sexta-feira, 28 de agosto de 2015

As causas do analfabetismo funcional





Por Luiz Guilherme Melo 


O analfabetismo funcional, ou seja, saber ler, mas não captar integralmente o teor do que lê, deve ser encarado como um câncer a ser combatido. O resultado dessa negligência vemos todos os dias na internet, em que a maioria dos assuntos mais comentados são impulsionados pela falta de leitura acerca do que é discutido ou pela má interpretação de textos, de dados, de gráficos etc.

A internet expõe o melhor e o pior do ser humano. Conhecemos pessoas e iniciativas fantásticas, mas ao mesmo tempo ficamos cara a cara com a latrina da humanidade (os constantes casos de racismo na web estão aí para comprovar). Nas redes sociais, por exemplo, vivemos em um tempo em que os debates foram substituídos por embates e combates – sem vencedores.

O que temos presenciado nas últimas semanas é a prova disso, como no debate sobre a maioridade penal, que é do tipo de tema que desperta tantas paixões, principalmente porque só vem à tona sob os gritos das figuras sensacionalistas da mídia que aproveitam episódios trágicos para propagar as suas ideias. E funciona, haja vista os jargões (“bandido bom é bandido morto”, “tá com pena do menor infrator? Leva pra casa” e similares) repetidos de forma automática (à exaustão) nas redes.

Pra completar, os debates no Congresso  de pautas que exigem razão ao extremo, há tempos se tornaram uma extensão dos fóruns mais malcheirosos da internet. Triste.

A insegurança pública não será reduzida magicamente, da noite para o dia, com leis penais paliativas – não é nem nunca foi em nenhum lugar do mundo. A violência não diminuirá sem redução da desigualdade social, da ampliação da cidadania, da garantia de direitos e oportunidades de uma vida digna a todos. As soluções existem, mas demandam tempo, dinheiro e políticas de curto, médio e longo prazo.

A respeito da maioridade penal em si, é preciso levar em consideração o ciclo de violência de uma sociedade desigual, não apenas em termos de riqueza e pobreza, mas principalmente nas condições desiguais em que crescem e são educados os filhos dos ricos e dos pobres. E no tratamento desigual (em termos de oportunidades e possibilidades) que esta mesma sociedade oferece aos criminosos ricos e pobres.

É razoável que a questão da maioridade penal seja avaliada no contexto abrangente que envolve a criminalidade e a violência no Brasil. E também que se leve em consideração a maior amplitude possível de ações e políticas públicas que possibilitem não apenas o tratamento do crime cometido ontem (que envolve tratamento ao criminoso e oferta de justiça à(s) vítima(s) ), que foi notícia e que causa revolta em todos nós, como também e principalmente a justiça social necessária para amanhã, no país que os nossos descendentes herdarão.

Em resumo: qual é o conjunto de ações necessário à redução da criminalidade e da violência em nossa sociedade? E de que forma a sociedade brasileira pode oferecer às suas crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social (ou seja, aqueles que tem convivência próxima e imediata com o crime) oportunidades e possibilidades de um projeto de vida no qual o crime seja desconsiderado como alternativa para o acesso aos bens sociais disponíveis às classes mais favorecidas?

Poucos nas redes sociais parecem se importar em levar em consideração essas nuances preventivas em seus “textões”.

Muito pelo contrário, debates como esse, que exigem um olhar acurado, sempre caem na vala comum dos discursos com gosto de sangue na boca em que os “argumentos” se resumem aos jargões já mencionados e aos “memes” simplistas e descontextualizados.

…Pensando bem, observando a gritaria que toma conta das redes sociais sempre que temas que despertam dicotomias vem à tona, me tornei a favor de uma só redução: a do analfabetismo funcional. Explico.

O analfabetismo funcional, ou seja, saber ler, mas não captar integralmente o teor do que lê, deve ser encarado como um câncer a ser combatido porque causa, em parte, o empobrecimento do debate público, assim como a ascensão de figuras públicas deploráveis (que não vou nomear aqui porque eles já têm publicidade o suficiente). E é um desafio a ser encarado tanto quanto a erradicação do analfabetismo.

Campanha pela leitura

Alguns dados estatísticos ajudam a nos explicar por que o nosso país padece desse mal. Um deles foi exposto na abertura do Seminário Internacional sobre Política Públicas do Livro e Regulação de Preço (realizado em Brasília) pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira, quando ele disse que o Brasil não dá a importância necessária à leitura e que é uma vergonha o nosso índice de livros per capita ser de apenas 1,7 por ano.

O ministro defende que seja feita uma campanha de estímulo à leitura semelhante à contra a paralisia infantil. É por aí. Afinal, o índice de leitura brasileiro ser menor que o de países vizinhos mais pobres que o nosso é um “alerta vermelho” que soa há muito tempo, mas que nossas autoridades vêm ignorando.

O resultado dessa negligência vemos todos os dias na internet, em que a maioria dos assuntos mais comentados são impulsionados justamente pela falta de leitura acerca do que é discutido ou pela má interpretação de textos, de dados, de gráficos etc.

Enfim, o fato é que o Brasil nunca será uma “pátria educadora” se a leitura continuar sendo tratada como “disciplina de segunda classe”nos currículos escolares.

Outro fato: todos nós precisamos de uma educação de qualidade. Nós e eles, os “dimenor”. Todos. Sem exceção.

Esse “papo” de educação e estímulo à leitura desde a infância não vai resolver todos os nosso males, claro, mas a mudança passa por eles. Meu desejo é que os nossos distintos representantes despertem e comecem desde já a construir um país educador e uma sociedade justa com raízes fincadas na razão às próximas gerações.

Otimismo demais? Sim, necessitamos de um pouco de otimismo nesses tempos em que os debates públicos andam tão tresloucados.

http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/08/as-causas-do-analfabetismo-funcional


domingo, 23 de agosto de 2015

Origens do Socialismo


Por Aluizio Moreira


São muitas as referências ao socialismo, e no entanto nem todos conhecem a origem do termo, nem a partir de qual momento histórico  se pensou em socialismo.

Na verdade escrever sobre História do Socialismo, não é tarefa fácil, por mais que pensem o contrário. Evidentemente há muitas discordâncias sobre as origens históricas do socialismo. Por onde começar? Ou seja, a partir de quando podemos estabelecer o surgimento do socialismo enquanto idéia? 

