quarta-feira, 28 de abril de 2021

Sem Censo, Brasil fecha os olhos para si


Há 150 anos país examina a si mesmo por meio de recenseamentos. Nem a ditadura pós-64 os ameaçou. Qual sua história. Por que, sem eles, é impossível fazer políticas públicas. Como seu cancelamento é ataque de Bolsonaro ao futuro




Por Gilberto Maringoni

É iniciativa das mais graves o cancelamento do recenseamento demográfico neste ano. Equivale a jogar fora os instrumentos de um avião em pleno voo, no meio de um nevoeiro.

O governo Bolsonaro entrará para a História como o governo do genocídio e da miséria. Ficará a nu a brutalidade das classes dominantes brasileiras – hoje genericamente conhecidas como Faria Lima – em aliança com Forças Armadas que, ao longo de dois séculos, foram agentes de um sem número de massacres e quebras de legalidade. O trato que dão à pandemia representa sua síntese, seu símbolo e a absoluta impossibilidade de que possam esconder seus propósitos.

Apagamento da História

Mas o governo Bolsonaro também ficará para a posteridade como aquele que mais longe foi na busca de apagar a História, através da tentativa de bloquear nossa possibilidade de autoconhecimento. É o governo da desconstrução da Nação, esse conceito subjetivo e de difícil classificação, que, no entanto, torna possível a montagem do Estado, de sua superestrutura e do próprio espaço público em que se dá a disputa política.

Trata-se de algo que nem a ditadura militar ousou. E nada expressa melhor essa tentativa de destruição que o cancelamento do censo.

Bolsonaro não está adiando simplesmente o maior levantamento sobre o que somos, como somos, o que temos, qual nossa renda, nossos grau de instrução formal, nossas cores, etnias, gêneros etc. etc. Ele quer impedir que nos olhemos no espelho e daí tiremos decorrências.

Censo não se improvisa

Rescenseamento não é algo se se prepare de uma hora para outra. Trata-se da maior e mais ousada operação logística do país, que demanda de dois a três anos de preparação e mais um de tabulação e interpretação de dados recolhidos, além do período de coleta de informações em todos os lares e locais de concentrações humanas de norte a sul. Mobiliza centenas de milhares de trabalhadores especializados em demografia, geografia, políticas públicas, sociologia, história, psicologia, urbanismo, estatística, saúde, segurança, direito e uma gama enorme de pesquisadores que irão bater de porta em porta, munidos de um complexo questionário. Sobre este, o inacreditável Paulo Guedes propôs limitar o número de perguntas. Como argumento, o sujeito disse o seguinte: “Se perguntar demais você vai acabar descobrindo coisas que nem queria saber”.

Sem censo – e sem trocadilho aqui! – não se fazem políticas públicas, como vários especialistas têm assegurado na imprensa. Também não se faz investimento privado algum nas áreas produtivas, de serviços, de estratégias agrícolas e tudo o mais. Como se saberá o perfil de renda dos brasileiros para a instalação de uma escola, uma unidade produtiva, de uma loja, ou de uma empresa de qualquer ramo de atividades?

Entre 1872 a 2010, o Brasil realizou 12 recenseamentos. Foram eles os de 1872, 1890, 1900, 1910, 1920, 1930, 1940 (o primeiro realizado pelo IBGE), 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 (atrasado em um ano por problemas burocráticos), 2000 e 2010. Como se vê, a regularidade de um por década nunca falhou na República.

Censo e Nação

A ideia de Nação no Brasil e a consolidação do Estado nacional nascem justamente no período da realização de nosso primeiro levantamento populacional.

As décadas de 1860-70 foram marcadas internacionalmente por uma nova fase no capitalismo global, pautados pelo fenômeno socioeconômico denominado de II Revolução Industrial. Esse processo, na verdade, expressa a constituição de uma nova fase de concentração de capital nos países ricos. Ela abre caminho para pesquisas científicas de longo curso, para a constituição de gigantescos monopólios industriais e financeiros e pelo advento de robustos mercados internos de massa. Um novo período histórico se abria, o do imperialismo. São os tempos da centralização do Estado nos EUA, da unificação da Alemanha, da Itália, da Argentina, da construção do Estado mexicano, de sua modernização no Japão, entre outros, e pela exacerbação dos nacionalismos na Europa (vale apena ler Nações e nacionalismos desde 1870, coletânea de artigos de Eric Hobsbawm).

A versão brasileira do fenômeno se dá com o fim da Guerra do Paraguai e tem na realização do censo de 1872 sua bússola. Entram no jogo a supremacia do café como principal produto exportável, o fim das rebeliões regionais do período regencial, o início do debate na cúpula do poder sobre o fim da escravidão, e o início do lançamento de um movimento republicano conservador. A unidade territorial se consolidava e a monarquia iniciava sua derrocada.

O escritor e historiador José Veríssimo (1857-1916) escreveu o seguinte, em sua História da literatura brasileira (1912), ao aludir o impacto da Guerra da Tríplice Aliança entre a população:

“Pela primeira vez depois da Independência (…) sentiu o povo brasileiro praticamente a responsabilidade que aos seus membros impõem estas coletividades chamadas nações. Ele, que até então vivia segregado nas suas províncias, ignorando-se mutuamente, encontra-se agora fora das estreitas preocupações bairristas do campanário, num campo propício para estreitar a confraternidade de um povo, o campo de batalha. (…) Houve enfim uma vasta comunicação interprovincial do Norte para o Sul, um intercâmbio nacional de emoções, cujos efeitos se fariam forçosamente sentir na mentalidade nacional”.

