quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ciência Livre: vale a pena um professor criar o seu blog

Ladislau Dowbor propõe a professores e pesquisadores: crie um blog,
compartilhe conhecimentos, ajude a superar a era propriedade intelectual  

Por Ladislau Dowbor 

Na virada do milênio, decidi repensar os meus arquivos e as minhas publicações. Hoje posso fazer um balanço. Como professor e pesquisador, na área de desenvolvimento econômico, social e ambiental, tenho naturalmente que trabalhar com inúmeras publicações dos mais diversos tipos, textos, estatísticas, relatórios internacionais, artigos pontuais, além da minha própria produção. Fortemente pressionado pelo meu filho Alexandre, que achava pré-históricas (já naquela época) as minhas pilhas de papéis, pastas e clips, dei uma guinada, passei para o digital. Agradeço hoje a ele, que ajudou a montar meu primeiro site. Alguns já chamam este tipo de ajuda de filhoware.

Decidi fazer este pequeno balanço porque pode ser útil a muita gente que se debate com a transição. Deixem-me dizer desde já que o resultado não foi uma migração simples para o digital, e sim uma articulação equilibrada do impresso e do digital, bem como de publicação tradicional com publicação online. Chamemos isto de arquitetura do trabalho intelectual.

O ponto de partida foi o meu blog, http://dowbor.org, hoje de ampla utilização nacional e internacional, se é que esta distinção ainda existe. O sucesso não se deve apenas ao interesse do que eu escrevo e à facilidade de acesso que o blog permite, mas ao fato que do lado do usuário – leitor, aluno ou colega professor – houve uma drástica mudança de comportamento: a cultura digital do livre acesso está se tornando dominante. De certa forma, estamos adequando a oferta à nova demanda e ao novo formato de uso que emerge.

Deixem-me lembrar a força da dinâmica: o MIT, principal centro de pesquisa dos EUA, criou o OpenCourseWare (OCW), gerando em poucos anos mais de 50 milhões de textos científicos baixados gratuitamente pelo mundo afora. Harvard aderiu ao movimento com o EdX, a China trabalha com o CORE (China Open Resources for Education), a Universidade da Califórnia entrou na corrente em 2013, a Inglaterra contratou Jimmy Wales, criador da Wikipedia, para gerar um sistema de acesso gratuito online a toda pesquisa e publicação que tenha participação de dinheiro público. E quando áreas de excelência do mundo científico abrem o caminho, é provável que se trate do futuro mainstream. No Brasil estamos dando os primeiros passos, com Recursos Educacionais Abertos (REA), de maneira ainda muito tímida.

Isto dito, eu que não sou nenhum MIT, constatei nestes anos de experiência prática do meu blog o seguinte, esperando que as informações sejam úteis:

1. A criação de um blog individual de professor representa um investimento extremamente pequeno, comparando com o benefício obtido, sobretudo porque hoje temos estagiários blogueiros da nova geração que tiram isto de letra. Não custará muito mais do que uma bicicleta. A alimentação do blog, por sua vez, é igualmente simples, basta escrever alguns passos no papel e seguir. E se tiver filho é mais simples ainda.

2. Ter um blog não é um ônus em termos de tempo, pelo contrário. As pessoas imaginam ter de “alimentar” um blog, ou seja, comunicar o tempo todo. Um blog científico como o meu é, na realidade, muito mais uma biblioteca de fácil acesso universal, do que uma “newsletter” que eu precise acompanhar e administrar. Não é muito distinto, nesse aspecto, de uma estante em minha biblioteca, com a diferença que é muito mais fácil encontrar meu texto com uma palavra-chave no computador, do que localizá-lo na estante ou nas pilhas. E quem precisa de um texto pode pegá-lo no meu blog, não precisa pedir o livro emprestado, nem perder tempo dele e meu. Pegam o que precisam, e eu não deixo de ter o que pegam.

3. Produção científica e divulgação deixam de constituir processos separados. O artigo ou livro que o professor escreve, ou que recebeu e quer divulgar, é colocado no blog, e está no ar. Quem se interessar pode pegar. Recebi um e-mail de Timor Leste, onde falam português, pedindo para utilizar na formação de professores o meu texto Tecnologias do Conhecimento: os desafios da educação, editado pela Vozes. Autorizei e agradeci. Não precisei ir lá oferecer, nem empacotar livros. E eles encontraram simplesmente porque colocaram palavras-chaves na busca por internet. Cria-se um mundo científico colaborativo. Não me pagam nada, mas é útil, e tenho meu salário na PUC. Ponto importante, o livro vai para a 6ª edição pela editora: uma coisa não atrapalha a outra, a editora encontra o seu interesse também.

4. O essencial não está na gratuidade, mas na facilidade de acesso e na pesquisa inteligente. Procurar um artigo que saiu em alguma revista, e buscá-lo numa biblioteca, nesta era em que o tempo é o recurso escasso, francamente já não funciona. Mais importante ainda é a possibilidade de folhear em pouco tempo dezenas de estudos diferentes sobre um tema, através da pesquisa temática, cruzando enfoques de diversas disciplinas, autores e visões. Conhecer o estado da arte de um problema determinado, de maneira prática, ajuda muito na construção colaborativa do saber e na inovação em geral.

5. O blog torna-se também uma biblioteca de terceiros. Coloco no blog, na seção Artigos Recebidos, textos que me enviam e que me parecem particularmente bons, tanto para o meu uso futuro como para repassar a outras pessoas. Por exemplo, quando me fazem uma pergunta sobre energia, recomendo que leiam, em meu site o artigo de Ignacy Sachs, disponível na íntegra, sobre A Revolução Energética do Século XXI. Forma-se assim uma biblioteca personalizada que irá facilitar imensamente consultas posteriores, ou recomendações de leitura para alunos.

6. Como professor, recebo frequentemente textos excelentes dos meus alunos. Conheço suficientemente minha área para saber que se trata de um ótimo trabalho. Normalmente, ninguém o leria, pois o aluno não é conhecido. Eu coloco no blog, e envio um mailing para colegas e colaboradores, alertando para um bom texto que surgiu. Costumo receber agradecimentos do aluno, que viu o seu estudo solicitado por várias pessoas. Enterrar um bom trabalho numa biblioteca é uma coisa triste. De certa forma, utilizo assim o meu blog para “puxar” para a luz bons trabalhos de pessoas menos conhecidas.

7. Tudo isto está baseado no marco legal chamado Creative Commons, internacionalmente reconhecido, que me assegura proteção: as pessoas podem usar e divulgar, mas não utilizar para fins comerciais. Trata-se da plataforma jurídica da ciência colaborativa, instrumento que me protege ao impedir a apropriação comercial, a deturpação do texto ou o uso sem fonte, ao mesmo tempo que permite que o artigo seja imediatamente acessível para fins didático-científicos ou recreativos. O Google-Scholar me permite inclusive acompanhar as citações que fazem dos meus trabalhos.

8. Um aspecto muito enriquecedor do processo é que me permite utilizar texto, imagens e sons sem nenhum constrangimento em cada produção. Associo ao que escrevo ilustrações artísticas, fragmentos de um discurso ou animações gráfica, livremente – pois do lado de quem lê haverá a mesma facilidade. A experiência criativa fica particularmente valorizada, considerando as dificuldades de tentar se reproduzir determinados gráficos, que podem ser simplesmente copiados para o texto em elaboração, ao mesmo tempo que se inclui o link do texto de origem, ajudando a divulgá-lo e facilitando verificações. A multimídia bem utilizada é muito útil.

9. Trata-se de uma ferramenta em que o universo educacional, em particular, tem muito a ganhar. Em vez de o professor procurar em revistas das bancas de jornais artigos para discussão com alunos, pode pesquisar os textos online, e repassar para os alunos os links. Os alunos inclusive encontrarão diversos textos online sobre o tema, desenvolverão sua capacidade de pesquisar no imenso acervo digital, trarão para a discussão enfoques diversificados. Cabe a nós assegurar que haja um rico acervo de textos científicos disponíveis online, alimentando de certa forma o conjunto do universo educacional. O professor será aqui um pouco menos um transmissor de conhecimento, e bastante mais um organizador que ajuda a entender o que é relevante e ensina a trabalhar com conhecimento organizado.

10. O processo não conflita com o sistema atual de avaliação de professores. Para quem não é da área acadêmica, informo que o fato de milhares de pessoas lerem os meus textos online não me dá créditos acadêmicos. A minha solução é que publico, sim, em periódicos formalmente avaliados como “acadêmicos”, para ter os créditos que a CAPES me pede. Mas para ser lido, publico online. Uma coisa não impede a outra. Aliás, um artigo meu publicado pela universidade da Califórnia, por exemplo, e pelo qual não me pagaram, só pode ser acessado mediante pagamento de 25 dólares a cada 24 horas. Chamam isto de direitos autorais. Esperar ser lido nestas condições, francamente, não é muito realista. A Elsevier cobra entre 35 e 50 dólares por artigo e por acesso. Mais de 15 mil cientistas norte-americanos já boicotam as revistas ditas “indexadas”, e publicam em sites abertos, inclusive com open peer-review. Mas enquanto a CAPES não atualizar seus critérios, precisamos utilizar o papel e o digital – um para pontos, outro para leitores.

11. Com pequenos conselhos de alunos e colegas, fui acrescentando ao blog os instrumentos mais evidentes de comunicação. Abri a possibilidade de qualquer pessoa se inscrever para receber meus e-mails sobre materiais científicos que me parecem relevantes. Tenho atualmente mais de três mil “colegas virtuais”, a quem envio de forma não invasiva uma notinha sobre novos textos que surgem e que estão disponíveis no meu site. Uma aluna me colocou no twitter, são cerca de 3,5 mil seguidores que recebem os textos meus ou os que recomendo. O Facebook é outro instrumento, permite fazer circular o material. Portanto, minha biblioteca virtual não só organiza os textos que utilizo, como se comunica facilmente com todos os interessados, mesmo que não me conheçam.

12. Uma virtude básica do processo, que precisa ser entendida, é que os textos circulam não só porque alguém os coloca online, mas porque são interessantes. Não porque os donos da mídia os divulgam e recomendam, mas porque os usuários os acham bons. Quando me chega um bom texto, a primeira coisa que faço é repassar com comentários. Ou seja, o que passa a circular é o que é realmente bom, o que corresponde ao que as pessoas necessitam como informação científica organizada. Ao olhar as estatísticas de acesso aos meus trabalhos, posso identificar o que realmente está sendo lido, e pelos comentários posso avaliar insuficiências ou correções necessárias. O texto passa a constituir um processo interativo de construção científica.

13. Finalmente acho que, da mesma forma que temos pela frente a democratização da mídia – e surgiram excelentes alternativas de informação inteligente como Carta Maior, Envolverde, Mercado Ético, IHU, Outras Palavras, Monde Diplomatique e tantos outros – precisamos também criar um movimento do tipo “ciência livre”, que tire os nossos textos do esquecimento das bibliotecas. O Instituto Paulo Freire, por exemplo, ao constatar que com a lei atual de copyright só teremos acesso aberto aos textos do pedagogo a partir de 2050, colocou grande parte dos seus escritos online, com exceção de alguns trancados por contratos de direitos muito restritivos. É uma imensa contribuição. Mas acho que temos de fazer isto com todos os nossos grandes gurus, com os transformadores atuais da ciência, e com textos da nova geração que estão inovando. É incrível sermos inundados por bobagens nos meios de comunicação sem que o peçamos, e que dificultemos o acesso aos trabalhos científicos essenciais para o progresso educacional do país. Enterrar dissertações de mestrado e teses de doutorado em bibliotecas, elas que custaram anos de trabalho do professor e do pesquisador, é absurdo.

Permito-me aqui fazer uma recomendação para todos os professores. Organizem o seu blog, hoje um WordPress é gratuito e muito jovem lhe ensinará o caminho. Temos de dar este passo, e criar um ambiente rico e colaborativo no nosso mundo científico-acadêmico. Francamente, acho que faz parte da vocação do professor e do pesquisador não só ensinar e inovar, como organizar de forma moderna a comunicação das ideias que possam enriquecer a nova geração e enriquecer-nos uns aos outros. E se quiserem se inspirar do meu blog como estrutura e divisões (apanhei um pouco no começo até montar um formato adequado para professor), fiquem à vontade; eventualmente, posso até recomendar pessoas capazes de ajudá-los. Vamos encher este país de ciência, de boa ciência, progressista, transformadora.

Quanto ao medo das pessoas de nos vermos invadidos por ciência irresponsável, descontrolada, francamente, são os mesmos medos que surgiram com o open access, com a Wikipédia, e outros. Os textos ruins ou irrelevantes simplesmente não circulam, e não serão lidos. Um professor comentando o sistema de peer-review publicou online a seguinte nota a respeito: “Eu conheço a minha área, não preciso que alguém me diga se um artigo é relevante ou não”.

Imagem: Henri Matisse, Alegria de Viver

Ladislau Dowbor é professor de economia nas pós-graduações em economia e em administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e consultor de várias agências das Nações Unidas. Seus artigos estão disponíveis online em http://dowbor.org



FONTES: Outras Palavras e Carta Maior

sábado, 23 de novembro de 2013

Pesquisa da Unicamp revela sucesso de empresas sob autogestão de trabalhadores


Dissertação 'Autogestão dos trabalhadores como alternativa para recuperação de empresas falidas ou em processo falimentar' é de Thiago Figueiredo Ribeiro.


Jornal da Unicamp

Criação, encerramento e falência de empresas constituem um processo dinâmico e intrínseco ao capitalismo. Particularmente as empresas de maior porte, ao encerrar as atividades, geram perdas significativas para agentes econômicos e, dependendo de sua abrangência, alteram até a dinâmica de uma localidade. Perdem-se, também, conhecimentos acumulados, competências desenvolvidas e, normalmente, ocorre o desmonte da estrutura produtiva com a venda de ativos para o pagamento de credores, inviabilizando a possibilidade de retomada das atividades.

O Direito Falimentar brasileiro disponibiliza instrumentos que visam minimizar os danos e preservar as atividades empresariais, recuperar o empreendimento, salvaguardar interesses de credores e maximizar o valor dos ativos. Para tanto, o instrumento de recuperação judicial abre a possibilidade aos trabalhadores, enquanto credores, de buscar alternativas para o encaminhamento da situação.

Nesses casos destaca-se a possibilidade da organização coletiva dos trabalhadores em um empreendimento de autogestão (cooperativa), como forma de viabilizar o arrendamento da massa falida para o grupo constituído e a continuidade das atividades produtivas. Essa solução, entretanto, não automática nem regulamentada, resulta, na maioria das vezes, de um processo de luta encampado pelos trabalhadores, apoiados pelos respectivos sindicatos.

Esse processo, muitas vezes longo e penoso, é assumido, em geral, pelos trabalhadores mais antigos, com menores chances de recolocação no mercado e que atuam no chão de fábrica. Ainda assim, em cada caso, o grau de dificuldade enfrentado dependerá, em última instância, de decisões da Justiça do Trabalho.

Essas experiências foram mais significativas no Brasil na década de 1990, em uma época em que os postos de trabalho escasseavam em todo o mundo e vaticinava-se a drástica e progressiva redução do emprego formal. No país, a mudança cambial e a abertura comercial agravaram a situação. O movimento sindical brasileiro, que nessa ocasião teve contato com a autogestão e o cooperativismo internacional, incorporou essa bandeira à sua luta, com a perspectiva de preservar os postos de trabalho e a renda dos empregados das empresas falidas.

Acreditando na importância econômica e social da manutenção do emprego e da renda – função social da empresa – e considerando um desperdício permitir que empresas com potencial produtivo encerrem suas atividades, Thiago Figueiredo Fonseca Ribeiro, elaborou dissertação de mestrado em que discute a viabilidade atual da autogestão dos trabalhadores como alternativa para a recuperação de empresas falidas ou em processo falimentar no Brasil. O trabalho foi apresentado ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, orientado pelo professor Rodrigo Lanna Franco da Silveira.

Pontos de partida

Do ponto de vista microeconômico são analisadas as experiências de recuperação de empresas em processo de autogestão dos trabalhadores e verificada sua viabilidade. No sentido mais amplo, das políticas públicas, o autor procura entender como outras experiências de autogestão dos anos 1990 desaguaram no movimento da Economia Solidária e culminaram, em 2003, na criação da Secretaria Nacional de Economia Solidaria (SENAES), ligada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que concentrou a maioria das ações públicas relativas ao tema. Explicita as características e funções do órgão, explica os óbices que impediram avanços na construção de uma política mais efetiva e analisa sua contribuição para a recuperação de empresas autogestionárias.

