domingo, 5 de novembro de 2017

Um grande livro sobre a pequena prisão



Por Vera Malagutti Batista*


Nota da Redação de AND: Publicamos abaixo trechos do prefácio escrito por Vera Malaguti ao livro A pequena prisão do ativista Igor Mendes.



                                                     Ellan Lustosa/AND
A mesa do evento contou com a Dra. Vera Malaguti, a jornalista Fafete Costa e o ativista Igor Mendes 


Li o livro de Igor num só fôlego, em meio às ruínas nas quais trabalhamos na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde o autor também estuda. Conhecia o caso do Igor e a escandalosa repressão a que foram submetidos alguns jovens que participaram das marchas e protestos de 2013. Aquela irrupção de ar puro que emanava das manifestações foi seguida de uma brutal perseguição penal realizada com o aval dos governos federal, estadual e municipal, com o auxílio descarado e implacável da grande mídia. O caso de Caio e Fábio aparece aqui com toda a sua carga de dramaticidade, principalmente se pensarmos que os dois jovens continuam nas garras do sistema, embora agora fora da prisão. É uma estranha democracia...

A pequena prisão é talvez o mais importante livro brasileiro de criminologia dos últimos tempos. Tudo o que tentamos descrever como o sistema penitenciário brasileiro aparece aqui como uma verdade encarnada nos corpos dos seres humanos com que Igor conviveu em Bangu. Sabemos que o pequeno espaço de uma cela na periferia condensa toda a história da prisão, essa invenção do capitalismo industrial que tem no capitalismo vídeo-financeiro contemporâneo o seu esplendor. Loïc Wacquant já afirmou que a prisão é uma “instituição fora da lei”. Dentro de seus muros não há direitos, suspensas estão todas as garantias e também toda a beleza e delicadeza que os homens e mulheres ali jogados tentam teimosamente reconstruir todos os dias. A economia capitalista precisa da prisão para exercer o controle brutal dos pobres e dos resistentes. Nos dias de hoje, e mais especialmente no Brasil, o sistema penal (que vai da mídia aos tribunais, passando pela polícia) já não reivindica suas promessas falaciosas (as ilusões ressocializadoras) mas extravasa sua metodologia de aniquilação ancorada nas violências históricas da colonização e da escravidão. O desprezo pelo povo brasileiro é algo construído na longa duração. Na questão criminal as marcas da inquisição ibérica e do positivismo racista impregnam as práticas e os sentidos da prisão.

Lendo o livro, lembrava-me a toda hora de algum autor da criminologia crítica. Lembrei-me de Alessandro Baratta, que descrevia a prisão como uma série de degradações e humilhações que sempre reproduz e aprofunda as desigualdades da sociedade em que está inserida. Lembrei-me de Zaffaroni na busca das penas perdidas, retratando o sistema penal latino-americano com seu “discurso jurídico-penal esgotado em arsenal de ficções gastas, cujos órgãos exercem seu poder para controlar um marco social cujo signo é a morte em massa (realidade letal)”. Igor nos apresenta os efeitos deletérios da prisionização, a verdade do seu princípio básico, o de less elegibility que institui que o encarcerado deve estar sempre abaixo do nível mínimo social dos trabalhadores. Se nosso nível mínimo é inimaginável, a que níveis pretende chegar a prisão na escala absurda em que se encontra no Brasil contemporâneo? As humilhações sofridas pelas famílias, as pequenas negociações sobre aquilo que deveria ser o básico, as penas colaterais embutidas na privação de liberdade que vão incorporando pequenos castigos físicos e mentais todo o tempo... Igor sabe muito bem que a prisão é uma tortura em si. O que falar sobre o aberrante transporte dos presos para audiências. O que é isso? A insensibilidade de juízes e promotores, entre todos os que contribuem para essa barbárie, não deixa de ser um sintoma que nos ajuda a compreender esse grande encarceramento.

                                                                   Ellan Lustosa/AND
Atriz democrática Soraya Ravenle interpretou trechos do livro


Esse grande livro nos mostra também a tortura do tempo na prisão. Quem está por trás dos muros e grades tem o tempo em outra dimensão, como naquele trabalho do Kiko Goiffman, Valetes em slow motion. Mesmo o Igor ateu reconhece um sentido que talvez nunca tenha percebido antes para as práticas religiosas na prisão. Ele nos aponta as renovadas torturas que surgem até no atendimento médico: baleados com curativo aberto andando descalços no chão imundo da prisão, fraturas que só eram reduzidas três dias depois. É como se a tortura fosse o ponto de encontro de todas as rotinas da prisão: “com o passar dos dias, entretanto, fui-me dando conta de algo muito mais sério: nada ali é fortuito, mas obedece a uma lógica rigorosa, certamente perversa, mas metodicamente calculada”. Socos e tapas, cabeças raspadas, humilhações. “O que é a privação de liberdade, afinal, senão uma forma moderna de tortura, igualmente cruel, embora socialmente aceita?”.

As resistências se forjam mesmo no chão em que pisamos e Igor nos relata sua luta por pensar, por poder ler e escrever, mesmo com restrições incompreensíveis que só corroboram a economia de castigos que rege a administração de uma prisão. Joel Rufino dos Santos nos ensinou que a ética, essa palavra tão gasta, quer dizer “do lugar”. Ninguém mais ético como escritor e militante do que Igor. Convivendo solidariamente com seus companheiros de infortúnio, em total sintonia com todos os humanos que o rodeavam, ao mesmo tempo e corajosamente se diferenciava pela sua luta política. Sua resistência e seu destemido brado “sou preso político” iluminou seu coletivo para outras possibilidades e devires e nos trouxe uma reflexão importante na discussão sobre o caráter político de toda prisão e de todo preso. Igor destaca a importância da distinção do caráter político e de sua neutralização em casos como o das prisões dos Panteras Negras, alguns até hoje nos cárceres do coração do capitalismo. “No dia em que a massa carcerária, e as classes nas quais ela é majoritariamente recrutada, definir-se a lutar decididamente contra a ordem social que a subjuga, abrindo mão das soluções individuais, daremos um passo significativo para a abertura de todas as prisões, grandes e pequenas”. Creio que a própria lucidez e integridade de Igor ajudam a retificar essa discussão sobre a natureza política de toda prisão e de todo prisioneiro; a diferença entre o preso político e o comum é que o primeiro sabe que sua prisão é política. Esse livro sobre a pequena prisão é tão contundente que reafirma a necessidade de repolitizarmos a questão criminal. Quando olhamos a história da questão criminal vemos como ela é naturalizada nos tempos de crise.

Esse grande livro vale por estantes inteiras de livros de criminologia. Seus leitores percorrerão todos os caminhos do grande encarceramento, tal como ele se apresenta no Brasil contemporâneo. Da desconstrução da “impunidade” à constatação da prisão como tortura, esse livro é um importante libelo para as lutas abolicionistas que têm um olhar mais extenso, na direção da derrota do capitalismo. Tenho dito e escrito que contar nossas histórias tristes é o método mais verdadeiro para uma criminologia comprometida com seu povo. Como disse a senhora (“esperava alguém querido sair da masmorra”) quando de sua libertação, quero te dizer, Igor: “Parabéns meu filho, parabéns pela luta!”. Esse seu livro nos ajuda a derrotar a prisão, principalmente por não deixar-te encarcerada a alma para sempre e por honrar de forma tão delicada e forte seus companheiros de tragédia.


*Vera Malaguti Batista é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes (UCM), e Secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC).



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