segunda-feira, 25 de abril de 2016

A opção socialista não faz parte de plano de Governo


O povo em Brasilia

Por Aluizio Moreira


Parece evidente que daqui há algumas semanas estejamos assistindo, com uma grande cobertura da mídia, o vice-presidente da República assumir os destinos do país. Sem dúvida "para o bem de nossas famílias",  "para o bem dos nossos filhos, netos, sobrinhos, avós, noras, cunhadas, sogras. . ." 

Sem a interferência do STF quanto à desqualificação do processo do impeachment como defendeu o advogado da União, e considerando que a Corte poderá não analisar o mérito do processo quanto ao crime de responsabilidade, mas apenas sobre o rito adotado pelo Congresso, dificilmente a presidente da República se livrará do seu impedimento. Junto a isso é quase certo que o Senado deverá referendar a aprovação conseguida na Câmara dos Deputados.

Esse quadro de instabilidade politica que atinge nestes dias sua maior intensidade e os impasses gerados na disputa pelo poder por uma elite conservadora, já colocávamos na postagem de 02.11.14, “O Brasil e as expectativas de mudanças ou de recuos”, logo após a vitória de Dilma para o seu segundo mandato. 

Escrevíamos naquela postagem, que as opções politicas do Governo e da sociedade civil seriam: primeira o Governo tender para uma guinada mais à esquerda; segunda o Governo ceder às pressões das forças politicas da oposição em troca da governabilidade com o risco de perder paulatinamente o controle  sobre a situação.

Afora estas duas opções, só haveria uma alternativa para a sociedade civil: os movimentos sociais (urbanos e rurais organizados) tomarem em suas mãos a tarefa de transformar (não uma mudança qualquer) este país. 

Evidente que as opções – guinada do Governo para a esquerda e manter a governabilidade – estariam fora de cogitações. Não só pela politica do Partido dos Trabalhadores de gerenciar o sistema capitalista com a implantação de algumas reformas, como pela prática de “costurar” alianças com tendências cada vez mais hostis e conservadoras, que se apresentavam desde as primeiras horas das campanhas presidenciais, ávidas de assumir o poder político a todo custo. 

Quanto à ação politica de algumas forças que chamaríamos “esquerda socialista radical” (para diferenciar de qualquer tendência que se autodenomine ou se considere esquerda ou socialista), que de uma forma ou de outra apontavam e apontam ainda para uma opção não capitalista dentro dos marcos do sistema na sua fase neoliberal, esquecem uma verdade histórica: a burguesia jamais cederá às mudanças que apontem para o fim de sua dominação. 

Ao procurar promover uma maior participação politica dos movimentos sociais junto às instâncias governamentais como foi tentado pelo Governo Dilma através do Decreto Presidencial nº 8.243 de 23 de maio de 2014, que criava a Politica Nacional de Participação Social (PNPS), criticou-se duramente  o Governo que foi acusado de incentivar a politica “bolivariana”, que abria espaços para a “cubanização” do país.  Como era de se esperar, o Decreto foi rejeitado pelo plenário da Câmara dos Deputados em 26 de outubro, que contou com os votos dos partidos DEM, PPS, SDD, PV, PSDB, PSD, PSB, PROS e PRB, que não por mera coincidência, votaram todos a favor do impeachment. 

Por mais progressistas que tenham sido as conquistas dos Governos petistas de Lula e Dilma, deveremos nos lembrar que há um patamar de permissibilidade por parte da burguesia representada no Parlamento brasileiro,  para que apenas algumas mudanças aconteçam. Ou seja, mesmo que a pressão popular resulte em ganhos para a maioria da população, há um limite imposto pela classe dominante para esses ganhos. O que não invalida as conquistas alcançadas, nem deveria resultar em imobilismo.  

O que dá para entender, é que a opção socialista não poderá ser decorrente de uma ação, de um plano de Governo “administrador” de uma sociedade capitalista, por mais à “esquerda” que este Governo se coloque.

A saída pela esquerda só será possível com a organização extraparlamentar da população, e com a mobilização da sociedade civil, independentemente dos Partidos cujos objetivos não vão além da disputa para alcançar o poder politico.  

