sexta-feira, 28 de abril de 2017

Declaração do 14º Acampamento Terra Livre: Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos!






A plenária da manhã da 14ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) selou a unificação da luta dos povos indígenas em defesa de seus direitos. O documento final da mobilização, aprovado pela plenária, condena os ataques e ameaças aos direitos originários de forma contundente.

“Denunciamos a mais grave e iminente ofensiva aos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988, orquestrada pelos três Poderes da República em conluio com as oligarquias econômicas nacionais e internacionais”, diz o documento (leia a carta na íntegra abaixo).

O documento final do ATL será protocolado em vários ministérios e no Palácio do Planalto, na tarde de hoje (27/4), durante mais uma marcha dos indígenas na Esplanada dos Ministérios. Também está prevista a visita de uma comitiva de líderes indígenas a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). À noite, à partir das 19h, segue a programação cultural do acampamento, com uma a apresentação musical e a exibição do filme “Martírio”, de Vincent Carelli.

Mais de quatro mil indígenas participam do acampamento. A expectativa inicial da organização era que um pouco mais de 1,5 mil pessoas estivessem na mobilização. A 14ª edição do ATL é a maior da história e segue até esta sexta (28/4).


DECLARAÇÃO DO 14º ACAMPAMENTO TERRA LIVRE


Nós, povos e organizações indígenas do Brasil, mais de quatro mil lideranças de todas as regiões do país, reunidos por ocasião do XIV Acampamento Terra Livre, realizado em Brasília/DF de 24 a 28 de abril de 2017, diante dos ataques e medidas adotadas pelo Estado brasileiro voltados a suprimir nossos direitos garantidos pela Constituição Federal e pelos Tratados internacionais ratificados pelo Brasil, vimos junto à opinião pública nacional e internacional nos manifestar.

Denunciamos a mais grave e iminente ofensiva aos direitos dos povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988, orquestrada pelos três Poderes da República em conluio com as oligarquias econômicas nacionais e internacionais, com o objetivo de usurpar e explorar nossos territórios tradicionais e destruir os bens naturais, essenciais para a preservação da vida e o bem estar da humanidade, bem como devastar o patrimônio sociocultural que milenarmente preservamos.

Desde que tomou o poder, o governo Michel Temer tem adotado graves medidas para desmantelar todas as políticas públicas voltadas a atender de forma diferenciada nossos povos, como o subsistema de saúde indígena, a educação escolar indígena e a identificação, demarcação, gestão e proteção das terras indígenas. Além disso, tem promovido o sucateamento dos já fragilizados órgãos públicos, com inaceitáveis cortes orçamentários e de recursos humanos na Fundação Nacional do Índio (Funai) e com nomeações de notórios inimigos dos povos indígenas para cargos de confiança, além de promover o retorno da política assimilacionista e tutelar adotada durante a ditadura militar, responsável pelo etnocídio e genocídio dos nossos povos, em direta afronta à nossa autonomia e dignidade, garantidos expressamente pela Lei Maior.

No Legislativo, são cada vez mais frontais os ataques aos direitos fundamentais dos povos indígenas, orquestrados por um Congresso Nacional dominado por interesses privados imediatistas e contrários ao interesse público, como o agronegócio, a mineração, as empreiteiras, setores industriais e outros oligopólios nacionais e internacionais. Repudiamos com veemência as propostas de emenda constitucional, projetos de lei e demais proposições legislativas violadoras dos nossos direitos originários e dos direitos das demais populações tradicionais e do campo, que tramitam sem qualquer consulta ou debate junto às nossas instâncias representativas, tais como a PEC 215/2000, a PEC 187/2016, o PL 1610/1996, o PL 3729/2004 e outras iniciativas declaradamente anti-indígenas.

Igualmente nos opomos de forma enfática a decisões adotadas pelo Poder Judiciário para anular terras indígenas já consolidadas e demarcadas definitivamente, privilegiando interesses ilegítimos de invasores e promovendo violentas reintegrações de posse, tudo sem qualquer respeito aos mais básicos direitos do acesso à justiça. A adoção de teses jurídicas nefastas, como a do marco temporal, serve para aniquilar nosso direito originário às terras tradicionais e validar o grave histórico de perseguição e matança contra nossos povos e a invasão dos nossos territórios, constituindo inaceitável injustiça, a ser denunciada nacional e internacionalmente visando à reparação de todas as violências sofridas até os dias de hoje.