Baseado em duas experiências empíricas, o autor procura responder a duas perguntas básicas: a recuperação de empresas industriais falimentares, através da organização do trabalho e dos trabalhadores de forma coletiva e autogestionária (cooperativas), constitui-se em uma alternativa economicamente viável? Em sendo positiva essa resposta, quais as possibilidades de se reproduzir as experiências estudadas para a recuperação de outras empresas nos dias atuais?

Para responder a estes questionamentos, ele estudou a evolução das políticas públicas na construção das possíveis bases de sustentação para essas iniciativas (apoio técnico, capacitação, marco legal e financiamento) e se concentrou em duas experiências em andamento. Uma na Unipol (Cooperativa da Indústria de Polímeros de Joinville), em Santa Catarina, e a outra na Metalcoop (Cooperativa de Produção Industrial de Trabalhadores em Conformação de Metais), localizada em Salto, interior de São Paulo.

Constatações

Thiago chega a duas conclusões importantes. Se por um lado, do ponto de vista econômico, essa forma de organização é capaz de recuperar parte das empresas em falência, por outro lado, não se conseguiu avançar no país, na última década, nos aspectos que envolvem suas bases de sustentação. Em decorrência disso e ainda do fato de hoje se desenvolver um novo ciclo econômico, com aumento de postos de trabalho e de salários, a força política dos defensores dos modelos alternativos se reduziu.

Para ele, perdeu-se o bonde da história e a oportunidade de avançar no estímulo de iniciativas dessa natureza no Brasil. As taxas de sucesso relativamente baixas dessas experiências decorrem das deficiências estruturais oriundas de processos pelas quais passaram essas empresas ao serem recuperadas, agravadas pela ausência de leis e financiamentos, de apoio técnico e de competência em seus quadros.  E constata: “Com poucos casos bem-sucedidos em andamento e em vista do atual ciclo virtuoso de nossa economia nos últimos anos, o que se verifica atualmente é um quadro de abandono dessas poucas experiências pelo setor público e uma grande morosidade no trâmite de uma legislação condizente com a realidade desses empreendimentos”.

Os estudos de caso, segundo o pesquisador, o credenciam a afirmar que os trabalhadores são capazes de assumir os novos papeis e que o processo é viável: “Embora olhados com descrença e sem apoio, os trabalhadores correm atrás do que precisam, aprendem, estudam e dão conta da gestão. Um dos presidentes de uma das cooperativas era estoquista, hoje tem MBA, senta-se à mesa com o BNDES. Tive oportunidade de observar transformações realmente fenomenais e emocionantes dentro do grupo dirigente”. Ele conta que na mesma empresa os diretores realizam há onze anos uma gestão eficiente. Pagaram praticamente todo o passivo dos trabalhadores que não permaneceram na cooperativa e compraram a massa falida com fundo do BNDES, tornando-se assim, efetivamente, autogestores, já que isso pressupõe, simultaneamente, a participação nos processos decisórios e à propriedade dos meios de produção.

Os insucessos acompanham os empreendimentos que começam mal financeiramente e, em decorrência, não conseguem se recuperar. Ele defende então uma boa análise financeira inicial, oferta de linhas de crédito, apoio técnico em termos de gestão, criação de legislação coerente, aspectos que poderiam ter sido encaminhados pela SENAES, que encampou as políticas públicas de Economia Solidária e a quem também estava afeta a recuperação de empresas.

A Secretaria iniciou um trabalho de diagnóstico, de legislação, mas avançou pouco. No atual governo o ciclo negativo da economia se transformou em positivo, passou-se do desemprego estrutural ao pleno emprego e a Economia Solidária, que foi criada para pensar alternativas do modelo capitalista tradicional, perdeu força. O modelo, que nasceu como resposta a uma crise e envolve um processo duro, demorado, cansativo, estressante se exaure, porque não conta com apoio público, não tem financiamento, não tem apoio técnico. O autor comenta com tristeza: “A Economia Solidária volta à pauta na próxima crise de emprego com tudo a construir”.

Dilemas

Para Thiago Ribeiro, mesmo com a maioria das variáveis examinadas conspirando contra as possibilidades de sucesso das iniciativas de recuperação de empresas pela autogestão dos trabalhadores, as experiências estudadas surpreendem pelos resultados alcançados e pela capacidade de organização e gestão dos trabalhadores envolvidos. “A manutenção dos postos de trabalho e a significativa contribuição para o pagamento do passivo trabalhista das antigas empresas, garantidos pelo arrendamento dos meios de produção, constituem fatores que justificam o investimento de tempo e energia dedicados a essas experiências e demonstram tratar-se de uma possibilidade concreta para o encaminhamento de crises e recuperação de empresas falimentares”, enfatiza ele.

Embora o processo se mostre viável em casos particulares, atualmente apresenta grande risco e exige enormes sacrifícios dos envolvidos, não configurando alternativa com possibilidades de reprodução em termos de políticas públicas.

O pesquisador considera que o dilema está em conseguir com a autogestão maior produtividade, eficiência, segurança e felicidade do que na empresa capitalista convencional: “Essa é a luta, mesmo porque o mercado comprador continua o mesmo. Pode haver um nicho de pessoas que se disponha a pagar um pouco mais por um produto de uma empresa autogestionada, mas em geral o consumidor quer padrão e qualidade por preço menor.”

Para o pesquisador, as empresas estudadas são tão boas ou melhores que as concorrentes e por isso sobrevivem. Para ele “a Economia Solidária não está criando um novo mundo, não está fazendo uma revolução operária. Está propiciando a criação de um ambiente mais saudável, mais democrático, com melhores condições de evolução pessoal”.

O estudo o leva a uma crítica ao fazer político no Brasil, que não constrói: “Criamos uma Secretaria que não deu respostas aos problemas enfrentados pela Economia Solidária e que se extinta não vai deixar praticamente nenhum legado”.  Considera, por sua vez, que o movimento popular também precisa realizar uma autocrítica.

Na sua visão, as empresas em recuperação não deveriam estar no mesmo arcabouço da Economia Solidária porque, face ao menor número, não têm expressão política nem condições de influir em negociações. E conclui: “Cerca de 500 empresas em recuperação não conseguem conversar com outras vinte mil que constituem o grupo, com a agravante de que estas se dividem em grupos com interesses bem diversos, do que resulta enfraquecimento do movimento”.

FONTE: Carta Maior

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Odebrecht, uma transnacional alimentada pelo Estado


Em junho de 2013, o descontentamento social levou os brasileiros a se manifestar em massa nas ruas do país. No alvo, as desigualdades, as condições indignas de transporte, a corrupção e... a transnacional Odebrecht: aos olhos de muitos, a empresa encarna os excessos de um capitalismo de compadrio


Por Anne Vigna


Você conhece alguma transnacional brasileira?”, perguntava em 2000 a The Economist. “Difícil, não? Mais do que lembrar o nome de um belga famoso.”1 Estaria a revista britânica querendo fazer graça ou não suspeitava de que os grandes grupos brasileiros entrariam de maneira rápida e espetacular na dança do grande capital? Como a Odebrecht, que é hoje no Brasil o que a Tata é na Índia e a Samsung é na Coreia do Sul.2 Em São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires ou Assunção, é difícil passar um dia sem usar a eletricidade que a empresa produz, as estradas que ela constrói ou o plástico que fabrica.

Geralmente descrita como uma empresa de engenharia de construção, na verdade a Odebrecht foi se diversificando ao longo do tempo até se tornar o maior grupo industrial do Brasil. Energia (gás, petróleo, nuclear), água, agronegócio, setor imobiliário, defesa, transportes, finanças, seguros, serviços ambientais e setor petroquímico: sua lista de atividades constitui um inventário interminável. Mas, embora a brasileira seja a maior construtora de barragens do mundo, com onze projetos tocados simultaneamente em 2012, é o setor petroquímico que gera mais de 60% de suas receitas. A Braskem, “joia” compartilhada com a Petrobras, produz e exporta resinas plásticas para sessenta países.

O grupo – desculpe!, “a organização”, como pede para ser chamada – tem escritórios em 27 países e emprega mais de 250 mil pessoas, sendo 80 mil indiretamente. Em dez anos, seu volume de negócios aumentou seis vezes, passando do equivalente a R$ 15 bilhões em 2002 para R$ 96 bilhões em 2012. “A Odebrecht é um dos grupos brasileiros que mais espetacularmente cresceram nos últimos dez anos, tornando-se de certa forma a espinha dorsal da economia brasileira”, diz João Augusto de Castro Neves, encarregado da América Latina no centro de análise econômica Eurasia Group.

