade de aceitar as diferenças também produz ressentimento. O sujeito olha em volta e diz: “Este cara é gay, não quer viver como eu”. Então ele pensa que tem que curar o gay, tem que acabar com o índio.

Isso gera um processo de etnocídio, no sentido mais amplo da palavra. Estamos assistindo a um etnocídio geral no Brasil, uma tentativa de exterminar tudo o que não é parecido com quem está no poder.

Por que o ressentimento virou uma arma tão poderosa para políticos populistas?

Isso é um fenômeno mundial. Tem a ver com a ideia de que o mundo em que nós vivemos está acabando. Com a emergência climática, o futuro próximo se tornou imprevisível. E a sensação de que as coisas estão saindo do eixo produz uma insegurança existencial enorme.

Nós imaginávamos que a História iria conduzir o Ocidente a um mundo cada vez mais secular. E o que se vê é um retorno da religião e do fundamentalismo, que estão ligados a esse sentimento de pânico.

https://oglobo.globo.com/brasil/eduardo-viveiros-de-castro-governo-declarou-guerra-aos-indios-24251561


domingo, 8 de março de 2020

Por uma Filosofia Popular Brasileira



Ela precisa abandonar a ideia tola de neutralidade para perder-se na potência ainda amordaçada das ruas, rodar nas encruzilhadas, reivindicar a radicalidade das macumbas. E ser gira: mudança e festa; saber, corpo e rebeldia




Por Rafael Haddock-Lobo
Publicado 04/02/2020 às 20:31 - Atualizado 04/02/2020 às 20:41


MAIS:
> Este texto é parte da edição de Feveiro da Cult, que tem como destaque um Dossiê Filosofia e Macumba. Consultar o índice e ou assine. Quem contribui Outras Palavras,a partir de R$ 60 mensais, recebe gratuitamente uma assinatura anual.

> O acervo de Christian Cravo, que cedeu gentilmente nossa imagem de capa, está aqui.

> Título original: A gira macumbística da FilosofiaI

Por Rafael Haddock-Lobo, na Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras | Imagem: Cristian Cravo



Meu pai veio da Aruanda e a nossa mãe é Iansã.
Ô, gira, deixa a gira girar.



Em 1977, Roberto Gomes publicava seu primeiro livro, Crítica da razão tupiniquim, no qual apresentava algumas sérias provocações à produção filosófica brasileira. A importância do livro é tanta, embora aparentemente ignorada pela comunidade filosófica, que Darcy Ribeiro chegou a afirmar, quando do seu lançamento, que o Brasil teria voltado, afinal, a filosofar. Dois anos depois, em 1979, Gerd Bornheim, filósofo brasileiro e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), publicou o ensaio “Filosofia e realidade nacional”: defendia que uma filosofia dita brasileira precisa ser substantiva, e não meramente adjetiva. Isso quer dizer que não basta produzir uma filosofia em território nacional para dizer que no Brasil se faz filosofia brasileira.

Gerd Bornheim chama atenção de que é preciso algo mais para que façamos uma filosofia brasileira – fato para o qual o provocativo livro de Roberto Gomes já atentara antes. Ambos apontam que a filosofia precisa se debruçar sobre a singularidade de nossas questões (múltiplas, diversas, plurais) e abandonar as ideias de neutralidade e universalidade que, junto com a colonização, chegam em nossas academias de contrabando. Sem isso, não conseguiremos abandonar seu patamar elitista e ter algum contato real com aquilo que, das ruas, provoca o verdadeiro pensamento.

É nesse sentido que venho tentando afirmar que a filosofia brasileira, para ser digna desse nome, precisa ser uma filosofia popular brasileira. Uma filosofia produzida com base em uma experimentação efetiva dos saberes e culturas produzidos por aquilo que a elite chama de “popular”. É claro que esses saberes são elaborados independentemente da academia, mas meu intuito é, justamente, mostrar o quanto esta perde ao não se conectar com a potente produção que se encontra em andamento nas ruas.

Diante dessa pluralidade, ou dessa multiplicidade de vozes e sotaques, uma filosofia “brasileira” seria aquela que, sem clamor identitário ou nacional, assumiria perspectivas dessas vozes e desses sotaques, a fim de produzir um pensamento que emerja dessas experiências. Buscando reunir esses elementos, passeando pelos pensamentos dxs grandes filósofxs do Candomblé (como Mãe Beata de Iemanjá, Mãe Stella de Oxóssi, Omindarewa, Professor Agenor); de filósofxs afro-brasileirxs (como Sueli Carneiro, Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Nego Bispo, Uã Flor do Nascimento, Renato Noguera, Marcelo Moraes); de filósofxs ameríndixs (como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Tonkire Akrãtikatêjê, José Urutau Guajajara, Sandra Guarani Nhandewa), acabo me encontrando com dois pensadores que, juntos ou separados, me ajudam hoje a recolocar essa constante provocação endereçada à filosofia. São eles Luiz Antonio Simas, um filósofo-historiador (das ruas), e Luiz Rufino, um filósofo-pedagogo (das encruzilhadas), cuja produção intelectual é preciosa para pensar uma vez mais o que seria uma filosofia brasileira, através justamente de uma relação imprescindível entre filosofia e macumba.