Veríssimo – com algum exagero retórico – aludia às primeiras manifestações populares sobre o que era ser brasileiro. O diferencial essencial era não ser paraguaio (não vamos aqui entrar no debate da guerra). Vale é ressaltar que a noção de como – ou o quê – era o país, vaga até então e existente em sua maior parte na dinâmica da burocracia imperial, começa a tomar corpo na base da sociedade.

Essa percepção tinha, no entanto, muito de subjetivismo. Poucos eram os estudos e levantamentos científicos sobre a população, sua distribuição geográfica, hábitos e modos de vida.

O primeiro levantamento

A grande empreitada visando a jogar luz nessas questões foi a realização do primeiro censo oficial do Brasil, cujos dados começaram a ser coletados em 1872. Somente quatro anos depois, os números foram tabulados e divulgados. Os indicadores estarreceram alguns setores. O jornal A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo), por exemplo, estampou em primeira página uma contundente matéria, sob o título “Algarismos eloquentes”:

“Estão findos os trabalhos de estatística da população do império. (…) Vejamos o que dizem [os dados] a propósito do nível intelectual de nossa população.

Não é assunto propriamente novo, mas com certeza muita gente ainda não prestou-lhe a devida atenção, embora seja eloquentemente triste e tristemente poderoso.

Está orçada a população do império, conta redonda, em dez milhões de almas.

Numa massa total, conta-se como sabendo ler:

Homens: 1.012.097
Mulheres: 550.981
Ao todo: 1.563.078

Conta redonda de analfabetos: oito milhões e quinhentos mil! (…) Esse desolador e gravíssimo fato é a explicação primeira e mais radical de nossas misérias nacionais.

Somos um povo de analfabetos!”

O censo revelou a extensão de nossas chagas sociais, os números da escravidão e assustou as oligarquias.

Uma das decorrências foi o projeto dessas camadas de tentar trocar de povo. Isso se deu com a diretriz de embranquecer o Brasil importando imigrantes europeus pelas décadas seguintes. Mas também possibilitou, ao longo do século XX que se tomassem iniciativas desenvolvimentistas e inclusivas. Foi com a leitura dos dados dos sucessivos recenseamentos que o Brasil deixou de ser uma imensa fazenda de café em 1930 e emergiu como país industrializado e moderno a partir de 1980. Repetindo: censo é ferramenta essencial na construção do Estado.

Sem um levantamento meticuloso e totalizante, o conhecimento objetivo sobre o Brasil restringir-se-á a projeções estatísticas a partir do censo de 2010, feito em uma realidade totalmente diversa, de um país em crescimento e sem pandemia. Como saberemos quais os setores mais atingidos pela doença, pela fome e pela violência? Como saberemos onde estão e quais são as novas carências?

Teremos uma percepção impressionista e fragmentada de nós mesmos, imprecisa e grosseira — aberta a todo tipo de preconceito –, incapaz de nos servir de guia para o que quer que seja.

Nenhum governo brasileiro da República teve a desfaçatez de não priorizar a realização do censo e de impedir que nos mirássemos no espelho dessa forma.

Bolsonaro busca com isso também bloquear a constatação da profundidade da hecatombe que provoca há mais de dois anos e impedir nossa recuperação posterior. O cancelamento do censo visa interditar a possibilidade do Brasil olhar para si mesmo e vencer o obscurantismo, a miséria e o atraso.


FONTE:  Outras Palavras

domingo, 18 de abril de 2021

Genocídio de classe


Por José Matrins




Na con­tramão do mundo ca­pi­ta­lista e dos em­pre­sá­rios en­di­nhei­rados, os bra­si­leiros que são obri­gados a vender sua força de tra­balho a estes pa­trões para viver ter­mi­naram a dé­cada 2011 a 2020 mais po­bres. Muito mais po­bres.

É o que se pode con­cluir de início com quase ile­gí­veis nú­meros e per­cen­ta­gens apre­sen­tadas em es­tudo do Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de Eco­nomia da Fun­dação Ge­túlio Vargas (Ibre/FGV) com base em nú­meros do Fundo Mo­ne­tário In­ter­na­ci­onal (FMI).

Nesta úl­tima dé­cada, o Pro­duto In­terno Bruto (PIB) per ca­pita do Brasil re­cuou 0,2% ao ano, em média. Isso é muita coisa em um pe­ríodo tão longo.

Nesse mesmo pe­ríodo, o mesmo PIB mun­dial per ca­pita teve cres­ci­mento anual de 0,4%, en­quanto o das eco­no­mias do­mi­nadas da pe­ri­feria do sis­tema avançou 2,5%. O PIB per ca­pita bra­si­leiro já está abaixo do chinês.

O PIB per ca­pital é a soma de tudo o que país produz di­vi­dido pela po­pu­lação e fun­ciona como um im­por­tante termô­metro para ava­liar a vi­ta­li­dade econô­mica de uma nação. O nível da pro­du­ti­vi­dade ou da po­breza de uma nação.

O fra­casso em nú­meros

O PIB per ca­pita sobe quando pro­du­ti­vi­dade do tra­balho e ati­vi­dade econô­mica avançam em ritmo mais rá­pido do que o cres­ci­mento po­pu­la­ci­onal. No Brasil acon­teceu exa­ta­mente o con­trário. E isso não acon­tece im­pu­ne­mente para os tra­ba­lha­dores.

Em 2010, os bra­si­leiros em geral ti­nham uma renda anual média de US$ 14.931,10. Em 2020, ela caiu para US$ 13.777,44. Va­ri­ação de 8% para baixo. Já está mais baixo que o chinês. Logo es­tará mais baixo até que o in­diano.

Esse valor é uma média na­ci­onal. Em seu cál­culo é con­si­de­rada toda a po­pu­lação bra­si­leira. Por­tanto, estão con­ta­bi­li­zados, além da po­pu­lação tra­ba­lha­dora, apro­xi­ma­da­mente 15% da po­pu­lação com­posta de em­pre­sá­rios en­di­nhei­rados e de­mais classes im­pro­du­tivas do país. Essa parte al­ta­mente mi­no­ri­tária da po­pu­lação bra­si­leira é a cor­po­ri­fi­cação do ca­pital no Brasil.

A bur­guesia bra­si­leira (pro­pri­e­tária dos meios de pro­dução da eco­nomia) soma apro­xi­ma­da­mente 30 mi­lhões de ci­da­dãos – parte mí­nima de uma po­pu­lação de 210 mi­lhões.

Assim, no cál­culo do PIB per ca­pita faz-se uma mis­tura es­ta­tís­tica de ca­pi­ta­listas e tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados. De im­pro­du­tivos e pro­du­tivos.
Afinal, na de­mo­cracia os ci­da­dãos não têm o mesmo peso? Cada ci­dadão um voto?

O fato im­por­tante a ser des­ta­cado nesta mis­ti­fi­cação do pro­cesso é que para os 85% de es­tro­pi­ados tra­ba­lha­dores pro­du­tivos do exér­cito in­dus­trial de re­serva no Brasil, a queda de seu mi­se­rável ren­di­mento anual médio foi muito mais ca­tas­tró­fica que aquela média na­ci­onal de 8%.

O de­sastre pro­du­tivo da queda do PIB per ca­pita no Brasil nos úl­timos dez anos pode ser mais bem vi­su­a­li­zado com dados que pes­qui­samos no IBGE sobre a evo­lução dos in­ves­ti­mentos e da pro­dução per ca­pita nos se­tores pro­du­tivos da eco­nomia.

Ob­serva-se, ini­ci­al­mente, uma queda anual média de 0,3% da For­mação Bruta de Ca­pital Fixo – quer dizer, do in­ves­ti­mento agre­gado da eco­nomia em má­quinas, equi­pa­mentos e es­tru­turas. As forças pro­du­tivas do tra­balho con­creto se en­fra­que­ceram.

Essa queda mostra como os em­pre­sá­rios e de­mais classes pa­ra­sitas – que mo­no­po­lizam a pro­pri­e­dade da to­ta­li­dade dos meios de pro­dução so­cial da nação – re­duzem sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, nos úl­timos dez anos, os meios de tra­balho ne­ces­sá­rios à ex­pansão da pro­dução de uti­li­dades e da pro­du­ti­vi­dade da classe tra­ba­lha­dora.

Na In­dús­tria de Trans­for­mação, nú­cleo re­gu­lador da pro­dução na­ci­onal, a queda de 0,9 % ao ano foi ainda muito mais pro­funda que a da For­mação Bruta de Ca­pital Fixo.

E, nos ramos in­dus­triais da Cons­trução Civil a queda de 2,7% ao ano foi ainda maior que na in­dús­tria como um todo. Isso é muito mais ca­tas­tró­fico, pois os di­versos ramos da Cons­trução Civil con­cen­tram e ao mesmo tempo es­pa­lham para todas as ci­dades e re­giões do país as grandes massas de tra­ba­lha­dores pro­du­tivos da eco­nomia.

De­bates frau­du­lentos

Por­tanto, o que querem dizer todos esses nú­meros? Todas estas abs­tra­ções ma­te­má­ticas apa­ren­te­mente neu­tras de um pro­cesso so­cial? Para os eco­no­mistas e mídia do ca­pital esta der­ro­cada pro­du­tiva não passa de um aci­dente pro­vo­cado por su­ces­sivos go­vernos in­ca­pazes de sa­near as contas pú­blicas e pro­mover a es­ta­bi­li­dade ma­cro­e­conô­mica.

“Os cul­pados são os po­lí­ticos”. Para eles, a in­ca­pa­ci­dade dos go­vernos em pro­mover as “re­formas ne­ces­sá­rias” e eli­minar a per­ma­nente “ins­ta­bi­li­dade das contas pú­blicas” é o fato que im­pediu a re­to­mada dos in­ves­ti­mentos na eco­nomia, do cres­ci­mento e, con­se­quen­te­mente, é a cul­pada pela der­ro­cada econô­mica dos úl­timos dez anos.