De origem alemã, a família Odebrecht emigrou em 1856, chegando ao estado brasileiro de Santa Catarina para em seguida se estabelecer em Salvador, na Bahia, onde sua empresa familiar foi fundada em 1944. Aos 93 anos, Norberto, fundador, teórico e encarnação da empresa que carrega seu sobrenome, continua sendo o homem por trás do grupo, hoje dirigido pela terceira geração, o neto Marcelo. Aqui, nada muda: a filosofia do chamado “doutor Norberto” seria a chave para o sucesso.

Empresários abalados pelo livre-comércio

“O risco”, diz Marcio Polidoro, porta-voz do grupo, “é crescer rápido demais, e nossos novos integrantes [aqui não se fala em ‘funcionários’] não terem tempo para aprender o que faz a nossa força: a TEO”. TEO? A “tecnologia empresarial Odebrecht”, que “comunidades de conhecimento” são encarregadas de disseminar entre os trabalhadores. A ideia principal desse mecanismo de “transmissão de experiência”: alcançar uma “educação constante por meio do trabalho” entre os “líderes educadores” e os “jovens talentos”. Um modelo de empresa-escola no qual o conhecimento visa menos emancipar do que aumentar a produtividade.

“A organização deve ter uma estrutura horizontal, na qual as decisões e os resultados, em vez de subirem e descerem, fluem e refluem”, escreve Norberto Odebrecht em suas obras completas, publicadas sob o título de Educação pelo trabalho, que cada novo membro contratado é obrigado a ler. Educado por um pastor luterano, primeiro em alemão depois em português, Odebrecht é apaixonado pelos valores morais de sua educação: “O primeiro dever do empresário é cuidar de sua saúde, levando uma vida simples, longe dos prazeres mundanos e dos vícios”, escreve o patriarca. Mas sua máxima favorita continua sendo: “A riqueza moral é a base da riqueza material”.

Sem a intenção de ofender Norberto, o fato é que, tanto no caso da Odebrecht como no da maioria das transnacionais brasileiras, outros fatores pesaram pelo menos tanto quanto a exemplaridade espiritual. A começar pelo Estado.

A partir da década de 1930, sob a liderança de Getúlio Vargas, e durante a ditadura militar (1964-1985), a estratégia de desenvolvimento econômico autônomo e substituição das importações levou o poder a assumir aquilo que o economista Peter Evans chamou de papel de “parteira” na “emergência de novos grupos industriais ou expansão daqueles já existentes rumo a novos tipos de produção, mais arriscados”.3 Construção de barragens, estradas, ferrovias, instalações petrolíferas, usinas nucleares: o “milagre econômico” gerado pelas políticas voluntaristas (e antissociais) da ditadura foi um maná para a Odebrecht.

À sombra do Estado, a empresa conseguiu socializar o custo de seu desenvolvimento tecnológico: os contribuintes pagam mais caro pelos produtos e serviços que o país se recusa a importar. O resultado desafia os pressupostos ideológicos do Brookings Institution, um think tankliberal norte-americano: “paradoxalmente,” o protecionismo brasileiro teria “oferecido uma base sólida para a próxima geração de empresas privadas, voltadas para o exterior e envolvidas na competição globalizada”.4

Quando o “milagre” brasileiro terminou, na virada da década de 1980, os grandes grupos verde-amarelos tinham tecnologia e recursos suficientes para conquistar o mercado internacional. Para a Odebrecht, foram o Peru e o Chile em 1979, Angola em 1980, Portugal em 1988, Estados Unidos em 1991 e, finalmente, o Oriente Médio na década de 2000.

A empresa reencontrou sua relação privilegiada com o Estado quando o ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva chegou à Presidência, em 2003. Para a surpresa de muitos, Lula buscou contatos e apoio dentro de um patronato que, em parte, se sentia meio abalado pelas políticas de livre-comércio de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). E conseguiu.

“Com Lula”, explica Pedro Henrique Pedreira Campos, pesquisador em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, “o capital privatizado ao longo da década de 1990 volta para mãos públicas”. Mas sem ser nacionalizado. Como? “Por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social [BNDES], da Petrobras e dos grandes fundos de pensão,5 o Estado brasileiro está hoje presente em 119 grupos, contra 30 em 1996.” Assim, o grupo Odebrecht pode contar com o dinheiro do fundo de garantia FI-FGTS – que indeniza os desempregados brasileiros e possui 27% da Odebrecht Ambiental e 30% da Odebrecht Transport – ou do BNDES, que desde 2009 controla 30% da Odebrecht Agroindustrial. Por fim, a Petrobras é acionista da Braskem, com 38% de participação. A estratégia do governo brasileiro? Promover “campeões” que possam revelar-se competitivos no cenário internacional.

O “carisma” do presidente Lula e uma nova política externa – menos voltada para os Estados Unidos e a Europa, e mais para a América Latina e a África – também contribuíram para o sucesso internacional dos grupos brasileiros. Ao longo de seus dois mandatos (2003-2010), o presidente Lula viajou, por exemplo, para vinte países da África e abriu o continente a 37 embaixadas e consulados. A cada vez, o BNDES ofereceu empréstimos para as empresas brasileiras ganharem mercados, especialmente contra a concorrência chinesa: “É preciso saber que o BNDES tem um orçamento superior ao do Banco Mundial. E os empréstimos ao estrangeiro são reservados para as exportações de bens e serviços brasileiros. Isso quer dizer que apenas uma empresa brasileira pode conseguir um mercado, mesmo que um Estado estrangeiro vá pagar a conta”, explica Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Em dois anos, o banco financiou cerca de R$ 5,4 bilhões em projetos realizados pela Odebrecht na África e na América Latina. Qual é a surpresa? A Odebrecht foi encarregada da construção dos principais estádios que vão sediar os jogos da Copa do Mundo de 2014 (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e Salvador) e recebeu os maiores projetos dos Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro: o complexo olímpico, a nova linha de metrô, a urbanização do porto.

Daí a falar em favoritismo é um passo que muitos analistas não hesitam em dar. A imprensa insiste nas relações privilegiadas entre a família Odebrecht e Lula, na medida em que isso lhe permite alimentar a retórica da corrupção do Partido dos Trabalhadores (PT), único ângulo de ataque do qual dispõe a oposição.

Primeira empresa a apoiar o PT

Autorizada pela lei eleitoral brasileira, a contribuição da Odebrecht ao partido fundado por Lula aumentou entre as duas últimas eleições presidenciais – mas, prudente, a empresa toma o cuidado de financiar todos os grandes partidos políticos, sobretudo nas eleições locais. Em 2006, o grupo desembolsou R$ 7,8 milhões; em 2010, quando Dilma Rousseff foi eleita, a contribuição chegou a R$ 10,8 milhões. Embora o PT não queira nem saber de responder às nossas perguntas sobre esse tema, o atual presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, explicou recentemente à revista Época Negócios: “Somos, sim, alinhados com o governo e não vemos nenhum conflito nisso, afinal, o governo foi eleito e representa o interesse da população”.6

O intelectual uruguaio Raúl Zibechi, que por quatro anos investigou a ascensão do Brasil e seus principais grupos, acredita que há uma “relação muito estreita entre Lula e Emilio Odebrecht, presidente do grupo entre 1991 e 2004. Essa amizade começou na primeira candidatura de Lula, durante a eleição presidencial em 1989, e ao longo dos anos ganhou um caráter estratégico. A Odebrecht foi uma das primeiras empresas a apoiar o PT, numa época em que havia muito poucas ligações entre esse partido e o patronato”.

Para o grupo, essa proximidade não é desinteressada. Em 2006, o presidente do Equador, Rafael Correa, aliado político de Lula, inaugurou com grande pompa a barragem de San Francisco, construída pela Odebrecht com um empréstimo de US$ 241 milhões concedido pelo BNDES. Um ano depois, a central foi fechada por causa de deficiências técnicas graves. Diante da recusa da empresa em reconhecer seus erros, o presidente Correa a expulsou do país, recusando-se a pagar o BNDES enquanto a central não estivesse em estado de funcionamento. Em um gesto qualificado na época de excepcional, o Brasil chamou seu embaixador e rompeu as relações diplomáticas com Quito: “Para nós, foi um desastre, porque nossa relação com o Brasil é vital”, confessa Horacio Sevilla, embaixador equatoriano em Brasília.