Eles nos chamam a atenção para o fato de que tal debruçar sobre a cultura popular brasileira só pode acontecer se o filósofo, abandonando seus escritórios, suas bibliotecas, e mesmo suas salas de aula, pegar seu caderninho de anotações, como fizeram tão bem Walter Benjamin e Guimarães Rosa, e sair dos muros das universidades e se dirigir às ruas, aberto aos encontros que as encruzilhadas propiciam. Esse movimento de saída da academia às ruas, que poderia ser compreendido como um giro ético-político tal como parece acontecer na filosofia ocidental contemporânea, parece ter uma configuração um pouco diferente quando se dá em nossas terras.

Como somos produtos da colonialidade, isto é, desde a colonização do pensamento até o assassinato de habitantes nativos, sequestro, escravização e estupros de negros, esse giro ético-político certamente se dá de modo diferente em terras tupiniquins: aqui é preciso promover o giro a partir daquilo que é, ao mesmo tempo, mais próprio, mais comum, mais banal, mas também mais escondido, mais temido, mas causador de vergonha, que, junto a Rufino e Simas, chamo de macumba. Se o termo pejorativo macumba é usado como ofensa, para diminuir os saberes das religiosidades africanas e ameríndias que se encruzam em nosso solo, devemos, seguindo a performatividade queer, potencializar tal termo para extrair dele o máximo, a fim de afirmar a relevância epistemológica, estética, ética e política das macumbas.

Macumba, então, passa a ser pensada na perspectiva de uma filosofia da cultura popular brasileira, com base não apenas nas práticas religiosas afro-ameríndias, como os candomblés, as umbandas, os batuques, os catimbós, as juremas, os tambores de minas, mas também das capoeiras, dos sambas de roda, dos fundos de quintal, dos jongos e de todas as rodas que promovem outras epistemologias e que, por serem de fato populares, isto é, originárias das ruas, são por isso mesmo revolucionárias.

Entretanto, um giro macumbístico como esse que ocorreria ao Sul, que é certamente tão ético e político como o ocidental ou mais, porque é também poético e epistemológico, não pode tão somente tomar a forma de um giro, no sentido de reviravolta, virada ou tantos outros nomes que se dá a um novo rumo de certo pensamento. Como me lembrou Rodrigo do Amaral Ferreira, se falo de giro macumbístico, o que preciso marcar é que tal giro se transforma em gira.

A gira, o feminino do giro, sua feição mulher, que, não apenas gira como o giro no sentido de mudar, desviar, promover deslocamentos, mas que também gira como a festa, a roda, o encontro que abre os caminhos e que é marcada pelo termo quimbundo njira. Falo, portanto, de uma gira macumbística da filosofia brasileira, gira através da qual a filosofia brasileira, antes apenas adjetivada como uma produção do território nacional, pode vir a encarnar a brasilidade das ruas, tornar-se substantivo produzido por corpos, músicas, sonoridades, cores, espíritos, cheiros e tantas outras coisas que jamais compreenderá nossa vã academia.

E esse “jamais compreender” é, aqui, imperativo, pois a ideia de compreensão, atividade unicamente mental, é o que impede a própria relação com o conhecimento macumbeiro, que precisa ser sentido pelo corpo como um todo, experimentado por sentidos e razões múltiplas para que, em vez de ser compreendido, prendido, apreendido, aprendido na forma de sujeito e objeto, ele seja incorporado, tateado, degustado, cheirado, ouvido, cantado. Só assim ele poderá baixar, ainda que sempre provisória e precariamente, assombrando-nos e sendo, tal conhecimento, muito mais o “sujeito” dessa relação.

Por fim, ao contrário de Hegel, que afirma que o Espírito se fenomenaliza por meio de diversas e subsequentes etapas arquitetadas pela Razão, afirmo que os espíritos baixam através de diferentes giras, sem ordem nem razão prévias, guiadas apenas pelo imperativo do “deixa vir quem tem de vir” – como dizia minha falecida mãe de santo Concheta Perroni. É por essa razão que essa gira macumbística força a filosofia a se constituir como uma espécie de “empirismo radical”, no qual a hipérbole da noção de experiência é tamanha que os próprios lugares de sujeito e objeto, de consciência e mundo, ou qualquer outro dualismo epistemológico, encruzam-se de tal maneira que não podemos mais definir com precisão os limites entre o dentro e o fora, mas apenas marcar o encontro no coração da encruzilhada.

E assim, só assim, a filosofia, em vez de barrar ou atrapalhar o que vem das ruas, pode deixar a gira girar – imperativo, enfim, de uma filosofia popular brasileira.

Rafael Haddock-Lobo é doutor em Filosofia pela PUC-Rio e professor do Departamento de Filosofia da UFRJ e da UERJ


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