1ª Marcha do Orgulho Crespo, dia 26 de julho em São Paulo |
Marcha do Orgulho Crespo. Virada Feminista. Oficinas de Tranças e Turbantes.
Julho das Pretas. Multiplicam-se iniciativas que afirmam: democracia feminista
será preta, pobre e periférica - ou não será
Por Inês Castilho | Imagem Paulo Ermantino
São evidentes os sinais de maturidade e crescimento da onda do feminismo negro. Nas ruas já se fazem notar os cabelos crespos ou trançados e turbantes coloridos, na contracultura do alisamento que marcou os penteados femininos, das brancas inclusive, nos últimos tempos. Décadas de luta do movimento negro, somadas às políticas públicas inclusivas nas universidades, à multiplicação de saraus pela periferia e de blogueiras negras na rede já exibem seus frutos.
Neste segundo semestre, eventos se sucedem com grande velocidade em São Paulo: da primeira Virada Feminista, 4 e 5 de julho na Zona Norte, à 1ª Marcha do Orgulho Crespo pelo dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, 25 de julho, em preparação à Marcha sobre Brasília pela Consciência Negra, em novembro, de caráter nacional, anunciada com um Manifesto contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver. E ainda o lançamento do livro didático e fotobiografia da antropóloga e ativista Lélia Gonzalez, que encarna grande parte dessa história.
“Enegrecer o Feminismo”, roda da Virada Feminista, deixou “de cara, estimulada pela grande presença de mulheres negras” a educadora artística Margot Ribas, que estava ali para falar da partidA – movimento nascente de mulheres, predominantemente brancas, para a possível construção de um partido feminista. “Foi prazeroso participar da oficina de turbantes, dar uma xeretada nas bruxas que ensinavam poções como alternativa aos remédios da indústria farmacêutica, e encontrar velhas amigas da militância das mulheres”, comentou.
Ali mesmo foi divulgada a próxima atividade, preparativa à edição nacional da Marcha das Mulheres Negras marcada para 18 de novembro em Brasília. “Nossos passos vêm de longe – narrativas de mulheres negras” é uma entre as muitas ações do Julho das Pretas, de programação extensa sobre saúde, feminismo negro, genocídio da juventude negra, representações e intervenções artísticas.
A 1ª Marcha do Orgulho Crespo, organizada pelos grupos Hot Pente, Blog das Cabeludas e Casa Amarela ocorreu neste domingo, 26 de julho, no vão livre do Masp, de onde seguiu pela Avenida Paulista até a ocupação artística da Consolação. Também para marcar a data, a Cidade Tiradentes preparou a 1ª mostra cultural Mulher Afro Latinoamericana e Caribenha. E ainda no dia 25 aconteceu a Ocupação Preta no Centro Cultural da Penha com oficina de turbantes, roda de conversa e show de mulheres rappers e do hip hop: “pulsante produção realizada por artistas, coletivos, grupos e companhias de teatro e dança que produzem arte engajada que coloca em xeque o mito da democracia racial”.
As oficinas de trança e turbante se multiplicam pela cidade e são um hit nesses eventos. Os incríveis trançados, cores e formas desses adereços são ao mesmo tempo instrumento de beleza e afirmação cultural, a exemplo do que ocorre nos EUA – como retratado pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie em Americanah, livro de cabeceira de muitas e muitos em vários cantos do mundo.
Nós da rede
Algumas falas recolhidas na Virada Feminista denotam a intrincada confluência em que se encontra esse levante feminista negro, tão igual e ao mesmo tempo diferente do feminismo branco, também em plena onda. ”A mulher negra é invisível no feminismo. O feminismo que está aí não nos tem como referência”; ”A mulher branca brigou pra ir trabalhar. A mulher negra sempre trabalhou e luta por seus direitos, pra ser tratada com dignidade no trabalho. Só recentemente conseguiu os direitos trabalhistas como doméstica.”
Para Margot Ribas, um feminismo que não reconhece a existência de uma condição específica da mulher negra está mal informado. “O racismo é tão forte e naturalizado na nossa sociedade que as pessoas são racistas até por automatismo. É esse racismo velado e automático que impede a população negra de avançar socialmente”, observa ela, cabelos afro. “Temos muito que conversar. Racismo é assunto delicado, espinhoso e necessário.”
O feminismo negro encontra-se em terreno delicado também frente aos homens do movimento negro. ”Quando as mulheres querem se organizar, os homens dizem que queremos rachar o movimento”; ”A gente quer um espaço só nosso. Toda hora voltar atrás e ver o que os homens acham não dá mais. Temos que buscar autonomia.” ”A mulher negra está entre o racismo e o machismo” – resume uma das falas.
As feministas negras apontam os vícios das narrativas e representações das pretas na educação formal e informal. ”Na mídia a mulher negra ou é objetificada ou vista no papel da empregada, que não tem vida própria, não tem família”; “Desde a escola, a mulher negra não existe como protagonista. As crianças não conseguem citar um nome sequer”; ”Tem que ter feminismo na escola.”
O surpreendente ascenso das mulheres negras ganhou impulso com a instituição do ProUni (Programa Universidade para Todos), em 2005, das cotas para negros e indígenas nas universidades e, mais recentemente, no programa de ação afirmativa na pós-graduação coordenado pela saudosa Fulvia Rosemberg, da Fundação Carlos Chagas.
Contudo, o artigo O quanto somos pretas, do grupo Nós Mulheres da Periferia, mostra como ainda é dramática sua inserção social. “Na base da sociedade, a mulher negra tem um rendimento médio de R$ 760,27, inferior ao do homem negro. A mulher branca (R$ 1.437,64) ocupa posição superior ao do homem negro, mas ainda não atinge o homem branco. Em termos de igualdade de gênero, estamos duas casas atrás no ‘jogo da vida’. O ensino superior tem atingido apenas 10,9% das pretas. Nos cargos de direção das empresas privadas, somente 9% têm liderança negra e feminina.”
Segundo dados do Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) de 2011, 61,6% das 6,5 milhões de mulheres que exercem o trabalho doméstico remunerado no Brasil são negras, pobres e com baixa escolaridade, a maioria sem vínculo trabalhista formal. Na Câmara dos Deputados, as pretas são 0,6% e as pardas 1,6%, entre 8,3% de mulheres brancas e 71% de homens brancos, 15% de pardos e 3,5% de pretos.
Lélia Gonzalez (1935-1994) |
Raízes
O lançamento, em 15 de julho, do Projeto Memória Lélia Gonzalez, veio regar as raízes dessa frutificação exuberante. Lélia, que escrevia em “pretuguês”, recriando a língua para falar da história do seu povo, “enegreceu o movimento feminista e feminizou a raça”, como afirma a filósofa Sueli Carneiro, herdeira intelectual de Lélia e autora de sua fotobiografia. Colaboradora do jornal feminista Mulherio (1981-1988) desde as primeiras edições, deixou grande legado nos estudos sobre raça e gênero do país, além de originar com sua obra diversos outros trabalhos.
Naquela tarde, o clima era esfuziante no Centro Cultural Banco do Brasil. Cabelos e turbantes em rostos negros sorridentes, alguns homens, poucas brancas: Eva Blay, que presidiu o primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina (1983), Beth Vargas, convidada para a ouvidoria da Faculdade de Medicina da USP depois do escândalo da violência contra as estudantes, Schuma Schumaher, anfitriã do evento pela Redeh, ao lado do Geledés.
A noite era de encontro e eu estava lá, cabelos quase brancos. De volta. Quando finalmente cheguei à mesa em que Sueli Carneiro autografava os livros, um abraço emocionado e a dedicatória lembrando “Mulherio, uma das casas preferidas de Lélia e memória de nossa nascente, possível e desafiadora sororidade.”
Oxalá! A democracia feminista será preta, pobre e periférica – ou não será.
FONTE: Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário