A emergente participação em rede não produzirá novas ideologias unitárias ou revoluções, mas poderá destruir o velho jogo da governança representativa
Marcos Nunes Carreiro entrevista Massimo Di Felice
Massimo Di Felice estará presente esta semana no I Congresso Internacional de Net-Ativismo, na USP, ao lado de outros pesquisadores renomados: Pierre Lévy, Michel Maffesoli, José Bragança de Miranda e Alberto Abruzzese. Leia e participe
Muito se fala de como as redes sociais vêm modificando o pensamento social e ampliando a capacidade de reflexão, sobretudo dos jovens, em razão da participação fundamental da internet nas manifestações e protestos que tomaram o Brasil nos últimos meses. As manifestações já viraram pauta nas escolas e com certeza serão conhecidas das próximas gerações. Mas, afinal, qual é o papel político-social das redes sociais e da internet?
Há quem diga que o momento atual do Brasil é de orgasmo democrático, ao ver milhares de pessoas saindo às ruas em razão da situação político-econômica do país. E é realmente instigante acompanhar a efervescência da sociedade, até para quem não tem ânimo de participar. Todavia, há discordância quanto ao termo “orgasmo democrático”. O professor da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG), Magno Medeiros, por exemplo, diz que orgasmo é um fenômeno fugaz e de satisfação imediata, ao contrário do que vive o Brasil atualmente.
Para ele, o que ocorre, na verdade, é a erupção de uma dor crônica, sedimentada há várias décadas em torno da insatisfação em relação aos direitos de cidadania. “Direitos básicos, como ter um transporte urbano decente, como ter o direito de ser bem tratado na rede pública de saúde, como ter uma educação de qualidade e de acesso democrático a todos. O Brasil experimentou, nos últimos anos, avanços consideráveis no campo da redução das desigualdades sociais e da minimização dos bolsões de pobreza, mas os setores sociais pobres e miseráveis, que emergiram para a classe C, querem mais do que apenas consumir bens básicos como geladeira, fogão, computador, celular, etc. Eles querem ser tratados com dignidade”, diz.
Ideologia social
O autor da expressão que titula a matéria é o italiano Massimo Di Felice, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e PHD em sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. Di Felice é professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, onde fundou o Centro de Pesquisa Atopos e coordena as pesquisas “Redes digitais e sustentabilidade” e “Net-ativismo: ações colaborativas em redes digitais”.
O termo “orgasmo democrático” surgiu quando o professor foi questionado sobre como, antes, o que reunia milhares de pessoas eram ideologias políticas, e hoje já não é assim. Seria então possível afirmar que vivemos a época de um processo de criação democrática de ideologia social? Segundo Di Felice, a razão política ocidental moderna europeia, positivista e portadora de uma concepção unitária da história, criou as democracias nacionais representativas, que se articulavam pelo agenciamento da conflitualidade através dos partidos políticos e dos sindicatos. E a estrutura comunicativa dessas instituições, correspondente aos fluxos comunicativos da mídia analógica – imprensa, TV e jornais –, é centralizada e vertical, além de maniqueísta, isto é, divide e organiza o mundo em mocinhos e vilões, direita e esquerda, revolucionários e reacionários etc.
Contudo, as redes digitais criaram outros tipos de fluxo comunicativo, descentralizados, que permitem o acesso às informações e a participação de todos na construção de significados. “A razão política moderna é fálica e cristã, busca dominar o mundo, rotula pensamentos enquanto os simplifica, necessita de inimigos e promete a salvação. Já a lógica virtual é plural, se alimenta do presente e não possui ideologia, além de viver o presente ato impulsivo”, analisa.
Ele diz ser normal que a sociedade queira identificar e julgar os movimentos, rotulando-os por exemplo de “fascistas”, pois, segundo ele, a razão ordenadora odeia o novo e o que não compreende. “Porém, julgar os diversos não-movimentos que nasceram pelas redes (espontâneos e não unitários) é como julgar a emoção e a conectividade orgiástica (‘orghia’ em grego significa “sentir com”). A democracia do Brasil está passando de sua dimensão pública televisiva, eleitoral e representativa, para a dimensão digital-conectiva. O país está experimentando um orgasmo democrático. A lógica é, como diria Michel Maffesoli, dionisíaca e não ideológica.”
Segundo Di Felice, do ponto de vista sociopolítico, as arquiteturas informativas digitais e as redes sociais estão trazendo, no mundo inteiro, alterações qualitativas que podem ser classificadas em dez pontos: 1. A possibilidade técnica do acesso de todos a todas as informações; 2. O debate coletivo em rede sobre a questões de interesse público; 3. O fim do monopólio do controle e do agenciamento das informações por parte dos monopólios econômicos e políticos das empresas de comunicação; 4. O fim dos pontos de vista centrais e das ideologias políticas modernas (seja de esquerda ou direita) que tinham a pretensão de controlar e agenciar a conflitualidade social; 5. O fim dos partidos políticos e da cultura representativa de massa que ordenavam e controlavam a participação dos cidadãos, limitando-a ao voto a cada quatro anos.
A partir do sexto ponto, o professor classifica aquilo que trata da evolução sistêmica: 6. O advento de uma lógica social conectiva que se expressa na capacidade que as redes sociais digitais têm de reunir, em tempo real, uma grande quantidade de setores diversos e heterogêneos da população em torno de temáticas de interesse comum; 7. A passagem de um tipo de imaginário político baseado na representação identitária e dialética (esquerda-direita; progressistas-reacionários, etc.) para uma lógica experiencial, conectiva e tecno-colaborativa, que se articula não mais através das ideologias, mas através da experiência entre indivíduos, informações e territórios; 8. O advento de um novo tipo de gestão pública e de democracia; 9. A transformação da relação entre político e cidadão e do papel dos eleitos, que passam a ser considerados não mais como representantes do poder absoluto, mas porta-vozes e meros executores da vontade popular que os vigia a cada decisão; 10. A passagem de um imaginário político, baseado em uma esfera pública na qual a participação dos cidadãos era apenas opinativa, para formas de deliberação coletiva e práticas de decisão colaborativas que se articulam autonomamente nas redes. Acompanhe a entrevista:
Os protestos são organizados nas redes, mas nota-se que há líderes surgindo nas ruas. Como o senhor vê isso?
Os movimentos nascem nas redes, atuam em ruas, mas não em ruas comuns. Eles atuam em “ruas conectadas” e reproduzindo em tempo real, nas redes, os acontecimentos das manifestações. Através da computação móvel, debatem e buscam soluções continuamente, expressando uma original forma de relação tecno-humana e inaugurando o advento de uma dimensão meta-geográfica e atópica (do greco a-topos: lugar indescritível, lugar estranho, fora do comum). Embora o sociólogo espanhol Manuel Castells defenda que os movimentos sociais contemporâneos nascem nas redes e que somente depois, nas ruas, ganham maior visibilidade, não me parece ser esta a sua descrição mais apropriada. Ao contrário: o que está acontecendo em todas as ruas, em diversos países do mundo, é o advento de uma dimensão imersiva e informativa do conflito, que se exprime numa espacialidade plural, conectiva e informativa. Os manifestantes habitam espaços estendidos, decidem suas estratégias e seus movimentos nas ruas através da interação contínua nas “social networks” e da troca instantânea de informações. Não somente se deslocam conectados, mas a manifestação é tal e acontece de fato somente se é postada na rede, tornando-se novamente digital, isto é, informação. Não é mais possível pensar em espaços físicos versus espaços informativos. Os conflitos são informativos. Jogos de trocas entre corpos e circuitos informativos, experimentações do surgimento de uma carne informatizada, que experimenta as suas múltiplas dimensões: a informativa digital e a sangrenta material, golpeada e machucada. Ambas são reais e nenhuma é separada da outra, mas cada uma ganha a sua “veracidade” no seu agenciamento com a outra.
Todos esses dias de junho, em São Paulo, e em muitas outras capitais, jogamos games coletivos – todos fomos conectados a circuitos de informações, espaços e curtos-circuitos que alteravam nossos movimentos segundo as imagens e as interações dos demais membros do jogo. Todos experimentamos a nossa plural e interativa condição habitativa. O sangue dos manifestantes, golpeados pelos policiais, não caía apenas no chão das ruas, mas se derramava em espacialidades informativas. A polícia, através da computação móvel e das conexões instantâneas, tornou-se mídia, cúmplice de um ato informativo, e os manifestantes experimentaram o prazer de transformar seus corpos em informação. Transformar a polícia em mídia foi uma das grandes contribuições destes movimentos, que não possuem líderes nem direção única. Todas as tentativas oportunistas de direcionar e organizar os conjuntos de movimentos serão desmascaradas. Estamos falando da sociedade civil conectada e não deste ou daquele movimento social. Os atores destes movimentos, portanto, não são apenas os humanos, menos ainda alguns líderes. Não estamos falando de movimentos tradicionais que aconteciam nos espaços urbanos e industriais. Estamos, de fato, já em outro mundo.
Fora das redes, ainda há muita gente sem entender o que as manifestações significam, ou como elas surgiram. No ambiente virtual, há maior entendimento sobre o tema?
As manifestações do Brasil são expressões de uma transformação qualitativa que desde o advento da internet altera a forma de participação e o significado da ação social. O Centro de Pesquisa Atopos, da Universidade de São Paulo, está finalizando uma pesquisa internacional sobre o tema, com o apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
A pesquisa analisou as principais formas de net- ativismo em quatro países (Brasil, França, Itália e Portugal). Os resultados são interessantes e mostram claramente alguns elementos comuns que, mesmo em contextos diferentes, se reproduzem e aparecem como caraterísticas parecidas. Isso sublinha, mais uma vez, a importância das redes de conectividade e as caraterísticas tecno-informativas dessas expressões de conflitualidade que surgem na origem, na organização e nas formas de atuação destes movimentos. Em síntese, as principais caraterísticas comuns a todos eles são as seguintes: 1. O net-ativismo se coloca fora da tradição política moderna, pois expressa um novo tipo de conflitualidade que não tem como objetivo a disputa pelo poder. Todos os movimentos que marcam as diversas formas de conflitualidade contemporânea (os Zapatistas, os Indignados, Occupy Wall Street, Anonymous, M15 etc.) não têm como objetivo tornar-se partidos políticos e concorrer nas eleições. São todos explicitamente apartidários e contra a classe política. Reúnem-se todos contra a corrupção, os abusos e a incapacidade dessas mesmas classes políticas e de seus representantes; 2. São movimentos e ações que não estão organizados de forma tradicional, isto é, não são homogêneos, compostos por pessoas que se reconhecem na mesma ideologia ou em torno do mesmo projeto político. Ao contrário: são formas de protesto compostas por diversos atores e nos quais, como numa arquitetura reticular, as contraposições não são dialéticas e não inviabilizam a ação; 3. Possuem uma forma organizativa informal e, sobretudo, sem líderes e sem hierarquias; 4. O anonimato é um valor, não somente porque permite a defesa perante ações repressivas, mas porque é a forma através da qual é defendida a não-identidade, coletiva ou individual, de seus membros e das ações. Na tradição das ações net-ativistas, a ausência de identidade e a não visibilidade é o meio através do qual a conflitualidade não se institucionaliza, tornando-se, assim, irreconhecível, não identificável e capaz de conservar a sua própria eficácia conflitiva; 5. São movimentos ou ações temporários e, portanto, não duradouros, cujas finalidades e ambições máximas são o próprio desaparecimento.
Estes e outros elementos que encontramos em todas as ações net-ativistas são parte, já, de uma tradição que possui textos e reflexões que vão desde o cyberpunk até as contribuições de Hakim Bey, a guerrilha midiática de Luther Blisset, até a conflitualidade informativa zapatista. Os Anonymous e os Indignados e as diversas formas de conflitualidade digital contemporâneas são, na sua especificidade, a continuação disso. Não há uniformidade, nem pertença de nenhum tipo, mas inspiração.
A questão informativa é a grande façanha da tecnologia?
Na teoria da opinião pública, estamos assistindo a uma grande passagem do líder de opinião para o empreendedor cognitivo. O líder de opinião ganhava seu poder de persuasão através do poder midiático que lhe permitia, de forma privilegiada, através da TV ou das páginas de um jornal, alcançar grande parte da população de um país. Esta figura, geralmente um comentarista, um cientista político, um profissional da comunicação, um político ou uma personalidade pública, é hoje substituído no interior das novas dinâmicas dos fluxos informativos por outro tipo de informante e de mediador. Este é aquele que, por ter vivenciado ou por ter sido o próprio protagonista de um acontecimento, distribui, através das mídias digitais, diretamente, sem mediações, o acontecimento.
É o caso dos manifestantes que postaram tudo o que aconteceu nas ruas durante as manifestações. Nenhum comentarista ou líder de opinião conseguiu competir e disputar com eles outra versão dos acontecimentos. Eles, os manifestantes, fizeram a cobertura do evento com seus celulares, suas câmeras baratas, a partir do próprio lugar dos acontecimentos, ao vivo. A maioria das informações que circulavam foi produzida por eles. Isso foi possível porque existe uma tecnologia que permite que isso seja possível. Isto é, também um fato político que quebra em pedaços décadas de estudos sociológicos sobre a relação entre mídia e política, entre mídia e poder. A grande transformação que as redes digitais produzem é a interatividade. As pessoas conectadas buscam suas informações, as ordenam, obtêm mais fontes e elementos para avaliá-las. Digamos que, tendencialmente, a população é mais consciente, pois tem acesso direto a uma quantidade infinita de informações sobre qualquer tipo de assunto, tornando-se eles mesmos editores e criadores de conteúdo. Da mesma maneira, pelos mesmos dinamismos informativos, eles se tornam políticos, administradores e transformadores de suas cidades ou de suas localidades.
O senhor é europeu, mas vive há muitos anos na América Latina. Como difere o processo de expressão massiva entre os dois continentes?
Absolutamente não se distingue. Os movimentos possuem todos eles as mesmas características. Em cada país temos situações específicas e atores diferentes, mas que atuam de maneira análoga: através das redes digitais. Possuem a mesma específica forma de organização coletiva: não institucionalizada e sem hierarquia. Expressam as mesmas reivindicações: contra a corrupção dos partidos políticos, por maior transparência e eficiência, melhor qualidade dos serviços públicos. Desconfiam todos de seus representantes e querem decidir diretamente sobre os assuntos que lhes interessam.
Quais as consequências dessa posição que as manifestações assumem?
A rede é o “Além do Homem” do filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Não é fácil, no seu interior, construir éticas coletivas, nem majoritárias, pois o seu dinamismo é emergente e sua forma, temporária. A participação em rede não irá produzir novas ideologias unitárias, menos ainda revoluções, pois sua razão não é abstrata e universal, mas particular e conectiva, mutante e incoerente. Apenas poderá destruir o velho jogo vampiresco da governança representativa e partidária, pois esta não é mais representativa e gera um sistema baseado na corrupção, em que a corrupção não é exceção, mas regra e norma do jogo.
As ideologias políticas que prometiam a igualdade e a salvação do mundo fracassaram, não apenas em seu intento socioeconômico igualitário, mas naquele mais importante: de produzir um novo imaginário social e cultural que nos tornasse parte de uma sociedade mais justa, na qual pudéssemos nos tornar melhores do que somos. A não-ética coletiva das redes não será um decálogo de normas e uma visão de mundo organizada e proferida pela boca das vanguardas, ou dos líderes iluminados, sempre prontos a surfar uma nova onda, mas será muito mais humildemente particular. Não mudará o mundo, mas resolverá através da conectividade problemas concretos e específicos, que têm a ver com a qualidade do ar, o direito à informação, o preço do transporte público, a qualidade do atendimento nos hospitais, a qualidade da educação. Isto é: tudo aquilo que partido nenhum jamais conseguiu fazer.
Para certa esquerda, está em marcha o acirramento de um fascismo nas manifestações, cujo sintoma é a rejeição de partidos nas passeatas. Uma ala da direita, com o apoio da imprensa, também contesta as manifestações como sendo “armação” da esquerda.
É visível para todos o oportunismo e o desespero de uma cultura política da modernidade que se descobriu, de repente, obsoleta e fora da história. Nenhum partido de esquerda consegue hoje representar os anseios e as utopias sequer de uma parte significativa da população. Eles se encontram na singular e cômica situação do menino escoteiro que, para cumprir sua boa ação, tenta convencer a velhinha a atravessar a rua para poder ajudá-la. Só que a velhinha não quer cruzar a rua, mas deseja ir em outra direção. A lógica dialética, eurocêntrica e cristã, baseada na contraposição entre o bem e o mal, marca toda a cultura política da esquerda – que hoje se configura como uma religião laica, não mais racional nem propositiva, mas histérica.
O advento dos movimentos e das manifestações expressou com clareza o desaparecimento do papel de vanguarda, e a incapacidade histórica de análise e de abertura à diversidade e ao livre debate dos partidos. Como na lógica da salvação religiosa, o bom e o justo existem e justificam a sua função somente enquanto existe o mal. A caça às bruxas é uma exigência, a última tentativa de justificar sua função, e uma necessidade ainda de sua presença em defesa dos mais “fracos” e “necessitados”. Não excluo que, em casos não representativos, tenhamos tido a presença de grupos de alguns poucos e isolados indivíduos de direita. Mas a reação e a caça às bruxas que foi gerada é de natureza histérica e a-racional, a última tentativa de voltar no tempo e na história – um passado ameaçador em que havia necessidade de uma ordem, de uma ideologia e de uma vanguarda que representasse o confortador papel da figura paterna.
FONTE: Outras Palavras
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