domingo, 19 de novembro de 2017

E Finlândia renova sua Educação…



Conhecido pela excelência no ensino, que é público e gratuito, país quer agora
renovar currículos e métodos. Receita essencial: ainda mais participação


Por Claudia Wallin, na BBC Brasil


Novos tempos exigirão uma nova escola. O diagnóstico vem da Finlândia, país cujo sistema, já celebrado internacionalmente, agora planeja reformas de olho em como será sua educação daqui a duas décadas.

A meta é envolver os pais em um amplo debate sobre a agenda que os finlandeses acreditam ser necessária para preservar o nível de excelência do ensino público nos próximos anos.

E para isso, nesta quarta-feira a Finlândia vai realizar simultaneamente, nas escolas públicas de todo o país, o que está sendo anunciado como a maior reunião de pais e professores do mundo.

“O mundo está mudando, as escolas precisam mudar, e o diálogo com os pais é crucial nesse processo, uma vez que eles podem desempenhar um papel significativo na evolução da escola”, diz à BBC Brasil Saku Tuominen, um dos organizadores do evento e diretor do projeto HundrEd, criado no país para identificar e compartilhar inovações educacionais em todo o mundo.

Os finlandeses já se perguntam: que tipo de conhecimentos, habilidades e aptidões serão importantes para um aluno em 2030?

‘Diálogo permanente’

“Inovação é a chave”, afirma Tuominen. “Em um mundo em transformação, pensamos que em 2030, por exemplo, os alunos precisarão estar capacitados tanto em termos de novas tecnologias e da ênfase na criatividade como também no desenvolvimento de habilidades emocionais, autoconhecimento e pensamento crítico.”

A megarreunião de pais é resultado de uma colaboração entre o Ministério da Educação e Cultura, o Sindicato dos Professores, a Associação de Pais de Alunos da Finlândia e o projeto HundrEd.

Mais de 30 mil pais já se inscreveram para participar do evento – e a ideia é transformar a iniciativa em um evento anual.

“Queremos um diálogo de alto nível e permanente sobre os fundamentos da educação do futuro. E mais do que nunca precisaremos de soluções criativas em consonância com a base do pensamento finlandês, que é uma educação em que o aluno tenha prazer em aprender”, destaca Saku Tuominen.

Alunos viram professores

Para alavancar o debate, a reunião de pais e mestres será aberta em todas as escolas, que exibirão vídeos curtos com a fala de especialistas e educadores sobre o rumo das reformas em nível nacional, além de filmes sobre inovações que vêm sendo experimentadas em escala local.

Uma dessas inovações é um projeto-piloto que inverte os papéis entre mestres e aprendizes: alunos estão dando aulas a professores sobre o uso mais eficiente de tablets, mídias sociais e câmeras digitais.

“Os resultados têm sido excelentes”, diz Saku Tuominen. “É uma forma eficaz e econômica de capacitar melhor os professores de cadeiras não ligadas à tecnologia, e que também cria laços mais estreitos entre professor e aluno.”

Na visão finlandesa, professores não deverão ser apenas provedores de informação, e os alunos não serão mais somente ouvintes passivos.

“Queremos que as escolas se tornem comunidades onde todos possam aprender uns com os outros, incluindo os adultos aprendendo com as crianças”, diz Anneli Rautiainen, chefe da Unidade de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação finlandês.

“Habilidades tecnológicas e codificação serão ensinadas juntamente com outros assuntos. Para apoiar os professores, também haverá tutores digitais.”

Solução de problemas

Outra inovação a ser apresentada na reunião de pais é um projeto que vem sendo conduzido nas escolas da cidade de Lappeeenranta, no sudeste da Finlândia, para treinar os alunos em técnicas de solução de problemas. O projeto reúne uma equipe de psicólogos, especialistas e educadores.

“A ideia é capacitar os estudantes a desmistificar os problemas, e aprender a focar nas soluções”, explica Tuominen.

No raciocínio dos finlandeses, é preciso mudar a percepção sobre o que deve ser ensinado às crianças e o que elas necessitam para sobreviver numa sociedade e em um mercado de trabalho em rápida transformação.

“As escolas precisam se adaptar aos novos tempos e reconhecer que, com a revolução tecnológica e o impacto da globalização, as necessidades das crianças mudaram. É preciso incluir no currículo escolar temas como a empatia e o bem-estar do indivíduo, além de renovar os ambientes de ensino para motivar os alunos”, observa Kristiina Kumpulainen, professora de Pedagogia na Universidade da Finlândia.

O novo currículo escolar adotado em 2016 já inclui um alentado programa de tecnologia de informação, assim como aulas sobre vida no trabalho. Parte dos livros escolares, assim como a maioria do material de ensino, é completamente digital.

Diálogo

A Finlândia, país de 5,4 milhões de habitantes, é conhecida internacionalmente por pensar fora da caixa no que diz respeito à educação, o que atrai a curiosidade de especialistas do mundo inteiro.

Os dias são mais curtos nas escolas finlandesas: são menos horas de aula do que em todas as demais nações industrializadas, segundo estatísticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, que reúne países desenvolvidos). Em uma típica escola finlandesa, os alunos têm em média cerca de cinco aulas por dia.

Os estudantes finlandeses gastam ainda menos tempo fazendo trabalho de casa do que os colegas de todos os outros países: cerca de meia hora por dia. O sistema também não acredita na eficácia de uma alta frequência de provas e testes, que por isso são aplicados com pouca regularidade.

E para os desafios dos novos tempos, os pais querem voz ativa.

Para a presidente da Associação de Pais da Finlândia, Ulla Siimes, não há mais espaço para as tradicionais reuniões entre educadores autoritários e pais queixosos.

“Quando perguntamos aos pais o que eles esperam das reuniões com professores, a resposta é que eles querem se sentir incluídos nas questões escolares, e não apenas receber relatórios sobre o que está sendo feito”, disse Siimes em entrevista à TV pública finlandesa YLE, ao destacar a importância da reunião de pais e mestres da próxima quarta-feira.

“As experiências pessoais vivenciadas pelos pais décadas atrás podem influenciar as suas concepções sobre como as crianças devem ser educadas nas escolas, e precisamos atualizar nosso modo de pensar para adaptar as técnicas de ensino à realidade da nova era”, acrescentou ela.

A reunião também pretende informar os pais sobre os efeitos de mudanças que já vêm sendo implementadas nas escolas do país, como a criação de salas de aula mais versáteis e flexíveis.

Paredes vêm sendo derrubadas para a criação de espaços de ensino em plano aberto, com divisórias transparentes. Em vez das carteiras escolares, o mobiliário inclui sofás, pufes e bolas de pilates.

“No futuro, não haverá necessidade de salas de aula fechadas, e a aprendizagem acontecerá em todos os lugares”, diz Anneli Rautiainen.

Outra aposta consolidada no novo currículo escolar é o ensino baseado em fenômenos e projetos, que atualiza a tradicional divisão de matérias e dá mais espaço para que determinados temas – por exemplo a Segunda Guerra Mundial – sejam trabalhados conjuntamente por professores de diferentes disciplinas.

Ainda que não lidere o ranking internacional de desempenho de alunos medido pelo exame Pisa, da OCDE, a Finlândia costuma estar entre os mais bem colocados do mundo. Mas isso não é o que guia as reformas educacionais, dizem educadores.

“A importância de rankings como o Pisa no pensamento finlandês é bastante insignificante. Eles são vistos como uma espécie de medição de pressão sanguínea, que nos permitem considerar, ocasionalmente, a direção para onde estamos indo, mas os resultados dos testes não são nosso foco principal”, diz o educador finlandês Pasi Sahlberg. “O fator essencial é a informação que as crianças e os jovens vão precisar no futuro.”

“Na Finlândia, o objetivo da educação não é obter sucesso no Pisa”, reforça Saku Tuominen, um dor organizadores da reunião de pais. “Nossa meta é ajudar as crianças e adolescentes a florescer e ter uma vida mais satisfatória.”


sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Reforma pode criar aberrações no trabalho de professores


“Vai funcionar da mesma forma que o fast food”, explica dirigente da categoria


Por Rafaella Dotta



Os 100 artigos da CLT modificados pela Lei 13-467, a Reforma Trabalhista, passam a valer na prática
a partir de 11 de novembro (sábado) - Créditos: Rwprodução


Presidentas das duas maiores centrais sindicais de Minas, CUT e CTB, são também as presidentas dos sindicatos dos professores da rede pública e da rede particular no estado, respectivamente. E isso pode não ser uma coincidência. “O mesmo golpe que aprova a reforma, está querendo comprometer o projeto de educação do país”, afirma Valéria Morato, presidenta da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e do sindicato dos professores da rede particular (Sinpro).