O conflito agravou-se durante a cúpula  que reuniu os chefes de Estado da América Latina na Bahia, em dezembro de 2008. A Odebrecht, cuja sede fica exatamente nessa cidade, apresentava-se, em grandes anúncios publicitários oportunamente espalhados ao longo da rota tomada pelos chefes de Estado, como “a empresa da integração regional”. Em uma coletiva de imprensa paralela à cúpula, o presidente venezuelano Hugo Chávez, apesar de aliado de Correa, cutucou a ferida, chamando a Odebrecht de “empresa amiga da Venezuela”...

Mas uma comissão independente no Equador revelou erros técnicos e irregularidades na obtenção do contrato e do empréstimo. A comissão, que investiga vários projetos do poderoso grupo brasileiro, revela um conjunto de “problemas” que custarão caro para o Estado equatoriano: no caso de San Francisco, o orçamento inicial foi ultrapassado em “apenas” 25%; mas, em um projeto de irrigação de 100 mil hectares na província equatoriana de Santa Elena, chegou a ficar 180% maior.7

Pouco importa: foi o Equador que teve de dar o primeiro passo. Quito enviou Sevilla a Brasília para reatar as relações com o Palácio do Planalto. E o pequeno país andino conseguiu um acordo com a empresa: “Todo mundo fez concessões... mas especialmente o Equador”, resume o embaixador. Mais uma vez, no Brasil, nem o Ministério das Relações Exteriores, nem os conselheiros internacionais de Lula na época, nem seu instituto, ninguém quis comentar o episódio.

Lula, um embaixador de alto nível

Encontram-se ambiguidades semelhantes na concessão de um contrato de equipamentos do Comando da Marinha para a construção de cinco submarinos, quatro convencionais e um nuclear. Em 2008, esse contrato de US$ 10 bilhões foi concedido sem licitação pública para a Odebrecht (49%) e a empresa francesa DCNS (50%), ficando o restante para a Marinha. Até 2047, devem ser construídos mais vinte submarinos. Mas esse contrato – que envolve a transferência de tecnologia nuclear francesa – foi apenas o primeiro da Odebrecht no setor armamentício. Em 2010 o grupo aliou-se à European Aeronautic Defence and Space (Eads) para a construção de aeronaves, mísseis e sistemas de vigilância, e em 2011 assumiu o controle da Mectron, maior fabricante brasileira de mísseis.

Simples estratégia de diversificação das atividades? Não é bem assim. Essa incursão no setor de defesa acompanha a política de modernização das Forças Armadas de Lula. Durante o segundo mandato do presidente (2007-2010), o orçamento da defesa aumentou 45%, e foi adotada a Estratégia Nacional de Defesa. Principais beneficiários: a Embraer, na aviação, e a empresa do doutor Norberto, na Marinha.

O terreno tinha sido preparado muito antes da chegada de Lula ao poder: “A Odebrecht forjou valiosos laços com os militares em 1950, através da Escola Superior de Guerra [ESG] do Ministério da Defesa, principal think tank brasileiro, onde militares e industriais estão lado a lado. A família Odebrecht e vários executivos do grupo passaram por cursos de formação ali, o que facilitou a assinatura de contratos, tanto durante a ditadura como hoje”, conta Zibechi.8 Aliás, o próprio Marcelo Odebrecht destaca que a empresa dissemina, em suas “comunidades de conhecimento”, a mesma doutrina ensinada na ESG:9 uma visão nacionalista do desenvolvimento como vetor de soberania e independência.

“Dadas as dimensões das grandes empresas, cujo volume de negócios muitas vezes ultrapassa o PIB de algumas nações, já não são os países que dispõem de empresas, mas as empresas que dispõem de países”, explicava em 2010 Marcio Pochmann, quando dirigia o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Nessas condições, não há nenhuma outra solução, a meu ver, que não a construção de grandes grupos.”10 Erigida em estratégia econômica, a promoção de mastodontes verde-amarelos tornou-se uma prioridade para o ex-sindicalista.

Essa prioridade parece continuar a mobilizá-lo em sua aposentadoria. Em 22 de março de 2013, a Folha de S.Paulo revelou que metade das viagens de Lula desde sua saída da Presidência foi financiada pelas três grandes construtoras brasileiras: Odebrecht, OAS e Camargo Corrêa. Telegramas diplomáticos publicados pelo jornal sugerem que essas viagens ajudaram a “vencer resistências” encontradas pelas empresas brasileiras, principalmente em Moçambique, onde parte da população se revoltou contra o deslocamento forçado imposto por uma mina de carvão.11

Para o futuro, os setores identificados pelo grupo como estratégicos estão todos no nicho ligado à expressão “desenvolvimento sustentável”. E o que significa isso, nos quartéis-generais da Odebrecht? Uma mistura lucrativa que envolve energia, água e alimentos.

No Peru, a Odebrecht, pela primeira vez, cavou um túnel através dos Andes, desviou um rio e construiu barragens e lagos artificiais para irrigar uma zona árida. Depois de concluído, o projeto, chamado Olmos, continuou sendo administrado pela Odebrecht, que revende os “serviços” de água, eletricidade e terra para pagar seu investimento inicial (que, como de costume, aumentou com o passar dos meses). As concessões dos primeiros 110 mil hectares foram todas para grandes empresas agroalimentares, cada lote estendendo-se por pelo menos mil hectares − o que torna impossível que os agricultores locais tirem proveito das terras irrigadas, embora o projeto inicial tenha sido concebido em torno de suas necessidades específicas. O grupo não pode ser considerado responsável nem pela concessão de terras nem pelo reassentamento, em um desfiladeiro perigoso, da população deslocada, já que tudo foi feito pelas autoridades peruanas. Também não está provado que sua “relação privilegiada” com o presidente Alan García (1985-1990 e 2006-2011) tenha influenciado a obtenção do contrato. A Odebrecht avalia simplesmente que “respondeu a uma concessão pública, uma necessidade do país, em conformidade com o que considera ser seu papel: estar a serviço da humanidade”, como nos explicou seu porta-voz.

Em uma troca de gentilezas, a Odebrecht ofereceu ao Peru o “Cristo do Pacífico”: uma escultura de 36 metros de altura, réplica do Cristo Redentor do Rio de Janeiro: “A viagem de barco do Cristo durou 33 dias, para celebrar nossos 33 anos de atuação no Peru".

Anne Vigna é jornalista.

Ilustração: Adao Iturrusgarai


1 “Who dares wins” [Quem ousa vence], The Economist, Londres, 21 set. 2000.
2 Ler Martine Bulard, “Samsung ou l’empire de la peur” [Samsung ou o império do medo], Le Monde Diplomatique, jul. 2013.
3 Peter Evans, Embedded autonomy: States and industrial transformation [Autonomia e parceria: Estados e transformação  industrial], Princeton University Press, 1995.
4 Lael Brainard e Leonardo Martinez-Diaz (orgs.), Brazil as an economic superpower? Understanding Brazil’s changing role in the global economy [O Brasil é uma superpotência econômica? Entendendo a mudança de papel do Brasil na economia global], Brookings Institution Press, Washington, 2009.
5 Previ, Funcep e Petros.
6 Época Negócios, São Paulo, n.70, dez. 2012.
7 Relatório final da comissão sobre a dívida equatoriana, 2008.
8 Raúl Zibechi, Brasil potencia. Entre la integración regional y un nuevo imperialismo [Brasil potência. Entre a integração regional e um novo imperialismo], Ediciones Desde Abajo, Bogotá, 2013.
9 ADESG, revista da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, edição especial, Rio de Janeiro, 2011.
10 Marcio Pochmann, “Estado brasileiro ativo e criativo”, IHU, n.322, São Leopoldo, 22 mar. 2010.
11 “Empreiteiras pagaram quase metade das viagens de Lula ao exterior”, Folha de S.Paulo, 22 mar. 2013.


FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A internet e o “orgasmo democrático”

A emergente participação em rede não produzirá novas ideologias unitárias ou revoluções, mas poderá destruir o velho jogo da governança representativa


Marcos Nunes Carreiro entrevista Massimo Di Felice

Massimo Di Felice estará presente esta semana no I Congresso Internacional de Net-Ativismo, na USP, ao lado de outros pesquisadores renomados: Pierre Lévy, Michel Maffesoli, José Bragança de Miranda e Alberto Abruzzese. Leia e participe

Muito se fala de como as redes sociais vêm modificando o pensamento social e ampliando a capacidade de reflexão, sobretudo dos jovens, em razão da participação fundamental da internet nas manifestações e protestos que tomaram o Brasil nos últimos meses. As mani­festações já viraram pauta nas escolas e com certeza serão conhecidas das próximas gerações. Mas, afinal, qual é o papel político-social das redes sociais e da internet?