Para G.D.H. Cole ("Historia del Pensamiento Socialista”), a palavra “socialismo” apareceu na imprensa pela primeira vez em 1832, no jornal “Le Globe”, dirigido por Pierre Leroux e foi empregada para caracterizar a doutrina de Saint-Simon. Mas o século XIX não registra somente o aparecimento da palavra “socialismo”. 

Segundo o mesmo autor, na mesma obra, a palavra “comunismo” também surgiu no século XIX  e foi empregada pela primeira vez também na França, relacionada com algumas sociedades revolucionárias secretas que existiram em Paris durante a década de 30 daquele século, enquanto que por volta de 1840, a palavra “comunismo” passou a designar as teorias de Etienne Cabet expostas na sua obra “Viagem à Icária”.

Bem, se as palavras “socialismo” e “comunismo” só apareceram no século XIX (1830/1840), poderíamos determinar aquele século como marco inicial para uma História do Socialismo, ou do Comunismo?

Max Beer, na sua “História do Socialismo e das Lutas Sociais”, identifica a existência do comunismo, como teoria e como prática, desde a Antigüidade: como teoria através do pensamento de Platão, dos estóicos e do cristianismo; como prática nas formas de organização das sociedades palestina (hebreus) e gregas (Esparta e Atenas). Neste caso, poderemos nos orientar por Max Beer fixando a Antigüidade como marco inicial para nossa História do Socialismo, ou antes, do Comunismo?

E se descartarmos Max Beer, o que dizer de Rosa Luxemburgo (“O Socialismo e as Igrejas”) que nos fala de um “comunismo dos primeiros cristãos”? Poderemos acompanhar Rosa Luxemburgo?

Friedrich Engels não volta tanto no tempo.  Em sua obra “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico”, defende que assim como o  “materialismo moderno” é filho da Inglaterra do século XVII, o “socialismo moderno” é filho da França do século XVIII. No entanto, se o “materialismo moderno” não exclui a existência de um “materialismo pré-moderno”, pois os primeiros materialistas existiram na Grécia Antiga, do mesmo modo, admitir um “socialismo moderno” não deverá excluir a existência de um “socialismo pré-moderno”.

No "Manifesto do Partido Comunista", Marx e Engels  chegam a reconhecer a existência de “sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos” ligados aos nomes de Saint-Simon, Fourier e Owen. A expressão “propriamente ditos” quer significar que pode ter existido “sistemas socialistas e comunistas” que não eram  “propriamente ditos”? Se assim for, esses últimos – os “não-propriamente ditos” -   podem ter existido antes de Saint-Simon, Fourier e Owen.

A resposta a essas indagações, só será possível se verificarmos de qual socialismo (e de qual comunismo) estamos falando. Será que socialismo pode ser identificado com qualquer forma de pensamento que condene a propriedade privada? Para ser socialista basta lutar contra a desigualdade social e defender a repartição dos bens entre os que fazem uma determinada sociedade? Um sistema socialista se resumiria na organização de uma seita religiosa, na qual seus membros possam dispor dos bens em comum?

Ora, fala-se muito das tendências que estariam presentes nos movimentos camponeses na fase de transição do feudalismo para o capitalismo na Europa e na política agrária da esquerda jacobina durante a Revolução Francesa de 1789. O que sabemos é que os movimentos camponeses que se verificaram na Europa Ocidental, Central e Oriental nos séculos XV ao XVIII, reivindicaram o acesso às terras pelos trabalhadores do campo; a ala radical dos jacobinos, na fase que assumiu o poder em 1793, elaborou uma política agrária que propunha a repartição da propriedade. o que permitiria aos camponeses pobres o acesso às terras, antes monopólios da nobreza fundiária. 

É bom  observar, no entanto, que em ambos os casos, não se tratava de eliminar a propriedade privada da terra, mas de limitar essa propriedade, facilitando o acesso às terras aos camponeses, transformando-os também em proprietários. Evidências de comunismo? O máximo que podemos admitir, é que uns e outra defenderam a implantação de um "igualitarismo agrário", que não pode ser, de forma alguma, identificado com o comunismo, no sentido moderno do termo.

Talvez a partir de uma definição do que seja socialismo e/ou comunismo,  possamos estabelecer se uma História do Socialismo pode ser iniciada na época dos “Atos dos Apóstolos” , ou da descrição de uma ilha imaginária (“Utopia”, “Icária”, “Nova Atlântida”), ou da publicação de “O Testamento de Jean Meslier”  ou mesmo de “Le Nouveau  Christianisme”?

Como definir socialismo e comunismo se os conceitos mudam de significados no processo de desenvolvimento histórico? Por acaso o conceito de democracia na Grécia Antiga conserva o mesmo sentido da democracia na França do século XVIII? E a democracia na atualidade que se firmou fundamentalmente como o ato de votar e ser votado? O conceito de povo na Roma escravista é o mesmo conceito de povo nos fins do século XIX? E o povo hoje?

Evidentemente o sentido que damos aos termos socialismo e comunismo neste século XXI, não tem o mesmo sentido que davam ao socialismo e ao comunismo aqueles que os defendiam e os propagavam nos séculos XVII e XVIII, pois com toda certeza socialismo e comunismo naqueles séculos abrigavam concepções diferentes, como diferentes são as idéias de um Thomas More em relação às de um Jean Meslier, de um Jean Meslier em relação às de um Saint-Simon, de um Saint-Simon em relação às de um Robert Owen. Mas mesmo diferentes em seus significados, todos aqueles "socialismos" não devem conservar alguma coisa em comum?

No Prefácio que escreveu para a edição inglesa de 1890 do "Manifesto do Partido Comunista", Engels, referindo-se ao fato do Manifesto não ter sido chamado de Manifesto Socialista, assim se justifica:

Em 1847, esta palavra servia para designar dois gêneros de indivíduos. De um lado, os partidários dos diferentes sistemas utópicos, especialmente os owenistas na Inglaterra e os fourieristas na França, ambos já reduzidos a simples seitas agonizantes. Do outro lado, os numerosos curandeiros sociais que queriam, com suas panacéias variadas e com tôda espécie de cataplasmas, suprimir as misérias sociais, sem tocar no capital e no lucro. (MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 2,ed. São Paulo:Escriba, 1968, p. 18-19) 

Para Engels, naquela época, se chamava comunista todo aquele que defendia "a necessidade de uma completa mudança social", já socialista era aquele que com "panacéias variadas e com todas as espécies de cataplasmas", queria "eliminar os males sociais" sem mudar as condições responsáveis pela existência daqueles males. Ou seja, (...) "em 1847, o socialismo era um movimento burguês (a middle-class movement), o comunismo um movimento operário."

