No momento em que a fome volta a se alastrar, vale
conhecer obra do pensador que a estudou com mais originalidade e erudição.
Relacionou-a com desigualdade e colonialismo. Perseguido após 1964, morreu
exilado nove anos depois
Por Eduardo Harder, no Brasil de Fato
Entre um conjunto de interpretes do Brasil ao longo
do século XX, Josué Apolônio de Castro ocupa um lugar paradoxal, em diversos
sentidos. Suas obras foram traduzidas para muitas línguas, em todo o mundo.
Um dos primeiros autores brasileiros reconhecidos
internacionalmente e com largas tiragens de livros. Por outro lado, seus
trabalhos se encontram nos dias de hoje praticamente esgotados. A exceção fica
por conta de “A festa das letras”, livro infantil em parceria com a escritora
Cecília Meireles atualmente editado pela Global, e a seleção de ensaios
denominada “Josué de Castro, vida e obra”, organizada pelos geógrafos Bernardo
Mançano Fernandes (Unesp) e Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF) para a editora
Expressão Popular.
A obra póstuma “Fome: um tema proibido”, que reúne
os últimos escritos e foi organizada por sua filha, a cientista social Anna
Maria de Castro (UFRJ), teve uma edição em 2003 pela Civilização Brasileira,
que também publicou a reedição em 2005 de “Geografia da Fome”, seu livro mais
conhecido, igualmente esgotados. E nem se fale de “Sete palmos de terra e um
caixão”, “Ensaios de Geografia Humana”, “Documentário do Nordeste”, “Homens e
Caranguejos” (Romance), “Geopolítica da Fome”, “Ensaios de Biologia Social”
entre outros, todos invariavelmente de difícil acesso aos leitores.
Se o mercado editorial se caracteriza, até o
momento, pelo descaso com a produção bibliográfica de Josué de Castro, também a
memória social foi impactada com a cassação de seus direitos políticos em 1964,
logo após o golpe civil militar.
Em muitas bibliotecas de universidades e escolas
seus livros foram retirados dos acervos e seu enterro em 1973 no cemitério São
João Batista, no Rio de Janeiro, foi cerceado e censurado pela ditadura.
O ostracismo cuidadosamente imposto por seus
algozes contrasta com a viva presença do intelectual engajado no exercício de
uma cidadania ativa no Brasil, na Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura (FAO), com os expressivos votos para deputado
federal em 1958, além de três indicações ao Prêmio Nobel.
Verso e reverso de uma intensa biografia, eis que
Josué de Castro resiste na memória afetiva dos movimentos sociais, nas
universidades e nas artes. A tradução por José Paulo Netto em 2013 do livro
“Destruição em massa, geopolítica da fome”, do sociólogo Jean Ziegler, para a
editora Cortez é um bom exemplo de sua atualidade e do potencial de suas obras.
A análise crítica e material da fome elaborada por
Josué de Castro trouxe à baila os impactos negativos do colonialismo, da
concentração de terras, da exploração do trabalho, dos processos migratórios
humanos e novos critérios para avaliar o malthusianismo, que até hoje atribui
aos mais pobres as mazelas ambientais globais.
Além disso, a natureza ético-política de seu pensamento
foi conjugada de maneira precursora com os estudos de diversas paisagens
culturais, deslocando a interpretação das relações entre natureza e cultura a
partir do mangue, dos sertões e das periferias das cidades.
O respeito aos conhecimentos e saberes tradicionais
é posto em diálogo com a ciência desde os precursores ensaios “Os ‘alimentos
bárbaros’ do Sertão do Nordeste” e “Novas pesquisas sobre a Mucunã”, ambos
publicados originalmente em 1935 no livro “Documentário do Nordeste”.
Se Josué de Castro estivesse vivo, seguramente
estaria presente nos debates atuais sobre agroecologia, sistemas
agroflorestais, agrobiodiversidade, justiça ambiental e ecologia política. É
interessante observar que ele atribui a si uma filiação intelectual e afetiva
que remonta a escritores como Euclides da Cunha, Rodolfo Teófilo e ao filósofo
Baruch Espinosa, em um ponto de convergência permeado pelas reflexões sobre a
condição humana.
Josué de Castro pertence à longa tradição humanista
e, por humanismo não se compreende apenas uma visão ética e moral na busca do
ideal abstrato de justiça. Ele conjugou seu humanismo com um sentido constante
de intervenção social.
Uma práxis que se reconhece no fenômeno da fome e,
nas palavras de Edward Said, assume “cada vez mais os atributos adversos do
intelectual, em atividades como falar a verdade para o poder, ser testemunha da
perseguição e sofrimento e fornecer uma voz dissidente nos conflitos com a
autoridade” (SAID: 2007, p. 156).
