domingo, 16 de fevereiro de 2020

A Universidade, a docência e a formação do especialista - Parte II



 Por Aluizio Moreira

O ensino Superior e o Especialista

Para nós, o ensino superior não deve orientar/formar o futuro profissional nas limitações do aprender fazer, mas fundamentalmente aprender a pensar, criar condições para que o futuro profissional não seja um mero repetidor dos pensamentos dos outros, nem tampouco um simples executor, que mecanicamente seja capaz de montar uma engrenagem qualquer.

Se a ciência não avança pela espontaneidade, nem pela inspiração, o homem não existe no vazio, desvinculado da natureza e da sociedade. A ausência de uma reflexão crítica que implique necessariamente no não entendimento do mundo, impede-o de ultrapassar os particularismos para atingir o universal. Torna-se prisioneiro do reducionismo, perde a visão da totalidade e de si mesmo como parte dessa totalidade.

O homem como “um ser no mundo e com o mundo”, deve saber refletir criticamente sobre a realidade histórica na qual está inserido e na qual deverá exercer sua profissão, o que implica em praticar o conhecimento como compreensão do mundo, pressuposto para sua transformação (Cf. LUCKESI et al. 1991, p. 47-59).

Na verdade o que prepondera no ensino superior é uma visão compartimentada das coisas. Tudo colabora para que se perca a visão da totalidade do mundo e da sociedade, como se fosse possível não estar no mundo nem na sociedade, ou seja, em nenhum lugar. É como se nem um nem outro existisse. Procura-se a todo custo mostrar que a totalidade é uma criação da mente, que a única coisa real é a parte. Mas as partes não existem sem o todo. Ou seja, uma das condições da existência das partes, é ser parte de um todo. Senão não seriam partes.

Essa questão de ver as coisas compartimentadas, atomizadas, é fruto de toda uma concepção do mundo que herdamos culturalmente e que a escola reforçará. Não somos conduzidos/despertados para ver as coisas de forma sistêmica, interativa, numa multiplicidade de ações recíprocas e em constante movimento e transformação. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições, que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições.

Edgar Morin, no livro “A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento”, já na sua 18ª edição brasileira, analisando a situação da educação na França, comenta que na escola, na universidade é comum docentes e discentes tratarem as disciplinas como campos estanques, sem muita ou nenhuma ligação uma com as outras. Para ele, no entanto, o caráter multidimensional, nos permite hoje admitir que, sem desconhecermos as suas particularidades, há uma convergência de objetos do conhecimento que os aproximam, constituindo um todo articulado: Geografia, História, Economia, Sociologia, Direito, Ecologia, Antropologia, Cosmologia, Psicologia. (MORIN, 2010, passim).

Considera, não muito diferentemente do que constatamos, que os maiores problemas que se enfrenta no ensino é a hiperespecialização e o acúmulo meramente quantitativo de informações.

A “hiperespecialização” é considerada como um verdadeiro obstáculo ao claro entendimento dos fatos e fenômenos, pois não permite que se tenha uma visão global das coisas, na medida em que prevalece os particularismos, a fragmentação das realidades e dos problemas.

Essa forma compartimentada de tratar os fatos e fenômenos

atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento  corretivo ou de uma visão a longo prazo. Sua insuficiência  para tratar nossos problemas mais graves constitui um do mais graves problemas que enfrentamos.  (MORIN, 2010,14)

Decorrente dessa “hiperespecialização”, e como parte dela, privilegia-se a mentalidade reducionista em que o saber se limita ao saber especializado, contraponto do saber globalizante, tornando o individuo incapaz de relacionar a parte ao todo, ou de apenas considerar as partes. Citando Pascal:

Sendo todas as coisas causadas e causadoras, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e todas elas mantidas por um elo natural e insensível, que interliga as mais distantes e as mais diferentes, considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer, particularmente, as partes. (PASCAL apud  MORIN, 2010, p. 25)

Outro comportamento muito vulgarizado nas escolas e nos cursos superiores, e igualmente criticado por Morin, é a prática da acumulação de informações, do conhecer, ou seja, “a cabeça cheia”, sem qualquer método que organize, que sistematize o pensamento, sem quaisquer reflexões críticas.

Evidente que a função da educação, do ensino, não é transformar o estudante num depositário de dados e informações dispostos para serem utilizados a qualquer momento como arquivo à espera de ser acionado.

É fundamental que a construção do saber se constitua na resolução de problemas, no desenvolvimento da reflexão crítica, na reorganização do pensamento, diante das ideias, das teorias, da critica, dos discursos já elaborados por terceiros.

Para Antonio Joaquim Severino no que refere à educação universitária, há outro aspecto que raramente  é  enfrentado  pela comunidade acadêmica. Diz o autor:

A educação universitária tem um outro objetivo, tão relevante quanto o da formação cientifica: é o objetivo da formação política da juventude. Com efeito cabe a ela desenvolver a formação política, mediante uma conscientização crítica dos aspectos políticos, econômicos e sociais da realidade histórica em que ela se encontra inserida. A educação superior brasileira enfrenta esta questão fundamental: formar politicamente uma juventude pela criação de uma nova consciência social capaz de mobilizá-la, não só para uma atuação concreta e uma participação política no processo histórico real, mas também para um compromisso mais radical de se construir um novo modelo de civilização humana para o Brasil. (SEVERINO, 1996, p. 17)

Com certeza algum leitor paladino da neutralidade do cientista, irá se contrapor a essa afirmativa, alegando que não temos que “misturar” conhecimento científico com política (1). Mas o cientista é também cidadão. E como tal, deve ter uma consciência clara dos problemas enfrentados pela sociedade, que o atinge não só como cidadão, mas como homem de ciência e como trabalhador.

Não é outra a conclusão de Álvaro Vieira Pinto (1985, p. 535):

A consciência do pesquisador científico alcança o mais alto nível da sua percepção de si ao fazer-se deliberadamente uma consciência política. Para essa finalidade não lhe basta contribuir com as descobertas que arranca do seio da natureza, e que irão beneficiar o homem; é preciso que contribua igualmente, pelos meios políticos que estejam ao seu dispor ou que invente, para humanizar a sociedade, participando da luta pela solução dos seus problemas, pela supressão das contradições sanáveis, as que opõem os homens uns contra os outros.

Como cidadão, o homem de ciência “não pode nem prescindir ou desinteressar-se da sociedade nem aceitá-la passivamente tal qual existe ao seu redor, com os conflitos, imperfeições e injustiças que nela se encontram [pois] “dado o papel mediador representado pela sociedade, e a função de que está incumbido pela comunidade, tem por objetivo mediato a transformação da sociedade e a humanização da existência” (ibid., p. 534).

Para os autores de “Fazer universidade: uma proposta metodológica”,

A universidade que não toma a si esta tarefa de refletir criticamente e de maneira continuada sobre o momento histórico em que ela vive, sobre o projeto de sua comunidade, não está realizando sua essência, sua característica que a especifica como tal crítica. Isto nos quer dizer que a universidade é, por excelência, razão concretizada, inteligência institucionalizada, daí ser, por natureza, crítica, porque a razão é eminentemente crítica.” (LUCKESI et al. 1991, p.41)

Mas o que fazemos nós, professores universitários, para colaborarmos com o desenvolvimento da consciência crítica dos nossos educandos, futuros profissionais?

Com algumas exceções, na medida em que nos limitamos a apenas transmitir conhecimentos como se isso fosse o essencial no processo ensino-aprendizagem, falhamos enquanto educadores, sobretudo porque não contribuímos para desenvolver nos nossos alunos, a capacidade de pensar. Na verdade transmitimos

um mundo já pensado, já interpretado, pronto para uso e consumo: história interpretada, sociedade organizada, normas estabelecidas de moral, leis de direitos codificados, religiões estruturadas, classificação e virtudes dos alimentos especificados para cada idade, regulamentos para dirigir carro, programas escolares, tudo pronto. Mas a geração de hoje não pode resignar-se a um conhecer o mundo de segunda mão, não pode julgar-se dispensada de pensar naquilo que já pensaram por ela e definiram sem consultá-la. (RUIZ, 2006, p. 90-91)

Ou seja, não abrimos espaços para que nossos estudantes rediscutam a história, repensem a sociedade, reinterpretem a moral, reavaliem as leis. . . apenas lhes reincorporamos nossos saberes como verdades eternas e indiscutíveis.

Conclusão

A invenção da universidade foi o resultado da divisão do trabalho social, em que o docente, consciente ou inconscientemente, assume um papel importante no processo de reprodução e dominação ideológica, como forma de manutenção da estrutura sócio-econômica da sociedade, o que não impede que exista uma intelectualidade ligada à educação, que desempenhe uma ação transformadora.

Não é demais recordar que desde sua criação na Idade Média, o ensino superior se instituiu com o desempenho de funções específicas e diversificadas, ora como centro de difusão do pensamento filosófico-religioso, ora como centro aglutinador das discussões científicas, ora como instituição voltada para o ensino profissionalizante. Para além dessas múltiplas funções, registramos como a universidade no século XVIII passou a ser disputada pela Igreja e pelo Estado, como forma de preservação do poder espiritual de um lado e da afirmação do poder secular do outro, na medida em que surgem contestações dos iluministas ao caráter divino do poder político herdado da Idade Média.

Soares Junior (2006, p.14) diagnostica:

A estrutura do ensino universitário, via de regra, e inquisitiva e imobilizadora, fruto da própria visão do mundo, já que coloca o professor-educador como o detentor das verdades necessárias ao ensino “adequado”, cuja única possibilidade de espelho são seus pares, ou seja, os iguais a ele, os que, na mesma posição, detêm o poder do saber. E, no outro polo, encontra-se o aluno, que lá está tal qual uma tabula rasa, uma vasilha, um recipiente, pronto para engolir, para se deixar encher de conhecimentos (verdades perfeitas e acabadas), para permitir a ocupação de sua mente pelos axiomas (valores) do sábio, sem nada poder problematizar.

Visão docente esta de fundo elitista, autoritária e conservadora, na qual muitos professores acreditam, que por serem professores, detêm o monopólio do saber diante dos alunos que nada sabem.

O que ouvimos mais frequentemente no meio universitário, é o discurso da especialização/profissionalização. É o novo fetiche! Apresentado como exigência para se enfrentar um mundo do trabalho cada vez mais competitivo, a profissionalização virou artigo de consumo. E também de venda. A especialização e a profissionalização estariam na razão direta dos domínios dos conteúdos repassados em sala de aula, das habilidades específicas, o que garantiria ao futuro profissional, não só uma vaga no mercado de trabalho, mas sua ascensão no exercício da sua atividade. Daí a ênfase, os esforços despendidos pelos cursos superiores na formação do profissional “executor”. Para o profissional criador/inovador não teria espaço na sociedade.

Esta discussão da institucionalização do ensino nas escolas e universidades, entre a formação humanística e a formação profissional, embora seja uma questão antiga, não perdeu sua atualidade. Inclusive, em nossos dias, tendências do pensamento pedagógico, defendem com “unhas e dentes” a criação de instituições de ensino que enfatizem os dois tipos de educação: uma voltada para a formação humanística, outra dedicada à formação profissional. Mas até que ponto essas forma de educação especializada não seria uma forma um tanto sutil de eternizar e aprofundar as diferenças sociais? Onde a igualdade de oportunidade, se já decidimos previamente que alguns devem obter conhecimento humanista e científico-tecnológico, e que outros devem se contentar com um conhecimento profissionalizante? Reservaremos para os primeiros a perspectiva da formação do homem integral, para os segundos, não? O que dizer da tendência hoje verificada na criação de cursos superiores voltados para a formação, prioritariamente, do tipo do profissional exigido pelo mercado? Passada a euforia inicial, a demanda diminui e a oferta também: os cursos passam a funcionar precariamente ou fecham.  (2)

Ao nosso ver, a especialização nas entidades de ensino é uma propensão que acontece vetorialmente na horizontal como na vertical, ou seja, no interior das instituições como fora delas. 

Mas existe uma outra questão em relação ao ensino-aprendizagem que é importante discutirmos, sendo necessário desconstruir todo um conjunto de ideias que durante séculos tem preponderado nas escolas e cursos superiores: a aceitação de que a tarefa da escola ou da universidade, e particularmente dos professores, é o de simplesmente transmitir conhecimento (3) como esse conhecimento não necessitasse ser repensado, como se não fosse possível levantar dúvidas sobre o saber institucionalizado e tido como incontestável.

Consideremos: uma observação que deverá ser feita, é a postura que costumamos assumir diante das contradições, das especificidades das coisas. Não fomos orientados no sentido de entendermos os objetos e fenômenos nas suas diversidades e contradições; diversidades e contradições que formam uma unidade apesar das diversidades e contradições. Desconhecemos um dos princípios básicos da dialética: o principio das contradições existentes em todas as coisas e de seus inter-relacionamentos.

Todas essas reflexões acerca da educação, do ensino, do conhecimento, das ciências naturais e humanas são fundamentalmente estudos da condição humana (do aprender viver, da formação do cidadão). Condição humana cuja reforma do pensamento “é uma necessidade democrática fundamental: formar cidadãos capazes de enfrentar os problemas de sua época” [. . .] como “condição sine qua non para sairmos de nossa barbárie.” (MORIN, 2010, p.103-104)

A condição humana é natural e metanatural. O homo economicus é também o homo faber e o homo philosophicus. Não se conhece o homem, estudando-o separado do cosmos, do biológico, do social, do cultural, do espiritual.

A grande contradição existente é que enquanto se procura tratar os saberes cada vez mais fragmentados, mais compartimentados, a própria realidade da qual fazemos parte, é, ela própria, multidimensional.

As consequências dessas formas de ver e de tratar o ensino superior, são graves: porque se passa a admitir que não seja necessário criar um espaço para a interdisciplinaridade, que permita o aluno ver o mundo, a sociedade sob a ótica de outras áreas do conhecimento e seus inter-relacionamentos; cria-se a ilusão  de uma atividade descompromissada e neutra em relação às forças sociais contraditórias e conflituosas que integram a sociedade; elimina-se o caráter social do conhecimento, como se este só existisse em função do individuo e não da sociedade; ignora-se o caráter dinâmico e histórico da ciência, acreditando-a imutável e infalível; defende-se que basta o aluno conhecer, mas não pensar, pois este pensar seria prerrogativa das mentes “iluminadas” e “brilhantes”, exclusividade dos que exercem a docência.

Por fim, é necessário que as escolas, as universidades, passem a reservar espaços para formação continuada do seu quadro de docentes, dentro daquilo que exige sua atividade na área da educação, harmonizando a competência intelectual e a competência pedagógica, o que alias, nem sempre acontece.

Notas

1)      Para reforçar a importância da política, mesmo para o homem comum, é aconselhável, para quem ainda não conhece, ler “O analfabeto político” do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, forçado a exilar-se em diversos países para livrar-se da perseguição nazista.
2)      Aconteceu aqui no Recife com os Cursos de Turismo: algumas Faculdades ofereciam-no em três turnos diferentes, hoje não mais que um turno apenas. Faculdades de Formação de Professores que deixaram de oferecer cursos de Licenciatura em Geografia, História, Ciências Biológicas. Algumas Instituições de Ensino Superior investem hoje em cursos tecnológicos de graduação de menor duração. 
3)      É exatamente neste ponto, que para muitos se encontra a diferença entre professores e educadores. Os professores seriam profissionais da educação que limitariam suas atividades como transmissor de conhecimentos, transferindo conteúdos. O aluno, neste caso, na concepção de Edgar Morin, teria “uma cabeça bem cheia”.  Os educadores, também profissionais da educação, se preocupariam não só em difundir conhecimentos, mas ao mesmo tempo procurariam contribuir para a formação integral da pessoa, como ser humano, como cidadão, em interação com a sociedade, com o mundo.


Referencias

BOTINHA, Hegel. O valor de um profissional bem qualificado. Publicado em 23 de agosto de 2011 no site da Revista eletrônica Administradores. com. Disponível em <http://www.administradores.com.br/informe-se/carreira-e-rh/o-valor-de-um-profissional-bem-qualificado/47380> Acesso em 18 jun. de 2012.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Tradução: Guacira Lopes Louro, Porto Alegre: Arimed, 1993.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 12.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
LEFEVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução: Carlos Nelson Coutinho, 4.ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
LUCKESI, Cipriano et al. Fazer universidade: uma proposta metodológica. 6.ed., São Paulo: Cortez, 1991.
MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.Tradução: Eloá Jacobina, 18.ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa científica. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
RUIZ, João Álvaro. Metodologia cientifica: guia para eficiência nos estudos. 6.ed., São Paulo: Atlas, 2006.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 20.ed., São Paulo: Cortez, 1996.
SOARES JUNIOR, Antonio Coelho. Ensino jurídico: procura-se! Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n.1047, 14. Mai.2006. Diponivel em





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