Isto significa, entre outras coisas, que socialismo não é sinônimo de movimento revolucionário, nem de uma sociedade qualitativamente nova. Razão pela qual os autores do "Manifesto" chegam a estabelecer uma verdadeira tipologia de socialismo: o socialismo feudal, o socialismo sacro, o socialismo pequeno-burguês, o socialismo conservador, etc.

Nesta altura é possível admitir que a palavra socialismo pode se referir a qualquer tipo de movimento que defenda que as relações entre os homens sejam pautadas pela melhoria das condições de vida e de trabalho da população, pela maior distribuição dos bens entre os cidadãos. . . mas nada disso implicaria  na real transformação da estrutura econômico-social da sociedade, na eliminação da propriedade privada dos meios de produção, no fim da exploração do homem pelo homem.

Referências:
BEER, Max. História do socialismo e das lutas sociais. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, s/d.
COLE, G.D.H. Historia del pensamiento socialista. Mexico: Fundo de Cultura Economica, 1974, vol. 1.
ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo cientifico. São Paulo: Global, 1984.
LUXEMBURGO, Rosa. O socialismo e as Igrejas. 2.ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 2.ed. São Paulo: Escriba, 1968. 

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Educar: “passar” conhecimento ou ensinar a refletir?


Conhecido mundialmente por crítica o ensino tradicional, Cláudio Naranjo  sustenta: na era
da internet, insistir no professor "dono do saber", é tentar formar adultos domesticados

Por Udo Simons, na Revista Educação

Apesar da postura serena, olhar amistoso e voz tranquila, o médico psiquiatra de origem chilena Cláudio Naranjo, 83, é veemente ao falar. “A educação não educa. É uma fraude. Não se deve confundir instrução com educação”, diz, apontando na política pública parte da origem de suas constatações. “É como se o objetivo dos governos fosse manter as pessoas amortecidas.”

Indicado ao Prêmio Nobel da Paz deste ano, Naranjo dedica parte de seu trabalho, há 15 anos, à transformação dos processos de ensino e aprendizagem a partir do reconhecimento de si e do outro. Acredita ser esse um dos principais desafios do milênio. No universo da psicoterapia, é reconhecido como um dos mais significativos profissionais em atuação da atualidade. Há mais de 40 anos em atividade e com diversos livros publicados, Naranjo fundamentou linhas psicológicas, integrou a sabedoria oriental aos processos científicos ocidentais de estudo do comportamento humano, e fundou uma abordagem de desenvolvimento denominada SAT (sigla em inglês para Seekers After Truth), um programa holístico constituído por práticas da psicoterapia moderna, concepções espirituais, meditação, terapias corporais e de gestalt. Com a SAT, tem rodado o mundo todo fazendo palestras para gestores educacionais. No Brasil, em maio, para lançar seu mais recente livro, A revolução que esperávamos (Verbena Editora), também palestrou para pais e professores. Em sua mais nova obra, o psiquiatra afirma que a crise atual só pode ser superada por uma mudança profunda no modelo educacional – evoluindo da transmissão de conhecimento para a formação de competências existenciais. De São Paulo, de onde concedeu a entrevista a seguir para Educação, Naranjo seguiu para a Câmara dos Deputados, em Brasília, para proferir a palestra “A cura pela educação – uma proposta para uma sociedade enferma”.

O que motivou o senhor a desenvolver trabalhos no setor educacional?

No início dos anos 2000 me convidaram para um congresso de educação na Argentina. O evento reuniu mais de dois mil educadores e, pela primeira vez, tive um contato tão direto com o setor. No decorrer de minha palestra, sentia cada vez mais viva a resposta daquelas pessoas. Foi como uma ressonância empática ao que eu falava. Compreendi naquele momento a “sede” dos educadores e a importância de levar a eles meu trabalho de formação, desenvolvido junto aos terapeutas.

Qual seria o diferencial do seu trabalho para os educadores?

Na ocasião desse congresso foram abordados muitos temas relacionados à inteligência emocional, houve a exposição de diversas visões. Apesar disso, senti meu trabalho como algo mais transformador e, ao mesmo tempo, desconhecido da plateia. Contudo, se passassem a conhecê-lo, o trabalho teria um valor social mais abrangente. Tive a certeza de que haveria um efeito multiplicador. Afinal, os professores permeiam a formação das sociedades. Todos passamos por escolas.

Como o senhor define a proposta do seu trabalho?

Eu proponho a junção de conhecimentos e técnicas terapêuticas, como a meditação budista, a psicologia dos eneatipos, o teatro terapêutico, o teatro oriental do autoconhecimento, o movimento espontâneo e o processo terapêutico supervisionado em que as pessoas se ajudam. Isso constitui um currículo interno básico, oferecido no programa SAT. Esse programa foi originalmente constituído na Califórnia, no início dos anos de 1970, e trazido ao Brasil por Alaor Passos, há mais de 20 anos. É um trabalho avançado de autoconhecimento dirigido à transcendência da personalidade, ao desenvolvimento do amor, à melhora da qualidade de vida e da capacidade de ajuda psicoespiritual. Qualquer pessoa pode participar dele. E cada vez mais, eu trabalho para os educadores envolverem-se nesse processo.

Qual tem sido o resultado dessas práticas junto aos professores?

A proposta é estabelecer o desenvolvimento de competências existenciais, não técnicas. Eu as classifico como amor ao próximo (empático); amor aos ideais (devocional); amor a si (desejos); a consciência do presente; o autoconhecimento (quem sou) e o desapego. Essas competências têm sido negligenciadas ao longo dos anos. Percebo que os professores difundem, entre si, os resultados encontrados a partir de suas experiências, de sua transformação. A formação permite a eles que sejam mais completos como pessoas, consequentemente, melhores profissionais. Eles se tornam mais felizes. Lembro, ainda, que essa iniciativa pode chegar àqueles professores constantemente oprimidos pelo sistema, sem condições financeiras adequadas, sem energia. Atingi-los, contudo, não é uma condição simples. Para essas situações as autoridades governamentais e educacionais precisam dar uma resposta.

Como essas “competências” qualificam o educador para o seu trabalho cotidiano?