Digo isto porque ingenuamente alguns partidos da “esquerda socialista radical” procuram ganhar espaços nos quadros da institucionalidade, na esperança de que no dia seguinte nos acordaremos em uma sociedade não capitalista.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Tempos Idos e Vividos VI


Por Aluizio Moreira


Joacir Castro
Nossas atividades à frente dos Diretórios (DAs e DCE), não se limitaram às questões da política nacional, da defesa dos interesses estudantis da UNICAP e da educação em geral. Procuramos inovar o Coral da Unicap incentivando a inclusão em seu repertório, a Música Popular Brasileira. Outra iniciativa foi criação do Teatro da Universidade Católica de Pernambuco -TUCAP, incentivada por Joacir Castro (1), ex-integrante do Teatro de Cultura Popular (TCP) e do Teatro Popular do Nordeste (TPN), na  época  estudante  da Universidade  Católica, contando  com   o  apoio de José Mário Austragésilo e Roberto Pimentel.  Com a opção por um teatro engajado que contribuísse para a conscientização da população, o TUCAP iniciou suas atividades com a peça “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, sob a direção de Lucio Lombardi.  A politica do Tucap era levar o teatro às comunidades, aos sindicatos, às escolas. 


Edson Luis
O ano de 1968 passou para a História do Brasil, como o ano de tristes lembranças, iniciando o que ficou conhecido como “anos de chumbo”, que duraria até março de 1974, período mais repressivo dos governos militares.

No  dia  28 de março  daquele ano,  o estudante de 18 anos,  Edson Luís de  Lima Souto,  era assassinado por militares no restaurante Calabouço no Rio de Janeiro. Naquele dia, os estudantes que comumente faziam refeições no Calabouço, resolveram sair em passeata em protesto contra a má qualidade da comida ali servida, e contra o alto preço cobrado pelo bandejão. A Policia Militar invadiu o local resultando na morte do estudante Edson Luís, atingido no peito à queima-roupa por uma arma calibre 45.

No dia 4 de abril, missas de sétimo dia seriam celebradas em todo país, em memória de Edson Luis. As aulas foram suspensas, e em alguns Estados como no Rio de Janeiro, foi decretado luto nas Instituições de Ensino Superior por 3 dias. Inevitavelmente às manifestações de pesar se juntariam as manifestações de revolta. 

No Recife, os estudantes se concentraram na UNICAP, partindo daí para a Praça 17 (2) onde se localiza a Igreja do Divino Espirito Santo. Nessa Igreja o Padre Antônio Henrique (3) celebrara a missa em memória de Edson Luis. Quando com uma colega da UNICAP chegamos ao local, não havia mais espaço na parte interna da Igreja, pelo número de pessoas que se espremiam para participar da celebração. 

Padre Antonio Henrique

Nós que ficamos na parte externa da Igreja, percebemos a movimentação de um grupo de agentes do DOPS (sempre trajavam paletó, gravata e chapéu) que se aproximavam do local onde estávamos.  Por certo aqueles agentes não estavam no local para prestar homenagem ao Edson Luis. 

Por segurança fomos nos afastando pouco a pouco, até chegarmos á Rua 1º de março. Pegamos o primeiro taxi e fomos para a UNICAP.

oooOOOooo

Ainda em 1968, no dia 12 de outubro aconteceria o XXX Congresso da UNE (4) em Ibiúna, São Paulo. Descoberta a mobilização dos estudantes que o S.S. do DOPS vinha acompanhando, 215 militares do Exército cercaram o local e fizeram cerca de 700 prisioneiros. Entre os presos, segundo os jornais da época, uns 20 estudantes universitários do Recife. Na verdade contabilizamos 34 de várias Universidades de Pernambuco.

oooOOOooo

Ainda não tínhamos superado os acontecimentos ligados á repressão policial em Ibiúna e seus desdobramentos nos âmbitos do politico-jurídico e militar, uma fatalidade atingiu de cheio nosso movimento na UNICAP. 

No dia seguinte aos protestos do dia 14.10 quando promovemos um protesto pela prisão de nossos colegas no XXX Congresso da UNE, recebemos a triste noticia do falecimento de nosso colega Manuel Limeira, do Curso Psicologia da UNICAP, num acidente automobilístico. Sobretudo pelo seu companheirismo, pelo seu equilíbrio diante dos fatos mais constrangedores e opressivos da ditadura, e sobretudo pela nossa identidade política, embora não partidária, não poderia deixar em branco esse fatídico acontecimento. E a forma que encontrei para homenageá-lo, está no poema de despedida que lhe dediquei.


BOA NOITE, COMPANHEIRO!

Homenagem a MANOEL LIMEIRA, companheiro do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UNICAP, morto estupidamente num desastre automobilístico em 1968 no Recife.

