sábado, 29 de fevereiro de 2020

Mulheres aprisionadas: uma história do patriarcado



População carcerária feminina explodiu 455% entre 2000 e 2016 com a “guerras às drogas”. Mas fenômeno vem de longe: da privação social domiciliar ou em conventos, às prisões que puniam prostitutas e “ninfômanas”





Por Giovanna Penhalbel Sigilló, no Justificando


Nos últimos anos, o encarceramento de mulheres vem ganhando grande visibilidade em razão da crescente população carcerária feminina: de acordo com o Infopen Mulheres 2018, em junho de 2016, o país contava com 42,3 mil presas, compondo uma taxa de aumento de 455% entre os anos de 2000 e 2016. Além disso, dentre os países que mais aprisionam mulheres no mundo, o Brasil ocupa a 4ª posição, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia.

De início, cumpre destacar que, há muitos anos, o aprisionamento feminino é uma realidade no país. Todavia, apenas em 1942, com Lemos Britto (um dos maiores ideólogos do sistema penitenciário do início do século XX), é que foi pensada e projetada uma instituição carcerária exclusivamente feminina[1].

O encarceramento de mulheres não, portanto, é uma realidade dos tempos modernos. Em verdade, elas conhecem a reclusão antes mesmo do capitalismo industrial e das primeiras instituições consideradas prisionais, visto que viveram sob o contexto de uma política de correção que oscilava entre a casa e o convento[2].

O documentário “As mulheres e o cárcere” demonstra que, até que chegassem à prisão, as mulheres sempre sofreram alguma forma de cerceamento de liberdade e da própria expressão de gênero; tendo sido, ainda, vítimas históricas de estereótipos que enraizaram os papéis de mãe e educadora de tal maneira que isso se transformou em uma espécie de régua dentro do sistema carcerário, servindo como elemento a definir as possibilidades de ser a mulher “corrigida” ou não.

Portanto, é inegável que história trouxe uma ideia de construção de culpa referente às mulheres em geral e, mais especificamente, à mulher encarcerada, a qual sofre as consequências por ter fugido às regras socialmente impostas.

Essa ideia de culpa, por mais significativa que seja dentro do sistema penal como um todo, é ainda mais evidente no âmbito feminino; isso porque, historicamente, o propósito sempre foi o de custodiar a mulher, até que, enfim, desaguasse nessa nova “política de correção” que não havia sido ainda experimentada[3].

Tendo isso, vale fazer um breve paralelo entre a construção dos presídios femininos no Brasil na década de 40, e a teoria criminológica lombrosiana, visto que muito se aproxima daquilo que leva as mulheres ao cárcere na atualidade. Isso porque, o próprio idealizador das prisões femininas definiu, na revista “Arquivos Penitenciários Brasileiros”, no ano de 1942, o perfil da mulher encarcerada como “prostitutas”, “ladras reincidentes”, “portadoras de tuberculose e sífilis” e “ninfômanas”.

Ou seja, até mesmo quando a mulher foi notada pelo sistema, a carga histórica negativa foi perpetrada e, conforme é cediço por todos, ecoa até hoje no processo de criminalização feminino.

Atualmente, a mulher lombrosiana representaria mulheres presas por tráfico, as quais correspondem à majoritária população carcerária e são igualmente engolidas por um sistema androcêntrico, etiquetado, e iludido por uma falida política de guerra às drogas.

Por muitas vezes, esse caráter androcêntrico nos mostra que a prisão masculina é a regra; porém, esconde o fato de que a prisão feminina é mais do que uma exceção, mas uma extensão da realidade da primeira. 

Isso fica mais do que claro quando percebemos que, quando do surgimento das penitenciárias femininas, o mesmo Lemos Britto enfatiza a necessidade de separar as mulheres dos homens e colocá-las longe dos presídios masculinos para evitar a influência que neles poderiam causar, sustentando que a presença das mulheres aumentava o “martírio masculino da forçada abstinência”[4].

Logo, como bem pontua a autora, a prisão feminina não surgiu visando a construção de um ambiente mais digno para o cumprimento de pena das mulheres, mas, para garantir melhores condições ao homem preso.

Tendo isso, vemos que o sistema penal foi pensado por homens e para homens. E o fato de as mulheres representarem uma minoria dentro dessa realidade faz com que suas necessidades sejam completamente esquecidas ao se pensar em políticas públicas e construções de unidades prisionais.

O cárcere, portanto, ao ignorar o pensamento sob uma perspectiva de gênero, violenta as mulheres em um nível que jamais se aproximará da violência institucional sofrida pelo homem preso.

Cabendo lembrar ainda que, diferentemente do homem, a mulher sofre uma consequência específica do encarceramento, tendo em vista que a sociedade não espera que a figura feminina se confunda com a tão rotulada imagem daquele que comete um delito.

Ou seja, o caráter submisso e passivo historicamente associado à mulher não se harmoniza, aos olhos da sociedade, com a figura do desviante; fazendo com que ela venha a sofrer não só uma condenação estatal, mas também social. E isso reflete de forma patente na divergência da relação dos familiares diante de encarcerados homens e mulheres, vez que, ao delinquirem, elas enfrentam uma nova quebra de paradigma seguida do abandono social.

Dia de domingo. As filas no presídio masculino se estendem pelo quarteirão enquanto que, nas instituições femininas, são raras as presas que recebem visitas com frequência semanal. 

Esse abandono, por sua vez, agrava de forma exponencial a violência do cárcere, fazendo com que a mulher, que já ocupava as margens do sistema de justiça penal, seja submetida, também, à carência emocional e psicológica que aumenta a sensação de esquecimento.

Sobre o tema, conclui Dráuzio Varella em seu livro “Prisioneiras” que: “a sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha a família inteira”[5].

Ao citar a obra, destaco, ainda, que ela é um grande exemplo do androcentrismo velado no sistema carcerário, pois o médico, no anseio de mostrar a agressividade do cárcere para com as mulheres, em vários momentos deixou o androcentrismo protagonizar o discurso. E isso é sabiamente explorado pela advogada e ativista Gabriela Cunha Ferraz em seu artigo “Caro Dr. Dráuzio, vamos conversar?”, publicado aqui, neste mesmo veículo de comunicação – e do qual muito recomendo a leitura como complemento desta. 

Sendo assim, é inegável a existência de uma grande lacuna nos estudos voltados ao encarceramento feminino, existindo falhas sempre que alguém tenta supri-la com o olhar voltado tão somente para a criminalidade feminina, mas, esquecendo de pensar o processo de criminalização da mulher como um todo.

Portanto, segundo ressalta a antropóloga Bruna Angotti em curso de Criminologia oferecido pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo: adaptar as particularidades das mulheres a uma realidade pensada para o homem, seria forçar um novo objeto de estudo a uma teoria já pronta.


Giovanna Penhalbel Sigilló é Advogada Criminalista, graduada em Direito pela Universidade Paulista.


sábado, 22 de fevereiro de 2020

O Manifesto do Partido Comunista completa 172 anos



Por Aluizio Moreira



No dia 21 de fevereiro de 1848, era publicado o Manifesto do Partido Comunista, uma das obras políticas mais importantes de Marx & Engels, que mantem sua atualidade, até os nossos dias, no que diz respeito às classes sociais fundamentais do sistema capitalista, seus antagonismos; o posicionamento e os objetivos dos comunistas diante de exploração do proletariado; as diferenciações históricas entre os vários tipos de socialismo; a atuação dos comunistas em relação à diversidade das políticas dos outros partidos.  

Se por um lado, a burguesia lutava por sua hegemonia econômica e política contra os setores conservadores ligados ao antigo regime, por outro, o surgimento de movimentos das classes trabalhadoras por melhores condições de vida, de trabalho e de participação política, a França, Alemanha e Inglaterra, foram palcos de vários movimentos e insurreições operárias. Sem querermos nos alongarmos demais, na Inglaterra, em 1811 surge o movimento Luddista; em 1831 acontece a insurreição de Lyon na França; em 1834 forma-se a primeira Central Operária na Inglaterra e 1836 eclode o movimento cartista no mesmo país; em 1844 na Alemanha levantam-se os tecelões da Silésia. 

O socialismo deixou de ser parte de um discurso desde o século XVIII de uma intelectualidade preocupada com as injustiças sociais (Saint-Simon, Fourier, Babeuf, Owen), no decorrer o século XIX se transformara em bandeira de luta da classe proletarizada, com propostas reais de transformação da Sociedade. A História do Manifesto do Partido Comunista começa com esse “pano de fundo”. 

A partir daí, o socialismo, enquanto corrente do pensamento político e social, passa a ter como elemento fundamental, a crítica ao capitalismo que se expandia na Europa Ocidental e a construção de uma sociedade nova, não um simples melhoramento do capitalismo enquanto sistema. 

A agudização dos conflitos político-ideológicos na Europa, fora responsável pelas perseguições, às forças progressistas ou revolucionárias da época, cujo caminho natural era o exilio com endereços certos em Paris, Bruxelas e Londres.

Já em 1834 era fundada em Paris, por exilados alemães, a Liga dos Proscritos. Embora suas lutas tenham sido bandeiras nitidamente burguesas como libertação e unidade da Alemanha, em muitas situações republicanismo iluminismo e socialismo se confundissem. Quando os integrantes da Liga dos Proscritos mais à esquerda, sentiram as distancias entre as ideias burguesas e as propostas operárias, essas ultimas cindiram como tendência, formando a Liga os Justos em 1836. Mais ideologicamente à esquerda socialista e revolucionária internacionalista, teve como principal teórico Wilhelm Weitling, mas que não conseguiu libertar-se da influência do socialismo utópico francês, mesclado com uma proposta comunizante.   

Marx e Engels, seguiram suas próprias trajetórias revolucionárias, elaborando através de estudos e atividades políticas, os princípios do Comunismo que os distanciavam do esquerdismo, socialismo utópico, do comunismo romântico, presentes em muitas organizações socialistas e operárias. Suas produções intelectuais caminhavam nessa direção: Critica da Filosofia do Direito de Hegel (1843), Manuscritos Econômicos e Filosóficos (1844), A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845), A Sagrada Família (1845), Teses sobre Feuerbach (1845), Ideologia Alemã (1846), Miséria da Filosofia (1847), Princípios básicos do Comunismo (1847). Suas atividades práticas culminaram com a fundação em Bruxelas, em 1846, do Comitê de Correspondência Comunista.

Uma cisão no seio da Liga dos Justos, leva à fundação, em 1846, da Liga dos Comunistas, para a qual Marx e Engels são convidados a participar. 

No Primeiro Congresso, o da fundação em junho de 1847, são discutidos os Estatutos e propostas de Programa, aprovando-se os primeiros. Quanto ao Programa Engels fica encarregado de redigi-lo. Como esboço desse Programa Engels prepara em 1847, “Princípios Básicos do Comunismo” (*), que serve como ponto de partida para a elaboração por Marx e Engels do Manifesto do Partido Comunista de 1848. 

Escrito em alemão, e publicado em Londres em 21 de fevereiro de 1848, o Manifesto do Partido Comunista (**) torna-se programa oficial dos comunistas em todo mundo, fundamentando tática, analítica e conceitualmente, os posicionamentos políticos e ideológicos dos militantes comunistas.

Embora seus próprios autores, no Prefácio à edição alemão de 1872, já admitissem a necessidade de atualizá-la, pois as condições sócio-econômicas e políticas, já naquela época, eram outras. O “espectro do comunismo” que rondava a Europa no momento em que o Manifesto tinha sido escrito, tinha rondado o mundo burguês até as transformações sofridas pelo socialismo nesses finais do século XX, como consequência das novas realidades das sociedades. As Revoluções comunistas então iminentes, que levariam o proletariado ao poder, foram adiadas sine die, pois a tendência do capitalismo de tornar-se internacionalizado, mundializado, já estava posta com muita propriedade, produto do conhecimento das próprias leis que regem o sistema capitalista. Escreveram eles no Manifesto do Partido Comunista:

A necessidade de mercados cada vez mais extensos para seus produtos impele a burguesia para todo o globo terrestre. Ela deve estabelecer-se em toda parte, instalar-se em toda parte, criar vínculos em toda parte.Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países.  

Mais adiante continuam:

Em lugar das velhas necessidades satisfeitas pela produção nacional, surgem necessidades novas, que para serem satisfeitas exigem os produtos das terras e dos climas mais distantes. Em lugar de antiga autossuficiência e do antigo isolamento local e nacional, desenvolve-se em todas as direções um intercambio universal, uma universal interdependência das nações. E isto tanto na produção material quanto na intelectual. 

Daí a necessidade de uma releitura.

Depois destas considerações que apontam para a mundialização, universalização do capitalismo, frutos da própria dinâmica do sistema, não escapou aos autores do Manifesto, a identificação do caráter ocidentalizante e “civilizatório” desse sistema.  De igual maneira, o comunismo se apresenta como novo processo civilizatório no caminho da sua universalização, que representa não apenas os interesses do proletariado, mas representa “a causa de toda humanidade.” 

Embora 172 anos nos separem da primeira edição do Manifesto do Partido Comunista, no Brasil, só 75 anos depois surge a primeira tradução do Manifesto feita por Octavio Brandão, publicado por partes em 1923, no jornal Voz Cosmopolita do Rio de Janeiro, o que não significa que o Manifesto fosse nosso desconhecido. Em 1900 no jornal Primeiro de Maio publicado no Recife, um artigo assinado por Flaviano Martins, reproduza a expressão “Proletários de todos os países, uni-vos!”
_______

(*) Esses “Princípios Básicos do Comunismo”, utilizando-se da forma de perguntas e respostas, parte de várias considerações sobre o proletariado do ponto de vista conceitual e histórico, até a abordagem sobre a questão das revoluções em geral “que não se fazem deliberadamente ou por vontade, mas são sempre e em todos os lugares a consequência necessária de circunstancias absolutamente independentes da vontade e da direção de partidos singulares e mesmo de classes inteiras.”
No que diz respeito à revolução comunista propriamente dita, admite que será “uma revolução apenas nacional, mas ocorrerá simultaneamente em todos os países civilizados”, cujo significado será a tomada e dominação do poder político pelo proletariado que “estabelecerá uma Constituição democrática”, passando a constituir-se como classe dominante.

(**) Fazem parte de sua estrutura: I - Burgueses e proletários; II – Proletários e comunistas; III – Literatura socialista e comunista; IV – Posição dos Comunistas diante dos diversos partidos de oposição.


domingo, 16 de fevereiro de 2020

A Universidade, a docência e a formação do especialista - Parte II



 Por Aluizio Moreira

O ensino Superior e o Especialista

Para nós, o ensino superior não deve orientar/formar o futuro profissional nas limitações do aprender fazer, mas fundamentalmente aprender a pensar, criar condições para que o futuro profissional não seja um mero repetidor dos pensamentos dos outros, nem tampouco um simples executor, que mecanicamente seja capaz de montar uma engrenagem qualquer.

Se a ciência não avança pela espontaneidade, nem pela inspiração, o homem não existe no vazio, desvinculado da natureza e da sociedade. A ausência de uma reflexão crítica que implique necessariamente no não entendimento do mundo, impede-o de ultrapassar os particularismos para atingir o universal. Torna-se prisioneiro do reducionismo, perde a visão da totalidade e de si mesmo como parte dessa totalidade.

O homem como “um ser no mundo e com o mundo”, deve saber refletir criticamente sobre a realidade histórica na qual está inserido e na qual deverá exercer sua profissão, o que implica em praticar o conhecimento como compreensão do mundo, pressuposto para sua transformação (Cf. LUCKESI et al. 1991, p. 47-59).

Na verdade o que prepondera no ensino superior é uma visão compartimentada das coisas. Tudo colabora para que se perca a visão da totalidade do mundo e da sociedade, como se fosse possível não estar no mundo nem na sociedade, ou seja, em nenhum lugar. É como se nem um nem outro existisse. Procura-se a todo custo mostrar que a totalidade é uma criação da mente, que a única coisa real é a parte. Mas as partes não existem sem o todo. Ou seja, uma das condições da existência das partes, é ser parte de um todo. Senão não seriam partes.

Essa questão de ver as coisas compartimentadas, atomizadas, é fruto de toda uma concepção do mundo que herdamos culturalmente e que a escola reforçará. Não somos conduzidos/despertados para ver as coisas de forma sistêmica, interativa, numa multiplicidade de ações recíprocas e em constante movimento e transformação. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições, que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições.

Edgar Morin, no livro “A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento”, já na sua 18ª edição brasileira, analisando a situação da educação na França, comenta que na escola, na universidade é comum docentes e discentes tratarem as disciplinas como campos estanques, sem muita ou nenhuma ligação uma com as outras. Para ele, no entanto, o caráter multidimensional, nos permite hoje admitir que, sem desconhecermos as suas particularidades, há uma convergência de objetos do conhecimento que os aproximam, constituindo um todo articulado: Geografia, História, Economia, Sociologia, Direito, Ecologia, Antropologia, Cosmologia, Psicologia. (MORIN, 2010, passim).

Considera, não muito diferentemente do que constatamos, que os maiores problemas que se enfrenta no ensino é a hiperespecialização e o acúmulo meramente quantitativo de informações.

A “hiperespecialização” é considerada como um verdadeiro obstáculo ao claro entendimento dos fatos e fenômenos, pois não permite que se tenha uma visão global das coisas, na medida em que prevalece os particularismos, a fragmentação das realidades e dos problemas.

Essa forma compartimentada de tratar os fatos e fenômenos

atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento  corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência  para tratar nossos problemas mais graves constitui um do mais graves problemas que enfrentamos.  (MORIN, 2010,14)

Decorrente dessa “hiperespecialização”, e como parte dela, privilegia-se a mentalidade reducionista em que o saber se limita ao saber especializado, contraponto do saber globalizante, tornando o individuo incapaz de relacionar a parte ao todo, ou de apenas considerar as partes. Citando Pascal:

Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes. (PASCAL apud  MORIN, 2010, p. 25)

Outro comportamento muito vulgarizado nas escolas e nos cursos superiores, e igualmente criticado por Morin, é a prática da acumulação de informações, do conhecer, ou seja, “a cabeça cheia”, sem qualquer método que organize, que sistematize o pensamento, sem quaisquer reflexões críticas.

Evidente que a função da educação, do ensino, não é transformar o estudante num depositário de dados e informações dispostos para serem utilizados a qualquer momento como arquivo à espera de ser acionado.

É fundamental que a construção do saber se constitua na resolução de problemas, no desenvolvimento da reflexão crítica, na reorganização do pensamento, diante das ideias, das teorias, da critica, dos discursos já elaborados por terceiros.

Para Antonio Joaquim Severino no que refere à educação universitária, há outro aspecto que raramente  é  enfrentado  pela comunidade acadêmica. Diz o autor:

A educação universitária tem um outro objetivo, tão relevante quanto o da formação cientifica: é o objetivo da formação política da juventude. Com efeito cabe a ela desenvolver a formação política, mediante uma conscientização crítica dos aspectos políticos, econômicos e sociais da realidade histórica em que ela se encontra inserida. A educação superior brasileira enfrenta esta questão fundamental: formar politicamente uma juventude pela criação de uma nova consciência social capaz de mobilizá-la, não só para uma atuação concreta e uma participação política no processo histórico real, mas também para um compromisso mais radical de se construir um novo modelo de civilização humana para o Brasil. (SEVERINO, 1996, p. 17)

Com certeza algum leitor paladino da neutralidade do cientista, irá se contrapor a essa afirmativa, alegando que não temos que “misturar” conhecimento científico com política (1). Mas o cientista é também cidadão. E como tal, deve ter uma consciência clara dos problemas enfrentados pela sociedade, que o atinge não só como cidadão, mas como homem de ciência e como trabalhador.

Não é outra a conclusão de Álvaro Vieira Pinto (1985, p. 535):

A consciência do pesquisador científico alcança o mais alto nível da sua percepção de si ao fazer-se deliberadamente uma consciência política. Para essa finalidade não lhe basta contribuir com as descobertas que arranca do seio da natureza, e que irão beneficiar o homem; é preciso que contribua igualmente, pelos meios políticos que estejam ao seu dispor ou que invente, para humanizar a sociedade, participando da luta pela solução dos seus problemas, pela supressão das contradições sanáveis, as que opõem os homens uns contra os outros.

Como cidadão, o homem de ciência “não pode nem prescindir ou desinteressar-se da sociedade nem aceitá-la passivamente tal qual existe ao seu redor, com os conflitos, imperfeições e injustiças que nela se encontram [pois] “dado o papel mediador representado pela sociedade, e a função de que está incumbido pela comunidade, tem por objetivo mediato a transformação da sociedade e a humanização da existência” (ibid., p. 534).

Para os autores de “Fazer universidade: uma proposta metodológica”,

A universidade que não toma a si esta tarefa de refletir criticamente e de maneira continuada sobre o momento histórico em que ela vive, sobre o projeto de sua comunidade, não está realizando sua essência, sua característica que a especifica como tal crítica. Isto nos quer dizer que a universidade é, por excelência, razão concretizada, inteligência institucionalizada, daí ser, por natureza, crítica, porque a razão é eminentemente crítica.” (LUCKESI et al. 1991, p.41)

Mas o que fazemos nós, professores universitários, para colaborarmos com o desenvolvimento da consciência crítica dos nossos educandos, futuros profissionais?

Com algumas exceções, na medida em que nos limitamos a apenas transmitir conhecimentos como se isso fosse o essencial no processo ensino-aprendizagem, falhamos enquanto educadores, sobretudo porque não contribuímos para desenvolver nos nossos alunos, a capacidade de pensar. Na verdade transmitimos

um mundo já pensado, já interpretado, pronto para uso e consumo: história interpretada, sociedade organizada, normas estabelecidas de moral, leis de direitos codificados, religiões estruturadas, classificação e virtudes dos alimentos especificados para cada idade, regulamentos para dirigir carro, programas escolares, tudo pronto. Mas a geração de hoje não pode resignar-se a um conhecer o mundo de segunda mão, não pode julgar-se dispensada de pensar naquilo que já pensaram por ela e definiram sem consultá-la. (RUIZ, 2006, p. 90-91)

Ou seja, não abrimos espaços para que nossos estudantes rediscutam a história, repensem a sociedade, reinterpretem a moral, reavaliem as leis. . . apenas lhes reincorporamos nossos saberes como verdades eternas e indiscutíveis.

Conclusão

A invenção da universidade foi o resultado da divisão do trabalho social, em que o docente, consciente ou inconscientemente, assume um papel importante no processo de reprodução e dominação ideológica, como forma de manutenção da estrutura sócio-econômica da sociedade, o que não impede que exista uma intelectualidade ligada à educação, que desempenhe uma ação transformadora.

Não é demais recordar que desde sua criação na Idade Média, o ensino superior se instituiu com o desempenho de funções específicas e diversificadas, ora como centro de difusão do pensamento filosófico-religioso, ora como centro aglutinador das discussões científicas, ora como instituição voltada para o ensino profissionalizante. Para além dessas múltiplas funções, registramos como a universidade no século XVIII passou a ser disputada pela Igreja e pelo Estado, como forma de preservação do poder espiritual de um lado e da afirmação do poder secular do outro, na medida em que surgem contestações dos iluministas ao caráter divino do poder político herdado da Idade Média.

Soares Junior (2006, p.14) diagnostica:

A estrutura do ensino universitário, via de regra, e inquisitiva e imobilizadora, fruto da própria visão do mundo, já que coloca o professor-educador como o detentor das verdades necessárias ao ensino “adequado”, cuja única possibilidade de espelho são seus pares, ou seja, os iguais a ele, os que, na mesma posição, detêm o poder do saber. E, no outro polo, encontra-se o aluno, que lá está tal qual uma tabula rasa, uma vasilha, um recipiente, pronto para engolir, para se deixar encher de conhecimentos (verdades perfeitas e acabadas), para permitir a ocupação de sua mente pelos axiomas (valores) do sábio, sem nada poder problematizar.

Visão docente esta de fundo elitista, autoritária e conservadora, na qual muitos professores acreditam, que por serem professores, detêm o monopólio do saber diante dos alunos que nada sabem.

O que ouvimos mais frequentemente no meio universitário, é o discurso da especialização/profissionalização. É o novo fetiche! Apresentado como exigência para se enfrentar um mundo do trabalho cada vez mais competitivo, a profissionalização virou artigo de consumo. E também de venda. A especialização e a profissionalização estariam na razão direta dos domínios dos conteúdos repassados em sala de aula, das habilidades específicas, o que garantiria ao futuro profissional, não só uma vaga no mercado de trabalho, mas sua ascensão no exercício da sua atividade. Daí a ênfase, os esforços despendidos pelos cursos superiores na formação do profissional “executor”. Para o profissional criador/inovador não teria espaço na sociedade.

Esta discussão da institucionalização do ensino nas escolas e universidades, entre a formação humanística e a formação profissional, embora seja uma questão antiga, não perdeu sua atualidade. Inclusive, em nossos dias, tendências do pensamento pedagógico, defendem com “unhas e dentes” a criação de instituições de ensino que enfatizem os dois tipos de educação: uma voltada para a formação humanística, outra dedicada à formação profissional. Mas até que ponto essas forma de educação especializada não seria uma forma um tanto sutil de eternizar e aprofundar as diferenças sociais? Onde a igualdade de oportunidade, se já decidimos previamente que alguns devem obter conhecimento humanista e científico-tecnológico, e que outros devem se contentar com um conhecimento profissionalizante? Reservaremos para os primeiros a perspectiva da formação do homem integral, para os segundos, não? O que dizer da tendência hoje verificada na criação de cursos superiores voltados para a formação, prioritariamente, do tipo do profissional exigido pelo mercado? Passada a euforia inicial, a demanda diminui e a oferta também: os cursos passam a funcionar precariamente ou fecham.  (2)

Ao nosso ver, a especialização nas entidades de ensino é uma propensão que acontece vetorialmente na horizontal como na vertical, ou seja, no interior das instituições como fora delas. 

Mas existe uma outra questão em relação ao ensino-aprendizagem que é importante discutirmos, sendo necessário desconstruir todo um conjunto de ideias que durante séculos tem preponderado nas escolas e cursos superiores: a aceitação de que a tarefa da escola ou da universidade, e particularmente dos professores, é o de simplesmente transmitir conhecimento (3) como esse conhecimento não necessitasse ser repensado, como se não fosse possível levantar dúvidas sobre o saber institucionalizado e tido como incontestável.

Consideremos: uma observação que deverá ser feita, é a postura que costumamos assumir diante das contradições, das especificidades das coisas. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições; diversidades e contradições que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições. Desconhecemos um dos princípios básicos da dialética: o principio das contradições existentes em todas as coisas e de seus inter-relacionamentos.

Todas essas reflexões acerca da educação, do ensino, do conhecimento, das ciências naturais e humanas são fundamentalmente estudos da condição humana (do aprender viver, da formação do cidadão). Condição humana cuja reforma do pensamento “é uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua época” [. . .] como “condição sine qua non para sairmos de nossa barbárie.” (MORIN, 2010, p.103-104)

A condição humana é natural e metanatural. O homo economicus é também o homo faber e o homo philosophicus. Não se conhece o homem, estudando-o separado do cosmos, do biológico, do social, do cultural, do espiritual.

A grande contradição existente é que enquanto se procura tratar os saberes cada vez mais fragmentados, mais compartimentados, a própria realidade da qual fazemos parte, é, ela própria, multidimensional.

As consequências dessas formas de ver e de tratar o ensino superior, são graves: porque se passa a admitir que não seja necessário criar um espaço para a interdisciplinaridade, que permita o aluno ver o mundo, a sociedade sob a ótica de outras áreas do conhecimento e seus inter-relacionamentos; cria-se a ilusão  de uma atividade descompromissada e neutra em relação às forças sociais contraditórias e conflituosas que integram a sociedade; elimina-se o caráter social do conhecimento, como se este só existisse em função do individuo e não da sociedade; ignora-se o caráter dinâmico e histórico da ciência, acreditando-a imutável e infalível; defende-se que basta o aluno conhecer, mas não pensar, pois este pensar seria prerrogativa das mentes “iluminadas” e “brilhantes”, exclusividade dos que exercem a docência.

Por fim, é necessário que as escolas, as universidades, passem a reservar espaços para formação continuada do seu quadro de docentes, dentro daquilo que exige sua atividade na área da educação, harmonizando a competência intelectual e a competência pedagógica, o que alias, nem sempre acontece.

Notas

1)      Para reforçar a importância da política, mesmo para o homem comum, é aconselhável, para quem ainda não conhece, ler “O analfabeto político” do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, forçado a exilar-se em diversos países para livrar-se da perseguição nazista.
2)      Aconteceu aqui no Recife com os Cursos de Turismo: algumas Faculdades ofereciam-no em três turnos diferentes, hoje não mais que um turno apenas. Faculdades de Formação de Professores que deixaram de oferecer cursos de Licenciatura em Geografia, História, Ciências Biológicas. Algumas Instituições de Ensino Superior investem hoje em cursos tecnológicos de graduação de menor duração. 
3)      É exatamente neste ponto, que para muitos se encontra a diferença entre professores e educadores. Os professores seriam profissionais da educação que limitariam suas atividades como transmissor de conhecimentos, transferindo conteúdos. O aluno, neste caso, na concepção de Edgar Morin, teria “uma cabeça bem cheia”.  Os educadores, também profissionais da educação, se preocupariam não só em difundir conhecimentos, mas ao mesmo tempo procurariam contribuir para a formação integral da pessoa, como ser humano, como cidadão, em interação com a sociedade, com o mundo.


Referencias

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FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Tradução: Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Arimed, 1993.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
LEFEVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, 4.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.Tradução: Eloá Jacobina, 18.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RUIZ, João Álvaro. Metodologia cientifica: guia para eficiência nos estudos. 6.ed., São Paulo: Atlas, 2006.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 20.ed., São Paulo: Cortez, 1996.
SOARES JUNIOR, Antonio Coelho. Ensino jurídico: procura-se! Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n.1047, 14. Mai.2006. Diponivel em





domingo, 9 de fevereiro de 2020

A Universidade, a docência e a formação do especialista - Parte I



Por Aluizio Moreira
Em várias oportunidades temos defendido que é de fundamental importância pensarmos o docente, procurando definir sua função na sociedade, chamando a atenção para os aspectos particularistas de sua concepção de mundo, da sua visão de especialista diante dos problemas gerais que nos cercam. Tentamos buscar o momento, ou os momentos, em que sua ação foi se diversificando, para além do homo faber, assumindo funções cada vez mais especializadas, surgidas com os primeiros hominídeos.

Não desconhecemos que num passado remoto, como membro da grande família dos primatas (1), nós hominídeos, no estágio inicial de nossa formação, disputávamos, palmo a palmo com nossos familiares, não só o espaço físico, como os bens que a natureza nos oferecia. E na medida que fomos nos separando, de forma isolada, das demais espécies, fomos também criando novas alternativas, não só diante do mundo exterior, como no interior de nós mesmos: ousamos transformar a natureza em nosso benefício; nos atrevemos a fabricar instrumentos, inclusive para fabricarmos outros tantos instrumentos; arrojamos-nos na criação de uma linguagem articulada e simbólica; finalmente desenvolvemos a capacidade magnífica e inimitável de abstrairmos

Fizemos-nos construtores, poetas, produtores e transmissores de conhecimentos e educadores. Como produtores e transmissores do conhecimento e educadores, abandonamos o processo coletivo de ensino-aprendizagem sem escolas, na formação das gerações, e criamos instituições voltadas para o ensino-aprendizagem nos mais diferentes níveis e nos mais diferentes paradigmas, momento em que acontece o que muitos autores definem como divisão social do saber: separam-se aqueles que sabem daqueles que não sabem. Alguns membros da sociedade especializaram-se em ensinar, monopolizando o saber, inclusive como forma de dominação. 

Mas não foi só na educação que os homens especializaram-se: surgiram os especializados em governar, os especializados em rezar, os especializados em curar, os especializados em filosofar, os especializados em legislar, os especializados em zelar pela aplicação das leis

Em termos de produção de bens de consumo e bens de produção, os trabalhadores também conheceram várias etapas de especialização em suas atividades laborais, expressas nas chamadas divisão social e divisão técnica do trabalho.

Segundo a literatura marxista, enquanto membros da comunidade primitiva, na qual os indivíduos eram comunitariamente produtores e consumidores, todos eram ao mesmo tempo agricultores, pastores e artesãos, havendo apenas a divisão natural do trabalho, cuja base era o sexo: trabalho masculino/trabalho feminino. 

A primeira grande divisão social do trabalho aconteceu quando as tribos se dividiram em tribos de agricultores e tribos de pastores. A segunda divisão social do trabalho verificou-se quando as atividades agrícolas e artesanais se separaram no interior da mesma tribo. 

Mas as especializações não pararam por aí, pelo contrário, aprofundaram-se. O advento do capitalismo provocaria uma divisão no interior de cada atividade. No artesanato, por exemplo, criaram-se atividades distintas, especializadas: dos funileiros, dos marceneiros, dos ferreiros, etc.

Em todos os casos por nós abordados até agora, verificamos que a especialização das atividades dos indivíduos ao nível da super e da infraestrutura, foi uma constante na sociedade humana.

Sem querermos abrir discussão acerca da concepção gramsciana de  intelectuais, essa atividade, enquanto ligada à produção e transmissão do conhecimento e do saber, também conheceu o processo de especialização, originando a separação do trabalho intelectual do trabalho manual. 

Portanto o aparecimento mesmo da figura do intelectual já denota uma divisão social no domínio do saber, que o torna um individuo distinto dos demais na sociedade, o que só foi possível “graças a um sistema complexo de divisão do trabalho, liberados das urgências imediatas, dos cuidados cotidianos da sobrevivência” (FORQUIN, 1993, p.46). Além do mais, a dominação ideológica, um dos elementos necessários à reprodução dos sistemas divididos em classes sociais, é exercida pela intelectualidade. (2). Dominação, que para Gramsci, nas palavras de Luna Mochcovitch (1988, p. 13), se dá através de dois fatores: “a interiorização da ideologia dominante pelas classes subalternas e a ausência de uma visão do mundo coerente e homogênea por parte das classes subalternas que lhes permita a autonomia.”

Mas enquanto a sociedade não atingira um grau de complexidade como o verificado com o surgimento e expansão do capitalismo após os séculos XVIII e XIX, os homens que se dedicavam à ciência, à filosofia, às artes o faziam simultaneamente, mesmo que não apresentassem ligações entre si. Isto porque até Platão, verificamos que as particularidades do conhecimento nas formas que conhecemos hoje, simplesmente não existiam.

Essa diversidade de conhecimentos e de atividades exercidas por um mesmo individuo, explica-se antes de tudo, pelo modesto nível de desenvolvimento das sociedades da época.

No entanto, o crescimento cada vez mais acelerado das populações urbanas e o consequente aumento do mercado consumidor, das necessidades de elevação do nível de produtividade, do aceleramento das comunicações e dos transportes, de maior domínio do homem sobre a natureza. . . tudo isso contribuirá de maneira irreversível, para um maior avanço das ciências e dos saberes em geral. O conhecimento “enciclopédico” não seria mais possível.

Embora na Antiguidade Clássica, especialmente Grécia e Roma, não existisse universidades nem quaisquer instituições que pudéssemos considerar de Ensino Superior, existiam escolas 


tidas como de alto nível, para formar especialistas de classificação refinada em medicina, filosofia, retórica, direito. Discípulos que se reuniam em torno de um mestre, cuja considerável bagagem de conhecimentos era zelosamente transmitida. (LUCKESI, 1991, p. 30) 

Só entre os séculos XI e XV, portanto na Idade Média, é que surgem as primeiras universidades, voltadas para a preparação de uma intelectualidade que se dedicava aos estudos da natureza e às questões relativas ao espiritual, ao religioso. Nesta época coube à Igreja Católica manter a unidade do ensino superior e do “conhecimento básico para todas as especialidades e proporcionar aos futuros especialistas uma formação inicial unitária e geral”. (ibid., p. 31)

No século XIX, diante do avanço da industrialização na França napoleônica, as universidades tendem a perder o sentido de uma entidade onde se cultivava a cultura e o pensamento filosófico, herdado este desde as formações das primeiras Escolas Superiores onde prevaleciam as discussões aristotélicas e agostinianas, adquirindo um caráter de ensino profissionalizante, “na linha do espírito positivista, pragmático e utilitarista” legados do iluminismo. Assim, na França “A universidade napoleônica, além de surgir em função das necessidades profissionais, estrutura-se fragmentada em escolas superiores, cada uma das quais isoladas em seus objetivos práticos”. (ibid., p. 32). 

Paralelamente à universidade de modelo napoleônico na França, surge também no século XIX, outro centro universitário que retoma as discussões científicas, as propostas de pesquisa, livre do caráter profissionalizante: a Universidade de Berlim criada em 1810, por Humboldt. 

Mas o fato de uma Instituição de Ensino Superior privilegiar o conhecimento científico e a pesquisa, não a isenta de difundir ideias particularistas dos saberes, talvez não tão excludentes como aquelas instituições que se dedicam à preparação de uma mão-de-obra especializada para o mercado. 

Críticas ao conhecimento especializado

A ampliação dos campos dos conhecimentos científico e tecnológico, engendrada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a diversificação das áreas dos saberes em decorrência das novas formas de olhar o mundo, as próprias transformações constantes das realidades com as quais nos defrontamos, que nos fazem rever ou mesmo reforçar nossa forma de pensar o futuro da sociedade humana, criam objetos de estudos cada vez mais particularizados. O fato é que tudo isso não pode nos fazer perder de vista a complexidade do mundo.

Para Lefebvre (1987, p. 77-78):

O especialista concentra-se numa ciência ou mesmo, com frequência, numa parte ínfima de uma ciência: a química dos corantes ou o estudo de determinada família de funções. Ignora o resto da ciência e o resto das ciências. A atividade analítica e a divisão parcelar do trabalho fragmentam a ciência e a própria sociedade numa poeira, numa justaposição informe de resultados.

Entre os autores que se preocuparam com as nocividades advindas do ser especialista, não podemos deixar de fazer referência ao pensador católico Jacques Maritain, que na década de 60 do século passado, já pensava as consequências da especialização (3). Afirma aquele pensador:

Se concordamos em que o animal é um especialista [. . .], e especialista perfeito, já que toda sua capacidade de conhecer está limitada a executar uma função determinadíssima, haveremos de concluir que um programa de educação que aspirasse só a formar especialistas cada vez mais perfeitos em domínios cada vez mais especializados, e incapaz de dar um juízo sobre um assunto qualquer que estivesse fora da matéria de sua especialização,conduziria, sem dúvida, a uma animalização progressiva do espírito e das vida humana. (MARITAIN apud FREIRE, 1981, p. 97-98)

O trabalho científico que o profissional irá exercer, está na razão direta não só das necessidades condicionadas pelo grau de desenvolvimento da sociedade, como na expectativa da criação de novas condições econômicas e sociais que destruam os obstáculos impostos à satisfação das necessidades coletivas. Só que geralmente nos cursos de graduação, o aluno não é levado a refletir sobre sua área de conhecimento, nem sobre os condicionantes sociais e políticos de sua atuação como profissional. Não existe a preocupação, por parte dos professores, com algumas exceções, de provocar uma reflexão teórica, crítica, sobre a atividade que o educando irá futuramente exercer na sociedade. O que existe é uma grande dissociação entre o que se ensina e a realidade objetiva. Esta é ignorada, ou quando muito, apresentada sem problemas a discutir, nem interrogações à espera de respostas.

Não raramente, pesquisadores, homens de ciência, aplicam com maestria e competência, os últimos resultados alcançados pela Matemática, pela Biologia, pela Física, pela Sociologia, pelo Direito, pela Administração, etc. e pelas suas mais minuciosas e atomizadas especialidades, mas ignoram as circunstâncias em que o conhecimento científico as produziu, a teoria que as fundamentou, e muito menos a serviço de quem esses avanços se constituíram, e quais as classes sociais que serão por elas beneficiadas. Ou não.

Nas palavras de Hegel Botinha (2011), Diretor do Grupo Selpe Recursos Humanos, no artigo “O valor de um profissional bem qualificado”, 

[. . .]”essa qualificação exigida não é apenas ter no diploma cursos reconhecidos por renomadas instituições, inglês fluente e ampla experiência. Além dessa capacitação necessária, manter-se atualizado também é essencial para um bom profissional. E é preciso considerar que o mercado de trabalho está em busca de profissionais multidisciplinares, com visão ampla do mundo e bagagem cultura”.
No mesmo sentido comenta Idalberto Chiavenato (4), um dos mais respeitados autores na área de Administração de Empresas e Recursos Humanos, no pronunciamento sobre “Estrategistas versus Especialistas”, quando afirma, com outras palavras, que “não se precisa mais de especialistas precisa-se de estrategistas, pessoas que saibam pensar.[. . .] A diferença entre estrategista e especialista, é que o estrategista não vê as ruas somente, vê as cidades com as ruas junto, não vê apenas as árvores, vê a floresta inteira”.


Notas

1) A família dos primatas compreendia os hilobatídeos (gibões), pongídeos (orangotangos), panídeos(gorilas e chimpanzés) e hominídeos (homens). 
2) Para Gramsci, há uma intelectualidade reprodutora ideológica do sistema e formadora da concepção do mundo das classes dominantes. Caberá no entanto aos “intelectuais orgânicos” que atuam junto aos trabalhadores, procurar elevar a consciência das massas, defendendo a “concepção do mundo revolucionária entre as classes subalternas.”  (Cf. Mochcovitch, p. 17-20).
3) Na linha de Jacques Maritain, o pensador católico brasileiro Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) escreveu diversos trabalhos sobre o ensino e universidade, assumindo uma concepção pedagógica “humanista”, “global” e “integral”. Publicou o ensaio “O Espírito universitário” que bem definiu seu pensamento pedagógico, enfatizando a dimensão humana do ensinar e do aprender. Alceu Amoroso Lima faleceu em 1983. 
4) Trecho da entrevista de Idalberto Chiavenato à TVBV, Santa Catarina, afiliada da Rede Bandeirantes de Televisão. Com o titulo “Estrategistas versus Especialistas”, o trecho foi disponibilizado pelo You Tube no vídeo http://youtu.be/jxI0jideGBs  

(Continua)


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