domingo, 30 de março de 2014

Lousa, giz e chumbo


Subfinanciamento da escola pública e privatização do setor estão entre os principais legados das políticas educacionais da ditadura



Por Cida de Oliveira e Sarah Fernandes



Enquanto prendia estudantes e professores,  a ditadura rapidamente mudou o modelo de ensino no Brasil
                                                                                                (O JORNAL/JCOM/D.A. Press - RJ 12/07/1968)


Em meio a um emaranhado de fusões de escolas e concentração de conglomerados universitários, o ensino superior privado brasileiro segue de vento em popa. Um levantamento da consultoria Hoper Educação, com base em dados de 2013, constatou crescimento de faturamento de 30% entre 2011 e 2013, de R$ 24,7 bilhões para R$ 32 bilhões. Conforme a consultoria, estão matriculados hoje no ensino superior privado 5 milhões de alunos.

Os números do setor têm reflexo no Censo Escolar do Ministério da Educação. Os dados de 2011, divulgados em 2013, indicam que das 2.365 instituições que participaram do levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 88% são particulares – percentual que praticamente repete o do censo anterior. Entre as dez maiores instituições de ensino superior em números de matrículas de graduação, nove são privadas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, mostra que em 2012 estavam na rede privada 74,6% dos estudantes, percentual que aumentou em relação ao ano anterior, que era de 73,2%. O crescimento da educação como negócio é inversamente proporcional à queda na qualidade dessa modalidade ensino, pouco fiscalizado.

A maioria dos cursos é noturna e alunos dessas faculdades dedica menos tempo aos estudos fora da sala de aula do que os das faculdades públicas. Justamente porque precisam trabalhar, não chegam a estudar mais do que cinco horas por semana em casa. E é na universidade pública, onde a qualidade do ensino é historicamente melhor, que estão os alunos com mais tempo para estudar. O dado revela mais um traço de desigualdade, já que ali estão os estudantes com melhor situação socioeconômica. Em 2013, dos mais de 10 mil estudantes aprovados no vestibular da Universidade de São Paulo – a mais procurada do Brasil –, apenas 28,5% estudaram em escola pública em algum momento da vida. O número é pouco maior que em 2008, quando era de 26,5%, conforme dados da Fundação para o Vestibular (Fuvest).

Esse cenário decorre do conceito de que a educação é um negócio, cuja missão é forjar cidadãos para atender às demandas do mercado. E é cria de um processo que ganhou grande impulso há 50 anos.


A educação que convém


Hasteamento da bandeira em Gama (DF), 1975. Nas escolas,
a disciplina e a ordem eram enaltecidas. E obrigatórias
(VITOR/CB/DA PRESS)
À noite, à luz de lampião, 300 trabalhadores rurais da pequena Angicos, no sertão do Rio Grande do Norte, aprenderam a ler, escrever, fazer contas e a se enxergar como cidadãos. Bastaram 40 aulas. O êxito da experiência levou a reunir, em seu encerramento, em março de 1964, o então presidente João Goulart e o general Humberto de Alencar Castelo Branco.

Comandante da III Região Militar em Recife na época, ele já via no método pedagógico do educador Paulo Freire uma forma de “engordar cascáveis” naqueles sertões. No mês seguinte, houve a primeira greve no município, atribuída à “praga comunista” trazida pelas aulas e, logo em seguida, o cancelamento, pelos militares, da adoção do programa em todo o país que tinha então taxa de analfabetismo superior a 30%. Freire foi preso e exilado.

Não se sabe se o país teria erradicado o analfabetismo se a experiência de Angicos fosse ampliada para todo o território. Ou se ainda teria os mesmos 13 milhões de analfabetos. A certeza é que o golpe, que em 1964 brecou o processo de democratização em curso no país desde a década de 1940, fez  da educação instrumento de legitimidade, alvo de seus órgãos de repressão e deu cheque em branco ao empresariado amigo. Tanto que as diretrizes da política educacional dos governos militares, marcada pela transferência de recursos públicos para o setor privado – sangria que acabou colocando o ensino público brasileiro entre os piores do mundo –, foram traçadas no Rio de Janeiro, em 1964, num seminário do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), organização que ajudou a criar o clima e a dar sustentação ao golpe. O tema do evento: “A educação que nos convém”.

Dali saíram as bases da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968, aprovada duas semanas antes de ser baixado o Ato Institucional nº 5, o AI-5. A lei reorganizou o ensino superior numa concepção autoritária, segundo a qual o mercado, e as instituições ao seu dispor, adequam as pessoas às suas necessidades. Criaram-se ainda mecanismos que justificaram abusos, intervenções, perseguição e cassação de professores e estudantes, censura à pesquisa e a subordinação direta dos reitores ao presidente da República.

E, claro, a lei permitiu também a abertura de vagas em faculdades particulares para atender anseios do empresariado, que dependiam de mais profissionais capacitados. Nos primeiros anos do golpe, enquanto a Argentina tinha 36% dos jovens com idade entre 18 e 24 anos na faculdade, o Brasil não chegava a 12%. Para chegar perto, portanto, era preciso triplicar as vagas.

“Até aquela época eram poucas as instituições privadas, geralmente tradicionais, religiosas, como a presbiteriana Mackenzie e a Pontifícia Universidade Católica. O ensino superior era oferecido majoritariamente pelo Estado, que nos anos 1940 encampou faculdades privadas. Mas desde então a proporção se inverteu. Hoje, as vagas públicas não chegam a 25% do total”, aponta o professor Dermeval Saviani, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Dois meses após o AI-5, o presidente Arthur da Costa e Silva baixou o Decreto-lei nº 477, o AI-5 das universidades. Escrito sob a batuta de tecnocratas da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid, na sigla em inglês), punia sumariamente professores, alunos e funcionários considerados culpados de subversão e os proibia de trabalhar ou estudar em outras instituições. Era a criminalização do movimento estudantil e de toda forma de contestação.