Há quem diga que o momento atual do Brasil é de orgasmo democrático, ao ver milhares de pessoas saindo às ruas em razão da situação político-econômica do país. E é realmente instigante acompanhar a efervescência da sociedade, até para quem não tem ânimo de participar. Todavia, há discordância quanto ao termo “orgasmo democrático”. O professor da Faculdade de Comu­nicação da Universidade Federal de Goiás (UFG), Magno Medeiros, por exemplo, diz que orgasmo é um fenômeno fugaz e de satisfação imediata, ao contrário do que vive o Brasil atualmente.

Para ele, o que ocorre, na verdade, é a erupção de uma dor crônica, sedimentada há várias décadas em torno da insatisfação em relação aos direitos de cidadania. “Direitos básicos, como ter um transporte urbano decente, como ter o direito de ser bem tratado na rede pública de saúde, como ter uma educação de qualidade e de acesso democrático a todos. O Brasil experimentou, nos últimos anos, avanços consideráveis no campo da redução das desigualdades sociais e da minimização dos bolsões de pobreza, mas os setores sociais pobres e miseráveis, que emergiram para a classe C, querem mais do que apenas consumir bens básicos como geladeira, fogão, computador, celular, etc. Eles querem ser tratados com dignidade”, diz.

Ideologia social

O autor da expressão que titula a matéria é o italiano Massimo Di Felice, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e PHD em sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. Di Felice é professor da Escola de Comu­nica­ção e Artes da USP, onde fundou o Centro de Pesquisa Atopos e coordena as pesquisas “Redes digitais e sustentabilidade” e “Net-ativismo: ações colaborativas em redes digitais”.

O termo “orgasmo democrático” surgiu quando o professor foi questionado sobre como, antes, o que reunia milhares de pessoas eram ideologias políticas, e hoje já não é assim. Seria então possível afirmar que vivemos a época de um processo de criação democrática de ideologia social? Segundo Di Felice, a razão política ocidental moderna europeia, positivista e portadora de uma concepção unitária da história, criou as democracias nacionais representativas, que se articulavam pelo agenciamento da conflitualidade através dos partidos políticos e dos sindicatos. E a estrutura comunicativa dessas instituições, correspondente aos fluxos comunicativos da mídia analógica – imprensa, TV e jornais –, é centralizada e vertical, além de maniqueísta, isto é, divide e organiza o mundo em mocinhos e vilões, direita e esquerda, revolucionários e reacionários etc.

Contudo, as redes digitais criaram outros tipos de fluxo comunicativo, descentralizados, que permitem o acesso às informações e a participação de todos na construção de significados. “A razão política moderna é fálica e cristã, busca dominar o mundo, rotula pensamentos enquanto os simplifica, necessita de inimigos e promete a salvação. Já a lógica virtual é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia, além de viver o presente ato impulsivo”, analisa.

Ele diz ser normal que a sociedade queira identificar e julgar os movimentos, rotulando-os por exemplo de “fascistas”, pois, segundo ele, a razão ordenadora odeia o novo e o que não compreende. “Porém, julgar os diversos não-movimentos que nasceram pelas redes (espontâneos e não unitários) é como julgar a emoção e a conectividade orgiástica (‘orghia’ em grego significa “sentir com”). A democracia do Brasil está passando de sua dimensão pública televisiva, eleitoral e representativa, para a dimensão digital-conectiva. O país está experimentando um orgasmo democrático. A lógica é, como diria Michel Maffesoli, dionisíaca e não ideológica.”

Segundo Di Felice, do ponto de vista sociopolítico, as arquiteturas informativas digitais e as redes sociais estão trazendo, no mundo inteiro, alterações qualitativas que podem ser classificadas em dez pontos: 1. A possibilidade técnica do acesso de todos a todas as informações; 2. O debate coletivo em rede sobre a questões de interesse público; 3. O fim do monopólio do controle e do agenciamento das informações por parte dos monopólios econômicos e políticos das empresas de comunicação; 4. O fim dos pontos de vista centrais e das ideologias políticas modernas (seja de esquerda ou direita) que tinham a pretensão de controlar e agenciar a conflitualidade social; 5. O fim dos partidos políticos e da cultura representativa de massa que ordenavam e controlavam a participação dos cidadãos, limitando-a ao voto a cada quatro anos.

A partir do sexto ponto, o professor classifica aquilo que trata da evolução sistêmica: 6. O advento de uma lógica social conectiva que se expressa na capacidade que as redes sociais digitais têm de reunir, em tempo real, uma grande quantidade de setores diversos e heterogêneos da população em torno de temáticas de interesse comum; 7. A passagem de um tipo de imaginário político baseado na representação identitária e dialética (esquerda-direita; progressistas-reacionários, etc.) para uma lógica experiencial, conectiva e tecno-colaborativa, que se articula não mais através das ideologias, mas através da experiência entre indivíduos, informações e territórios; 8. O advento de um novo tipo de gestão pública e de democracia; 9. A transformação da relação entre político e cidadão e do papel dos eleitos, que passam a ser considerados não mais como representantes do poder absoluto, mas porta-vozes e meros executores da vontade popular que os vigia a cada decisão; 10. A passagem de um imaginário político, baseado em uma esfera pública na qual a participação dos cidadãos era apenas opinativa, para formas de deliberação coletiva e práticas de decisão colaborativas que se articulam autonomamente nas redes. Acompanhe a entrevista:

Os protestos são organizados nas redes, mas nota-se que há líderes surgindo nas ruas. Como o senhor vê isso?

Os movimentos nascem nas redes, atuam em ruas, mas não em ruas comuns. Eles atuam em “ruas conectadas” e reproduzindo em tempo real, nas redes, os acontecimentos das manifestações. Através da computação móvel, debatem e buscam soluções continuamente, expressando uma original forma de relação tecno-humana e inaugurando o advento de uma dimensão meta-geográfica e atópica (do greco a-topos: lugar indescritível, lugar estranho, fora do comum).  Embora o sociólogo espanhol Manuel Castells defenda que os movimentos sociais contemporâneos nascem nas redes e que somente depois, nas ruas, ganham maior visibilidade, não me parece ser esta a sua descrição mais apropriada. Ao contrário: o que está acontecendo em todas as ruas, em diversos países do mundo, é o advento de uma dimensão imersiva e informativa do conflito, que se exprime numa espacialidade plural, conectiva e informativa. Os manifestantes habitam espaços estendidos, decidem suas estratégias e seus movimentos nas ruas através da interação contínua nas “social networks” e da troca instantânea de informações. Não somente se deslocam conectados, mas a manifestação é tal e acontece de fato somente se é postada na rede, tornando-se novamente digital, isto é, informação. Não é mais possível pensar em espaços físicos versus espaços informativos. Os conflitos são informativos. Jogos de trocas entre corpos e circuitos informativos, experimentações do surgimento de uma carne informatizada, que experimenta as suas múltiplas dimensões: a informativa digital e a sangrenta material, golpeada e machucada. Ambas são reais e nenhuma é separada da outra, mas cada uma ganha a sua “veracidade” no seu agenciamento com a outra.

Todos esses dias de junho, em São Paulo, e em muitas outras capitais,  jogamos  games coletivos – todos fomos conectados a circuitos de informações, espaços e curtos-circuitos que alteravam nossos movimentos segundo as imagens e as interações dos demais membros do jogo. Todos experimentamos a nossa plural e interativa condição habitativa. O sangue dos manifestantes, golpeados pelos policiais, não caía apenas no chão das ruas, mas se derramava em espacialidades informativas. A polícia, através da computação móvel e das conexões instantâneas, tornou-se mídia, cúmplice de um ato informativo, e os manifestantes experimentaram o prazer de transformar seus corpos em informação. Transformar a polícia em mídia foi uma das grandes contribuições destes movimentos, que não possuem líderes nem direção única. Todas as tentativas oportunistas de direcionar e organizar os conjuntos de movimentos serão desmascaradas. Estamos falando da sociedade civil conectada e não deste ou daquele movimento social. Os atores destes movimentos, portanto, não são apenas os humanos, menos ainda alguns líderes. Não estamos falando de movimentos tradicionais que aconteciam nos espaços urbanos e industriais. Estamos, de fato, já em outro mundo.