Se o pro­blema se re­sume à má gestão dos go­vernos, isso é muito con­ve­ni­ente para eles es­conder sem re­morso a res­pon­sa­bi­li­dade dos em­pre­sá­rios pri­vados e de­mais classes pro­pri­e­tá­rias de ca­pital. Estas não apa­recem em ne­nhum mo­mento das suas ava­li­a­ções sobre a “dé­cada per­dida”. A não ser como ví­timas.

Para os eco­no­mistas que ava­liam os dados da FGV, os vir­tu­osos e des­pro­te­gidos ca­pi­ta­listas são ví­timas dos maus go­vernos. Isso acon­tece porque eles estão sempre aguar­dando a pro­me­tida es­ta­bi­li­dade das contas pú­blicas para vol­tarem a in­vestir na pro­dução e, em um ato de ex­trema mag­na­ni­mi­dade e bon­dade, gerar renda e em­prego para a so­ci­e­dade ne­ces­si­tada dos seus ser­viços.

Mesmo que estes su­ces­sivos go­vernos não sejam nada mais, no mundo real, do que ser­vi­çais bu­ro­cratas das classes do­mi­nantes, go­vernos que são ins­ta­lados por estas úl­timas para ad­mi­nis­trar seus in­te­resses econô­micos.

Ao con­trário da nar­ra­tiva dos eco­no­mistas do ca­pital, todos os go­vernos (sem ex­ceção até para con­firmar a regra) são sim­ples­mente co­mitês po­lí­ticos ar­mados do Es­tado de de­fesa da pro­pri­e­dade ca­pi­ta­lista e de ad­mi­nis­tração da luta de classes de­cor­rente deste pro­cesso his­tó­rico.

Uma bur­guesia inútil

En­tre­tanto, a des­peito da le­vi­an­dade dos eco­no­mistas do sis­tema e ou­tros ideó­logos das classes do­mi­nantes, a der­ro­cada econô­mica bra­si­leira dos úl­timos dez anos não foi apenas mais uma “dé­cada per­dida”.

Ela teve enormes con­sequên­cias so­ciais e po­lí­ticas. Em pri­meiro lugar, na origem desta dé­cada a classe em­pre­sa­rial e de­mais classes pro­pri­e­tá­rias são res­pon­sá­veis pelo des­li­ga­mento da eco­nomia na­ci­onal do resto do mundo.

Não como em­pre­sá­rios na­ci­o­na­listas ou pro­te­ci­o­nistas, mas como in­com­pe­tentes li­be­rais. Fa­ná­ticos e in­com­pe­tentes li­be­rais. Não foram ca­pazes de re­a­lizar seu pro­jeto de li­be­ra­li­zação e in­te­gração da pro­dução às ca­deias glo­bais pro­du­tivas de valor.

A in­dús­tria bra­si­leira meia-boca é to­tal­mente in­capaz de pro­duzir e ex­portar com­pe­ti­ti­va­mente sua pro­dução. Nem como ma­qui­la­doras. Mesmo em grandes zonas es­pe­ciais de in­dús­trias mon­ta­doras (ma­qui­la­doras), como a Zona Franca de Ma­naus, todas as mer­ca­do­rias ali mon­tadas são des­ti­nadas ao mer­cado in­terno.

Na China e no Mé­xico, por exemplo – do mesmo modo que nas de­mais eco­no­mias do­mi­nadas da pe­ri­feria ple­na­mente in­te­gradas às ca­deias pro­du­tivas glo­bais de valor – todas as mer­ca­do­rias mon­tadas nas zonas es­pe­ciais são ime­di­a­ta­mente ex­por­tadas para as eco­no­mias cen­trais.

Os ca­pi­ta­listas chi­neses e me­xi­canos são mais es­pertos que os bra­si­leiros. Os dois únicos se­tores pro­du­tores de ca­pital da eco­nomia bra­si­leira que ainda se re­la­ci­onam ati­va­mente com o mer­cado mun­dial são dois en­claves pri­mário- ex­por­ta­dores: a agro­pe­cuária e a in­dús­tria mi­ne­ra­dora.

O setor agro­pe­cuário (ou agro­ne­gócio), que produz a mer­reca de 6% do PIB apre­sentou cres­ci­mento médio anual de 2,7% ao ano. As mi­ne­ra­doras (Vale do Rio Doce etc.) al­can­çaram 1,2% ao ano.

São os dois únicos se­tores in­dus­triais que cres­ceram nos úl­timos dez anos. Só aqui os em­pre­sá­rios bra­si­leiros foram “efi­ci­entes e ino­va­dores”. Mas sem ne­nhuma con­sequência po­si­tiva para a ex­pansão da to­ta­li­dade da eco­nomia.

O pro­blema é que, além do agro­ne­gócio e as mi­ne­ra­doras pro­du­zirem uma par­cela muito pe­quena do PIB, também não pro­por­ci­onam, en­quanto en­claves pri­mário-ex­por­ta­dores, ne­nhum “efeito mul­ti­pli­cador da renda” na pro­dução in­terna. Ou seja, são es­té­reis para gerar de­sen­vol­vi­mento econô­mico.

É por isso que, en­quanto a eco­nomia na­ci­onal afunda estes dois en­claves crescem. E os ideó­logos do pa­ra­si­tismo ca­pi­ta­lista na­ci­onal fes­tejam esse fenô­meno pa­to­ló­gico do cres­ci­mento econô­mico na pe­ri­feria.

O fato é que o des­li­ga­mento dos se­tores in­dus­triais mais di­nâ­micos da eco­nomia na­ci­onal da glo­ba­li­zação do ca­pital – in­te­grados às ca­deias pro­du­tivas glo­bais de valor apenas para a livre im­por­tação de má­quinas, in­sumos e com­po­nentes do pro­cesso de pro­dução – foi um fra­casso his­tó­rico em que os em­pre­sá­rios pri­vados na­ci­o­nais foram os prin­ci­pais res­pon­sá­veis.

Nem para re­pro­duzir o sub­de­sen­vol­vi­mento econô­mico os em­pre­sá­rios bra­si­leiros servem mais. Tor­naram-se apenas agentes ir­res­pon­sá­veis (e cons­ci­entes, como ve­remos a se­guir) de uma cri­mi­nosa ar­qui­te­tura da des­truição. O go­verno atual Bo­çal­naro/Guedes é a ex­pressão po­lí­tica mais bem aca­bada deste ge­no­cídio de classe.

Não há fu­turo pos­sível

O fra­casso dos em­pre­sá­rios e de­mais classes im­pro­du­tivas que di­ri­giram a eco­nomia para o tra­va­mento e à queda ob­ser­vada nos úl­timos dez anos pro­vocou um brutal de­sem­prego, queda dos ren­di­mentos e, fi­nal­mente, uma ex­plosão de pau­pe­ri­zação e mi­séria ja­mais ob­ser­vada na his­tória econô­mica bra­si­leira.

Ao con­trário do que os eco­no­mistas do ca­pital pro­curam es­conder, aqueles nú­meros acima ob­ser­vados não são neu­tros e muito menos des­pro­vidos de efeitos de­vas­ta­dores sobre a re­pro­dução fí­sica da po­pu­lação bra­si­leira.

E não se trata de um mero de­si­qui­lí­brio de ren­di­mentos entre ricos e po­bres, uma mera de­si­gual­dade. Uma in­jus­tiça na “dis­tri­buição da renda” que pode ser re­sol­vida com po­lí­ticas pú­blicas, go­vernos po­pu­listas e ou­tros amigos do povo.

Quando o sis­tema econô­mico não se move, afunda con­ti­nu­a­mente – como temos ob­ser­vado nestes úl­timos dez anos – de­sa­pa­rece também a função bá­sica de qual­quer modo de pro­dução: ga­rantir a re­pro­dução fí­sica da po­pu­lação.

A in­ca­pa­ci­dade econô­mica dos em­pre­sá­rios de ga­rantir a re­pro­dução fí­sica dos tra­ba­lha­dores des­pro­vidos de qual­quer re­serva ou pro­pri­e­dade – junto com a sua in­sis­tência em manter in­de­fi­ni­da­mente essa en­ge­nharia da des­truição como po­lí­tica de go­verno – trans­forma-se em um ina­cei­tável ge­no­cídio econô­mico.

Em nosso pró­ximo bo­letim con­ti­nu­a­remos com a aná­lise deste pro­cesso. Como este ge­no­cídio econô­mico per­pe­trado pelos em­pre­sá­rios bra­si­leiros se re­produz agora como ge­no­cídio pan­dê­mico e fatal in­go­ver­na­bi­li­dade po­lí­tica.


José Mar­tins é eco­no­mista e editor do Crí­tica da Eco­nomia, de onde este ar­tigo foi re­ti­rado.


FONTE: Correio da Cidadania


sexta-feira, 9 de abril de 2021

Fundeb: uma pequena vitória da Educação Pública

 

Após tentativa de boicote pela base do governo Bolsonaro, e manobras de deputados do Novo para ampliar repasse a entidades privadas e religiosas, Câmara aprova texto original do Fundo, preservando R$ 16 bilhões que seriam desviados





Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (17/12) o projeto de lei que regulamenta o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal mecanismo de financiamento da educação básica no país, que foi tornado permanente com a aprovação da Emenda Constitucional 108 em agosto deste ano. Por 470 votos a 15, os deputados aprovaram um texto que havia sido referendado pelo Senado no início da semana. Os senadores votaram pela retomada do texto original do relator do projeto na Câmara, Felipe Rigoni (PSB-ES), que durante a tramitação na Câmara dos Deputados na semana passada recebeu modificações que foram alvo de críticas por parte de movimentos em defesa da educação pública, assim como de entidades representativas dos secretários municipais e estaduais de educação. Isso porque elas ampliariam os recursos do fundo que poderiam ser destinados a instituições privadas, como as do chamado Sistema S e as instituições filantrópicas, comunitárias e confessionais. O texto que agora vai a sanção presidencial vetou essas modificações.

O ponto mais polêmico da segunda rodada de votações na Câmara foi a votação de um destaque apresentado pelo Partido Novo, que pretendia reincluir no texto a possibilidade de destinação do Fundeb para matrículas realizadas em instituições filantrópicas sem fins lucrativos nos ensinos fundamental e médio, o que é proibido pela lei atual do Fundeb. Por 286 votos a 163, o destaque foi rejeitado. O projeto original que foi à votação, assim como a lei do atual Fundeb, previa essa possibilidade apenas para creche, educação do campo com formação por alternância, pré-escola e educação especial. O PL aprovado na Câmara na semana passada acrescentou a educação fundamental e ensino médio, desde que limitadas a 10% das matrículas públicas em cada ente federado, o ensino técnico integrado ao ensino médio, as matrículas em cursos de educação profissional em instituições do chamado SIstema S, o itinerário de formação técnica e profissional do ensino médio e, por fim, as matrículas no contraturno, como complementação da jornada escolar de estudantes da rede pública, para oferta de educação básica em tempo integral.

Durante a votação, deputados da oposição denunciaram que a base do governo na Câmara estaria tentando obstruir a votação, para possibilitar que fosse apresentada uma medida provisória para regulamentar o Fundeb, cuja lei atual perde vigência a partir de 1º de janeiro.

Fundeb entre idas e vindas no Congresso

A coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, comemorou a aprovação do texto. “Pudemos devolver para a educação pública cerca de R$ 16 bilhões que seriam desviados para o setor privado. Esse foi o rombo aprovado de forma inconsequente e inconstitucional pela Câmara dos Deputados [na semana passada] e que precisou ser barrado pelo Senado Federal”, aponta Andressa, fazendo referência aos valores que, de acordo com uma nota técnica elaborada pela Campanha e pela Fineduca, seriam repassados do Fundeb para instituições privadas caso fosse aprovado o texto que saiu da Câmara na semana passada. Segundo a nota, seriam R$ 15,9 bilhões, o que equivale a 80,4% do valor da complementação da União ao fundo a partir do sexto ano de vigência do novo Fundeb, que será de 23%.A maior parte – R$ 10,2 bilhões – seria destinada para os convênios para oferta de ensino fundamental e médio; outros R$ 4,4 bilhões iriam para as matrículas no contraturno; as matrículas na pré-escola abocanhariam outros R$ 746 milhões em recursos do novo Fundeb, enquanto ao Sistema S seriam destinados R$ 546 milhões. “Barrar esse desvio era prioridade absoluta, porque impactava em cheio no financiamento da escola pública e na qualidade dela também, já que temos pouquíssima regulação da atuação do setor privado na educação”, afirma Andressa.

Em agosto, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 108, considerada uma vitória por movimentos da educação por ter, entre outros avanços, tornado o fundo permanente e previsto um aumento gradual da complementação da União aos recursos do Fundo dos atuais 10% para 23%.

“No Fundeb em vigência hoje as instituições privadas sem fins lucrativos conveniadas com prefeituras ou com governos estaduais e do Distrito Federal foram admitidas em áreas em que o poder público, os entes subnacionais ainda não tinham condições de dar conta da oferta. Principalmente a creche é uma área em que ainda há muito déficit de vagas”, explica Nalu Farenzena, presidente da Fineduca. E completa: “Mas o projeto de lei aprovado na Câmara acrescentou outras possibilidades, em áreas como, por exemplo, o ensino fundamental e o ensino médio, em que não existe essa necessidade. Os governos municipais e estaduais dão conta do ensino fundamental e do ensino médio, então não existe motivo pra ampliar o conveniamento”, critica Nalu, para quem as medidas fragilizariam a educação pública. “O setor público de educação básica não poderia prescindir desses R$ 15,9 bilhões. A educação pública brasileira precisa de mais recursos pra poder dar conta dos deveres do Estado com a educação, das metas do Plano Nacional de Educação, e é um contrassenso total que se amplie a possibilidade de destinar recursos para a iniciativa privada”, ressalta.

Prática recorrente

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise Ramos lembra que a transferência de recursos públicos para instituições privadas é uma prática recorrente na história da educação brasileira, que inclusive acabou se institucionalizando na educação básica a partir do Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, cuja lei, ainda que tenha estabelecido a destinação de 10% do PIB para a educação até 2024, prevê como investimento público em educação os recursos destinados, por exemplo, para o financiamento de bolsas em universidades privadas, através de programas como o Programa Universidade para Todos (ProUni) e o Programa de Financiamento Estudantil (Fies), inclusive na forma de incentivos e isenções fiscais. Ainda assim, ela considera que estender os recursos do Fundeb às instituições privadas sem fins lucrativos, religiosas e, no caso da educação profissional, ao Sistema S – como previa o texto originalmente aprovado pela Câmara – seria “escancarar o caráter privatista do Estado brasileiro”. “Ainda que a Constituição preveja que o ensino seja livre à iniciativa privada e sob a regulação do Estado, isto jamais poderia autorizar o seu financiamento pelo fundo público”, ressalta Marise. E completa: “O Sistema S não se contenta com o fato de já se sustentarem com recursos públicos oriundos da folha de pagamento dos trabalhadores e, ainda, cobrarem por seus cursos? questiona. 

A nota técnica produzida pela Campanha e pela Fineduca também trouxe dados para argumentar contra o aumento do repasse de recursos públicos ao Sistema S, que de acordo com a nota, “recebe mais de 21 bilhões por ano de recursos públicos, 0,3% do PIB, e nem por isso garante um sistema massivo de educação profissional”. As instituições do Sistema S são sustentadas por uma contribuição compulsória cobrada sobre a folha de pagamento das empresas brasileiras recolhidos junto ao INSS. A nota destacou, contudo, que apesar desses recursos, o sistema possui, segundo o Censo Escolar 2019, pouca capilaridade no território nacional, estando presente em apenas 10% dos municípios, a grande maioria de médio e grande porte. “Em 2019 o Sistema S atendia apenas 1,7 mil alunos no ensino médio profissional integrado (o que garante formação mais sólida) e 196 mil no ensino médio profissional concomitante ou subsequente. Enquanto isso, a rede estadual atendia 359 mil, na primeira modalidade, e 344 mil na segunda. Ou seja, a rede estadual pública é mais factível e mais eficiente em termos de ampliação. Uma ampliação de 20% no ensino médio integrado, significaria aumentar em 42,5 vezes a matrícula no Sistema S para essa modalidade”, ressaltou a nota produzida pela Campanha e pela Fineduca.

Para Gabriel Grabowski, professor da Universidade Feevale e especialista em financiamento da educação profissional, a possibilidade de destinar recursos do Fundeb para o Sistema S está associada a um “interesse específico e imediato” na implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do itinerário de educação profissional previsto pela Reforma do Ensino Médio de 2017. “Esse itinerário está sendo de alguma forma prioritariamente imposto nas redes públicas estaduais do Brasil. E o modelo que está se adotando para esse itinerário dentro da Reforma do Ensino Médio na perspectiva da BNCC é justamente o modelo de Sistema S, que reduz o currículo do ensino médio para 1,8 mil horas no máximo, colocando mais 1,2 mil horas de um curso técnico ou um curso de qualificação profissional. E o modelo que está se copiando é o do Sesi, Senai, Senac”, aponta Grabowski. E completa: “Especialmente o Senai e o Sesi, estão sendo demandados a apresentar o itinerário de formação profissional para que os estados o adotem e façam parcerias diretamente com o Sistema S. Com isso se reduzem os custos dos estados, reduzem os investimentos que eles têm que fazer em educação, e se financia a lógica e a perspectiva da educação privada do Sistema S dentro das escolas públicas, especialmente as redes estaduais, que são responsáveis por 87% do ensino médio no Brasil”.

 

FONTE: Outras Palavras

domingo, 4 de abril de 2021

A dramática atualidade de Josué de Castro

 

No momento em que a fome volta a se alastrar, vale conhecer obra do pensador que a estudou com mais originalidade e erudição. Relacionou-a com desigualdade e colonialismo. Perseguido após 1964, morreu exilado nove anos depois



 

Por Eduardo Harder, no Brasil de Fato

Entre um conjunto de interpretes do Brasil ao longo do século XX, Josué Apolônio de Castro ocupa um lugar paradoxal, em diversos sentidos. Suas obras foram traduzidas para muitas línguas, em todo o mundo.

Um dos primeiros autores brasileiros reconhecidos internacionalmente e com largas tiragens de livros. Por outro lado, seus trabalhos se encontram nos dias de hoje praticamente esgotados. A exceção fica por conta de “A festa das letras”, livro infantil em parceria com a escritora Cecília Meireles atualmente editado pela Global, e a seleção de ensaios denominada “Josué de Castro, vida e obra”, organizada pelos geógrafos Bernardo Mançano Fernandes (Unesp) e Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF) para a editora Expressão Popular.

A obra póstuma “Fome: um tema proibido”, que reúne os últimos escritos e foi organizada por sua filha, a cientista social Anna Maria de Castro (UFRJ), teve uma edição em 2003 pela Civilização Brasileira, que também publicou a reedição em 2005 de “Geografia da Fome”, seu livro mais conhecido, igualmente esgotados. E nem se fale de “Sete palmos de terra e um caixão”, “Ensaios de Geografia Humana”, “Documentário do Nordeste”, “Homens e Caranguejos” (Romance), “Geopolítica da Fome”, “Ensaios de Biologia Social” entre outros, todos invariavelmente de difícil acesso aos leitores.

Se o mercado editorial se caracteriza, até o momento, pelo descaso com a produção bibliográfica de Josué de Castro, também a memória social foi impactada com a cassação de seus direitos políticos em 1964, logo após o golpe civil militar.

Em muitas bibliotecas de universidades e escolas seus livros foram retirados dos acervos e seu enterro em 1973 no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, foi cerceado e censurado pela ditadura.

O ostracismo cuidadosamente imposto por seus algozes contrasta com a viva presença do intelectual engajado no exercício de uma cidadania ativa no Brasil, na Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), com os expressivos votos para deputado federal em 1958, além de três indicações ao Prêmio Nobel.

Verso e reverso de uma intensa biografia, eis que Josué de Castro resiste na memória afetiva dos movimentos sociais, nas universidades e nas artes. A tradução por José Paulo Netto em 2013 do livro “Destruição em massa, geopolítica da fome”, do sociólogo Jean Ziegler, para a editora Cortez é um bom exemplo de sua atualidade e do potencial de suas obras.

A análise crítica e material da fome elaborada por Josué de Castro trouxe à baila os impactos negativos do colonialismo, da concentração de terras, da exploração do trabalho, dos processos migratórios humanos e novos critérios para avaliar o malthusianismo, que até hoje atribui aos mais pobres as mazelas ambientais globais.

Além disso, a natureza ético-política de seu pensamento foi conjugada de maneira precursora com os estudos de diversas paisagens culturais, deslocando a interpretação das relações entre natureza e cultura a partir do mangue, dos sertões e das periferias das cidades.

O respeito aos conhecimentos e saberes tradicionais é posto em diálogo com a ciência desde os precursores ensaios “Os ‘alimentos bárbaros’ do Sertão do Nordeste” e “Novas pesquisas sobre a Mucunã”, ambos publicados originalmente em 1935 no livro “Documentário do Nordeste”.

Se Josué de Castro estivesse vivo, seguramente estaria presente nos debates atuais sobre agroecologia, sistemas agroflorestais, agrobiodiversidade, justiça ambiental e ecologia política. É interessante observar que ele atribui a si uma filiação intelectual e afetiva que remonta a escritores como Euclides da Cunha, Rodolfo Teófilo e ao filósofo Baruch Espinosa, em um ponto de convergência permeado pelas reflexões sobre a condição humana.

Josué de Castro pertence à longa tradição humanista e, por humanismo não se compreende apenas uma visão ética e moral na busca do ideal abstrato de justiça. Ele conjugou seu humanismo com um sentido constante de intervenção social.

Uma práxis que se reconhece no fenômeno da fome e, nas palavras de Edward Said, assume “cada vez mais os atributos adversos do intelectual, em atividades como falar a verdade para o poder, ser testemunha da perseguição e sofrimento e fornecer uma voz dissidente nos conflitos com a autoridade” (SAID: 2007, p. 156).

Em tempos de questionamento à legitimidade dos monopólios corporativos transnacionais sobre bens comuns como terras, águas, florestas, sementes, educação e conhecimentos, o humanismo de Josué de Castro (re)encontra lugar no imaginário epistêmico das novas gerações.

O economista Ignacy Sachs observa em entrevista concedida ao documentário sobre Josué de Castro (1994), do diretor Silvio Tendler, que seu precursor caminho metodológico é atual e inspirador ao articular uma sensível hermenêutica do fenômeno da fome com a interpretação das estruturas sociais que lhe são inerentes, além de uma releitura da importância da produção cartográfica, na qual os mapas constituem a expressão gráfica de uma matriz de conhecimentos interdisciplinares e relacionados aos sistemas alimentares, aos territórios existenciais e às expressões da fome, bem como um olhar ecossistêmico inovador.

Aliás, seus derradeiros escritos e comunicações públicas na década de 1970 versam justamente sobre as relações entre equilíbrio socioambiental e desenvolvimento econômico.

Em junho de 1972, apenas um ano antes de seu trágico falecimento no exílio, Josué de Castro apresentou na paradigmática Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, realizada na cidade de Estocolmo, a exposição “Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição”, na qual assinala corajosamente que: “(…) falso é o conceito de desenvolvimento avaliado unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito de desenvolvimento não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido”. (CASTRO: 2003 p. 136)

Em outras palavras, pensar e agir sobre a realidade exige o firme compromisso de superar estruturas da sociedade imbricadas à ausência de equidade social, direitos, dignidade humana e cidadania plena.

E nos reencontrarmos com a virtude da “clarividência” em Josué de Castro, sublinhada pelo geógrafo Milton Santos no documentário de Silvio Tendler, a qual se pode adquirir pela intuição e, sobretudo, pelo ato de estudar, pesquisar e vivenciar a condição humana.

Por que ler Josué de Castro hoje? O universo da arte e sensibilidade da juventude revelam uma paradoxal imagem, síntese de um intelectual que transcende sua biografia e que se reinscreve no espaço e tempo das ações para superar as contradições socioambientais do presente.

Afinal, ao nos lembrar que “encontrei o cidadão do mundo, no manguezal da beira do rio”, a música e o manifesto do movimento Manguebeat e de Chico Science e da Nação Zumbi registram uma práxis criativa que alimenta a imaginação sociológica, fundamental ao pensamento social.

Referências

Audiovisuais

Science, Chico; Nação Zumbi. Da Lama ao Caos. Chaos: Rio de Janeiro, 1994. Josué de Castro. Direção de Silvio Tendler. Rio de Janeiro: Caliban Filmes, 1994. 1DVD (50min.).

Bibliográficas

CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome: um tema proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. 2.ed. São Paulo: Brasiliense: 1959.

______. Ensaios de Biologia Social. 2.ed. São Paulo: Brasiliense: 1959.

______. Ensaios de Geografia Humana. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1964.

______. Geografia da fome. [O dilema brasileiro: pão ou aço]. 7.ed. São Paulo: Brasiliense: 1961, 2 vols.

______. Geopolítica da fome: ensaio sobre os problemas de alimentação e população do mundo. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1959, 2 vols.

______. Homens e caranguejos. (Romance). São Paulo: Brasiliense: 1967.

______. Sete palmos de terra e um caixão: ensaio sobre o Nordeste, área explosiva. São Paulo: Brasiliense, 1965.

FERNANDES, Bernardo M.; GONÇALVES, Carlos W. (Orgs.). Josué de Castro: vida e obra. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

MEIRELLES, Cecília; CASTRO, Josué de. A festa das letras. 4.ed. São Paulo: Global, 2015.

MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da fome. São Paulo: Cortez, 2013.


*Eduardo Harder é professor da UFPR e advogado na área dos direitos humanos


FONTE: Outras Palavras

 


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