Manoel, 
não sei por onde começo
a lhe escrever neste poema.
Talvez comece com a rosa,
talvez comece com as armas
talvez nem mesmo comece
a escrever para o poeta
qualquer memória que apague
a imagem sua que temos.

Talvez
lhe fizesse um busto
uma placa
um pavilhão,
talvez fizesse seu nome
dar nome a qualquer coisa
para que permanecesse.

Mas talvez
você não queira nada:
placas, bustos, pavilhões. . .
- para serem erguidas em que praça?
- onde a tropa hoje faz cêrco?
- enquanto se editam mais Atos
e mais Leis de Segurança?

Acho que lhe bastaria
bater seu ombro de novo
hoje cheio de cravos brancos
cercado de tantas rosas
erguermos as armas que temos
dizer que resistiremos. . .

- Boa noite, companheiro!

(Recife/1968)


Notas:

(1 ) Sentimos pesar pelo falecimento em 11/03/2015 de "um homem do teatro", de "um militante do teatro", JOACIR CASTRO. Nos idos 67/68, quando fazíamos parte do Diretório Acadêmico da Unicap, em plena ditadura, levava seu "teatro militante" aos sindicatos, às comunidades, sempre como forma de despertar a consciência politica do cidadão. Joacir não acreditava na arte neutra, na arte pela arte. Não foi outro seu empenho em encenar "Eles não usam black tie", de Guarnieri, em várias associações de bairros e de trabalhadores.

(2) O nome Praça 17 é uma homenagem à Revolução Pernambucana de 1817 

(3) Padre Antônio Henrique, auxiliar direto do arcebispo Dom Helder Câmara, foi     assassinado em maio de 1969 por agentes da repressão. Sobre o Padre Henrique, ver o link abaixo:

(4) União Nacional dos Estudantes (UNE) foi criada em agosto de 1937 num Encontro do Conselho Nacional de Estudantes, e a partir daí participou de vários acontecimentos políticos: opôs-se ao nazi-fascismo, participou da campanha “O Petróleo é Nosso”, defendeu a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros integrando na Campanha da Legalidade. 



sábado, 16 de abril de 2016

Para desvendar o elitismo do Judiciário brasileiro


Tese de doutorado começa mapear a teia de
relações aristocráticas e capitalistas que torna
Justiça tão favorável ao poder e hostil aos
pobres

Por Cida de Oliveira, na RBA


Há, no sistema jurídico nacional, uma política entre grupos de juristas influentes para formar alianças e disputar espaço, cargos ou poder dentro da administração do sistema. Esta é a conclusão de um estudo do cientista político Frederico Normanha Ribeiro de Almeida sobre o Judiciário brasileiro. O trabalho é considerado inovador porque constata um jogo político “difícil de entender em uma área em que as pessoas não são eleitas e, sim, sobem na carreira, a princípio, por mérito”.

Para sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada pela professora Maria Tereza Aina Sadek, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Almeida fez entrevistas, analisou currículos e biografias e fez uma análise documental da Reforma do Judiciário, avaliando as elites institucionais, profissionais e intelectuais.

Segundo ele, as elites institucionais são compostas por juristas que ocupam cargos chave das instituições da administração da Justiça estatal, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça, tribunais estaduais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Já as elites profissionais são caracterizadas por lideranças corporativas dos grupos de profissionais do Direito que atuam na administração da Justiça estatal, como a Associação dos Magistrados Brasileiros, OAB e a Confederação Nacional do Ministério Público.

O último grupo, das elites intelectuais, é formado por especialistas em temas relacionados à administração da Justiça estatal. Este grupo, apesar de não possuir uma posição formal de poder, tem influência nas discussões sobre o setor e em reformas políticas, como no caso dos especialistas em direito público e em direito processual.

No estudo, verificou-se que as três elites políticas identificadas têm em comum a origem social, as universidades e as trajetórias profissionais. Segundo Almeida, “todos os juristas que formam esses três grupos provêm da elite ou da classe média em ascensão e de faculdades de Direito tradicionais, como o Faculdade de Direito (FD) da USP, a Universidade Federal de Pernambuco e, em segundo plano, as Pontifícias Universidades Católicas (PUC’s) e as Universidades Federais e Estaduais da década de 60”.

Em relação às trajetórias profissionais dos juristas que pertencem a essa elite, Almeida aponta que a maioria já exerceu a advocacia, o que revela que a passagem por essa etapa “tende a ser mais relevante do que a magistratura”. Exemplo disso é a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), indicados pelo Presidente da República, ser ou ter exercido advocacia em algum momento de sua carreira.