Fora das redes, ainda há muita gente sem entender o que as manifestações significam, ou como elas surgiram. No ambiente virtual, há maior entendimento sobre o tema?

As manifestações do Brasil são expressões de uma transformação qualitativa que desde o advento da internet altera a forma de participação e o significado da ação social. O Centro de Pesquisa Atopos, da Universidade de São Paulo, está finalizando uma pesquisa internacional sobre o tema, com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

A pesquisa analisou as principais formas de net- ativismo em quatro países (Brasil, França, Itália e Portugal). Os resultados são interessantes e mostram claramente alguns elementos comuns que, mesmo em contextos diferentes, se reproduzem e aparecem como caraterísticas parecidas. Isso sublinha, mais uma vez, a importância das redes de conectividade e as caraterísticas tecno-informativas dessas expressões de conflitualidade que surgem na origem, na organização e nas formas de atuação destes movimentos. Em síntese, as principais caraterísticas comuns a todos eles são as seguintes: 1. O net-ativismo se coloca fora da tradição política moderna, pois expressa um novo tipo de conflitualidade que não tem como objetivo a disputa pelo poder. Todos os movimentos que marcam as diversas formas de conflitualidade contemporânea (os Zapatistas, os Indignados, Occupy Wall Street, Anonymous, M15 etc.) não têm como objetivo tornar-se partidos políticos e concorrer nas eleições. São todos explicitamente apartidários e contra a classe política. Reúnem-se todos contra a corrupção, os abusos e a incapacidade dessas mesmas classes políticas e de seus representantes; 2. São movimentos e ações que não estão organizados de forma tradicional, isto é, não são homogêneos, compostos por pessoas que se reconhecem na mesma ideologia ou em torno do mesmo projeto político. Ao contrário: são formas de protesto compostas por diversos atores e nos quais, como numa arquitetura reticular, as contraposições não são dialéticas e não inviabilizam a ação; 3. Possuem uma forma organizativa informal e, sobretudo, sem líderes e sem hierarquias; 4. O anonimato é um valor, não somente porque permite a defesa perante ações repressivas, mas porque é a forma através da qual é defendida a não-identidade, coletiva ou individual, de seus membros e das ações. Na tradição das ações net-ativistas, a ausência de identidade e a não visibilidade é o meio através do qual a conflitualidade não se institucionaliza, tornando-se, assim, irreconhecível, não identificável e capaz de conservar a sua própria eficácia conflitiva; 5. São movimentos ou ações temporários e, portanto, não duradouros, cujas finalidades e ambições máximas são o próprio desaparecimento.

Estes e outros elementos que encontramos em todas as ações net-ativistas são parte, já, de uma tradição que possui textos e reflexões que vão desde o cyberpunk até as contribuições de Hakim Bey, a guerrilha midiática de Luther Blisset, até a conflitualidade informativa zapatista. Os Anonymous e os Indignados e as diversas formas de conflitualidade digital contemporâneas são, na sua especificidade, a continuação disso. Não há uniformidade, nem pertença de nenhum tipo, mas inspiração.

A questão informativa é a grande façanha da tecnologia? 

Na teoria da opinião pública, estamos assistindo a uma grande passagem do líder de opinião para o empreendedor cognitivo. O líder de opinião ganhava seu poder de persuasão através do poder midiático que lhe permitia, de forma privilegiada, através da TV ou das páginas de um jornal, alcançar grande parte da população de um país. Esta figura, geralmente um comentarista, um cientista político, um profissional da comunicação, um político ou uma personalidade pública, é hoje substituído no interior das novas dinâmicas dos fluxos informativos por outro tipo de informante e de mediador. Este é aquele que, por ter vivenciado ou por ter sido o próprio protagonista de um acontecimento, distribui, através das mídias digitais, diretamente, sem mediações, o acontecimento.

É o caso dos manifestantes que postaram tudo o que aconteceu nas ruas durante as manifestações. Nenhum comentarista ou líder de opinião conseguiu competir e disputar com eles outra versão dos acontecimentos. Eles, os manifestantes, fizeram a cobertura do evento com seus celulares, suas câmeras baratas, a partir do próprio lugar dos acontecimentos, ao vivo. A maioria das informações que circulavam foi produzida por eles. Isso foi possível porque existe uma tecnologia que permite que isso seja possível. Isto é, também um fato político que quebra em pedaços décadas de estudos sociológicos sobre a relação entre mídia e política, entre mídia e poder. A grande transformação que as redes digitais produzem é a interatividade. As pessoas conectadas buscam suas informações, as ordenam, obtêm mais fontes e elementos para avaliá-las. Digamos que, tendencialmente, a população é mais consciente, pois tem acesso direto a uma quantidade infinita de informações sobre qualquer tipo de assunto, tornando-se eles mesmos editores e criadores de conteúdo. Da mesma maneira, pelos mesmos dinamismos informativos, eles se tornam políticos, administradores e transformadores de suas cidades ou de suas localidades.

O senhor é europeu, mas vive há muitos anos na América Latina. Como difere o processo de expressão massiva entre os dois continentes?

Absolutamente não se distingue. Os movimentos possuem todos eles as mesmas características. Em cada país temos situações específicas e atores diferentes, mas que atuam de maneira análoga: através das redes digitais. Possuem a mesma específica forma de organização coletiva: não institucionalizada e sem hierarquia. Expressam as mesmas reivindicações: contra a corrupção dos partidos políticos, por maior transparência e eficiência, melhor qualidade dos serviços públicos. Desconfiam todos de seus representantes e querem decidir diretamente sobre os assuntos que lhes interessam.

Quais as consequências dessa posição que as manifestações assumem?

A rede é o “Além do Homem” do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Não é fácil, no seu interior, construir éticas coletivas, nem majoritárias, pois o seu dinamismo é emergente e sua forma, temporária. A participação em rede não irá produzir novas ideologias unitárias, menos ainda revoluções, pois sua razão não é abstrata e universal, mas particular e conectiva, mutante e incoerente. Apenas poderá destruir o velho jogo vampiresco da governança representativa e partidária, pois esta não é mais representativa e gera um sistema baseado na corrupção, em que a corrupção não é exceção, mas regra e norma do jogo.

As ideologias políticas que prometiam a igualdade e a salvação do mundo fracassaram, não apenas em seu intento socioeconômico igualitário, mas naquele mais importante: de produzir um novo imaginário social e cultural que nos tornasse parte de uma sociedade mais justa, na qual pudéssemos nos tornar melhores do que somos. A não-ética coletiva das redes não será um decálogo de normas e uma visão de mundo organizada e proferida pela boca das vanguardas, ou dos líderes iluminados, sempre prontos a surfar uma nova onda, mas será muito mais humildemente particular. Não mudará o mundo, mas resolverá através da conectividade problemas concretos e específicos, que têm a ver com a qualidade do ar, o direito à informação, o preço do transporte público, a qualidade do atendimento nos hospitais, a qualidade da educação. Isto é: tudo aquilo que partido nenhum jamais conseguiu fazer.

Para certa esquerda, está em marcha o acirramento de um fascismo nas manifestações, cujo sintoma é a rejeição de partidos nas passeatas. Uma ala da direita, com o apoio da imprensa, também contesta as manifestações como sendo “armação” da esquerda.

É visível para todos o oportunismo e o desespero de uma cultura política da modernidade que se descobriu, de repente, obsoleta e fora da história. Nenhum partido de esquerda consegue hoje representar os anseios e as utopias sequer de uma parte significativa da população. Eles se encontram na singular e cômica situação do menino escoteiro que, para cumprir sua boa ação, tenta convencer a velhinha a atravessar a rua para poder ajudá-la. Só que a velhinha não quer cruzar a rua, mas deseja ir em outra direção. A lógica dialética, eurocêntrica e cristã, baseada na contraposição entre o bem e o mal, marca toda a cultura política da esquerda – que hoje se configura como uma religião laica, não mais racional nem propositiva, mas histérica.