Soma-se a essa grave onda de ataques aos nossos direitos o aumento exponencial do racismo institucional e a criminalização promovidos em todo o País contra nossas lideranças, organizações, comunidades e entidades parceiras.

Diante desse drástico cenário, reafirmamos que não admitiremos as violências, retrocessos e ameaças perpetrados pelo Estado brasileiro e pelas oligarquias econômicas contra nossas vidas e nossos direitos, assim como conclamamos toda a sociedade brasileira e a comunidade internacional a se unir à luta dos povos originários pela defesa dos territórios tradicionais e da mãe natureza, pelo bem estar de todas as formas de vida.

Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena!
Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos!

ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – APIB
MOBILIZAÇÃO NACIONAL INDÍGENA

Inserido por: Administrador em 27/04/2017.

Fonte da notícia: Mobilização Nacional Indígena Compartilhar


sábado, 22 de abril de 2017

A indispensável Reforma Política



Lista de Fachin comprova: todo o sistema está  contaminado. Revelações podem sacudir cenário político, mas
exigem da esquerda atitude corajosa. Haverá?


Por Antonio Martins | Imagem: Angeli


Há um elefante sob o tapete da política institucional brasileira, desde ontem. Ao reconhecer que há sinais de verdade nas delações dos executivos da Odebrecht e pedir investigação sobre os expoentes máximos dos principais partidos do país, o ministro Edson Fachin, do STF, criou um fato político extraordinário. Se interpretado corretamente e se – mais importante – houver coragem para tirar dele todas as suas dolorosas consequências, ele poderá reverter a maré de retrocessos que varre o país. Porque seus três sentidos principais são claros.

Primeiro. Enfraqueceu-se dramaticamente, porque tornou-se inverossímil, o discurso que associava corrupção a esquerda. Este discurso marca o cenário político e o debate de ideias no Brasil há doze anos, desde o “Mensalão”. Levou ao golpe parlamentar de 2016. E manteve eficácia depois. No governo Temer, cada ataque aos direitos sociais, cada nova concessão às elites, é justificado como uma suposta correção de rumos, como um ato para por fim à “lambança” que a mídia associa – até agora com sucesso – aos governos Lula e Dilma.

A lista de Fachin desmonta esta história da carochinha, esta conversa para brasileiro dormir. Ela escancara que a corrupção está no DNA do sistema político. As eleições são caríssimas. Ninguém se elege sem dinheiro das maiores empresas. Todas elas exigem, como contrapartida, que os governantes executem seus projetos; que os senadores, deputados e vereadores votem leis que as favorecem. A representação popular está sequestrada. Na lista de Fachin estão todos os ministros importantes de Temer; todos os tucanos emplumados – Aécio, Serra, Alckmin; todos os ministros importantes do governo Temer; todos os cardeais do Congresso que comandam a aprovação das leis antissociais. O álibi acabou, o discurso esvaziou-se, o rei está nu. Nenhum desses retrocessos poderá ser adotado a pretexto de “limpar” o país. Faz enorme diferença.

O segundo sentido da lista de Fachin é ainda mais crucial – porém, doloroso também para a esquerda histórica. Ao chegar aos governos, ela foi capturada pelas lógicas de conluio entre o poder econômico e o politico. Lula e Dilma não tocaram nos direitos dos humildes – nem nos privilégios da Casa Grande. Nos seus governos, as empreiteiras, os bancos, as grandes empresas multinacionais e as “campeãs nacionais” continuaram dando as cartas.

Águas passadas não movem moinhos. Mas haverá disposição de agir diferente, no futuro? Lula é candidatíssimo em 2018. Chico Alencar também. Mas o que o PT, o PSOL ou o PCdoB, por exemplo, têm a dizer sobre a Reforma Política? Se chegarem ao governo, continuarão reféns de um Congresso eleito com dinheiro do poder econômico e subordinado aos seus lobbies?

O terceiro sentido da lista da Odebrecht pode ser encarado como uma provocação que não é dirigida nem ao sistema representativo, nem à esquerda histórica – mas aos movimentos e às pessoas que querem Outra Política. Não é o momento de assumirmos a responsabilidade de fazer, nós mesmos, aquilo que cobramos — em vão — dos que sabemos que não nos representam? Intuímos, com muito realismo, que a Reforma Política não virá dos partidos. Mas é cômodo criticá-los.