O cientista político também aponta que, apesar de a carreira de um jurista ser definida com base no mérito, ou seja, via concursos, há um série de elementos que influenciam os resultados desta forma de avaliação. Segundo ele, critérios como porte e oratória favorecem indivíduos provenientes da classe média e da elite socioeconômica, enquanto a militância estudantil e a presença em nichos de poder são fatores diretamente ligados às relações construídas nas faculdades.

“No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos. É exigido como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram”, afirma o pesquisador.

Por fim, outro fator relevante constatado no levantamento é o que Almeida chama de “dinastias jurídicas”. Isto é, famílias presentes por várias gerações no cenário jurídico. “Notamos que o peso do sobrenome de famílias de juristas é outro fator que conta na escolha de um cargo-chave do STJ, por exemplo. Fatores como estes demonstram a existência de uma disputa política pelo controle da administração do sistema Judiciário brasileiro”, conclui Almeida.


quarta-feira, 13 de abril de 2016

“Estado democrático de direito” ou “Democracia”?


"Justiça" estátua de Alfredo Ceschiatti diante do Supremo Tribunal Federal

Por uma esquerda que rejeite o mito da neutralidade das leis; e que defenda, em vez a “legalidade” abstrata, os conflitos, a pressão social e a disputa no interior do sistema jurídico



Por Monica Stival


Proponho que nós, de esquerda, reflitamos sobre o que significa defender pura e simplesmente “a legalidade”, “o Estado de direito”, “a aplicação imparcial das leis”.

Quando discutimos os meios de comunicação, quando discutimos as intervenções e posições cotidianas, mesmo aquelas em almoços familiares ou nas confusões sentimentais em grupos de amigos, costumamos mostrar como é ingênua a afirmação da neutralidade. Tomamos já como discussão vencida a ideia da imparcialidade. Por que, então, haveria neutralidade ou imparcialidade no sistema judiciário?

Quando a lei antiterrorismo for utilizada contra manifestações populares, quando a lei de propriedade for utilizada contra ocupações populares daqueles que não contam nem com a garantia do direito à moradia, quando o aborto for absolutamente criminalizado, vamos defender pura e simplesmente a legalidade? Não estou sugerindo, de modo algum, menosprezar o direito positivo; estou propondo disputar o espaço que confere legitimidade às leis, às interpretações e às decisões jurídicas. É nessa medida que defender a Constituição de 1988 é defender o direito positivo vigente sobretudo porque esta Constituição é uma conquista social substancialmente progressista. Nem toda Constituição é imediatamente boa ou justa, de um ponto de vista político e social (não qualquer ponto de vista). É somente este ponto de vista que pode disputar a legitimidade dos processos institucionais – e a disputa política, sabemos bem, não se dá em esfera pública igualitária, mas nos enfrentamentos por narrativas próprias (aqui o papel fundamental das mídias alternativas e das redes sociais, apesar dos pesares) e nos enfrentamentos práticos organizados, como ocupações e manifestações de rua.

Assim, creio que a tarefa crítica de esquerda seja hoje, sobretudo, explicitar a posição política que cada decisão implica. Não podemos sacralizar o direito positivo, como se a aplicação das normas ou os procedimentos pudessem ser “puros”, independentes de narrativas e de perspectivas políticas e morais. Não se pode simplesmente defender a legalidade por ela mesma, mas disputar o sentido e, com isso, o conteúdo do sistema legal. Por exemplo, creio que caiba à esquerda mostrar que, sim, há lei de responsabilidade fiscal, cujo sentido é fundamentalmente liberal; mas ela implica crime de responsabilidade? A ilegalidade que justifica o termo golpe, abstraindo todo o resto do processo complexo de narrativa e inviabilização de certas figuras politicamente fortes, está na ligação entre a lei que regulamenta a gestão orçamentária e a possibilidade de interromper mandato – essa possibilidade não está dada constitucionalmente. Pelo menos se a questão for analisada politicamente. Afinal, além da letra da lei de responsabilidade há o espírito complexo que faz com que outros direitos dependam de grana, simplesmente – combate à zika, combate à miséria, ao desemprego, etc. Vale notar como é curioso defender alteração no sistema institucional executivo por gestão orçamentária e, ao mesmo tempo, como sugere Armínio Fraga em entrevista recente, propor “orçamento zero”, isto é, a suspensão dos repasses constitucionais – muitos dos quais ligados a políticas públicas que se sobrepuseram, por seu valor social e político, à letra do controle fiscal.

Aqui entra a decisão sobre o vínculo entre essas normas, a viabilidade de políticas públicas dentro do preceito liberal do modelo fiscal e a aplicação da lei geral ao caso particular (sem comentar que se aplicaria, se fosse o caso, a todos os governantes, em exercício ou não…). [não vou tratar aqui da questão das ilegalidades que não estão diretamente ligadas ao processo formal de impedimento aberto na Câmara Federal]. A decisão é conceito político por excelência (e não elemento especificamente jurídico, como diz Schmitt, senão formalmente ligado ao sistema jurídico nesse nosso tipo de sociedade).

Portanto, a democracia se revela esse espaço aberto à disputa política e moral sobre as leis, interpretações e decisões. É na democracia que se pode disputar o sentido político que atravessa necessariamente o sistema judiciário, na medida em que é praticado por pessoas. E explicitar isso não significa menosprezar a ordem jurídica, mas mostrá-la tão humana quanto qualquer outra esfera da vida social, tão política quanto qualquer outra intervenção no espaço comum, no espaço público. Não se pode simplesmente defender a legalidade como se estivesse em questão assentir ao que diz o sistema jurídico, como se este fosse um sistema impessoal que se revelasse a origem e o fundamento da verdade e do justo.

Ora, todo movimento social que obteve vitória na demanda por algum direito social sabe que não se pode reservar as transformações do direito positivo exclusivamente ao movimento de jurisprudência, como se as transformações – que não são “frias”, mas reacionárias ou progressistas, isto é, com sentido político – respondessem apenas a uma necessidade interna do sistema jurídico; ou como se fossem legitimadas em discussões igualitárias cujo procedimento estivesse calcado em uma razão comum. As conquistas sociais sedimentadas na forma jurídica são resultado de disputas que envolvem racionalidades distintas, que envolvem força política, que envolvem posição explícita a respeito do sentido progressista que tais demandas representam, considerando a vida concreta das pessoas (não todas, é claro…).

Combater o normativismo não implica dizer que não há democracia, mas estado de exceção. As medidas de exceção só estão em disputa política e social em uma democracia, em um espaço aberto justamente a diferentes narrativas e interpretações sobre os fatos e sobre o dever-ser (direito). Enquanto pudermos enfrentar esse debate, há democracia. E é explicitando o sentido reacionário de interpretações e decisões correntes que poderemos manter esse espaço aberto e nos colocarmos dele de maneira distinta daquela religiosa pela qual se coloca as decisões jurídicas acima da crítica social. Abrir mão de mostrar que há sentidos distintos nas normas e na sua aplicação é abrir mão de colocar-se no espaço aberto e indeterminado que a democracia permite.


terça-feira, 5 de abril de 2016

América Latina: as bases sociais da nova direita



Manifestante pró-impeachment faz selfie com policiais. Para Zibechi, classes médias
"Já não têm como referência as camadas de profissionais que se formaram em
universidades públicas; que liam livros e continuavam estudando ao
encerrar suas carreiras"

Para explicar contra-ataque conservador, não basta culpar a mídia. É hora de examinar transformações da classe média e desarticulação dos setores populares


Por Raúl Zibechi | Tradução: Inês Castilho


Uma nova direita está emergindo no mundo e também na América Latina, região onde ela apresenta perfis próprios e uma nova e inédita base social. Para combater essa nova direita é necessário conhecê-la, evitar as avaliações simplistas e entender suas diferenças com relação às velhas direitas.

Mauricio Macri, [o atual presidente argentino], é bem diferente de Carlos Menem, [que governou entre 1989 e 99]. Este introduziu o neoliberalismo, mas era filho da velha classe política, a ponto de respeitar algumas normas legais e tempos institucionais. Macri é filho do modelo neoliberal e comporta-se segundo o modelo extrativista, fazendo da espoliação seu argumento principal. Não lhe altera o pulso passar por cima dos valores da democracia e dos procedimentos que a caracterizam.

Algo semelhante pode ser dito sobre a direita venezuelana. Trata-se de alcançar fins sem reparar nos meios. O modo de operar da nova direita brasileira diferencia-se inclusive do governo privatizador de Fernando Henrique Cardoso. Hoje os referentes são personagens como Donald Trump e Silvio Berlusconi, ou o presidente turco Recep Tayyip Erdogan, militarista que não respeita nem o povo curdo nem a oposição legal, cujas instalações e encontros são sistematicamente atacados.