O advento dos movimentos e das manifestações expressou com clareza o desaparecimento do papel de vanguarda, e a incapacidade histórica de análise e de abertura à diversidade e ao livre debate dos partidos. Como na lógica da salvação religiosa, o bom e o justo existem e justificam a sua função somente enquanto existe o mal. A caça às bruxas é uma exigência, a última tentativa de justificar sua função, e uma necessidade ainda de sua presença em defesa dos mais “fracos” e “necessitados”. Não excluo que, em casos não representativos, tenhamos tido a presença de grupos de alguns poucos e isolados indivíduos de direita. Mas a reação e a caça às bruxas que foi gerada é de natureza histérica e a-racional, a última tentativa de voltar no tempo e na história – um passado ameaçador em que havia necessidade de uma ordem, de uma ideologia e de uma vanguarda que representasse o confortador papel da figura paterna.


FONTE: Outras Palavras

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Carta sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular pela Reforma Política


Por Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães (*)

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ciente da necessidade de mudanças mais profundas na realidade política do Brasil, criou uma Comissão de Acompanhamento da Reforma Política, presidida por mim. Esta carta, que foi apresentada ao Conselho Permanente da CNBB em 24/10/13, cumpre o objetivo de informar sobre os últimos acontecimentos acerca deste assunto e também de convidar a todos os bispos a acompanharem e participarem, em suas Dioceses, do movimento que se iniciou recentemente.

Foto: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) 


Seguem os principais pontos:

1.Várias tentativas de Reforma Política foram feitas no Congresso Nacional. Todas foram infrutíferas por uma única razão: os congressistas não têm interesse em reformar o sistema político e eleitoral do nosso país, por se encontrarem em zona de conforto no atual sistema. É verdade, igualmente, que há vários parlamentares empenhados em fazer uma Reforma Política.

2.Algumas entidades organizadas na sociedade civil, percebendo a dificuldade instalada no Congresso Nacional, organizaram debates e formularam propostas de Reforma Política, com o intuito de coletarem assinaturas para um Projeto de Lei de Iniciativa Popular.

3.Ao percebermos o ambiente político modificado pelas manifestações a partir de junho e ao mesmo tempo as várias propostas de Reforma Política em circulação, mas sem a necessária conjunção de forças, a CNBB convidou um conjunto expressivo de entidades da sociedade civil, para um encontro em sua sede, dia 14/08/2013, com vistas a unificarmos os objetivos e as áreas a serem reformadas. Quinze entidades compareceram e aceitaram a proposta.

4.Nesta primeira reunião foi eleita a coordenação do movimento e foi definida a tarefa da mesma: apresentar uma proposta de Projeto de Lei de Reforma Política para o Brasil, abrangendo cinco áreas escolhidas pelos presidentes das entidades, a saber:

a.afastamento do poder econômico das eleições;
b.adoção do sistema eleitoral do voto dado ao partido e depois a um candidato de uma lista formada democraticamente;
c.alternância de gênero nas listas de candidatos;
d.fortalecimento dos partidos e fidelidade partidária programática;
e.regulamentação dos instrumentos da democracia direta, previstos no Artigo 14 da Constituição: projeto de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito.

Este delicado trabalho exigiu que todos colocassem suas propostas sobre a mesa para sofrerem as alterações de interesse comum às entidades. Todos ofereceram e todos cederam. O Projeto de Lei ficou pronto e posteriormente foi apresentado, aperfeiçoado e aprovado pelo plenário das entidades.

5.Dia 3/9/2013, num ato público realizado na CNBB, com participação de muitas pessoas, foi dado ao conhecimento público a proposta unificada do Projeto de Lei com o nome de "Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas", bem como a unificação dos esforços de entidades e pessoas pela necessária e urgente Reforma Política. Naquele dia, 35 entidades assinaram o Projeto de Lei.

6.Esta proposta de Reforma Política foi entregue ao presidente da Câmara Federal, Deputado Henrique Alves, pelas entidades, agora em número de 44, na presença de dezenas de parlamentares apoiadores, dia 10/9/2013.

Cerca de 130 parlamentares subscreveram a proposta. Explicitamos ao presidente da Câmara Federal a necessidade de se colocar a proposta em votação imediatamente para que fosse ao senado e logo sancionada pela Presidente da República, de modo a cumprir o tempo regulamentar e passar a valer já nas próximas eleições.

O referido Deputado reconheceu a importância do ato, a legitimidade da proposta e assumiu, diante de todos, o compromisso de colocá-la em votação. Em ato contínuo, noticiamos aos veículos de comunicação que nos aguardavam na sala de entrada da Câmara Federal. Informo aos senhores que muitos veículos de comunicação não têm interesse na Reforma Política: mesmo acompanhando intensa movimentação naqueles dias, alguns veículos não noticiaram o fato.

7.A Reforma Política não foi colocada em votação. Já imaginávamos esta possibilidade. Por isso a proposta foi elaborada no formato de Projeto de Lei de Iniciativa Popular, acompanhada da folha de assinaturas. Precisamos nos empenhar neste grande trabalho e desencadear uma campanha cívica, unificada, solidária pela efetivação da Reforma Política, assim como aconteceu, vitoriosamente, em vários outros momentos da história recente do Brasil, como as campanhas pelas eleições diretas, ficha limpa, recursos para a saúde.

8.Os principais pontos do Projeto de Lei de Iniciativa Popular são os seguintes:

a.Proibição do financiamento de campanha por empresa. Instauração do financiamento democrático de campanha, constituído do financiamento público e de contribuição de pessoa física limitada a R$ 700,00. O total desta contribuição não poderá ultrapassar o limite de 40% dos recursos públicos recebidos pelo partido, destinados às eleições;

b.Adoção do sistema eleitoral do voto dado em listas pré-ordenadas, democraticamente formadas pelos partidos com a participação dos filiados e não só dos dirigentes, e submetidas a dois turnos de votação, constituindo o sistema denominado "voto transparente”, pelo qual o eleitor inicialmente vota no partido e posteriormente escolhe individualmente um dos nomes da lista;

c.Alternância de gênero nas listas mencionadas no item anterior;

d.Regulamentação dos instrumentos da Democracia Participativa, previstos no art. 14 da Constituição, de modo a permitir sua efetividade, reduzindo-se as exigências para a sua realização, ampliando-se o rol dos órgãos legitimados para iniciativa de sua convocação, aumentando-se a lista de matérias que podem deles ser objeto, assegurando-se financiamento público na sua realização e se estabelecendo regime especial de urgência na tramitação no Congresso;

e.Modificação da legislação para fortalecer os partidos, para democratizar suas instâncias decisórias especialmente na formação das listas pré-ordenadas, para impor programas partidários efetivos e vinculantes, para assegurar a fidelidade partidária, para considerar o mandato como pertencente ao partido e não ao mandatário;

f.Criação de instrumentos eficazes voltados aos segmentos sub-representados da população, como os afrodescendentes e indígenas, com o objetivo de estimular sua maior participação nas instâncias políticas e partidárias;

g.Previsão de instrumentos eficazes para assegurar o amplo acesso aos meios de comunicação e impedir que propaganda eleitoral ilícita, direta ou indireta, interfira no equilíbrio do pleito, bem como garantias do pleno direito de resposta e acesso às redes sociais.

Estamos cientes da complexidade desta matéria, mas também convictos de que a Reforma Política é uma das principais iniciativas da população brasileira neste momento,
considerando os baixos índices de credibilidade dos poderes legislativo, judiciário e executivo, dos partidos políticos;
considerando que a inclusão social em curso aprimora a consciência cívica, o desejo de participação e a cobrança de direitos;
considerando que povo brasileiro, especialmente a juventude, reage fortemente contra os escândalos de corrupção e exigem punição efetiva para os culpados;
considerando as distorções do sistema político e eleitoral que alargam o fosso entre a Nação e o Estado, os representados e os representantes, a sociedade e o governo;
considerando que a atual conjuntura impõe que se proceda com urgência a uma profunda Reforma em nosso sistema político e eleitoral.

Por isso, apresentamos a "Coalizão pela Reforma Política Democrática e Eleições Limpas" como o melhor caminho possível neste momento para esta transformação e conclamamos a todos os brasileiros em suas cidades, mas especialmente, por esta carta, a todos os bispos e suas dioceses a participarem desta Campanha pelo aperfeiçoamento da Democracia.

Este assunto já foi tratado em reuniões do CONSEP e do CONSELHO PERMANENTE da CNBB e será aprofundado a cada passo neste caminho.

Renovo-lhe meus sentimentos de respeito e fraternidade, em Cristo Jesus.

Cordialmente,

Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Bispo Auxiliar de Belo Horizonte
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Cultura e Educação
Presidente da Comissão de Acompanhamento da Reforma Política.


FONTE Adital

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