Se a falsidade do sistema politico está exposta; e se já sabemos que a esquerda deste sistema acomodou-se a ele, por que não assumir o protagonismo? Uma Reforma Política profunda pode ser, também, popular. Pode começar, por exemplo, com uma proposta muito concreta: submeter a referendo revogatório, todas as principais medidas adotadas no governo Temer. A terceirização. A entrega do Pré-Sal. O congelamento dos gastos sociais. Os obstáculos à demarcação de terras indígenas e dos povos originários. A contra-reforma da Previdência, caso o Congresso ouse aprová-la.

Uma Reforma Política autêntica não deve ser feita para aperfeiçoar o sistema de representação – mas para questioná-lo, colocá-lo em xeque e, em especial, criar mecanismos de democracia direta e participativa. Ela pode incluir, por exemplo, facilitar os plebiscitos e referendos sobre temas cruciais; permitir candidaturas autônomas, independentes de partidos, a todos os postos eletivos; limitar os salários dos representantes; eliminar privilégios como o custeio da educação e saúde privadas; instituir o Orçamento Participativo, inclusive por meios eletrônicos, em todos os níveis de governo; submeter os mandatos a consultas revogatórias; prever mecanismos para que os próprios cidadãos intervenham na redação de leis complexas, que exigem saberes específicos.

Subitamente, o caráter corrupto e primitivo do sistema político brasileiro está exposto. Tudo indica, também, que a disposição de reformá-lo não partirá de seu interior. A questão é: nós, que sabemos de seus limites e misérias, estamos dispostos lutar pela transformação? Ou transferiremos, nós também, esta responsabilidade?


quarta-feira, 12 de abril de 2017

Para desvendar o elitismo do Judiciário brasileiro


Tese de Doutorado começa mapear a teia de relações
aristocráticas e capitalistas que torna Justiça
tão favorável ao poder e hostil aos pobres



Por Cida de Oliveira, na RBA


Há, no sistema jurídico nacional, uma política entre grupos de juristas influentes para formar alianças e disputar espaço, cargos ou poder dentro da administração do sistema. Esta é a conclusão de um estudo do cientista político Frederico Normanha Ribeiro de Almeida sobre o Judiciário brasileiro. O trabalho é considerado inovador porque constata um jogo político “difícil de entender em uma área em que as pessoas não são eleitas e, sim, sobem na carreira, a princípio, por mérito”.

Para sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada pela professora Maria Tereza Aina Sadek, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Almeida fez entrevistas, analisou currículos e biografias e fez uma análise documental da Reforma do Judiciário, avaliando as elites institucionais, profissionais e intelectuais.

Segundo ele, as elites institucionais são compostas por juristas que ocupam cargos chave das instituições da administração da Justiça estatal, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça, tribunais estaduais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Já as elites profissionais são caracterizadas por lideranças corporativas dos grupos de profissionais do Direito que atuam na administração da Justiça estatal, como a Associação dos Magistrados Brasileiros, OAB e a Confederação Nacional do Ministério Público.

O último grupo, das elites intelectuais, é formado por especialistas em temas relacionados à administração da Justiça estatal. Este grupo, apesar de não possuir uma posição formal de poder, tem influência nas discussões sobre o setor e em reformas políticas, como no caso dos especialistas em direito público e em direito processual.

No estudo, verificou-se que as três elites políticas identificadas têm em comum a origem social, as universidades e as trajetórias profissionais. Segundo Almeida, “todos os juristas que formam esses três grupos provêm da elite ou da classe média em ascensão e de faculdades de Direito tradicionais, como o Faculdade de Direito (FD) da USP, a Universidade Federal de Pernambuco e, em segundo plano, as Pontifícias Universidades Católicas (PUC’s) e as Universidades Federais e Estaduais da década de 60”.

Em relação às trajetórias profissionais dos juristas que pertencem a essa elite, Almeida aponta que a maioria já exerceu a advocacia, o que revela que a passagem por essa etapa “tende a ser mais relevante do que a magistratura”. Exemplo disso é a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), indicados pelo Presidente da República, ser ou ter exercido advocacia em algum momento de sua carreira.

O cientista político também aponta que, apesar de a carreira de um jurista ser definida com base no mérito, ou seja, via concursos, há um série de elementos que influenciam os resultados desta forma de avaliação. Segundo ele, critérios como porte e oratória favorecem indivíduos provenientes da classe média e da elite socioeconômica, enquanto a militância estudantil e a presença em nichos de poder são fatores diretamente ligados às relações construídas nas faculdades.

“No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos. É exigido como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram”, afirma o pesquisador.

Por fim, outro fator relevante constatado no levantamento é o que Almeida chama de “dinastias jurídicas”. Isto é, famílias presentes por várias gerações no cenário jurídico. “Notamos que o peso do sobrenome de famílias de juristas é outro fator que conta na escolha de um cargo-chave do STJ, por exemplo. Fatores como estes demonstram a existência de uma disputa política pelo controle da administração do sistema Judiciário brasileiro”, conclui Almeida.


terça-feira, 11 de abril de 2017

Neoliberalismo, ordem contestada


 
Movimento "Nuit Debout" (Noites Desperta), que contestou o neoliberalismo  pela esquerda
em Paris, 2016. Na França, no entanto,  principal contestação é de direita. Segundo
Anderson, um dos motivos é o fato dela ter propostas mais claras contra
a tirania da União Européia. 


Sistema sofre pressão inédita – da esquerda e da direita – mas resiste, apoiando-se no medo. Por que o populismo retrógrado ainda é mais forte. Como mudar o jogo


Por Perry Anderson, no Le Monde Diplomatique | Tradução: Antonio Martins


O termo “movimentos anti-sistêmicos” era comumente usado, há 25 anos(1), para caracterizar forças de esquerda, em revolta contra o capitalismo. Hoje, ele não perdeu relevãncia no Ocidente, mas seu sentido mudou. Os movimentos de revolta que se multiplicaram na última década não se rebelam mais contra o capitalismo, mas contra o neoliberalismo – os fluxos financeiros desregulados, os serviços privatizados e a desigualdade social crescente, uma variante específica do domínio do capital adotada na Europa e América desde aos anos 1980. A ordem econômica e política resultante foi aceita indistintamente por governos de centro-direita e centro-esqueda, de acordo com o princípio central do pensamento único e do dito de Margareth Thatcher, segundo o qual “não há aloternativa”. Dois tipos de movimento agora mobilizam-se contra este sistema; e a ordem estabelecida estigmatiza-os – sejam de direita ou de esquerda – como a “ameaça populista”.

Não por acaso, estes movimentos emergiram antes na Europa que nos Estados Unidos. Sessenta anos após o Tratado de Roma, a razão é clara. O mercado comum europeu de 1957, um desdobramento da comunidade de carvão e aço do Plano Schuman – concebido tanto para prevenir o retrocesso a um século de hostilidades franco-alemãs quanto para consolidar o crescimento econômico pós-guerra na Europa Ocidental – foi produto de um período de pleno emprego e aumento dos rendimentos populares, a consolidação da democracia representativa e dos sistemas de Bem-estar Social. Seus arranjos comerciais pesavam muito pouco na soberania dos Estados-Nações que o compunham – e à época, foram fortalecidos, não enfraquecidos. Os orçamentos e as taxas de câmbio eram determinadas internamente, por parlamentos que prestavam contas a seu eleitorado nacional, e nos quais políticas contrastantes eram debatidas com vigor. Tentativas da Comissão de Bruxelas para tornar-se mais poderosa foram notoriamente rechaçadas em Paris. Não apenas a França de Charles de Gaulle mas também a Alemanha Ocidental de Konrad Adenauer, ainda que de forma mais discreta, perseguia políticas externas independente dos Estados Unidos e capazes de desafiá-los.

O fim dos trinta anos gloriosos impôs uma grande mudança a esta construção. A partir de meados dos 1970, o mundo capitalista avançado mergulhou num longo declínio, analisado pelo historiador norte-americano Robert Brenner(2): taxas de crescimento mais baixas e aumentos de produtividade menores a cada década, menos emprego e maior desigualdade, pontuados por recessões agudas. A partir dos 1980, as orientações políticas foram revertidas, num processo que começou no Reino Unido e nos Estados Unidos mas espalhou-se rapidamente para a Europa. O sistemas de Bem-estar foram cortados, as indústrias e serviços públicos foram privatizados e os mercados financeiros, desregulamentados. O neoliberalismo havia chegado. Na Europa, ele adiquiriu com o tempo uma forma institucional particularmente rígida: o número de Estados-membros do que se tornou a União Europeia (UE) multiplicou-se mais de quatro vezes, incorporando uma vasta zona de baixos salários a leste.

Austeridade draconiana

Da união monetária (1990) ao Pacto de Estabilidade (1997) e à Lei do Mercado Único (2011), os poderes dos parlamentos nacionais foram esvaziados por uma estrutura supranacional de autoridade burocrática blindada da vontade popular, exatamente como o economista ultraliberal Friedrich Hayek havia profetizado. Com esta maquinária instalada, a “austeridade” draconiana pode ser imposta sobre eleitorados desprotegidos, sob a direção conjunta da Comissão Europeia e de uma Alemanha reunificada – agora o Estado mais poderoso da União, onde pensadores influentes anunciaram de modo cândido sua vocação para hegemon continental. Externamente, no mesmo período, a União Europeia e seus membros deixaram de jogar qualquer papel relevante no mundo, tornando-se a guarda avançada de novas políticas de guerra fria contra a Rússia – articuladas pelos Estados Unidos e pagas pela Europa.

Por isso, não é surpresa que a casta cada vez mais oligárquica da União Europeia, desafiando a vontade popular em sucessivos referendos e forçando diktats orçamentários nas leis constitucionais, tenha gerado tantos movimentos de protesto contra si. Qual o panorama destas forças?

No coração da UE pré-expansão, da era da guerra fria (a topografia da Europa Oriental é tão diferente que pode ser posta à parte, para os propósitos deste texto), movimentos de direita dominam a oposição ao sistema na França (Frente Nacional), Holanda (Partido da Liberdade, PVV), Áustria (Partido da Liberdade da Áustria), Suécia (Democratas Suecos), Dinamarca (Partido do Povo Dinamarquês), Finlândia (Finlandeses Verdadeiros), Alemanha (Alternativa para a Alemanha, AfD) e Grã-Bretanha (Partido pela Independência do Reino Unido, UKIP).

Na Espanha, Grécia e Irlanda, movimentos de esquerda predominaram: Podemos, Syriza e Sinn Fein. Em caso único, a Itália tem tanto um forte movimento anti-sistêmico de direita (a Lega) quanto um ainda maior, que atravessa a fronteira esquerda/direita: o Movimento Cinco Estrelas (M5S). Sua retórica extra-parlamentar sobre impostos e imigração coloca-o na direita, mas ele está à esquerda por seu histórico parlamentar de oposição consistente às medidas neoliberais do governo Matteo Renzi (particularmente sobre Educação e mercado de Trabalho) e seu papel central ao derrotar os esforços de Renzi para enfraquecer a Constituição democrática da Itália(3). A todos estes pode ser acrescentado o Momentum, movimento que emergiu na Grã-Bretanha por trás da inesperada eleição de Jeremy Corbyn para a liderança do Partido Trabalhista. Todos os movimentos de direita, exceto a AfD, precedem o crash de 2008; alguns têm histórias que remontam aos 1970 ou antes. O Syriza decolou, e o M5S, Podemos e Momentum nasceram como resultados diretos da crise financeira global.

O fato central é o peso maior do conjunto de movimentos de direita em relação aos de esquerda, tanto em número de países em que são maios fortes quanto em força eleitoral. Ambos são reações à estrutura do sistema neoliberal, que tem sua expressão mais aguda e concentrada na EU atual, com sua ordem fundada na redução e privatização de serviços públicos, no abandono do controle democrático e representação; e na desregulação dos fatores de produção. As três tendências estão presentes em plano nacional na Europa e em outras partes, mas são mais intensas no espaço europeu – como atestam a tortura da Grécia, o atropelamento dos referendos e o tráfego humano. Na arena política, eles suscitam temas de preocupação popular, convocando protestos contra o sistema relacionados à “austeridade”, soberania e imigração. Os movimentos anti-sistêmicos diferenciam-se pelo peso que dão a cada tema – ou com a cor da paleta neoliberal que mais hostilizam.

Os movimentos de direita predominam sobre os de esquerda porque desde o início apoderaram-se do tema da imigração, estimulando reações xenofóbicas e racistas para obter apoio amplo entre os setores mais vulneráveis da população. Com exceção dos movimentos na Holanda e Alemanha, que acreditam em liberalismo econômico, esta reação está (na França, Dinamarca, Suécia e Finlândia) tipicamente ligada à defesa – e não à denúncia – do Estado de Bem-estar social. Afirma-se que a chegada de imigrandes sabota-o. Mas seria errado atribuir a vantagem da direita a esta carta. Em casos importantes – a Frente Nacional (FN) francesa é o mais significativo –, ela apoia-se também em outros temas.