Estas novas direitas têm Washington como referência, mas é de pouca utilidade pensar que atuam de maneira mecânica, seguindo as ordens emanadas de um centro imperial. As direitas regionais, sobretudo as dos grandes países e que se apoiam num empresariado local mais ou menos desenvolvido, têm certa autonomia de voo em defesa dos próprios interesses.

Mas a grande novidade são os amplos apoios de massas que conseguem. Como se disse, nunca antes a direita argentina havia chegado à Casa Rosada pela via eleitoral. Esta novidade merece explicações que não se esgotariam neste breve espaço. Tampouco parece adequado atribuir à mídia todos os avanços da direita. Que razões haverá para sustentar que os eleitores da direita são manipulados e os da esquerda são votos conscientes e lúcidos?

Há duas questões que seria necessário esclarecer antes de entrar numa análise mais ampla. A primeira são os modos de fazer, o autoritarismo quase sem freios nem argumentos. A segunda, as razões do apoio de massas, que inclui não só as classes médias, mas também parte dos setores populares.

Sobre as decisões autoritárias de Macri, o escritor Martín Rodríguez sustenta: O macrismo atua como um Estado Islâmico: sua ocupação do poder significa uma espécie de profanação dos templos sagrados kirchneristas (Panamarevista.com, 28/01/16). A decisão pelas demissões em massa apoia-se na firme crença das classes médias de que os trabalhadores estatais são privilegiados que recebem sem trabalhar. Por isso, o custo político dessa decisão terrível foi até agora muito baixo.

A comparação com os modos do Estado Islâmico soa exagerada, mas tem um ponto de contato com a realidade: as novas direitas chegam arrasando, tirando da frente tudo o que se interpõe no seu caminho, desde os direitos adquiridos pelos trabalhadores até as regras de jogo institucionais. Para eles, ser democráticos é apenas contar as células nas urnas a cada quatro ou cinco anos.

A segunda questão é compreender os apoios de massa obtidos. O antropólogo Andrés Ruggeri, que investiga empresas recuperadas, ressalta que a direita pode construir uma base social reacionária capaz de mobilizar-se, com base nos setores mais retrógrados da classe média. Tais setores sempre existiram e apoiaram a ditadura nos anos 1970 (Diagonal, 13/02/15). Essa base social está ancorada num eleitor-consumidor que adquire um voto como um produto de supermercado.

Ruggieri considera que o grande erro do governo de Cristina Fernández consistiu em não estimular o surgimento de um sujeito popular organizado. Ao invés disso, promoveu um conjunto social desagregado, individualista e consumista, que considerou as conquistas da luta de 2001, e as mudanças sociais alcançadas nos últimos doze anos, como direitos adquiridos que não estavam em risco. Convencer o eleitorado desta suposta garantia foi uma grande conquista da campanha da direita, chave para seu triunfo (Diagonal, 13/02/16).

As classes médias são muito diferentes das dos anos 1960. Já não têm como referência as camadas de profissionais que se formaram em universidades públicas; que liam livros e continuavam estudando ao encerrar suas carreiras; que aspiravam a trabalhar por salários medianos em repartições estatais e se socializavam em espaços públicos onde confluíam com os setores populares. As novas classes médias têm como referência os mais ricos, aspiram a viver nos bairros privados, longe das classes populares e da trama urbana, são profundamente consumistas e desconfiam do pensamento livre.

Se há uma década parte dessas classes médias bateu panelas contra o corralito do ministro da Economia, Domingo Cavallo, e em certas ocasiões confluiu com os desempregados (piquete e panela, a luta é uma só, era o lema de 2001), agora sua única preocupação é com a propriedade e a segurança; e acredita que a liberdade consiste em comprar dólares e veranear em hotéis cinco estrelas.

Essas classes médias (e uma parte dos setores populares) estão modeladas, culturalmente, pelo extrativismo: pelos valores consumistas que o capital financeiro promove, tão distantes dos valores do trabalho e do esforço que a sociedade industrial promovia há apenas quatro décadas.

Os defensores do modelo neoliberal têm uma base de apoio em torno de 35% a 40%  do eleitorado, como mostram todos os processos da região. Frequentemente não sabemos como enfrentar essa nova direita. Não é fazendo agitação contra o imperialismo que a derrotaremos, mas sim mostrando que se pode desfrutar a vida sem cair no consumismo, o endividamento e o individualismo.



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

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