Em tempos de questionamento à legitimidade dos
monopólios corporativos transnacionais sobre bens comuns como terras, águas,
florestas, sementes, educação e conhecimentos, o humanismo de Josué de Castro
(re)encontra lugar no imaginário epistêmico das novas gerações.
O economista Ignacy Sachs observa em entrevista
concedida ao documentário sobre Josué de Castro (1994), do diretor Silvio
Tendler, que seu precursor caminho metodológico é atual e inspirador ao
articular uma sensível hermenêutica do fenômeno da fome com a interpretação das
estruturas sociais que lhe são inerentes, além de uma releitura da importância
da produção cartográfica, na qual os mapas constituem a expressão gráfica de
uma matriz de conhecimentos interdisciplinares e relacionados aos sistemas
alimentares, aos territórios existenciais e às expressões da fome, bem como um
olhar ecossistêmico inovador.
Aliás, seus derradeiros escritos e comunicações
públicas na década de 1970 versam justamente sobre as relações entre equilíbrio
socioambiental e desenvolvimento econômico.
Em junho de 1972, apenas um ano antes de seu
trágico falecimento no exílio, Josué de Castro apresentou na paradigmática
Conferência da ONU sobre Meio Ambiente, realizada na cidade de Estocolmo, a
exposição “Subdesenvolvimento: causa primeira da poluição”, na qual assinala
corajosamente que: “(…) falso é o conceito de desenvolvimento avaliado
unicamente à base da expansão da riqueza material, do crescimento econômico. O
desenvolvimento implica mudanças sociais sucessivas e profundas, que acompanham
inevitavelmente as transformações tecnológicas do contorno natural. O conceito
de desenvolvimento não é meramente quantitativo, mas compreende os aspectos
qualitativos dos grupos humanos a que concerne. Crescer é uma coisa;
desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver
equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu
ainda. Desta perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido”.
(CASTRO: 2003 p. 136)
Em outras palavras, pensar e agir sobre a realidade
exige o firme compromisso de superar estruturas da sociedade imbricadas à
ausência de equidade social, direitos, dignidade humana e cidadania plena.
E nos reencontrarmos com a virtude da
“clarividência” em Josué de Castro, sublinhada pelo geógrafo Milton Santos no
documentário de Silvio Tendler, a qual se pode adquirir pela intuição e,
sobretudo, pelo ato de estudar, pesquisar e vivenciar a condição humana.
Por que ler Josué de Castro hoje? O universo da
arte e sensibilidade da juventude revelam uma paradoxal imagem, síntese de um
intelectual que transcende sua biografia e que se reinscreve no espaço e tempo
das ações para superar as contradições socioambientais do presente.
Afinal, ao nos lembrar que “encontrei o cidadão do
mundo, no manguezal da beira do rio”, a música e o manifesto do movimento
Manguebeat e de Chico Science e da Nação Zumbi registram uma práxis criativa
que alimenta a imaginação sociológica, fundamental ao pensamento social.
Referências
Audiovisuais
Science, Chico; Nação Zumbi. Da Lama ao Caos.
Chaos: Rio de Janeiro, 1994. Josué de Castro. Direção de Silvio Tendler. Rio de
Janeiro: Caliban Filmes, 1994. 1DVD (50min.).
Bibliográficas
CASTRO, Anna Maria de (Org.). Fome: um tema
proibido – últimos escritos de Josué de Castro. 4.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
CASTRO, Josué de. Documentário do Nordeste. 2.ed.
São Paulo: Brasiliense: 1959.
______. Ensaios de Biologia Social. 2.ed. São
Paulo: Brasiliense: 1959.
______. Ensaios de Geografia Humana. 3.ed. São
Paulo: Brasiliense, 1964.
______. Geografia da fome. [O dilema brasileiro:
pão ou aço]. 7.ed. São Paulo: Brasiliense: 1961, 2 vols.
______. Geopolítica da fome: ensaio sobre os
problemas de alimentação e população do mundo. 5.ed. São Paulo: Brasiliense,
1959, 2 vols.
______. Homens e caranguejos. (Romance). São Paulo:
Brasiliense: 1967.
______. Sete palmos de terra e um caixão: ensaio
sobre o Nordeste, área explosiva. São Paulo: Brasiliense, 1965.
FERNANDES, Bernardo M.; GONÇALVES, Carlos W.
(Orgs.). Josué de Castro: vida e obra. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular,
2007.
MEIRELLES, Cecília; CASTRO, Josué de. A festa das
letras. 4.ed. São Paulo: Global, 2015.
MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica.
Rio de Janeiro: Zahar, 1965. SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ZIEGLER, Jean. Destruição em massa: geopolítica da
fome. São Paulo: Cortez, 2013.
*Eduardo Harder é professor da UFPR e
advogado na área dos direitos humanos
FONTE: Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário