domingo, 9 de fevereiro de 2020

A Universidade, a docência e a formação do especialista - Parte I



Por Aluizio Moreira
Em várias oportunidades temos defendido que é de fundamental importância pensarmos o docente, procurando definir sua função na sociedade, chamando a atenção para os aspectos particularistas de sua concepção de mundo, da sua visão de especialista diante dos problemas gerais que nos cercam. Tentamos buscar o momento, ou os momentos, em que sua ação foi se diversificando, para além do homo faber, assumindo funções cada vez mais especializadas, surgidas com os primeiros hominídeos.

Não desconhecemos que num passado remoto, como membro da grande família dos primatas (1), nós hominídeos, no estágio inicial de nossa formação, disputávamos, palmo a palmo com nossos familiares, não só o espaço físico, como os bens que a natureza nos oferecia. E na medida que fomos nos separando, de forma isolada, das demais espécies, fomos também criando novas alternativas, não só diante do mundo exterior, como no interior de nós mesmos: ousamos transformar a natureza em nosso benefício; nos atrevemos a fabricar instrumentos, inclusive para fabricarmos outros tantos instrumentos; arrojamos-nos na criação de uma linguagem articulada e simbólica; finalmente desenvolvemos a capacidade magnífica e inimitável de abstrairmos

Fizemos-nos construtores, poetas, produtores e transmissores de conhecimentos e educadores. Como produtores e transmissores do conhecimento e educadores, abandonamos o processo coletivo de ensino-aprendizagem sem escolas, na formação das gerações, e criamos instituições voltadas para o ensino-aprendizagem nos mais diferentes níveis e nos mais diferentes paradigmas, momento em que acontece o que muitos autores definem como divisão social do saber: separam-se aqueles que sabem daqueles que não sabem. Alguns membros da sociedade especializaram-se em ensinar, monopolizando o saber, inclusive como forma de dominação. 

Mas não foi só na educação que os homens especializaram-se: surgiram os especializados em governar, os especializados em rezar, os especializados em curar, os especializados em filosofar, os especializados em legislar, os especializados em zelar pela aplicação das leis

Em termos de produção de bens de consumo e bens de produção, os trabalhadores também conheceram várias etapas de especialização em suas atividades laborais, expressas nas chamadas divisão social e divisão técnica do trabalho.

Segundo a literatura marxista, enquanto membros da comunidade primitiva, na qual os indivíduos eram comunitariamente produtores e consumidores, todos eram ao mesmo tempo agricultores, pastores e artesãos, havendo apenas a divisão natural do trabalho, cuja base era o sexo: trabalho masculino/trabalho feminino. 

A primeira grande divisão social do trabalho aconteceu quando as tribos se dividiram em tribos de agricultores e tribos de pastores. A segunda divisão social do trabalho verificou-se quando as atividades agrícolas e artesanais se separaram no interior da mesma tribo. 

Mas as especializações não pararam por aí, pelo contrário, aprofundaram-se. O advento do capitalismo provocaria uma divisão no interior de cada atividade. No artesanato, por exemplo, criaram-se atividades distintas, especializadas: dos funileiros, dos marceneiros, dos ferreiros, etc.

Em todos os casos por nós abordados até agora, verificamos que a especialização das atividades dos indivíduos ao nível da super e da infraestrutura, foi uma constante na sociedade humana.

Sem querermos abrir discussão acerca da concepção gramsciana de  intelectuais, essa atividade, enquanto ligada à produção e transmissão do conhecimento e do saber, também conheceu o processo de especialização, originando a separação do trabalho intelectual do trabalho manual. 

Portanto o aparecimento mesmo da figura do intelectual já denota uma divisão social no domínio do saber, que o torna um individuo distinto dos demais na sociedade, o que só foi possível “graças a um sistema complexo de divisão do trabalho, liberados das urgências imediatas, dos cuidados cotidianos da sobrevivência” (FORQUIN, 1993, p.46). Além do mais, a dominação ideológica, um dos elementos necessários à reprodução dos sistemas divididos em classes sociais, é exercida pela intelectualidade. (2). Dominação, que para Gramsci, nas palavras de Luna Mochcovitch (1988, p. 13), se dá através de dois fatores: “a interiorização da ideologia dominante pelas classes subalternas e a ausência de uma visão do mundo coerente e homogênea por parte das classes subalternas que lhes permita a autonomia.”

Mas enquanto a sociedade não atingira um grau de complexidade como o verificado com o surgimento e expansão do capitalismo após os séculos XVIII e XIX, os homens que se dedicavam à ciência, à filosofia, às artes o faziam simultaneamente, mesmo que não apresentassem ligações entre si. Isto porque até Platão, verificamos que as particularidades do conhecimento nas formas que conhecemos hoje, simplesmente não existiam.

Essa diversidade de conhecimentos e de atividades exercidas por um mesmo individuo, explica-se antes de tudo, pelo modesto nível de desenvolvimento das sociedades da época.

No entanto, o crescimento cada vez mais acelerado das populações urbanas e o consequente aumento do mercado consumidor, das necessidades de elevação do nível de produtividade, do aceleramento das comunicações e dos transportes, de maior domínio do homem sobre a natureza. . . tudo isso contribuirá de maneira irreversível, para um maior avanço das ciências e dos saberes em geral. O conhecimento “enciclopédico” não seria mais possível.

Embora na Antiguidade Clássica, especialmente Grécia e Roma, não existisse universidades nem quaisquer instituições que pudéssemos considerar de Ensino Superior, existiam escolas 


tidas como de alto nível, para formar especialistas de classificação refinada em medicina, filosofia, retórica, direito. Discípulos que se reuniam em torno de um mestre, cuja considerável bagagem de conhecimentos era zelosamente transmitida. (LUCKESI, 1991, p. 30) 

Só entre os séculos XI e XV, portanto na Idade Média, é que surgem as primeiras universidades, voltadas para a preparação de uma intelectualidade que se dedicava aos estudos da natureza e às questões relativas ao espiritual, ao religioso. Nesta época coube à Igreja Católica manter a unidade do ensino superior e do “conhecimento básico para todas as especialidades e proporcionar aos futuros especialistas uma formação inicial unitária e geral”. (ibid., p. 31)

No século XIX, diante do avanço da industrialização na França napoleônica, as universidades tendem a perder o sentido de uma entidade onde se cultivava a cultura e o pensamento filosófico, herdado este desde as formações das primeiras Escolas Superiores onde prevaleciam as discussões aristotélicas e agostinianas, adquirindo um caráter de ensino profissionalizante, “na linha do espírito positivista, pragmático e utilitarista” legados do iluminismo. Assim, na França “A universidade napoleônica, além de surgir em função das necessidades profissionais, estrutura-se fragmentada em escolas superiores, cada uma das quais isoladas em seus objetivos práticos”. (ibid., p. 32). 

Paralelamente à universidade de modelo napoleônico na França, surge também no século XIX, outro centro universitário que retoma as discussões científicas, as propostas de pesquisa, livre do caráter profissionalizante: a Universidade de Berlim criada em 1810, por Humboldt. 

Mas o fato de uma Instituição de Ensino Superior privilegiar o conhecimento científico e a pesquisa, não a isenta de difundir ideias particularistas dos saberes, talvez não tão excludentes como aquelas instituições que se dedicam à preparação de uma mão-de-obra especializada para o mercado. 

Críticas ao conhecimento especializado

A ampliação dos campos dos conhecimentos científico e tecnológico, engendrada pelo desenvolvimento das forças produtivas, a diversificação das áreas dos saberes em decorrência das novas formas de olhar o mundo, as próprias transformações constantes das realidades com as quais nos defrontamos, que nos fazem rever ou mesmo reforçar nossa forma de pensar o futuro da sociedade humana, criam objetos de estudos cada vez mais particularizados. O fato é que tudo isso não pode nos fazer perder de vista a complexidade do mundo.

Para Lefebvre (1987, p. 77-78):

O especialista concentra-se numa ciência ou mesmo, com frequência, numa parte ínfima de uma ciência: a química dos corantes ou o estudo de determinada família de funções. Ignora o resto da ciência e o resto das ciências. A atividade analítica e a divisão parcelar do trabalho fragmentam a ciência e a própria sociedade numa poeira, numa justaposição informe de resultados.

Entre os autores que se preocuparam com as nocividades advindas do ser especialista, não podemos deixar de fazer referência ao pensador católico Jacques Maritain, que na década de 60 do século passado, já pensava as consequências da especialização (3). Afirma aquele pensador:

Se concordamos em que o animal é um especialista [. . .], e especialista perfeito, já que toda sua capacidade de conhecer está limitada a executar uma função determinadíssima, haveremos de concluir que um programa de educação que aspirasse só a formar especialistas cada vez mais perfeitos em domínios cada vez mais especializados, e incapaz de dar um juízo sobre um assunto qualquer que estivesse fora da matéria de sua especialização,conduziria, sem dúvida, a uma animalização progressiva do espírito e das vida humana. (MARITAIN apud FREIRE, 1981, p. 97-98)

O trabalho científico que o profissional irá exercer, está na razão direta não só das necessidades condicionadas pelo grau de desenvolvimento da sociedade, como na expectativa da criação de novas condições econômicas e sociais que destruam os obstáculos impostos à satisfação das necessidades coletivas. Só que geralmente nos cursos de graduação, o aluno não é levado a refletir sobre sua área de conhecimento, nem sobre os condicionantes sociais e políticos de sua atuação como profissional. Não existe a preocupação, por parte dos professores, com algumas exceções, de provocar uma reflexão teórica, crítica, sobre a atividade que o educando irá futuramente exercer na sociedade. O que existe é uma grande dissociação entre o que se ensina e a realidade objetiva. Esta é ignorada, ou quando muito, apresentada sem problemas a discutir, nem interrogações à espera de respostas.

Não raramente, pesquisadores, homens de ciência, aplicam com maestria e competência, os últimos resultados alcançados pela Matemática, pela Biologia, pela Física, pela Sociologia, pelo Direito, pela Administração, etc. e pelas suas mais minuciosas e atomizadas especialidades, mas ignoram as circunstâncias em que o conhecimento científico as produziu, a teoria que as fundamentou, e muito menos a serviço de quem esses avanços se constituíram, e quais as classes sociais que serão por elas beneficiadas. Ou não.

Nas palavras de Hegel Botinha (2011), Diretor do Grupo Selpe Recursos Humanos, no artigo “O valor de um profissional bem qualificado”, 

[. . .]”essa qualificação exigida não é apenas ter no diploma cursos reconhecidos por renomadas instituições, inglês fluente e ampla experiência. Além dessa capacitação necessária, manter-se atualizado também é essencial para um bom profissional. E é preciso considerar que o mercado de trabalho está em busca de profissionais multidisciplinares, com visão ampla do mundo e bagagem cultura”.
No mesmo sentido comenta Idalberto Chiavenato (4), um dos mais respeitados autores na área de Administração de Empresas e Recursos Humanos, no pronunciamento sobre “Estrategistas versus Especialistas”, quando afirma, com outras palavras, que “não se precisa mais de especialistas precisa-se de estrategistas, pessoas que saibam pensar.[. . .] A diferença entre estrategista e especialista, é que o estrategista não vê as ruas somente, vê as cidades com as ruas junto, não vê apenas as árvores, vê a floresta inteira”.


Notas

1) A família dos primatas compreendia os hilobatídeos (gibões), pongídeos (orangotangos), panídeos(gorilas e chimpanzés) e hominídeos (homens). 
2) Para Gramsci, há uma intelectualidade reprodutora ideológica do sistema e formadora da concepção do mundo das classes dominantes. Caberá no entanto aos “intelectuais orgânicos” que atuam junto aos trabalhadores, procurar elevar a consciência das massas, defendendo a “concepção do mundo revolucionária entre as classes subalternas.”  (Cf. Mochcovitch, p. 17-20).
3) Na linha de Jacques Maritain, o pensador católico brasileiro Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) escreveu diversos trabalhos sobre o ensino e universidade, assumindo uma concepção pedagógica “humanista”, “global” e “integral”. Publicou o ensaio “O Espírito universitário” que bem definiu seu pensamento pedagógico, enfatizando a dimensão humana do ensinar e do aprender. Alceu Amoroso Lima faleceu em 1983. 
4) Trecho da entrevista de Idalberto Chiavenato à TVBV, Santa Catarina, afiliada da Rede Bandeirantes de Televisão. Com o titulo “Estrategistas versus Especialistas”, o trecho foi disponibilizado pelo You Tube no vídeo http://youtu.be/jxI0jideGBs  

(Continua)


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...