A união monetária é o exemplo mais óbvio. A moeda e o banco central únicos, concebidos no acordo de Maastricht, produziram, num único sistema, a imposição da “austeridade” e a negação da soberania popular. Os movimentos de esquerda atacam-no tão veementemente como os de direita, ou até mais. Mas as soluções que propõem são menos radicais. Na direita, a FN e a Lega têm remédios claros para a moeda única e a imigração: sair do euro e proibir a entrada de estrangeiros. Na esquerda, com exceções isoladas, há respostas ambíguas. No máximo, propõem-se ajustes técnicos à moeda única, complicados demais para ter audiência popular; e alusões vagas, envergonhadas, a quotas para imigrantes. Nenhuma destas propostas é tão facilmente inteligível para os eleitores como as proposições diretas da direita.

O desafio da migração crescente

A imigração e a união monetária criam, por razões históricas, dificuldades especiais para a esquerda. O Tratado de Roma foi estabelecido sob a premissa do livre movimento de capital, mercadorias e trabalho no interior do Mercado Comum Europeu. Enquanto a Comunidade Europeia esteve restrita aos países da Europa Ocidental, os fatores de produção para os quais a mobilidade importava eram o capital e as mercadorias: a migração entre fronteiras dentro da comunidade era bem modesta. Mas no final dos 1960, o trabalho imigrante das antigas colônias africanas, asiáticas e caribenhas, e das regiões semi-coloniais do antigo Império Otomano, já era numericamente significativo. A expansão da UE para a Europa Oriental ampliou de modo agudo a migração intra-União. Finalmente, aventuras neo-imperiais nas antigas colônias do Mediterrâneo – a blitz militar na Líbia e o incentivo por procuração à guerra civil na Síria – projetaram grandes ondas de refugiados na Europa, além de terror retaliatório por militantes de uma região onde o Ocidente permanece instalado como senhor, com suas bases, bombardeiros e forças especiais.

Tudo isso alimentou a xenofobia. Os movimentos anti-sistêmicos de direita alimentaram-se dela e os movimentos de esquerda combateram-na, leais à causa do internacionalismo humanitário. As mesmas ligações históricas levaram a maior parte da esquerda a rejeitar qualquer pensamento de fim da união moetária, vista como uma regressão a um nacionalismo responsável pelas catástrofes europeias do passado. O ideal de União Europeia ainda é, para estas forças, um valor central. Mas a Europa concreta, de integração neoliberal, é mais coerente que qualquer das alternativas até agora propostas. “Austeridade”, oligarquia e mobilidade de fatores de produção formam um sistema interconectado. A mobilidade dos fatores não pode ser separada da oligarquia. Historicamente, nenhum eleitorado europeu foi consultado jamais sobre a chegada em grande escala de trabalho estrangeiro; ela ocorreu pela porta dos fundos. A negação da democracia, que incorporou-se à estrutura da UE, excluiu de início qualquer voz na composição de suas populações. A rejeição desta Europa por movimentos de direita é politicamente mais consistente que a rejeição pela esquerda, outra razão para a vantagem da direita.

Niveis inéditos de descontentamento dos eleitores

A chegada do M5S, Syriza, Podemos e AfD marcou um salto no descontentamento popular na Europa. As pesquisas mostram agora rejeição nunca antes vista à UE. Mas, sejam de direita ou esquerda, o peso eleitoral dos movimentos anti-sistêmicos permanece limitado. Nas últimas eleições europeias, os três melhores resultados da direita – UKIP, FN e o Partido do Povo da Dinamarca – tiveram em torno de 25% do voto nacional. Em eleições nacionais, o número médio na Europa Ocidental, para todas estas forças de esquerda e direita, é cerca de 15%. Esta percentagem do eleitorado representa pouco perigo ao sistema; 25% podem representar uma dor de cabeça, mas o “perigo populista” que a mída alardeia permanece muito modesto ainda. Os únicos casos em que movimentos anti=sistêmicoos chegaram ao poder, ou pareceram próximos de fazê-lo, são aqueles onde uma desproporção proposital das cadeiras do Parlamento, construída como um prêmio para fortalecer o establishment, saiu pela culutra ou ameaça fazê-lo, como na Grécia e Itália.

Na verdade, há uma larga distância entre o graude desilusão popular com a UE neoliberal – no verão passado, maioras expressaram, na França e Espanha, sua aversão a ela, e mesmo na Alemanha apenas metade dos entrevistados têm uma opinião positiva – e a extensão do apoio a forças que se declaram ontra ela. Indignação ou repulsa diante da UE tornara-mse comuns, mas há algum tempo o determinante fundamental dos padrões de voto na Europa tem sido, e é, o medo. O status quo sócio-econômico é amplamente detestado. Mas é regularmente ratificado nas pesquisas, com a reeleição dos partidos responsáveis por ele, devido ao medo de que sacudir a ordem e alarmar os mercados torne a miséria pior. A moeda única não acelerou o cresciento na Europa, e infligiu aridez aguda nos países do sul mais afetados. Mas a perspectiva de uma saída aterroriza mesmo aqueles que sabem o quanto já sofreram. O medo deerrota a raiva. Por isso, a aquiescência do eleitorado grego diante da capitulação do Syriza a Bruxelas, as decepções do Podemos na Espalha e as trapalhadas do Partido de Esquerda na França. O sentido geral é o mesmo, em todos os lugares. O sistema é ruim. Confrontá-lo é arriscar-se à vingança.

O que explica, então, o Brexit? A imigração em massa é outro medo que atravessa a UE, e foi agitada no Reino Unido pela campanha pela Retirada, em que que Nigel Farage foi um orador e organizador notável, junto a consevadores destacados. Mas a xenofobia sozinha não é suficiente para superar o medo do colapso econômico. Na Inglaterra, e em outros países, ela cresceu à medida em que um governo depois do outro mentiu sobre a escala da imigração. Mas se o referendo sobre a UE tivesse sido apenas uma disputa entre estes dois medos, como o establishment político desjava, a opção por Permanecer teria certamente vencido por uma boa margem, como ocorreu em 2014, no referendo sobre a independência da Escócia.

Houve outros fatores. Depois de Maastricht, a classe política britânica rejeitou a camisa de força do euro, apenas para buscar um neoliberalismo local mais drástico que qualquer outro no continente. Primeiro, a arrogância financeirizada do Novo Trabalhismo, que afundou a Grã-Bretanha numa crise bancária antes de todos os outros países europeus. Em seguida, um governo Conservador-Liberal de “austeridade” mais drástica que qualquer politica gerada por constrangimento europeu. Do ponto de vista econômico, os resultados desta combinação são únicos. Nenhum outro país europeu foi tão polarizado regionalmente, entre uma metrópole na bolha, de alta renda (Londres e Sudeste) e um Norte e Nordeste empobrecidos, desindustrializados. Onde os eleitores sentiram que tinham pouco a perder se votassem pela Retirada (uma perspectiva mais abstrata do que deixar o euro), não importou o que poderia acontecer à City e aos invetimentos estrangeiros. Nesse caso, o Medo importou menos que o Desespero.

Também do ponto de vista político, nenhum outro país tem um sistema eleitoral tão escancaradamente blindado. Em 2014, sob um regime de representação proporcional, o UKIP tornou-se o maior partido inglês no Parlamento Europeu. Mas um ano depois, com 13% dos votos, ele obteve um único assento em Londres, enquanto o Partido Nacional Escocês, com menos de 5%, conquistou 55 cadeiras. Sob os regimes intercambiáveis de Trabalhistas e Conservadores, produzidos por este sistema, os eleitores da base da pirâmide de renda abandonaram as eleições. Mas ao adquiriem subitamente, por uma vez, uma chance real de decidiu um referendo nacional, eles voltaram para tomar a decisão que desolou Tony Blair, Gordon Brown e David Cameron.

Por fim, e de modo decisivo, há a diferença histórica que separa a Grã-Bretanha do continente. Além de ter sido, por séculos, um império que apequenou culturalmente todos os rivais europeus, o país não sofreu qualquer derrota, invasão ou ocupação nas duas guerras mundiais – ao contrário da França, Alemanha, Itália e a maior parte do continente. Por isso, a expropriação dos poderes locais por uma burocracia na Bélgica causou mais atrito que em outros lugares. Por que um Estado que derrotou duas vezes o poder de Berlim deveria se curvar à intromissão insolente de Bruxelas ou de Luxemburgo. Temas relacionados a identidade podem desencadear reações mais diretas que no resto da UE. Por isso, a fórmula normal – o medo de vingança econômica supera o medo da imigração desconhecida – não funcionou, curvado por uma combinação de desespero econômico e auto-estima nacional.

O salto no escuro dos EUA

Estas foram também as condições em que, nos EUA, um candidato presidentcial republicano de história e temperamento sem precedentes – detestável para a opinião tradicional dos dois partidos, sem nenhum esforço para conformar-se aos códigos aceitos de conduta civil ou política e mal visto por muitos de seus eleitores – pode atrair um número suficiente de trabalhadores industriais desprezados e ganhar a eleição. Como na Grã-Bretanha, o desespero superou a apreensão, nas regiões proletárias desindustrializadas. Também lá, de forma muito mais crua e aberta, num país com uma hisória mais profunda de racismo, os imigrantes foram denunciados e exigiram-se barreiras físicas e burocráticas. Acima de tudo, o império não era uma memória distante do passado, mas um atributo vívido do presente e uma exigência natural do futuro. No entanto, tinha sido posto de lado pelos poderosos em nome de uma globalização que significou ruína das pessoas comuns e humilhação de seu país. O slogan de Trump foi Fazer os EUA grandes de novo – prósperos e dispostos a descartar os fetiches do livre movimento de bens e trabalho, vitoriosos em ignorar as barreiras e piedades do multilateralismo. Ele não errou ao proclamar que seu triunfo foi um Brexit em grande escala. Foi uma revolta muito mais espetacular, porque não se restringiu a um único item – simbólico, para a maioria – e não contava com nenhum respeito do establishment ou bênção editorial.

A vitória de Trump deixou a classe política europeia – o centro-direita e o centro-esquerda unidos – em desencanto ultrajado. Romper as convenções estabelecidas sobre migração é ruim demais. A UE pode ter tipo poucos escrúpulos para encurralar os refugiados na Turquia de Recep Tayyip Erdogan, com suas dezenas de milhares de presos políticos, tortura policial e suspensão do império da lei; ou para fazer vistas grossas às barricadas de arame farpado na fronteira norte da Grécia, para mantê-los bloqueados nas ilhas do Mar Egeu. Mas a UE, em respeito à decência diplomática, nunca glorificou abertamente suas exclusões. A desinibição de Trump nesta matéria não afeta diretamente a União. O que afeta, e causa preocupações muito mais sérias, é sua rejeição à ideologia do livre movimento dos fatores de produção e, ainda mais, seu desdém sem cerimônia pela OTAN e seus comentários sobre uma atitude menos beligerante diante da Rússia. Se alguma destas atitudes é mais de um gesto a ser em breve esquecido, como muitas de suas promessas domésticas, ainda falta saber. Mas sua eleição cristlizou uma diferença significativa entre diversos movimentos anti-sistêmicos da direita ou de um centro ambíguo e partidos da esuerda estabelecida – rosados ou verdes. Na França e Itália, movimentos de direita opuseram-se de modo consistente a políticas de nova guerra fria e a aventuras militares aplaudidas por partidos da esquerda – incluindo a blitz sobre a Líbia e as sanções contra a Rússia.

O referendo britânico e a eleição norte-americana foram convulsões anti-sistêmicas da direita, porém acompanhadas por levantes anti-sistêmicos de esquerda (o movimento de Bernie Sanders nos EUA e o fenômeno Corbyn, no Reino Unido) menores em escala, embora mais surpreendentes. Ainda não se sabe quais serão as consequências dos dois fenômenos, embora certamente mais limitadas que as previsões atuais. A ordem estabelecida não foi nem de longe derrotada nos dois países e, como demonstrou a Grécia, ela é capaz de absorver e neutraliazar revoltas de qualquer sentido, com rapidez impressionante. Entre os anticorpos que ela já gerou, estão simulacros yuppies das rupturas populistas (Albert Rivera na Espanha, Emmanuel Macron na França), que investem contra os impasses e corrupções do presente e prometem uma política mais limpa e dinâmica no futuro, além dos partidos decadentes.

Para os movimentos anti-sistêmicos de esquerda, a lição dos anos recentes é clara. Se não desejam ser superados pelos movimentos de direita, não podem ser menos radicais em atacar o sistema – e precisam ser mais coerentes em sua oposição a ele. Isso significa, na Europa, admitir a possibilidade de que a UE pode ter se tornado tão atrelada à construção neoliberal que reformá-la já não é seriamente concebível. Ela precisaria ser desfeita, antes que algo melhor possa ser construído – ou por meio de rupturas em face da UE real, ou reconstruindo a Europa em outras bases, jogando Maastricht às chamas. Estas possibilidades provavelmente só serão reais em caso de uma crise econômica nova, e mais profunda.

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1  Por Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi e outros

2 Robert Brenner, The Economics of Global Turbulence: the Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long Downturn 1945-2005, Verso, Nova York, 2006.

3 Raffaele Laudani, ‘Renzi’s fall and Di Battista’s rise’, Le Monde diplomatique, edição em inglês, Janeiro de 2017


Perry R. Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido por seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do Marxismo Ocidental do pós-1956. É irmão do historiador e cientísta político Benedict Anderson. 


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