Após tentativa de boicote pela base do governo
Bolsonaro, e manobras de deputados do Novo para ampliar repasse a entidades
privadas e religiosas, Câmara aprova texto original do Fundo, preservando R$ 16
bilhões que seriam desviados
Por André
Antunes, na EPSJV/Fiocruz
A
Câmara dos Deputados aprovou nesta quinta-feira (17/12) o projeto de lei que
regulamenta o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação e de
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal mecanismo de
financiamento da educação básica no país, que foi tornado permanente com a
aprovação da Emenda Constitucional 108 em agosto deste ano. Por 470 votos a 15,
os deputados aprovaram um texto que havia sido referendado pelo Senado no
início da semana. Os senadores votaram pela retomada do texto original do
relator do projeto na Câmara, Felipe Rigoni (PSB-ES), que durante a tramitação
na Câmara dos Deputados na semana passada recebeu modificações que foram alvo
de críticas por parte de movimentos em defesa da educação pública, assim como
de entidades representativas dos secretários municipais e estaduais de
educação. Isso porque elas ampliariam os recursos do fundo que poderiam ser
destinados a instituições privadas, como as do chamado Sistema S e as
instituições filantrópicas, comunitárias e confessionais. O texto que agora vai
a sanção presidencial vetou essas modificações.
O
ponto mais polêmico da segunda rodada de votações na Câmara foi a votação de um
destaque apresentado pelo Partido Novo, que pretendia reincluir no texto a
possibilidade de destinação do Fundeb para matrículas realizadas em
instituições filantrópicas sem fins lucrativos nos ensinos fundamental e médio,
o que é proibido pela lei atual do Fundeb. Por 286 votos a 163, o destaque foi
rejeitado. O projeto original que foi à votação, assim como a lei do atual
Fundeb, previa essa possibilidade apenas para creche, educação do campo com
formação por alternância, pré-escola e educação especial. O PL aprovado na
Câmara na semana passada acrescentou a educação fundamental e ensino médio,
desde que limitadas a 10% das matrículas públicas em cada ente federado, o
ensino técnico integrado ao ensino médio, as matrículas em cursos de educação
profissional em instituições do chamado SIstema S, o itinerário de formação
técnica e profissional do ensino médio e, por fim, as matrículas no
contraturno, como complementação da jornada escolar de estudantes da rede
pública, para oferta de educação básica em tempo integral.
Durante
a votação, deputados da oposição denunciaram que a base do governo na Câmara
estaria tentando obstruir a votação, para possibilitar que fosse apresentada
uma medida provisória para regulamentar o Fundeb, cuja lei atual perde vigência
a partir de 1º de janeiro.
Fundeb entre idas e vindas no Congresso
A
coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa
Pellanda, comemorou a aprovação do texto. “Pudemos devolver para a educação
pública cerca de R$ 16 bilhões que seriam desviados para o setor privado. Esse
foi o rombo aprovado de forma inconsequente e inconstitucional pela Câmara dos
Deputados [na semana passada] e que precisou ser barrado pelo Senado Federal”,
aponta Andressa, fazendo referência aos valores que, de acordo com uma nota
técnica elaborada pela Campanha e pela Fineduca, seriam repassados do Fundeb
para instituições privadas caso fosse aprovado o texto que saiu da Câmara na
semana passada. Segundo a nota, seriam R$ 15,9 bilhões, o que equivale a 80,4%
do valor da complementação da União ao fundo a partir do sexto ano de vigência
do novo Fundeb, que será de 23%.A maior parte – R$ 10,2 bilhões – seria
destinada para os convênios para oferta de ensino fundamental e médio; outros
R$ 4,4 bilhões iriam para as matrículas no contraturno; as matrículas na
pré-escola abocanhariam outros R$ 746 milhões em recursos do novo Fundeb, enquanto
ao Sistema S seriam destinados R$ 546 milhões. “Barrar esse desvio era
prioridade absoluta, porque impactava em cheio no financiamento da escola
pública e na qualidade dela também, já que temos pouquíssima regulação da
atuação do setor privado na educação”, afirma Andressa.
Em
agosto, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 108, considerada uma
vitória por movimentos da educação por ter, entre outros avanços, tornado o
fundo permanente e previsto um aumento gradual da complementação da União aos
recursos do Fundo dos atuais 10% para 23%.