Para ser um bom educador, ou ser bom profissionalmente em qualquer área, é preciso ser uma boa pessoa. É preciso se relacionar com o outro como pessoa, ser um modelo de pessoa, e não apenas um modelo de saber.

O que o senhor quer dizer com “modelo de pessoa”?

A educação destina-se ao desenvolvimento humano, não à incorporação de conhecimentos. Para quê passar anos oferecendo ao jovem o conhecimento do mundo exterior quando já o encontramos no Google? De que serve essa prática? Isso é um roubo da vida do jovem. Isso serve para quê? Para  passar anos somente para aprender a se sentar quieto? Para treinar a obediência? Nesse contexto, o educador tem imposta uma vestimenta interna de atitude, de respeito à autoridade educacional. Isso dificulta que ele tenha uma voz transformadora.

Que modelo de educação teria esse caráter transformador?

Quando feita para o desenvolvimento humano, a educação nos leva a ser o que somos em potência, ou seja, seres completos. Mas somos como árvores retorcidas que não têm sol por um lado, e esticam seus galhos para conseguir água. Temos uma vida muito raquítica.

Quais as causas dessa situação?

Hoje se governa para a inconsciência. Como se o objetivo da educação fosse manter as pessoas adormecidas, robóticas, obedientes à força do trabalho construída com a Era Industrial, o que continua sendo a motivação opressiva da educação. Não sei, porém, dizer se essa circunstância é uma vontade. Talvez haja indivíduos querendo modificar isso, mas a inércia burocrática é grande demais.

Como se vê nesse contexto?

Como um indivíduo fora do sistema, insultando-o ao dizer: a educação é uma fraude. A educação não educa. Não se deve confundir instrução com educação. Esse modelo fracassou. Minha convicção é que se deve mudar a consciência e para isso é preciso mudar a educação. Apelo à Organização Mundial do Comércio (OMC) como uma instância com poder para fazer parte dessas modificações.

Qual o papel da OMC nessa mudança educacional?

Eles incentivam a globalização dos negócios, mas não favorecem a globalização da ecologia, da educação, entre outros aspectos que deveriam, também, se globalizar. Eles são responsáveis por uma desumanização no mundo. Fala-se muito da pobreza e, sim, é certa a existência de muita pobreza externamente. Mas nossa pobreza interna não é tão visível, tão óbvia. A pobreza gera voracidade, pois estamos incompletos. Somos como zumbis devoradores, transformando os outros em zumbis por contágio. Isso nos torna uma sociedade inconsciente e voraz. O problema do mundo é a voracidade, do poder de ter dinheiro. Da primazia dos bens por cima do bem. Isso só pode ser resolvido se formos seres completos. Temos uma sociedade violenta.

Como incentivar educadores a fazer parte desse trabalho?

É preciso incentivo das autoridades, de governos ou da direção das escolas. Já temos algumas experiências exitosas na Espanha e Itália junto aos professores. Obtivemos, também, resultados positivos no México e Uruguai. Mas o papel da direção das instituições, públicas ou privadas, é importantíssimo para o engajamento dos docentes. Principalmente daqueles mais desmotivados por sua condição de trabalho.

Como engajar autoridades governamentais e educacionais?

Sempre estou disposto a convidar a todos para conhecer essa proposta educacional. Quero en­corajar as autoridades sobre o valor desse processo. Me coloco como um facilitador desse programa que acontece por meio das atividades da Escola SAT, que está aberta a todos, educadores ou não, oferecendo um programa de humanização.

O senhor defende conceitos de pedagogia do amor. O que é isso?

Basicamente, que para a existência de uma pedagogia do amor se requer amar ao próximo como a si mesmo, um preceito do cristianismo. As pessoas não se dão conta de que não se pode amar aos outros sem amar a si. Tampouco se dão conta de que também têm a capacidade de odiar a si mesmas, ao se tratarem como escravas, se explorarem, desvalorizarem. As pessoas têm uma mente como Freud descrevia, como que dividida entre um perseguidor e um perseguido.


sábado, 15 de agosto de 2015

Movidos por ‘segundas intenções’, deputados defendem privatização do sistema prisional


Adital


A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do sistema prisional brasileiro aprovou seu relatório final. O documento não traz novidades sobre a natureza e a extensão dos problemas que acometem a população carcerária – segundo o balanço, de junho de 2014, do Ministério da Justiça, de 607,7 mil pessoas. Maus tratos, violência, falta de condições materiais, falta de acesso à saúde, educação, defesa e trabalho, além da superlotação, continuam compondo o cenário de abandono que caracteriza as prisões brasileiras.

A surpresa desconcertante do relatório está na conclusão sobre o que deve ser feito para mudar o quadro: ignorando a posição de juristas, sindicatos, da sociedade civil e do CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária), os deputados federais apontam a privatização total ou parcial do sistema como saída para a crise – um modelo que vem sendo aplicado em cada vez mais estados, ainda que sem regulamentação.

Deputados que compôem a CPI do Sistema Carcerário visitam 10 presídios
em todo o país, como, por exemplo, o de Pedrinhas, no Maranhão.

Para Marcos Fuchs, diretor adjunto da Conectas e membro do CNPCP, "a conclusão mostra que os deputados veem os presos como uma commodity e o sistema prisional como um mercado em expansão a ser explorado”. "A experiência de países, como os Estados Unidos prova que os interesses econômicos são absolutamente irreconciliáveis com os objetivos do sistema prisional, que deveriam ser a recuperação e a ressocialização. Afinal, não faria sentido apostar em um mercado sem, ao mesmo tempo, trabalhar por sua ampliação – o que, nesse caso, significa privar cada vez mais pessoas de liberdade. Há um claro conflito de interesses”.

Segundo o Ministério da Justiça, a taxa de encarceramento brasileira (número de presos para cada grupo de 100 mil pessoas) cresceu quase 120% desde o ano 2000. Entre os quatro países com as maiores populações carcerárias do mundo (Estados Unidos, China, Rússia e Brasil), a taxa brasileira é a única que aumenta. De acordo com levantamento de 2014, da Pastoral Carcerária, mais de 20 mil presos em sete estados cumprem pena em cadeias privatizadas.

Na entrevista abaixo, Fuchs explica por que, ao contrário do que afirmam os deputados, a expansão desse modelo é prejudicial para a política prisional brasileira.

Internos nos presídios brasileiros vivem em condições sub-humanas de
superlotação e violência. 

Na prática, o que significa privatizar um presídio?

Hoje, a privatização se dá de vários modos e em diferentes graus no sistema prisional. Ela acontece quando o Estado delega a uma empresa a execução de um ou vários serviços, que podem ir da limpeza e do fornecimento de marmitas à construção e administração do presídio, passando pela segurança e o atendimento médico. Há casos, inclusive, da privatização do serviço de assistência jurídica – ou seja, o advogado que atende ao preso é contratado pela mesma empresa que administra a unidade, em claro conflito de interesses.

Por que é um erro defender a privatização, como faz o relatório da CPI?

Primeiro, porque essa conclusão mostra que os deputados veem os presos como uma commodity e o sistema prisional como um mercado em expansão a ser explorado. Não pode ser assim. A experiência de países, como os Estados Unidos, prova que os interesses econômicos são absolutamente irreconciliáveis com os objetivos do sistema prisional, que deveriam ser a recuperação e a ressocialização. Afinal, não faria sentido apostar em um mercado sem, ao mesmo tempo, trabalhar por sua ampliação – o que, nesse caso, significa privar cada vez mais pessoas de liberdade. Há um claro conflito de interesses.

Marcos Fuchs, diretor da Conectas, alerta que as experiências de privatização
de presídios em outros países fracassaram.

Mas os deputados afirmam que a privatização é mais barata e eficiente.

Também é preciso refutar esse argumento econômico. Os números utilizados pelos deputados no relatório derivam de uma única fonte, a Abesp (Associação Brasileira de Empresas Especializadas na Prestação de Serviços a Presídios). Não há qualquer evidência empírica de que a privatização seja menos onerosa para os cofres públicos. Inclusive, há vastos exemplos de que é justamente o oposto. O Paraná, primeiro estado a adotar a privatização no sistema prisional, já voltou atrás e retomou o controle de todas as unidades. O Reino Unido já aboliu esse modelo, a Alemanha o proibiu. Um estudo do Departamento de Justiça dos Estados Unidos foi enfático ao afirmar que o custo-benefício propagado pelas empresas e pelas autoridades não se materializou.

E do ponto de vista das condições de detenção? O presídio privado é melhor que o público?

Para fazer essa comparação, seria preciso partir de um ponto em comum, o que é impossível porque os presídios privados são beneficiados com a possibilidade de não receberem mais pessoas do que os contratos estabelecem e também de escolherem o perfil de presos que querem abrigar. Os presídios privados operam em uma realidade bastante diferenciada, privilegiada, eu diria. É preciso pontuar ainda que o repasse de verbas por preso para o sistema privado é maior do que no sistema público, como mostra o próprio relatório da CPI. Como seriam as condições nos presídios públicos se o investimento do Estado fosse o mesmo?

Por outro lado, não são incomuns as situações de crise em presídios onde grande parte dos serviços é privatizada. Um exemplo trágico é o caso de Pedrinhas, no Maranhão, onde praticamente toda a segurança é feita por terceirizados. Essas pessoas recebem salários muito menores, estão menos preparadas e, às vezes, sequer sabem que vão lidar diretamente com os presos quando são contratadas.


FONTE: Adital

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Partido revolucionário sem prática revolucionária?


Por Aluizio Moreira


Muito se tem discutido acerca do socialismo do século XXI: novas táticas, novas estratégias, revisão de princípios, exclusão dos programas dos partidos de qualquer referência ao comunismo ou ao socialismo, mudanças dos nomes dos partidos. . . e por aí vai.

Embora a tendência social-democrática que sempre apostou na via parlamentar nunca tenha deixado de existir, mas em desvantagens em relação ao comunismo prevalecente que pregava o assalto ao poder pelos trabalhadores,  parece-nos que a prática comunista que marcou as diversas formas de luta revolucionária nos séculos XIX/XX, arrefeceu, e muito.

Por outro lado, faz parte da memória revolucionária, o tempo em que ser revolucionário era um misto de homem de pensamento e homem de ação, antes que as questões do socialismo e do comunismo se transformassem em discussões para temas de trabalhos acadêmicos.

Os partidos comunistas (salvo raríssimas exceções) entraram no esquema da prática eleitoral comum a todos os partidos burgueses, disputando número de parlamentares no legislativo e funções ministeriais no executivo, como se isso pudesse, como consequência, contribuir  para transformar a sociedade capitalista em sociedade socialista. Ou talvez nem mais defendam qualquer ação transformadora. Assume-se uma posição verdadeiramente reformista ou até mesmo conservadora.

Na verdade continuamos  a “interpretar o mundo de várias formas”. Não importa “transformá-lo”.

Evidente que participar da vida parlamentar pode trazer algumas contribuições mais imediatas como interferir na política orçamentária em favor da saúde e educação, barrar projetos que firam os interesses dos trabalhadores e/ou das minorias, denunciar as grandes negociatas envolvendo as empresas monopolistas internacionais, defender a soberania nacional ante a intromissão de outros países e, sobretudo defender as conquistas dos trabalhadores conseguidas com muitas lutas. 

É fundamental que paralelamente a esses posicionamentos na vida parlamentar ou ministerial, o partido desenvolva uma prática junto aos trabalhadores urbanos e rurais, junto aos excluídos, ou seja, junto ao povo, no sentido de sua organização e sua formação política. 

O que não se pode é perder de vista que o partido que assumir/participar do poder num pais capitalista, por mais radical de esquerda que seja esse partido, implica desenvolver um conjunto de ações que sirva de gerenciamento do capital, reproduzindo-o enquanto sistema.

Aliás, sobre a questão parlamentar gostaríamos de deixar registrado o pensamento de Rosa Luxemburgo no artigo “Questões de organização da socialdemocracia russa” escrito em 1904, isto  há 111 anos antes.

...o parlamentarismo é o viveiro especifico da atual corrente oportunista no movimento socialista da Europa Ocidental, dele provêm igualmente as tendências particulares do oportunismo para a desorganização. O parlamentarismo não apenas mantém todas as notórias ilusões do atual oportunismo, tais como as conhecemos na França, Itália e Alemanha: a supervalorização do trabalho de reformas, a colaboração das classes e dos partidos, o desenvolvimento pacifico etc.

Ao se tratar sobre a questão do partido revolucionário versus prática revolucionária,  podemos afirmar que não há como um partido comunista, ou se preferirem, um partido operário, submetendo-se às regras do jogo parlamentar burguês pela imposição do capital, promover uma transformação da sociedade no sentido do socialismo, ou se preferirem pelo espectro que o termo pode representar, de uma sociedade igualitária.

A chamada “governabilidade” não é simples figura de retórica. Ela faz parte de um sistema de acordos, de alianças, mesmo conjunturais, sem os quais os parlamentares boicotam quaisquer pretensões emanadas do governo,  que se contraponham, de alguma forma, aos interesses da classe dominante, incrustada ou não no poder.

Por mais comprometido que seja determinado partido com as causas populares, que tenha como objetivo programático a instituição de uma sociedade para além do capital, as conquistas que ocasionalmente ocorram, não passarão de reformas nos limites aceitáveis pelo sistema.

Assim, abandona-se a defesa de uma reforma agrária (se faz assentamentos), não se investe no ensino público (colabora-se para  sua comercialização), não se melhora o sistema público de saúde (incentiva-se os planos privados de assistência médica), não se assume uma política de defesa do meio ambiente (entrega-se a particulares a “tarefa” de destruir rios e florestas). E quando, por exemplo, o governo reduz os preços dos produtos industrializados, não o motiva beneficiar a população com o preço baixo,  procura-se prioritariamente  evitar um colapso nas empresas. Passada a ameaça de crise, tudo volta ao que era antes.

Mas, sob quais condições a classe trabalhadora logrou participar do parlamento burguês?

É o que nos esclarece  István Mészáros (Atualidade histórica da ofensiva socialista): 

        O surgimento da classe operária na cena histórica foi apenas um acréscimo inconveniente ao sistema parlamentar, constituído bem antes de as primeiras forças organizadas do movimento operário tentarem manifestar em público os interesses vitais de sua classe. Do ponto de vista do capital, a resposta imediata a esse inconveniente mas  crescente “incômodo”, foi a rejeição e a exclusão dos grupos políticos operários. Mais tarde, entretanto, uma ideia muito mais adaptável foi instituída pelas personificações políticas mais ágeis do capital: domesticar de algum modo as forças do trabalho. Ela assumiu de início a forma do patrocínio parlamentar paternalista de algumas demandas da classe trabalhadora por partidos políticos burgueses relativamente progressistas e, mais tarde, a da aceitação da legitimidade dos partidos da classe trabalhadora no próprio Parlamento, embora, é claro de uma maneira estritamente circunscrita, obrigando-os a se conformar às regras democráticas do jogo parlamentar. (p. 34-35)  

Poderia ser de outra forma? Evidente que não. É a lógica do capital. Na medida em  que “direta ou indiretamente o capital  controla tudo inclusive o processo legislativo parlamentar, ainda que se suponha que este seja considerado totalmente independente do capital em muitas teorias que hipostasiam a “igualdade democrática” de todas as forças políticas que participam do processo legislativo". (p. 36)

Compreender isso é de uma importância fundamental para quem quer mudar o mundo.


sábado, 8 de agosto de 2015

25 anos impune: Chacina do Acari revela falência do sistema de justiça brasileiro


Adital

Há exatos 25 anos, o Brasil e o mundo tomavam conhecimento do desaparecimento de 11 jovens no Rio de Janeiro. O episódio ficou conhecido como a "Chacina do Acari” e segue na mais completa impunidade. Os corpos nunca foram localizados e os responsáveis não foram levados à justiça. Esta realidade revela a total a incapacidade do Estado brasileiro de garantir justiça para os casos de violência policial, desaparecimentos forçados e mortes por grupos de extermínio no país.

Mães de Acari, em luta contra a impunidade desde 1992

A Anistia Internacional assinala que a impunidade tem sido uma forma de continuidade da violência contra os jovens, geralmente negros, e suas famílias. Ainda assim as mães dos jovens de Acari continuam lutando por justiça e contra a violência dos grupos de extermínio na região. Elas já foram intimidadas e ameaçadas. Em 1992, a Anistia pediu proteção às mães, após a denúncia de que policiais militares as ameaçaram com "um destino pior do que seu filho (a)”.

A ameaça foi cumprida. Em 1993, Edméia da Silva Euzébio, uma das mães mais empenhadas na luta por justiça, foi morta violentamente. Ela foi assassinada quando buscava informações sobre o paradeiro do seu filho. Edméia costumava visitar locais de desovas de corpos, hospitais, Institutos Médicos Legais e cemitérios clandestinos na busca por respostas.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recebeu a denúncia do homicídio de Edméia, no dia 11 de julho de 2011. Sete pessoas são acusadas pelo crime, a maioria policiais militares, incluindo o ex-comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, então responsável pelo policiamento da região de Acari, subúrbio do Rio de Janeiro. Vinte e dois anos já se passaram da morte de Edméia e o processo continua na fase de instrução e julgamento, não sendo encaminhado para o júri.

Para a Anistia, a lentidão no processo judicial é injustificável e mostra a falência e a seletividade do sistema de justiça criminal no Brasil. Depois de 22 anos, a responsabilização pelo crime fica cada vez mais difícil, pois várias testemunhas já morreram ou não podem mais ser localizadas. A falta de resolução ainda cria um clima de insegurança para a família e as testemunhas arroladas no processo que, até hoje, vivem com medo de sofrerem retaliações.

"Ao todo, nove governadores passaram pelo Governo do Rio de Janeiro nesse período, mas nenhum foi capaz de dar um fim à impunidade e à injustiça que cercam o caso. Possivelmente, o mesmo grupo de extermínio esteve envolvido em outras chacinas, mas a resposta inaceitável do Estado durante todos estes anos, foi a protelação da justiça, a impunidade frente à corrupção de seus agentes e o descaso com as famílias”, destaca Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil. "A violência policial continua sendo uma realidade e não podemos nos calar diante da perpetuação de territórios de exceção nas favelas e periferias. Todos os cidadãos merecem ter seus direitos respeitados”, completa.

Até hoje, a maioria das famílias não recebeu a certidão de ausência ou morte presumida de seus filhos e filhas. Não há uma certidão de óbito oficial que comprove a morte dos jovens. A falta desse reconhecimento impediu as famílias de receberem uma pensão por parte do Estado. A única reparação oferecida às famílias foi uma quantia irrisória de R$10 mil, mas nem todos receberam.

"É inadmissível que um caso como a Chacina de Acari fique impune, que as famílias não tenham tido reparação adequada e que o caso de Edméia não tenha sido julgado, mesmo depois de 22 anos de seu assassinato. A impunidade dos casos de mortes em que há envolvimento de policiais e outros agentes do estado alimenta o ciclo de violência no Rio de Janeiro. A impunidade dos crimes do passado alimenta a violência do presente”, conclui o diretor executivo da Anistia.

A Chacina de Acari

Em 26 de julho de 1990, 11 jovens, sendo sete menores de idade — em sua maioria residentes na favela do Acari e proximidades — foram retirados de um sítio localizado em Suruí, bairro do município de Magé (Estado do Rio de Janeiro), por um grupo de homens que se identificaram como policiais, e levadas para um destino desconhecido.

A Anistia Internacional relatou, em 1994, que as pessoas que levaram os jovens haviam sido identificadas pelo Setor de Inteligência da Polícia Militar como policiais do 9º Batalhão, em Rocha Miranda, e como detetives do Departamento de Roubo de Carga, da 39ª Delegacia de Polícia da Pavuna, ambos na cidade do Rio de Janeiro. A investigação indicava que os policiais militares envolvidos vinham extorquindo algumas das vítimas antes do seu desaparecimento forçado.

Até hoje seus paradeiros não foram descobertos e os responsáveis não foram levados à Justiça. O inquérito policial ficou em aberto por 20 anos, tendo sido arquivado em 2010.

Mesmo diante do contexto de violência, calúnia e ameaças, as mães dos jovens desaparecidos se uniram para buscarem justiça. O movimento ficou conhecido como "Mães de Acari”. Hoje, das 11 mães, pelo menos três estão mortas. Uma delas foi brutalmente assassinada por supostamente ter encontrado informações sobre o paradeiro dos jovens. Edméia Euzébio, mãe de Luiz Henrique e líder do movimento, e Sheila Conceição, sua cunhada, sofreram uma emboscada e foram assassinadas no estacionamento do metrô Praça XI, em 1993, após visitarem um detento no presídio Hélio Gomes. Em outubro de 2012, Marilene Lima de Souza, mãe de Rosana de Souza Santos, faleceu em consequência de um tumor no cérebro. Em agosto de 2003, Vera Lucia Flores Leite, mãe de Cristiane Souza Leite, faleceu devido a problemas de saúde.

Atuação da Anistia Internacional

Nos anos 1990, a Anistia Internacional acompanhou de perto o caso da Chacina de Acari, enviando pesquisadores para pressionar o governo estadual, articular encontros com o Ministério Público e outras instâncias envolvidas e dar suporte às Mães de Acari. Desde a chacina, a organização de direitos humanos passou a acompanhar outros casos semelhantes que se repetiram no Rio de Janeiro.

Em documento publicado em janeiro de 1992, a Anistia Internacional relata as descobertas sobre a atuação de grupo de extermínio, o encontro com o então secretário estadual de Segurança Pública; identificação de militares que nunca foram levados à justiça e as ameaças de morte contra as mães dos jovens desaparecidos. O documento foi encaminhado a todas as seções da Anistia no mundo, com pedido para que pressionassem as autoridades brasileiras por justiça.

Em outro documento, complementar ao de 1992, a organização convoca, novamente, as seções para se mobilizarem pela segurança das Mães de Acari, imediatamente após o assassinato de Edméia Euzébio. Mais uma vez, as principais autoridades do país receberam os apelos internacionais.

Nos anos seguintes, a Anistia acompanhou os casos da Chacina da Candelária, Vigário Geral e da Baixada Fluminense e publicou os documentos: "Vim buscar sua alma", "Brasil: eles chegam atirando”, Violência policial e os 500 anos do Brasil”, "10 anos após Vigário Geral e Candelária”.

Em agosto de 2015, a organização lançará um novo relatório com dados inéditos sobre a violência policial no Rio de Janeiro, cidade-sede das Olimpíadas de 2016.

Os 11 de Acari:

Rosana Souza Santos, 17 anos – filha de Marilene Lima e Souza;
Cristiane Souza Leite, 17 anos – filha de Vera Lúcia Flores;
Luiz Henrique da Silva Euzébio, 16 anos – filho de Edméia da Silva Euzébio;
Hudson de Oliveira Silva, 16 anos – filho de Ana Maria da Silva;
Edson Souza Costa, 16 anos – filho de Joana Euzilar dos Santos;
Antônio Carlos da Silva, 17 anos – filho de Laudicena Oliveira do Nascimento
Viviane Rocha da Silva, 13 anos – filha de Márcia da Silva;
Wallace Oliveira do Nascimento, 17 anos – filho de Maria das Graças do Nascimento;
Hédio Oliveira do Nascimento, 30 anos – filho de Denise Vasconcelos;
Moisés Santos Cruz, 26 anos – filho de Ednéia Santos Cruz;
Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, 32 anos – filho de Teresa Souza Costa.


FONTE: Adital

sábado, 1 de agosto de 2015

A supreendente ascensão do feminismo negro


1ª Marcha do Orgulho Crespo, dia 26 de julho em São Paulo
Marcha do Orgulho Crespo. Virada Feminista. Oficinas de Tranças e Turbantes. 
Julho das Pretas. Multiplicam-se iniciativas que afirmam: democracia feminista
será preta, pobre e periférica - ou não será


Por Inês Castilho | Imagem Paulo Ermantino


São evidentes os sinais de maturidade e crescimento da onda do feminismo negro. Nas ruas já se fazem notar os cabelos crespos ou trançados e turbantes coloridos, na contracultura do alisamento que marcou os penteados femininos, das brancas inclusive, nos últimos tempos. Décadas de luta do movimento negro, somadas às políticas públicas inclusivas nas universidades, à multiplicação de saraus pela periferia e de blogueiras negras na rede já exibem seus frutos.

Neste segundo semestre, eventos se sucedem com grande velocidade em São Paulo: da primeira Virada Feminista, 4 e 5 de julho na Zona Norte, à 1ª Marcha do Orgulho Crespo pelo dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, 25 de julho, em preparação à Marcha sobre Brasília pela Consciência Negra, em novembro, de caráter nacional, anunciada com um Manifesto contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. E ainda o lançamento do livro didático e fotobiografia da antropóloga e ativista Lélia Gonzalez, que encarna grande parte dessa história.



“Enegrecer o Feminismo”, roda da Virada Feminista, deixou “de cara, estimulada pela grande presença de mulheres negras” a educadora artística Margot Ribas, que estava ali para falar da partidA – movimento nascente de mulheres, predominantemente brancas, para a possível construção de um partido feminista. “Foi prazeroso participar da oficina de turbantes, dar uma xeretada nas bruxas que ensinavam poções como alternativa aos remédios da indústria farmacêutica, e encontrar velhas amigas da militância das mulheres”, comentou.

Ali mesmo foi divulgada a próxima atividade, preparativa à edição nacional da Marcha das Mulheres Negras marcada para 18 de novembro em Brasília. “Nossos passos vêm de longe – narrativas de mulheres negras” é uma entre as muitas ações do Julho das Pretas, de programação extensa sobre saúde, feminismo negro, genocídio da juventude negra, representações e intervenções artísticas.

A 1ª Marcha do Orgulho Crespo, organizada pelos grupos Hot Pente,  Blog das Cabeludas  e Casa Amarela ocorreu neste domingo, 26 de julho, no vão livre do Masp, de onde seguiu pela Avenida Paulista até a ocupação artística da Consolação. Também para marcar a data, a Cidade Tiradentes preparou a 1ª mostra cultural Mulher Afro Latinoamericana e Caribenha. E ainda no dia 25 aconteceu a Ocupação Preta no Centro Cultural da Penha com oficina de turbantes, roda de conversa e show de mulheres rappers e do hip hop: “pulsante produção realizada por artistas, coletivos, grupos e companhias de teatro e dança que produzem arte engajada que coloca em xeque o mito da democracia racial”.


As oficinas de trança e turbante se multiplicam pela cidade e são um hit nesses eventos. Os incríveis trançados, cores e formas desses adereços são ao mesmo tempo instrumento de beleza e afirmação cultural, a exemplo do que ocorre nos EUA – como retratado pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie em Americanah, livro de cabeceira de muitas e muitos em vários cantos do mundo.

Nós da rede

Algumas falas recolhidas na Virada Feminista denotam a intrincada confluência em que se encontra esse levante feminista negro, tão igual e ao mesmo tempo diferente do feminismo branco, também em plena onda. ”A mulher negra é invisível no feminismo. O feminismo que está aí não nos tem como referência”; ”A mulher branca brigou pra ir trabalhar. A mulher negra sempre trabalhou e luta por seus direitos, pra ser tratada com dignidade no trabalho. Só recentemente conseguiu os direitos trabalhistas como doméstica.”

Para Margot Ribas, um feminismo que não reconhece a existência de uma condição específica da mulher negra está mal informado. “O racismo é tão forte e naturalizado na nossa sociedade que as pessoas são racistas até por automatismo. É esse racismo velado e automático que impede a população negra de avançar socialmente”, observa ela, cabelos afro. “Temos muito que conversar. Racismo é assunto delicado, espinhoso e necessário.”

O feminismo negro encontra-se em terreno delicado também frente aos homens do movimento negro. ”Quando as mulheres querem se organizar, os homens dizem que queremos rachar o movimento”; ”A gente quer um espaço só nosso. Toda hora voltar atrás e ver o que os homens acham não dá mais. Temos que buscar autonomia.” ”A mulher negra está entre o racismo e o machismo” – resume uma das falas.

As feministas negras apontam os vícios das narrativas e representações das pretas na educação formal e informal. ”Na mídia a mulher negra ou é objetificada ou vista no papel da empregada, que não tem vida própria, não tem família”; “Desde a escola, a mulher negra não existe como protagonista. As crianças não conseguem citar um nome sequer”; ”Tem que ter feminismo na escola.”

O surpreendente ascenso das mulheres negras ganhou impulso com a instituição do ProUni (Programa Universidade para Todos), em 2005, das cotas para negros e indígenas nas universidades e, mais recentemente, no programa de ação afirmativa na pós-graduação coordenado pela saudosa Fulvia Rosemberg, da Fundação Carlos Chagas.

Contudo, o artigo O quanto somos pretas, do grupo Nós Mulheres da Periferia, mostra como ainda é dramática sua inserção social. “Na base da sociedade, a mulher negra tem um rendimento médio de R$ 760,27, inferior ao do homem negro. A mulher branca (R$ 1.437,64) ocupa posição superior ao do homem negro, mas ainda não atinge o homem branco. Em termos de igualdade de gênero, estamos duas casas atrás no ‘jogo da vida’.  O ensino superior tem atingido apenas 10,9% das pretas. Nos cargos de direção das empresas privadas, somente 9% têm liderança negra e feminina.”

Segundo dados do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) de 2011, 61,6% das 6,5 milhões de mulheres que exercem o trabalho doméstico remunerado no Brasil são negras, pobres e com baixa escolaridade, a maioria sem vínculo trabalhista formal. Na Câmara dos Deputados, as pretas são 0,6% e as pardas 1,6%, entre 8,3% de mulheres brancas e 71% de homens brancos, 15% de pardos e 3,5% de pretos.


Lélia Gonzalez (1935-1994)
Raízes

O lançamento, em 15 de julho, do Projeto Memória Lélia Gonzalez, veio regar as raízes dessa frutificação exuberante. Lélia, que escrevia em “pretuguês”, recriando a língua para falar da história do seu povo, “enegreceu o movimento feminista e feminizou a raça”, como afirma a filósofa Sueli Carneiro, herdeira intelectual de Lélia e autora de sua fotobiografia. Colaboradora do jornal feminista Mulherio (1981-1988) desde as primeiras edições, deixou grande legado nos estudos sobre raça e gênero do país, além de originar com sua obra diversos outros trabalhos.

Naquela tarde, o clima era esfuziante no Centro Cultural Banco do Brasil. Cabelos e turbantes em rostos negros sorridentes, alguns homens, poucas brancas: Eva Blay, que presidiu o primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina (1983), Beth Vargas, convidada para a ouvidoria da Faculdade de Medicina da USP depois do escândalo da violência contra as estudantes, Schuma Schumaher, anfitriã do evento pela Redeh, ao lado do Geledés.

A noite era de encontro e eu estava lá, cabelos quase brancos. De volta. Quando finalmente cheguei à mesa em que Sueli Carneiro autografava os livros, um abraço emocionado e a dedicatória lembrando “Mulherio, uma das casas preferidas de Lélia e memória de nossa nascente, possível e desafiadora sororidade.”

Oxalá! A democracia feminista será preta, pobre e periférica – ou não será.


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...