Os 100 artigos da CLT modificados pela Lei 13.467, a Reforma Trabalhista, passam a valer na prática a partir de 11 de novembro (sábado) e traz duras consequências às salas de aula. A primeira delas, segundo lembra Valéria, é justamente remunerar o trabalho do professor apenas pelas horas que ele está em sala. “O professor tem um fazer diferente”, explica, “precisa conhecer sua turma, corrigir provas e trabalhos, enviar e-mails, traçar projeto pedagógico”, lista Valéria.

O não pagamento pelo trabalho extraclasse pode ser possível através do contrato por trabalho intermitente. Até abril, o acordo coletivo que rege a maior parte das escolas particulares de Minas Gerais prevê que o contrato de professor é anual, com adicional de 20% pelo trabalho extraclasse, adicional por tempo de serviço e de 16% por repouso remunerado. Tudo isso estaria em cheque com a contratação intermitente, terceirização e negociação individualizada.

“Vai funcionar da mesma forma que o fast food”, explica Valéria, lembrando da empresa terceirizada que já anuncia o pagamento de R$ 4,45 por hora. “Vamos imaginar um curso semestral. A escola pode organizar todo o módulo de português em alguns dias. Contrata o professor por esses dias como pessoa jurídica e depois o dispensa”, afirma.

Segundo o Sinpro, professores podem perder a mínima estabilidade no emprego, o décimo terceiro salário, as férias remuneradas, um mês completo de férias (estabelecido geralmente em janeiro) além de ter que negociar individualmente seu salário e adicionais com o patrão. Mudanças que Valéria classifica como “aberrações”.

A Reforma para professores estaduais

Mesmo tendo legislação própria, professores da rede estadual devem sofrer com a Reforma, acredita Beatriz Cerqueira, presidenta da Central Única dos Trabalhadores (CUT Minas) e do Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação (SindUTE MG). “Nós temos uma tradição de se aplicar no setor público a legislação do setor privado”, lembra Beatriz, em que o principal impacto deve ser também na contratação.

“Traz a terceirização irrestrita. Nós corremos o risco de rapidamente deixar de ter políticas de concurso público e contratações diretamente feitas pela administração pública em lugar do aumento de uma rede de terceirização, inclusive para as atividades fins. Traduzindo: um professor pode ser terceirizado. Todas as atividades da escola podem ser terceirizadas”, crava. 

O segundo grande impacto, segundo Beatriz, é o ataque que a reforma faz à organização dos trabalhadores, hoje representada pelos sindicatos. “O objetivo de acabar com a organização sindical não é pelo motivo financeiro, mas para fragilizar o trabalhador e garantir que o empresário possa impor a sua vontade, impor a sua dinâmica de negociação sem que tenha resistência e organização coletiva”, diz.

Os principais artigos que impactam os sindicatos são a negociação direta do trabalhador com patrão, a extinção do imposto sindical obrigatório, a demissão em massa sem acordo com sindicato e as comissões de trabalhadores que poderão substituir o sindicato. Destes itens, as presidentas da CUT Minas e CTB Minas concordam que a retirada do sindicato das negociações é sem dúvida das mais preocupantes. 

“Na negociação individual é claro que o trabalhador vai perder em relação ao patrão, que tem poder econômico e no nosso caso [rede pública estadual] também político. Isso atinge o setor público que já não tinha regulamentação da negociação coletiva. Com essa Reforma Trabalhista nós estaremos ainda mais sujeitos a uma negociação que anule os sindicatos ou a completa ausência destas negociações”, alerta Beatriz Cerqueira.

A presidenta da CUT Minas comenta ainda que, com a Reforma aprovada, passa a ser fundamental pressionar que governos progressistas não façam adesão dos novos artigos contra os funcionários públicos. Os eletricitários de Minas Gerais já reivindicam, por exemplo, que a empresa estatal Cemig assine uma cláusula de que não vai utilizar a Reforma Trabalhista contra seus 6 mil funcionários. 

Ao caminho: à luta

Centrais sindicais, movimentos populares e partidos fazem em 10 de novembro o Dia Nacional de Paralização e Mobilização, com atividades marcadas em todos os estados. O objetivo é dialogar com a população sobre os estragos que a Reforma Trabalhista e a Lei de Terceirização estão para causar. Além disso contribuem para retomar com a população o debate sobre a o trâmite da Reforma da Previdência, que entra novamente na pauta do Congresso Nacional.


domingo, 5 de novembro de 2017

Um grande livro sobre a pequena prisão



Por Vera Malagutti Batista*


Nota da Redação de AND: Publicamos abaixo trechos do prefácio escrito por Vera Malaguti ao livro A pequena prisão do ativista Igor Mendes.



                                                     Ellan Lustosa/AND
A mesa do evento contou com a Dra. Vera Malaguti, a jornalista Fafete Costa e o ativista Igor Mendes 


Li o livro de Igor num só fôlego, em meio às ruínas nas quais trabalhamos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde o autor também estuda. Conhecia o caso do Igor e a escandalosa repressão a que foram submetidos alguns jovens que participaram das marchas e protestos de 2013. Aquela irrupção de ar puro que emanava das manifestações foi seguida de uma brutal perseguição penal realizada com o aval dos governos federal, estadual e municipal, com o auxílio descarado e implacável da grande mídia. O caso de Caio e Fábio aparece aqui com toda a sua carga de dramaticidade, principalmente se pensarmos que os dois jovens continuam nas garras do sistema, embora agora fora da prisão. É uma estranha democracia...

A pequena prisão é talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos. Tudo o que tentamos descrever como o sistema penitenciário brasileiro aparece aqui como uma verdade encarnada nos corpos dos seres humanos com que Igor conviveu em Bangu. Sabemos que o pequeno espaço de uma cela na periferia condensa toda a história da prisão, essa invenção do capitalismo industrial que tem no capitalismo vídeo-financeiro contemporâneo o seu esplendor. Loïc Wacquant já afirmou que a prisão é uma “instituição fora da lei”. Dentro de seus muros não há direitos, suspensas estão todas as garantias e também toda a beleza e delicadeza que os homens e mulheres ali jogados tentam teimosamente reconstruir todos os dias. A economia capitalista precisa da prisão para exercer o controle brutal dos pobres e dos resistentes. Nos dias de hoje, e mais especialmente no Brasil, o sistema penal (que vai da mídia aos tribunais, passando pela polícia) já não reivindica suas promessas falaciosas (as ilusões ressocializadoras) mas extravasa sua metodologia de aniquilação ancorada nas violências históricas da colonização e da escravidão. O desprezo pelo povo brasileiro é algo construído na longa duração. Na questão criminal as marcas da inquisição ibérica e do positivismo racista impregnam as práticas e os sentidos da prisão.

Lendo o livro, lembrava-me a toda hora de algum autor da criminologia crítica. Lembrei-me de Alessandro Baratta, que descrevia a prisão como uma série de degradações e humilhações que sempre reproduz e aprofunda as desigualdades da sociedade em que está inserida. Lembrei-me de Zaffaroni na busca das penas perdidas, retratando o sistema penal latino-americano com seu “discurso jurídico-penal esgotado em arsenal de ficções gastas, cujos órgãos exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa (realidade letal)”. Igor nos apresenta os efeitos deletérios da prisionização, a verdade do seu princípio básico, o de less elegibility que institui que o encarcerado deve estar sempre abaixo do nível mínimo social dos trabalhadores. Se nosso nível mínimo é inimaginável, a que níveis pretende chegar a prisão na escala absurda em que se encontra no Brasil contemporâneo? As humilhações sofridas pelas famílias, as pequenas negociações sobre aquilo que deveria ser o básico, as penas colaterais embutidas na privação de liberdade que vão incorporando pequenos castigos físicos e mentais todo o tempo... Igor sabe muito bem que a prisão é uma tortura em si. O que falar sobre o aberrante transporte dos presos para audiências. O que é isso? A insensibilidade de juízes e promotores, entre todos os que contribuem para essa barbárie, não deixa de ser um sintoma que nos ajuda a compreender esse grande encarceramento.

                                                                   Ellan Lustosa/AND
Atriz democrática Soraya Ravenle interpretou trechos do livro


Esse grande livro nos mostra também a tortura do tempo na prisão. Quem está por trás dos muros e grades tem o tempo em outra dimensão, como naquele trabalho do Kiko Goiffman, Valetes em slow motion. Mesmo o Igor ateu reconhece um sentido que talvez nunca tenha percebido antes para as práticas religiosas na prisão. Ele nos aponta as renovadas torturas que surgem até no atendimento médico: baleados com curativo aberto andando descalços no chão imundo da prisão, fraturas que só eram reduzidas três dias depois. É como se a tortura fosse o ponto de encontro de todas as rotinas da prisão: “com o passar dos dias, entretanto, fui-me dando conta de algo muito mais sério: nada ali é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodicamente calculada”. Socos e tapas, cabeças raspadas, humilhações. “O que é a privação de liberdade, afinal, senão uma forma moderna de tortura, igualmente cruel, embora socialmente aceita?”.

As resistências se forjam mesmo no chão em que pisamos e Igor nos relata sua luta por pensar, por poder ler e escrever, mesmo com restrições incompreensíveis que só corroboram a economia de castigos que rege a administração de uma prisão. Joel Rufino dos Santos nos ensinou que a ética, essa palavra tão gasta, quer dizer “do lugar”. Ninguém mais ético como escritor e militante do que Igor. Convivendo solidariamente com seus companheiros de infortúnio, em total sintonia com todos os humanos que o rodeavam, ao mesmo tempo e corajosamente se diferenciava pela sua luta política. Sua resistência e seu destemido brado “sou preso político” iluminou seu coletivo para outras possibilidades e devires e nos trouxe uma reflexão importante na discussão sobre o caráter político de toda prisão e de todo preso. Igor destaca a importância da distinção do caráter político e de sua neutralização em casos como o das prisões dos Panteras Negras, alguns até hoje nos cárceres do coração do capitalismo. “No dia em que a massa carcerária, e as classes nas quais ela é majoritariamente recrutada, definir-se a lutar decididamente contra a ordem social que a subjuga, abrindo mão das soluções individuais, daremos um passo significativo para a abertura de todas as prisões, grandes e pequenas”. Creio que a própria lucidez e integridade de Igor ajudam a retificar essa discussão sobre a natureza política de toda prisão e de todo prisioneiro; a diferença entre o preso político e o comum é que o primeiro sabe que sua prisão é política. Esse livro sobre a pequena prisão é tão contundente que reafirma a necessidade de repolitizarmos a questão criminal. Quando olhamos a história da questão criminal vemos como ela é naturalizada nos tempos de crise.

Esse grande livro vale por estantes inteiras de livros de criminologia. Seus leitores percorrerão todos os caminhos do grande encarceramento, tal como ele se apresenta no Brasil contemporâneo. Da desconstrução da “impunidade” à constatação da prisão como tortura, esse livro é um importante libelo para as lutas abolicionistas que têm um olhar mais extenso, na direção da derrota do capitalismo. Tenho dito e escrito que contar nossas histórias tristes é o método mais verdadeiro para uma criminologia comprometida com seu povo. Como disse a senhora (“esperava alguém querido sair da masmorra”) quando de sua libertação, quero te dizer, Igor: “Parabéns meu filho, parabéns pela luta!”. Esse seu livro nos ajuda a derrotar a prisão, principalmente por não deixar-te encarcerada a alma para sempre e por honrar de forma tão delicada e forte seus companheiros de tragédia.


*Vera Malaguti Batista é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes (UCM), e Secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).



quinta-feira, 2 de novembro de 2017

CELAM retoma Medellín: congresso convocado para 2018



Por Mauro Lopes

           

Dom Helder Câmara foi um dos líderes de Medellin; agora é a hora de Francisco


A Igreja da América Latina, sob liderança do Papa Francisco, ensaia retomar de maneira decidida o percurso interrompido por João Paulo II. O CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) acaba de anunciar a convocação do Congresso 50 anos de Medellín que acontecerá de 23 a 28 de agosto de 2018 “na mesma cidade colombiana e nas mesmas instalações do Seminário de formação sacerdotal, que foi a sede dessa histórica Conferência.” O objetivo, segundo o comunicado do CELAM será “comemorar e projetar a mensagem da Conferência de Medellín como um eixo-chave da Igreja no continente, em diálogo com a Igreja universal”.

O encontro já está sendo preparado, informou o comunicado divulgado na tarde desta segunda (30), e  será promovido pelo CELAM, pela a Confederação dos Religiosos e Religiosas, secretaria da Caritas da América Latina e Caribe e pela Arquidiocese de Medellín.

A Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano realizou-se em Medellín, na Colômbia entre 24 de agosto a 6 de setembro de 1968, convocada pelo Papa Paulo VI para aplicar as decisões do Concílio Vaticano II à Igreja da região. A abertura da Conferência foi feita pelo próprio Papa que marcou a primeira visita de um pontífice à América Latina. Foi um evento histórico, um “segundo concílio”, que aprofundou as decisões do Vaticano II e afirmou claramente, pela primeira vez, os pobres como protagonistas da Igreja e da sociedade. A delegação brasileira foi composta por 30 pessoas, entre bispos, padres e peritos. Os protagonistas essenciais foram dom Hélder Câmara, dom José Maria Pires, dom Aloísio Lorscheider e dom Cândido Paim.  Pouco mais de dez anos depois, a Conferência de Puebla (México) manteve os traços essenciais de Medellín, mas com recuos marcantes devido à pressão de João Paulo II e da Cúria romana.

O Congresso de 2018, diz o documento básico da organização, “procura reconhecer com gratidão a aplicação de Medellín em nossas igrejas particulares, aprofundar algumas das questões fundamentais que permanecem atuais no presente, examinar novos sinais dos tempos de hoje e projetar uma ação evangelizador que leva em consideração o espírito da Segunda Conferência, enriquecida com o Magistério da Igreja latino-americana, bem como o Pontifício Magistério, especialmente com os ensinamentos do Papa Francisco.”

Segundo o comunicado do CELAM, “para realizar este congresso, é necessário examinar a situação na América Latina hoje, identificando os desafios da transformação exigida pelo continente e as contribuições de Medellín ainda válidas e proféticas no tempo presente. Desta forma, as chaves temáticas, o processo vivido e os efeitos e impactos causados por Medellín podem ser entendidos.”

Acabou o tempo da perseguição à Teologia da Libertação sob a liderança da Cúria romana e dos bispos reacionários da América Latina; o texto reconhece o valor da formulação teológica da região de maneira assertiva: “Na segunda metade da década (de 1960 –nota minha), a Teologia da Libertação não hesitou em afirmar que a pobreza e a exclusão também constituíam uma forma de pecado e chamavam os católicos para lutar para libertar-se de tais males”

A chave de leitura do comunicado para a história da Igreja a partir do Vaticano II vira do avesso a perspectiva conservadora dominante desde Wojtyla e parece indicar que depois dos primeiros anos de vacilação, o CELAM adota explicitamente a perspectiva de Francisco. Eis como o texto aborda a história de Medellín:

“Em um contexto internacional particularmente agitado, com manifestações de todos os tipos pedindo um mundo mais livre e justo, o CELAM decidiu comprometer-se entre outras opções, com a causa dos setores populares da América Latina através da ‘opção preferencial para os pobres’ . 
Líderes importantes do catolicismo, atentos ao que estava acontecendo, consideraram que a Igreja não podia continuar ignorando os ‘sinais dos tempos’, que tinham de se adaptar às demandas do tempo. ‘Os anos sessenta’ foram os anos do Concílio Vaticano II (1962-65), em que a Igreja, liderada por João XXIII, queria renunciar a um cristianismo medieval e assim dar um passo fundamental para uma melhor compreensão do mundo moderno. Em 1967, a Encíclica Populorum Progressio de Paulo VI concluiu que sem um verdadeiro desenvolvimento não poderia haver paz no mundo. Na segunda metade da década, a Teologia da Libertação não hesitou em afirmar que a pobreza e a exclusão também constituíam uma forma de pecado e chamavam os católicos para lutar para libertar-se de tais males.  
As memórias de um estudo posterior realizado e publicado por escritores na América Latina, indicaram, entre outras coisas, que ‘o encontro do episcopado em Medellín foi desenvolvido, como se vê, em um contexto de transformações profundas, que a Igreja não escapou. Os bispos do continente, com certas exceções, concentraram deliberadamente sua atenção na pobreza. Os prelados até passaram a uma forte autocrítica, reconhecendo que a Igreja, aliada à classe dominante da época, não tinha cumprido as suas funções sociais. Por conseguinte, acrescentaram, era urgente realizar as reformas necessárias para pôr fim às várias formas de violência institucionalizada (pobreza, analfabetismo, exclusão política, repressão, etc.). O catolicismo também teve uma promissora primavera nos anos 60.'”

Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...