“No
Fundeb em vigência hoje as instituições privadas sem fins lucrativos
conveniadas com prefeituras ou com governos estaduais e do Distrito Federal
foram admitidas em áreas em que o poder público, os entes subnacionais ainda
não tinham condições de dar conta da oferta. Principalmente a creche é uma área
em que ainda há muito déficit de vagas”, explica Nalu Farenzena, presidente da
Fineduca. E completa: “Mas o projeto de lei aprovado na Câmara acrescentou
outras possibilidades, em áreas como, por exemplo, o ensino fundamental e o
ensino médio, em que não existe essa necessidade. Os governos municipais e
estaduais dão conta do ensino fundamental e do ensino médio, então não existe
motivo pra ampliar o conveniamento”, critica Nalu, para quem as medidas
fragilizariam a educação pública. “O setor público de educação básica não
poderia prescindir desses R$ 15,9 bilhões. A educação pública brasileira
precisa de mais recursos pra poder dar conta dos deveres do Estado com a educação,
das metas do Plano Nacional de Educação, e é um contrassenso total que se
amplie a possibilidade de destinar recursos para a iniciativa privada”,
ressalta.
Prática recorrente
A
professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Marise Ramos lembra que a transferência de recursos públicos para instituições
privadas é uma prática recorrente na história da educação brasileira, que
inclusive acabou se institucionalizando na educação básica a partir do Plano
Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, cuja lei, ainda que tenha estabelecido a
destinação de 10% do PIB para a educação até 2024, prevê como investimento
público em educação os recursos destinados, por exemplo, para o financiamento
de bolsas em universidades privadas, através de programas como o Programa
Universidade para Todos (ProUni) e o Programa de Financiamento Estudantil
(Fies), inclusive na forma de incentivos e isenções fiscais. Ainda assim, ela
considera que estender os recursos do Fundeb às instituições privadas sem fins
lucrativos, religiosas e, no caso da educação profissional, ao Sistema S – como
previa o texto originalmente aprovado pela Câmara – seria “escancarar o caráter
privatista do Estado brasileiro”. “Ainda que a Constituição preveja que o ensino
seja livre à iniciativa privada e sob a regulação do Estado, isto jamais
poderia autorizar o seu financiamento pelo fundo público”, ressalta Marise. E
completa: “O Sistema S não se contenta com o fato de já se sustentarem com
recursos públicos oriundos da folha de pagamento dos trabalhadores e, ainda,
cobrarem por seus cursos? questiona.
A nota técnica produzida pela Campanha e pela Fineduca também trouxe dados para argumentar contra o aumento do repasse de recursos públicos ao Sistema S, que de acordo com a nota, “recebe mais de 21 bilhões por ano de recursos públicos, 0,3% do PIB, e nem por isso garante um sistema massivo de educação profissional”. As instituições do Sistema S são sustentadas por uma contribuição compulsória cobrada sobre a folha de pagamento das empresas brasileiras recolhidos junto ao INSS. A nota destacou, contudo, que apesar desses recursos, o sistema possui, segundo o Censo Escolar 2019, pouca capilaridade no território nacional, estando presente em apenas 10% dos municípios, a grande maioria de médio e grande porte. “Em 2019 o Sistema S atendia apenas 1,7 mil alunos no ensino médio profissional integrado (o que garante formação mais sólida) e 196 mil no ensino médio profissional concomitante ou subsequente. Enquanto isso, a rede estadual atendia 359 mil, na primeira modalidade, e 344 mil na segunda. Ou seja, a rede estadual pública é mais factível e mais eficiente em termos de ampliação. Uma ampliação de 20% no ensino médio integrado, significaria aumentar em 42,5 vezes a matrícula no Sistema S para essa modalidade”, ressaltou a nota produzida pela Campanha e pela Fineduca.
Para
Gabriel Grabowski, professor da Universidade Feevale e especialista em
financiamento da educação profissional, a possibilidade de destinar recursos do
Fundeb para o Sistema S está associada a um “interesse específico e imediato”
na implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do itinerário de
educação profissional previsto pela Reforma do Ensino Médio de 2017. “Esse
itinerário está sendo de alguma forma prioritariamente imposto nas redes
públicas estaduais do Brasil. E o modelo que está se adotando para esse
itinerário dentro da Reforma do Ensino Médio na perspectiva da BNCC é
justamente o modelo de Sistema S, que reduz o currículo do ensino médio para
1,8 mil horas no máximo, colocando mais 1,2 mil horas de um curso técnico ou um
curso de qualificação profissional. E o modelo que está se copiando é o do
Sesi, Senai, Senac”, aponta Grabowski. E completa: “Especialmente o Senai e o
Sesi, estão sendo demandados a apresentar o itinerário de formação profissional
para que os estados o adotem e façam parcerias diretamente com o Sistema S. Com
isso se reduzem os custos dos estados, reduzem os investimentos que eles têm
que fazer em educação, e se financia a lógica e a perspectiva da educação
privada do Sistema S dentro das escolas públicas, especialmente as redes
estaduais, que são responsáveis por 87% do ensino médio no Brasil”.
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