Na época foram presos, processados e mandados para o exílio professores como Celso Furtado, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Leite Lopes e Mário Schemberg. As forças militares invadiram universidades, incendiaram a sede a União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, fecharam escolas e destruíram bibliotecas.

“O argumento era colocar o país em ordem numa perspectiva estratégica de progresso conforme as convicções do regime, calando as insatisfações sociais e políticas que brotavam sobretudo nesses espaços”, lembra o professor José Willington­ Germano, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autor do livro Estado Militar e a Educação no Brasil 1964-1985.

Obviamente, nenhuma medida se impõe exclusivamente pelo retrocesso. Ali se implementava também a pós-graduação no país, proporcionando a pesquisa universitária – ainda que de forma mutiladora, de universidade operacional, voltada à técnica e ciência instrumental, burocratizada, orientada pelo mercado, longe do ideal autônomo, pluralista e crítico, como observa Willington. A novidade, porém, acabou sendo um tiro pela culatra ao aglutinar professores e pesquisadores contrários à repressão. “Houve uma produção importante nas ciências sociais, humanas e da educação que despertou o senso crítico e levou à desconstrução do discurso hegemônico”, observa Saviani, da Unicamp.

Os movimentos de educação e cultura popular também foram duramente reprimidos, entre elas as escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base (MEB), da Arquidiocese de Natal. O rádio que alfabetizava também incentivava a participação sindical dos trabalhadores rurais e a defesa da reforma agrária como enfrentamento à miséria. Ao discurso reformista democratizante foi contraposto o da Doutrina de Segurança Nacional, com disciplina e ordem enaltecidas, por exemplo, no ensino de Educação Moral e Cívica ministrado em todos os níveis, inclusive na pós-graduação.


Promessa não cumprida

Alunos, professores e funcionários das ETecs e Fetecs(SP)
protestam por melhores salários e condições de trabalho
(CC/DANILO RAMOS/RBA - FEV/2014)
Inspirada na teoria do capital humano com apelos de correção das desigualdades sociais defendida pelo empresariado do Ipes, a Lei nº 5.692, de 1971, ampliou de quatro para oito anos a escolaridade obrigatória no então ensino de primeiro grau. Teoricamente, todas as crianças brasileiras entrariam no primeiro grau e no quinto ano seriam sondadas quanto a aptidões para o mercado de trabalho, sem ter de mais passar pelo exame da ­admissão para subir do primário para o ginasial. E no segundo grau já seguiriam para um curso profissionalizante, com a justificativa de que o ensino profissional deveria ser destinado a todos, garantindo a todos uma profissão de nível médio.

De certo modo, seria uma conquista comparada à escolaridade obrigatória anterior, de quatro anos, mas que na prática não se sustentou. Primeiro, porque o próprio primeiro grau não foi universalizado até hoje em algumas regiões periféricas. E, segundo, porque não foram feitos investimentos proporcionais ao crescimento. “Com o novo ensino de primeiro grau, com oito anos, e abolido o exame de admissão, mais alunos puderam continuar estudando”, reconhece a professora Alzira Batalha Alcântara, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). “Porém, sem a injeção de mais recursos, não havia como construir mais escolas para atender à demanda, faltavam laboratórios em escolas profissionalizantes de segundo grau, o currículo foi enxugado para reduzir a necessidade de mais professores, não havia concursos, os salários foram sendo achatados e a qualidade caiu”, completa.

Pelas contas do professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) Nicholas Davies, houve mesmo redução nos investimentos. Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1961, cabia à União investir no mínimo 12%, o que a Constituição de 1967 suprimiu. Em 1969, pela Emenda Constitucional n° 1, os municípios continuaram obrigados a investir 20% da receita no ensino primário. Porém, estados e União ficaram livres de um percentual mínimo. Entre 1960 e 1965, o Ministério da Educação (MEC) investia entre 8,5% e 10,6%, percentuais que foram reduzidos para 4,4% e 5,4% no período de 1970 a 1975, do chamado “milagre” econômico.

Só em 1983, com a Emenda Constitucional n° 24, do senador João Calmon, foi fixado mínimo de 13% para a União e 25% para estados, Distrito Federal e municípios. O dinheiro que faltava para o ensino público seguia para o setor privado, via isenções fiscais e incentivos.

Um dos mecanismos era o salário-educação, criado em 1964 para financiar a educação primária. No entanto, permitia às empresas abrir escolas para filhos de funcionários ou pagar bolsas em escolas particulares em troca da isenção do recolhimento. Estudos mostram que em meados da década de 1980 metade de toda a rede particular que oferecia educação fundamental era mantida com o salário-educação.

As escolas particulares proliferaram, sempre contando com a isenção de impostos sobre patrimônio, de renda e sobre serviços e financiamentos com juros negativos. O perfil privado, sem a representação democrática de todas as parcelas da sociedade, é, aliás um traço do período da ditadura que se mantém nos dias de hoje no estado de São Paulo, por exemplo. A combinação de um regime que inibia as possibilidades de contestação social com a deterioração da qualidade do ensino público criou mais um alicerce para a edificação do ensino privado. Em vez de contestar e exigir ensino estatal de qualidade, a classe média passou a incluir a escola particular cada vez mais em sua cultura e em seu orçamento.

Passados 50 anos do golpe, os estudiosos não sabem dizer também se as medidas tomadas pelos governos autoritários teriam sido adotadas num eventual ­regime de alternância regular de poder civil. Mas quase 30 anos depois de iniciada a redemocratização, o que se sabe é que ainda são sentidos os efeitos do pós-1964 no ensino. E a luta por mais recursos para a educação pública é uma das principais bandeiras da sociedade que hoje pode e vai às ruas. “O mais perverso e injusto é o elemento ideológico resultante de todo esse processo que ainda persiste: que o público é ruim e o particular é bom”, diz o professor Luiz Antônio Cunha, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Colaboraram: Malú Damázio e Patricia Iglecio


FONTE: Rede Brasil Atual

quarta-feira, 26 de março de 2014

Presídios: omissão do Estado, indiferença da sociedade


Não deveria ser novidade para ninguém que o sistema penitenciário brasileiro é caótico e violento e não ressocializa os presos. Ao contrário, brutaliza



Por Alexandre Ciconello, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil



Encarcerar, para a sociedade brasileira, é uma
espécie de vingança (Foto: Weliton Aiolfi/Adital)
A punição ainda é vista pela sociedade brasileira como uma espécie de vingança. A indiferença, a omissão ou mesmo o consentimento da sociedade e dos agentes públicos com a barbárie existente no sistema penitenciário é a principal barreira para a sua transformação.

Assim, superlotação, torturas, precárias condições de higiene, revistas vexatórias em familiares, incluindo crianças, e toda a sorte de punições para quem cometeu delitos são, infelizmente, legitimados, ainda que de forma velada, por uma parte da sociedade.

A demanda pelo direito a uma vida sem violência é extremamente legítima – e a violência no Brasil é real. São cerca de 50 mil homicídios por ano, além de roubos, estupros e outras ocorrências que causam medo e deixam suas vítimas e familiares perplexos, traumatizados e desamparados.

O filósofo e jurista Cesare Beccaria dizia, ainda no século XVIII, que o que previne um crime é a certeza da punição e não a severidade da pena. Nesse aspecto, a segurança pública fornecida pelo Estado brasileiro (considerando não apenas o poder Executivo, mas o Judiciário e o Legislativo) é extremamente ineficiente.

Menos de 8% dos homicídios no Brasil resultam em processos criminais. Há uma deficiência na investigação, com a existência de duas polícias (Civil e Militar) que pouco dialogam, além de outras questões como a falta de perícia, pouco uso de inteligência, falta de dados, planejamento e coordenação institucional e federativa.

De 2009 a 2012, o número de pessoas presas
no Brasil, aumentou 60% (déficit que chegou,
em 2012, a cerca de 229 mil vagas)
(Foto: Marcos Santos/USP Imagens)
A abordagem policial é violenta e seletiva, assim como, o próprio processo penal -  40% da massa carcerária no Brasil (548 mil pessoas) é formada por presos provisórios. Pesquisa recente realizada pelo Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro), mostra de 50% dos presos provisórios no estado estavam em situação ilegal: acabaram sendo absolvidos ou tiveram uma pena diferente da prisão.

A seletividade começa quando o policial aborda o suspeito na rua ou em comunidades pobres. O perfil do suspeito quase sempre é de um jovem, negro e pobre. Depois, quando o juiz ou o promotor decide sobre a legitimidade da prisão em flagrante ou o pedido de prisão, a seletividade continua. A desigualdade e a discriminação operam ainda quando o Estado não oferece assistência jurídica e termina na decretação da sentença e no cumprimento da pena.

63% dos presos no país não concluíram o ensino fundamental. A maioria dos presos são jovens e negros/as. Poucos crimes de estelionato, corrupção, crimes tributários, contra o sistema financeiro  ou também chamados crimes do colarinho branco são investigados e quando o são, pouquíssimos são os condenados.

Somente 0,08% dos presos possuem ensino superior completo, mas para esses, o Código de Processo Penal garante uma cela ou prisão especial quando sujeitos a prisão provisória. Esse privilégio também é concedido a padres, militares e outras castas. Ou seja, a elite não frequenta a cadeia e não se importa com os horrores que ocorrem lá dentro.

As cenas brutais, que chocaram o mundo, de presos sendo decapitados no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, apenas expuseram o que, não raro, ocorre nestes lugares. Não deveria ser novidade para ninguém que o sistema penitenciário brasileiro é caótico e violento e não ressocializa os presos. Ao contrário, brutaliza.

O problema é antigo e a situação só piora. De 2009 a 2012, o número de pessoas presas no Brasil aumentou 60% (déficit que chegou, em 2012,  a cerca de 229 mil vagas). A população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo, atrás dos Estados Unidos, China e Rússia e 40 mil pessoas estão presas por furto simples.

Além disso, 25% dos presos estão encarcerados por tráfico de drogas, em maioria pequenos traficantes pobres. De um lado a polícia mata na favela em nome da guerra às drogas e do outro prende e brutaliza jovens na cadeia, tornando-os presas fáceis para o crime organizado e facções criminosas.

Uma profunda reforma das polícias, do sistema de justiça criminal e do sistema penitenciário é urgente. Temos que estancar de uma vez a produção de ódio e insegurança alimentada pela omissão e ação das próprias instituições do Estado.


domingo, 23 de março de 2014

Quando o preconceito vem de dentro de casa




Aceitar a orientação sexual dos filhos é difícil, mas a intolerância pode deixar consequências irreversíveis


Por Isadora Otoni


Túlio Ribeiro*, 14 anos, sempre foi mais próximo do pai do que de sua mãe. Por isso, contou primeiro para ele que não se identificava com o gênero feminino, e sim com o masculino. Sua mãe vivia perguntando se ele gostaria de ser um garoto, mas a resposta veio por uma carta que ela leu escondida.

Infelizmente, a reação foi um comportamento agressivo. Túlio só descobriu que a mãe havia descoberto sua condição por meio de sua psicóloga. Em outubro do ano passado, ele recebeu a mãe na escola e os dois acabaram brigando no corredor. Foi quando pararam de se falar.

Agora, seu pai trava uma batalha judicial para conquistar a sua guarda. “Estamos começando a ter problemas”, relatou Túlio. “Minha antiga psiquiatra quebrou o sigilo e passou a detalhar minhas consultas para ela. As duas planejam processar meu pai por alienação parental, principalmente depois de descobrirem que desejo começar a terapia hormonal”.

A vida emocional de Túlio está prejudicada, como ele mesmo confessou. “É muito difícil ter uma mãe que não aceita. Ela manda mensagens me chamando no feminino, fazendo chantagem emocional. Na última segunda-feira, chegou até a enviar fotos antigas minhas. Já a vi falar sobre mim como se eu tivesse morrido”, desabafou. Ele contou que até os amigos percebem quando ele está abalado. “Fico tão mal que não consigo me concentrar pelo o resto do dia e acabo não fazendo meus deveres, tudo isso muitas vezes por causa de um simples e-mail.”

Lucas Zerbin*, 14, passa por uma situação semelhante. Ele também se reconhece como homem desde a infância, mas seus pais sempre foram uma barreira na sua transição. “Eles me levaram em igrejas, psiquiatras e médicos. Ser trans para eles é ser um ET”, afirmou. O preconceito em sua casa já chegou a se manifestar em forma de violência física, segundo ele.

“Nunca tive apoio deles e eles também não gostam que outros me apoiem”, disse Lucas, que já escutou seus pais dizerem que preferiam o ver morto. Além do namorado de uma prima, ninguém mais na família compreende sua situação. Até seus colegas de escola trocam agressões verbais como se fossem brincadeiras. Por isso, o estudante está com dificuldades nos estudos. “Não consigo mais me concentrar em nada, minhas notas diminuíram e meu rendimento escolar está diminuindo cada vez mais”, lamentou.

Reaproximação

O filho de Edith também é homossexual
(GPH/Divulgação; Foto de capa
 por Maria Objetiva/Flickr)

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Na falta de compreensão familiar, o recomendado é procurar medidas que reabram o diálogo. Antes de recorrer judicialmente, a alternativa é buscar ajuda de profissionais de psicologia que possam mediar uma reaproximação. A terapeuta e professora da Universidade de São Paulo Edith Modesto, que fundou o Grupo de Pais Homossexuais (GPH), é uma especialista no assunto e tenta sempre reconciliar pais e filhos. Para ela, o problema de aceitação vem de ambas as partes.

“Os pais têm preconceitos que lhes foram internalizados pela sociedade, desde que nasceram. A diversidade de orientação sexual não é um dado natural para eles. E para os filhos também”, explica Edith. “Por um lado, os jovens têm um processo difícil de autoaceitação a superar e os pais, por outro, têm dificuldades de aceitação”.

O acompanhamento feito por Edith começa quando o próprio filho a procura, por meio de e-mail, telefone ou até indicação de terceiros. A terapeuta tenta, então, entrar em contato com os pais para a abertura do diálogo. Entretanto, nem sempre funciona. “Depende do pai, depende da mãe, depende do que eles herdaram da família de dificuldades”, relata. “Mas o amor sempre vence e os pais amam seus filhos”, conclui com otimismo.

Quando a reconciliação não funciona, o problema geralmente é com os pais. “Ultimamente tem sido muito raro não haver aceitação a diferença das filhas ou dos filhos. A menos que pai ou mãe sejam pessoas muito doentes. Aí é caso de tratamento psiquiátrico e eu recorro a eles”, explica.

Muitas vezes, as consequências do preconceito são irreversíveis. A violência emocional chega até a superar as agressões físicas. “A rejeição deixa feridas na alma que ficarão para sempre. Com essas feridas emocionais, é bem mais difícil ser feliz”, afirma Edith. “Há casos de violência física, pois os pais ficam desesperados, não sabem o que fazer. O pior que temos na ONG é a violência emocional. Tiram o computador, o celular, trocam de escola, proíbem os amigos… E acham que estão dando limites”.

Apesar da dificuldade que o relacionamento com os pais trazem aos filhos que sofrem homofobia ou transfobia em casa, é raro que o caso termine na Justiça. “Na nossa ONG, desde 1997, nunca precisamos que um filho ou filha denunciasse os pais. Aliás, eles não querem”, relata Edith. “A lei é muito importante, mas para casos de pessoas doentes”, opina.

Luíza Alves, 20**, foi uma das pessoas que procuraram Edith Modesto. Ela se assumiu para o pai em setembro do ano passado, mas sob pressão. “Os pais de uma ex-colega minha iriam contar em um jantar de família. Eu só pensava que se esse dia chegasse, teria que mudar de faculdade e nunca mais veria minha namorada”, disse a estudante. “Contei para ele aos gritos e ele ficou sem reação”.

Ao perceber as dificuldades que o pai tinha para lidar com sua sexualidade, Luíza sugeriu que ele frequentasse reuniões com outros pais de homossexuais. “Encontrei o telefone da Edith na internet e nós fomos lá. Primeiro ele teve uma consulta individual e depois eu fui algumas vezes. Ela ajudou bastante, mas o que ajudou mesmo foi parar e conversar de verdade”. Ainda assim, seu pai tem um comportamento bipolar. “Ele não consegue falar ‘namorada’ até hoje, mas desde o começo sempre disse que me amava e ia tentar lidar com isso.”

Agora, os problemas na casa de Luíza gira em torno da mãe. Seu pai não quer que a esposa saiba a sexualidade da filha. “Durante um almoço no fim de semana, meu pai começou a perguntar da família do namorado da minha irmã. Fiquei muito triste porque ele nunca se interessou nem em saber o nome da minha namorada. Eu comecei a chorar, fui ao banheiro e fiquei fingindo que eu estava tomando banho porque não podia fazer barulho por causa da minha mãe”, narrou a universitária. “Minha mãe tem diabetes emocional, ele acha que ela vai acabar morrendo se eu contar”.

Tudo tem limite

Caso não haja reconciliação, o filho pode ser amparado judicialmente para não ser prejudicado. A atitude de “expulsar de casa” um menor de 18 anos, por exemplo, configura abandono de incapaz, crime previsto no artigo 133 do Código Penal. André Cunha, mestrando em Direitos Humanos pela USP, explica que os pais possuem “poder familiar” sob os menores: “Além do dever de prover o sustento dos filhos, eles têm também a guarda, ou seja, a obrigação de manter os filhos sob seus cuidados e no mesmo local em que residem”.

Já os maiores de idade expulsos de casa têm direitos a uma pensão, desde que estejam estudando ou não tenham condições de prover o próprio sustento. “Mesmo após completarem a maioridade, ainda que não morem mais com os pais, remanesce o direito de receber alimentos, desde que estejam estudando ou não tenham condições de prover o próprio sustento”, esclarece André. E por “alimentos”, o especialista entende como “todos os custos necessários para se viver de modo digno e compatível com a mesma condição social dos pais. Isso inclui educação, saúde, lazer e moradia”. Não existe uma idade máxima para receber o benefício, mas a tendência que o filho seja provido até os 24 anos.

Se praticada violência física ou psicológica com menores de 18, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê a possibilidade afastamento do jovem do lar. Essa suspensão temporária do poder familiar pode ser decretada pelo Juiz, a pedido do Ministério Público, do Conselho Tutelar ou de quem tenha interesse, podendo ser a própria vítima ou parente próximo. Lucas Zerbin, que já tem acompanhamento psiquiátrico, pretende recorrer a esse meio para dar um fim ao sofrimento que passa em casa.

André Cunha ressalta que o homossexual ou transexual adulto também pode recorrer a meios legais caso sofra violência doméstica. “Nessa situação, aplica-se a Lei Maria da Penha, que prevê a possibilidade de aplicação de medidas protetivas de urgência, tais como o afastamento do agressor do lar e a proibição de aproximar-se da vítima, sob pena de prisão”, explica. O pedido das medidas pode ser feito pela autoridade policial, após registro da ocorrência, pelo Ministério Público, pela Defensoria ou pela própria vítima, representada por advogado.

O advogado apontou os meios pelos quais as vítimas de homofobia podem conquistar seus direitos, mas destacou: “Em primeiro lugar, penso que temos que tentar ao máximo reaproximar os filhos de seus pais e evitar afastá-los ainda mais”. Para isso, ele citou a GPH, já que é assessor jurídico da ONG.

No entanto, situações graves de violência requerem intervenção mais incisiva. “Nestes casos, a vítima pode procurar os órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, tais como o Conselho Tutelar, as Promotorias da Infância e da Juventude e o Núcleo da Infância e da Juventude da Defensoria Pública. Uma alternativa mais prática e rápida é o Disque 100, vinculado à Secretaria Nacional de Direitos Humanos e que encaminha as denúncias aos órgãos competente”, recomendou. “O filho também pode pleitear seus direitos por meio de advogado, porém o profissional precisa ter consciência de que deve sempre buscar a reconciliação”.


* Nome fictício para preservar a identidade dos menores de idade.
** Nome fictício a pedidos da personagem.



sexta-feira, 21 de março de 2014

Sobre crianças e mentes colonizadas


Ao formar consumidores precoces, publicidade infantil inibe outras maneiras de
socialização e sugere: relações humanas precisam ser validadas  por mercadorias...


Por Lais Fontenelle


No dia 15 de março comemorou-se o Dia Internacional dos Direitos do Consumidor. Nessa mesma data, em 1962, o então presidente dos EUA, John F. Kennedy, enviou uma mensagem ao congresso norte-americano chamando atenção da sociedade para garantias básicas, até então pouco conhecidas e negligenciadas como o direito de proteção contra propagandas e embalagens fraudulentas, o direito de escolha e informação frente aos produtos e o direito de ser ouvido.

A mensagem deixava evidente a urgência da questão. Porém, a primeira comemoração da data se deu em 1983, e foi somente dois anos depois que a ONU reconheceu os direitos dos consumidores, legitimando internacionalmente a causa. Já no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor, um dos mais completos e ousados do mundo, entrou em vigência em 1990, dois anos após a promulgação da atual Constituição Federal, e pode ser visto como resposta do poder público aos anseios da sociedade civil em relação aos avanços desgovernados da sociedade de consumo.

Curiosamente, é também dos anos 90 que muitos autores datam a crise conceitual da infância, pois foi quando as crianças, historicamente vistas e tratadas como um vir a ser que precisavam ser preparadas para o mundo adulto, foram elevadas pelo mercado ao status de consumidoras – antes mesmo de poderem exercer plenamente sua cidadania. Tidas até então como filhas de cliente, as crianças passaram a ser consideradas como consumidoras finais, tornando-se um alvo importante do mercado de consumo de produtos e serviços – um potencial nicho comercial.

Foi nesse contexto que a publicidade dirigida às crianças entrou em cena com grande força. Passou a endereçar ao público infantil mensagens de apelo ao consumo, que se aproveitam da vulnerabilidade infantil para vender. Tornou-se, segundo pesquisa da Intersciense, de 2003, a principal influência de compras dos produtos infantis com embalagens e personagens famosos. Hoje, contudo, a publicidade não endereça às crianças somente mensagens de produtos infantis, mas também de objetos adultos. Isso deve-se ao fato deste público estar sendo encarado pelo mercado como porta de entrada para a influência nos hábitos de consumo de toda a família.

Dados mundiais a esse respeito apontam que a influência das crianças nas compras realizadas pela família chega a 80% em relação a tudo o que é consumido, inclusive em relação a bens e serviços de interesse exclusivo dos adultos, como, por exemplo, marcas de automóvel, imóveis, produtos de limpeza etc. No Brasil, só a moda infanto-juvenil movimenta a soma anual de R$10 bilhões, o que corresponde a um terço de toda a roupa consumida no país.

A partir desses dados podemos dizer que o mercado enxergou nas crianças uma rentável fonte de lucros, já que quanto mais cedo você fideliza a criança a uma marca, mais chances tem dela ser fiel à mesma do berço ao túmulo, como dizem os publicitários. Assim, aproveitando-se da fragilidade e vulnerabilidade infantil, o mercado passou, então, não somente a atrair os olhares das crianças, como a dirigir-se diretamente a elas com peças publicitárias feitas “sob medida”.

Não foi à toa, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro previu proteger as crianças de apelos de consumo, instituindo no Art. 37: “É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva (…)”, e explicando no seu parágrafo§2º que “É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança. (…)”.

As crianças são convidadas pela publicidade – que lhes é ilegalmente dirigida – a ingressar cada vez mais cedo no complexo mundo adulto do consumo. A lógica do consumo domina as relações infantis e acaba restringindo a criatividade e as trocas afetivas das crianças, além de queimar etapas importantíssimas do seu desenvolvimento.

A criança será, em função do tempo em que vivemos, uma consumidora no futuro. Logo, além de protegê-la legalmente da comunicação mercadológica, como já fizeram 28 países do mundo, incluindo os dez com melhor qualidade de vida –,precisamos prepará-la para que seja uma cidadã e consumidora consciente e responsável. Isso é feito com Educação, principal ferramenta no processo de transformação social. Lembre-se: educar, assim como consumir, é um ato político.

Precisamos começar a educar nossas crianças para que tenham responsabilidade ao comprar. O direito à educação para um consumo consciente é não só um desafio, como também a solução para os problemas morais e ambientais de nossos tempos.

O principal direito das crianças é o direito à infância. Pensemos no direito de escolha e de proteção de nossas crianças frente ao bombardeio publicitário que as convida a tornar-se adultas antes do tempo. Elas são o prefácio para um mundo mais ético e sustentável, e têm nas mãos o poder de reinventar as relações de consumo. Tudo depende de vontade política e atuação conjunta em duas frentes: regulação e educação.


FONTE: Outras Palavras

quarta-feira, 19 de março de 2014

Contrato clássico de trabalho acabará, prevê OIT



Por Assis Moreira


O declínio do contrato com duração indeterminada e a polarização da mão de obra são duas tendências importantes que começam a marcar o mundo do trabalho nos países desenvolvidos e devem se propagar nos emergentes, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O conselho de administração da entidade, reunido esta semana em Genebra, examinará as conclusões de um seminário com governos, acadêmicos e parceiros sociais, que apontou inquietações sobre efeitos desestabilizadores das novas tendências.

Primeiro, o contrato de trabalho clássico com duração indeterminada parece ter os dias contados. Esse modelo tinha se tornando a norma desde metade do século passado, oferecia estabilidade e previsibilidade para os trabalhadores e permitia melhorar seu nível de vida em vários paises.

Agora, técnicos da OIT constatam que o número de trabalhadores com relação de trabalho permanente continua a diminuir, e outras modalidades se multiplicam, no rastro de desenvolvimento tecnológico, globalização, liberalização comercial, maior concorrência e políticas de austeridade.

"O contexto social e economico do trabalho mudou irremediavelmente, e as novas modalidades respondem às necessidades diversas tanto de empresas como de trabalhadores", destaca documento do seminário que o conselho de administração da OIT examinará. "É preciso se adotar um quadro regulamentar e institucional que garanta a proteção e a segurança, sem que seja forçosamente vinculado a um contrato de trabalho clássico".

Várias experiências vem sendo estudadas para atenuar os efeitos negativos dessa desregulação. A Itália adotou mais de 40 tipos de contratos de trabalho, para garantir um mínimo de proteção ao trabalho. A Austrália criou novas formas de seguro social, não mais vinculados ao emprego. Vários países procuram facilitar a transição entre empregos. A Alemanha criou novas formas de barganha coletiva. O Japão adotou novos modos de resolução de disputa, de forma individual e não mais coletiva.

Ocorre que o modelo mais examinado, o "flexi-seguridade" dos países nórdicos, para dar flexibilidade para a empresa demitir e uma proteção ao trabalhador, até agora só foi bem sucedido na Dinamarca. Nem seus vizinhos ricos conseguem garantir o custo desse tipo de programa. E a constatação, inclusive dos empregadores, na OIT é de que "há limites para flexibilidade" no mundo do trabalho.

Quanto à polarização da mão de obra, consiste na diminuição da proporção de empregos medianamente qualificados e remunerados. Agora, o emprego parece se concentrar mais no muito qualificado ou no pouco qualificado. 

A maioria dos trabalhadores, com qualificação média, ou se aperfeiçoa para enfrentar a concorrência do alto ou vai ter de aceitar emprego abaixo de sua capacidade e com salário menor.

"O que vai acontecer com a maioria dos trabalhadores, que está no médio da curva?", indaga Roy Chacko, analista da OIT. "Essas questões não aparecem ainda no radar de algumas autoridades, mas em breve vão aparecer. Forças da globalização, tecnologia, transição demográfica e mudança climática vão ter impacto em cada aspecto do mundo do trabalho".

A OIT tem alertado que ganhos de produtividade não são repartidos de forma equitativa, abocanhados em grande parte pelos que se encontra no alto da escala de renda. A entidade aponta ainda o super endividamento de famílias e as bolhas especulativas como consequências dessa evolução.

O documento que o conselho de administração da OIT examinará diz que as políticas de austeridade, adotadas durante a crise global, prejudicaram os serviços públicos essenciais, transferência sociais e investimentos em infra estrutura, todos com efeitos sobre a renda das famílias pobres.

Alerta que os sistemas de seguridade social vem sendo questionados em mais de 80 países, no rastro da crise. E julga que a política de moderação salarial dos últimos dez anos tanto aumentou a desigualdade de renda, como freou o crescimento econômico e pode favorecer tendências deflacionistas, sobretudo na zona do euro.

Alerta também que a proliferação de formas de emprego precário atípicos contribuiu para reduzir os salários, enfraqueceu a negociação coletiva e, na prática, negou os direitos fundamentais ao trabalho de uma categoria cada vez maior da mão de obra. "Isso deu espaço a formas extremas de maximização dos lucros, explosão do consumo de produtos de luxo e uma má alocação de recursos para fins especulativos", afirma.

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Originalmente publicado em Valor Econômico
      

domingo, 16 de março de 2014

[REPORTAGEM] 50 anos do golpe militar no Brasil: a preparação



Por Mateus Ramos

O próximo dia 1° de abril marcará os 50 anos do golpe militar no Brasil. Por esse motivo a Adital publica, a partir de hoje, uma série de quatro reportagens que abordarão, do ponto de vista histórico, os motivos que levaram o país a aderir ao golpe, inclusive com apoio de grande parte da população; falaremos também sobre a atuação dos órgãos de repressão; a resistência contra a repressão dos militares; e, por fim, construiremos um paralelo entre a atual situação do país e a época do golpe.



O pré-golpe

O golpe militar ocorrido em 1964 estabeleceu no Brasil uma ditadura que se estendeu até o ano de 1985. Ao longo desses 21 anos, o regime militar endureceu o governo, tornando legais práticas totalmente contrárias aos direitos humanos, como a censura e a tortura, por exemplo. Os militares combateram, sem piedade, qualquer ameaça "comunista” ou de manifestantes contra o governo, marcando, na história do Brasil, um período sombrio, caracterizado por atos autoritários e violentos. A simples desconfiança de que alguém era "comunista” já era motivo para espionar e prender a pessoa para averiguação, começando, nesse momento, um cruel processo de tortura psicológica e, em muitos casos, física.

A decisão, por parte dos militares, de aplicar um golpe de Estado num governo eleito democraticamente não foi algo repentino, aconteceu como consequência de uma série de fatos políticos acumulados no período pós Getúlio Vargas, agravados pela decisão deste presidente de por um fim à própria vida. Após a morte de Vargas, Juscelino Kubitscheck (JK) foi eleito de forma direta. JK desenvolveu uma forma de governar que lhe possibilitou a conquista de um grande apoio da população; seu slogan "50 anos em 5” se tornou extremamente popular entre os brasileiros. Contudo, o governo JK também já vinha sendo marcado por indícios de os militares esboçavam um golpe de Estado.

Jânio Quadros e a tentativa de auto-golpe

"Varre, varre,varre vassourinha!
Varre, varre a bandalheira!
Que o povo já tá cansado
De sofre dessa maneira...”

O trecho musical acima faz parte do jingle da campanha eleitoral do sucessor de JK na Presidência da República, Jânio Quadros. O jingle e a campanha eleitoral como um todo causaram uma ótima impressão nos brasileiros, tornando Quadros presidente com uma aprovação nunca antes vista nas urnas. A vitória avassaladora, com 5,6 milhões de votos, fez com que o presidente eleito acreditasse em um auto-golpe de Estado. Acreditando que o povo estaria sempre ao seu lado, o próprio Quadros arquitetou uma renúncia. O objetivo era voltar ao poder por meio de um pedido amplo de retorno, que só seria aceito se lhe fossem dados poderes absolutos. Sete meses após sua eleição, ele pôs em prática esse plano e renunciou ao cargo. No entanto, contrariando as expectativas, o povo nunca pediu que ele retornasse e o cargo de presidente acabou sendo ocupado por seu vice, João Goulart, conhecido como Jango. Contudo, não foi fácil para Goulart assumir o cargo que era seu de direito.


À época da renúncia de Jânio Quadros, este estava em uma viagem diplomática na República Popular da China, o que causava calafrios nos militares brasileiros, assumidamente anti-comunistas. Aproveitando a situação, os militares acusaram Jango de ser comunista e o impediram de assumir o cargo máximo do país.


Após muitas negociações, mediadas inclusive por seu cunhado Leonel Brizola, os apoiadores de Jango e a oposição acabaram fazendo um acordo político pelo qual seria criado um regime parlamentarista, em que o presidente é apenas um chefe de Estado com poderes reduzidos. Em 1961, João Goulart assumiu o tal governo parlamentarista. Contudo, dois anos depois, houve um plebiscito e o povo, com um percentual de 82%, optou pela volta do presidencialismo. Então, em 1963, Jango, finalmente, assumiu a Presidência com amplos poderes.

Durante o governo de Jango, tornaram-se notórios os vários problemas estruturais na política do Brasil, acumulados nas décadas que precederam o golpe, e as disputas de natureza internacional, no âmbito da Guerra Fria, que desestabilizaram seu governo.

Jango adotou uma política econômica mais conservadora, diminuindo a participação de empresas estrangeiras em setores estratégicos da economia e instituindo um limite para a remessa de lucros das empresas internacionais, seguindo as orientações do Fundo Monetário Internacional, o FMI. Apesar desse conservadorismo, o então presidente sempre foi maleável em relação às reivindicações sociais, o que aumentava a desconfiança dos militares.

Em meio à instabilidade econômica, Jango lançou o Plano Trienal, que buscava combater a inflação e fazer o Brasil crescer a uma taxa de 7% ao ano, além de iniciar uma política de distribuição de renda. Porém, o plano não conseguiu atingir as metas esperadas e as reivindicações populares se tornaram mais fortes. Após o fracasso do plano, Jango apostou nas reformas de base, para reestruturar o país. Estas medidas incluíam as reformas agrária, tributária, administrativa, bancária e educacional.

Em um grande comício, chamado de ‘Comício da Central, por ter sido realizado na Praça da República, em frente à estação Central do Brasil, no Rio de janeiro, o presidente anunciou para mais de 150 mil pessoas que daria início às reformas e livraria o país do caos em que estava vivendo. O comício, entretanto, foi mais um motivo para que a oposição o acusasse de comunista. A partir daí, intensificou-se uma mobilização social anti-Jango.

O golpe

A classe média, ao ver as bandeiras vermelhas e os pedidos de reforma agrária, ficou assustada com uma possível revolução socialista e deu apoio aos militares. Alguns dias após o comício, foi organizada a ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’, que levou milhares de pessoas às ruas, pedindo o afastamento do presidente. Essas manifestações foram vistas pelos militares como um consentimento ao então Golpe de Estado que estava sendo preparado.



Na madrugada do dia 31 de março de 1964, o golpe militar foi deflagrado contra o governo de João Goulart. O que pôde ser destacado foi a total falta de reação do governo e dos grupos que lhe davam apoio. Jango caiu sem resistência, nem acionando seu dispositivo militar que lhe daria apoio. Começava, então, um período sombrio para a história brasileira, marcado por autoritarismo, censura e violentas violações de direitos humanos.

De acordo com o professor de história da UFRJ, Carlos Fico, autor do livro Além do Golpe, Jango poderia "ter tomado com facilidade o Palácio Guanabara, onde estava o governador Carlos Lacerda, que se defendia de forma precária. Poderia ter dispersado as tropas golpistas com poucos aviões bombardeiros, porém preferiu evitar uma guerra civil, ou apenas avaliou que seria inútil resistir”. Goulart saiu do país, mas, antes disso, já havia perdido seu mandato. Seguiu para o exílio no Uruguai, de onde só retornaria ao Brasil para ser sepultado, em 1976.


FONTE: Adital




Há cinquenta anos, o Discurso da Central

Por Redação 


Leia, na íntegra, a fala de João Goulart pelas Reformas de Base, dezoito dias antes
  do golpe militar: "Só conquistaremos a paz social pela justiça social"


Devo agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício, ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.

Dirijo-me a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao Brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar de sol a sol para a grandeza deste país.

Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.

Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera e sem subterfúgios, mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente.

Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.

Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.

Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.

A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.

Ainda ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.

Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.

Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reinvindicações.

Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços.

Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.

Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.

Não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação.

Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.

Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.

Está nisso o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da nossa emancipação.

É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.

São certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de seu povo brasileiro.

De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas do progresso.

E podeis estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo – operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e social deste país.

O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.

A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.

Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos frutos deste desenvolvimento.

Não, trabalhadores; sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo. Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.

O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.

Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.

Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.

Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.

Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro.

O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.

Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve bemeficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.

Reforma agrária com pagamento prévio do latifundio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.

Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

Graças à colaboração patriótica e técnica das nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação. E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.

No Japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?

Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.

No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.

Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.

Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.

Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.

A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.

A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.

Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.

Assim, a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e melhor remuneração ao trabalhador urbano.

Interessa, por isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.

Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?

O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.

Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo daprodução, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social. No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele trabahou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso país.

A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um miseravel padrão de vida.

E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente aproveitáveis. E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária, para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.

Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não form efetuadas as reformas de estrutura de base exigidsa pelo povo e reclamadas pela Nação.

Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo.

Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou. Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.

Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo. Espero que os senhres congressistas, em seu patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é pelo caminho reformista.

Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reinvindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas destes país. Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares.

A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.

Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.

Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.

O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particurlamente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.

Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.

Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.

Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando outras providências de fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes populares.

Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.

E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder, perante a lei, pelo seu crime.

Aos servidores públicos da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso afirmar que suas reinvindicações justas estão sendo objeto de estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para com o país.

Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei que o povo também apertará sua vontade contra aqueles quenão reconhecem os direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.

Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista.

Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.

Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.


FONTE: Outras Palavras

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