sábado, 30 de junho de 2018

Privatização, financeirização e monopolização: a educação brasileira em cheque





Ricardo Alvarez O gesto clássico das privatizações passa pelo martelo batido e sorriso na boca dos investidores. Na educação os métodos são outros: lentos e graduais, porém eficazes e agressivos. O que sobra são escolas mercantilizadas e rentáveis, mas distantes de seus objetivos centrais como espaço de construção do saber, estímulo à convivência e desenvolvimento da crítica.

Num olhar retrospectivo os destinos da educação brasileira preocupam. E muito. Não se trata de alarmismo profético, mas da simples compreensão do que vem ocorrendo nas últimas décadas.

Fase 1 da privatização: ascensão do neoliberalismo (governo FHC)

Durante os governos militares a educação tomou borrachada com as aulas de moral e civismo e o pensamento crítico foi afogado pela repressão, pois a ideia era formar mão de obra em massa para as fábricas que se expandiam pelas grandes cidades. Nada de qualidade, nada de produção de conhecimento, mas muito de autoridade, hierarquia e disciplina, atributos desejados pelas empresas.

Com o esgotamento do ciclo militar de 64 vieram as lições do neoliberalismo tatcheriano, rapidamente assimiladas pelo tucanato e seus satélites no poder.

FHC embevecido com a onda mundial privatizante tratou de preparar o terreno para nossa inserção global subordinada e abriu as portas da educação ao mercado, como o fez em outros setores, diga-se de passagem. O Conselho Nacional de Educação começa a ser tomado pelos empresários do setor e privatistas ideológicos, fragilizando normas e abrandando regulamentações, tudo com o incentivo desavergonhado do MEC (Ministério da Educação). A privatização começa a tomar corpo.

Estava em pleno curso a reestruturação econômica que liquidaria o nacional-desenvolvimentismo e prepararia o terreno para reprimarização produtiva (agronegócio e exportação de commodities) e financeirização da circulação de capital. A educação acompanhará necessariamente esta trajetória errática.

O maior impacto destas mudanças se projetará no ensino superior. Programas de bolsas de estudos com recursos públicos voltadas para Instituições de Ensino Superior privadas (IES) fazem a festa dos empresários da educação, chegando ao cúmulo de algumas empresas do ramo sobreviveram com 80% de suas receitas provenientes destas transferências.

Os mesmos segmentos que sustentavam a eficiência privada e o livre mercado como remédio para a pretensa ineficiência do Estado, reivindicavam bolsas de estudos na manutenção e expansão de seus negócios.

Fase 2 da privatização: consolidação do mercado privado na educação (governos Lula/Dilma)

Eis que a vitória do governos lulopetistas chegou a dar a sensação de que o processo seria freado, ou ao menos reduziria sua velocidade. Ledo engano. Ampliar a massa de estudantes com nível superior reduzia o vexame internacional de uma nação que tinha índices inferiores aos países do cone-sul. A aposta no quantitativo foi acompanhada de novas ondas de repasses de verbas públicas às IES privadas. Veio o PROUNI (2004 – governo Lula) fazer companhia ao FIES (1999 – governo FHC).

A farra continuou e os números de matrículas em ascensão se sobrepuseram a uma questão central: a qualidade de ensino. O sistema foi despejando gente com diploma no mercado mas com formação reconhecidamente deficiente, uma vez que os investimentos não acompanhavam às necessidades de uma Universidade voltada para este fim.

Professores mensalistas que tenham jornadas de trabalho destinadas a estudos, participação em eventos, aprofundamento na titulação, elaboração de pesquisas entre outros, são custos que as privadas não querem suportar, mas que são essenciais para uma educação de qualidade. Predominam nestas empresas professores aulistas que ganham pelas aulas que ministram apenas.

O programa de acompanhamento que o MEC realiza dos cursos e suas estruturas peca pelo burocratismo excessivo e abre brechas para estas empresas criarem condições fantasiosas que na prática não se viabilizam.

Aberrações como rodízio de livros nas bibliotecas, professores Doutores que eram empregados no ano da visita quadrienal e depois demitidos ou Doutores que escondiam sua formação para conseguirem um emprego nos anos de insterstícios das vistorias, eram práticas corriqueiras. Além disso, salários baixos, contratação de estagiários em regência de classe e equipamentos alugados apenas com a finalidade de cumprir metas completavam o quadro das peripécias na aprovação de cursos e metas.

Nestas condições a expansão do ensino superior privado alcançou números significativos. O mercado estava em festa e o MEC brindava os números, mas educação é sempre muito mais que números.

Fase 3 da privatização: a monopolização

A fase de expansão do ensino superior, no entanto, chegou à um limite dado por sua própria estrutura: as verbas públicas se reduziram e o número de estudantes nesta modalidade alcançou seu teto.

Com os ajustes fiscais demandados pelo mercado nas contas públicas o governo Dilma já havia criado maiores dificuldades para a obtenção de recursos do FIES. Temer completou o trabalho reduzindo verbas do PROUNI e a aprovação da PEC 95 com o respectivo congelamento de verbas por 20 anos.

Os empresários do ensino superior se viram obrigados a repensar suas estratégias pois sabiam que os 6 milhões de matrículas, num mercado de cerca de R$ 54 bilhões, tinham pouca chance de ampliação. A crise provocou, inclusive, retração nos negócios. A proibição pelo CADE da fusão da Kroton (maior grupo empresarial de educação privado do mundo) com a Estácio em 2017, era uma amostra dos limites interpostos no setor. Mas a monopolização andava em marcha batida.

O segmento da educação superior privada buscou então um novo foco. Ao desviar seus olhares para o ensino básico só enxergou vantagens: fidelidade maior dos estudantes (11 anos contra uma média de 4 no superior), presença de unidades dispersas e muitas vezes familiares (aproximadamente 40 mil unidades de ensino privadas), mercado de cerca de R$ 60 bilhões, cerca de 9 milhões de alunos (20% do total), enfim, um segmento desprovido de salvaguardas institucionais e econômicas, disperso e fragmentado.

Os aportes apontaram em duas direções: na aquisição de unidades e no setor de publicações. Escolas começaram a ser compradas pelos gigantes da educação superior em Vitória, Rio de Janeiro, São Paulo e em outras grandes cidades. Os exemplos são muitos.

A Kroton que é proprietária do Pitágoras, produz material apostilado para o ensino básico. A Somos, proprietária da marca Anglo e das editoras Ática, Scipione e Saraiva, é a líder no mercado de livros didáticos e sistemas de ensino, para a venda de apostilas e apoio pedagógico. Os capitais acumulados com o monopólio no ensino superior começam a ser invertidos no ensino básico.

Se os recursos públicos impulsionaram o ensino superior privado através de bolsas de estudos, no ensino básico a compra de apostilas e assessoria educacional serve de aperitivo à entrada destas empresas nesta modalidade.

As possibilidades de bons lucros atraem inclusive capitais de empresas que atuam em outros setores, como o grupo de investimento Bahema, originalmente produtor de implementos agrícolas e sócio no Unibanco e Metal Leve. Ou a gestora de private equity americana General Atlantic que é sócia do sistema de ensino SAS (livros didáticos,  consultoria pedagógica e outros serviços) presente em mais de 700 escolas no país, também teve passagem pela Airbnb (hospedagem) e Flixbus (transportes). Destaque também para Warburg Pincus com o Eleva que tem Jorge Paulo Lemann (AMBEV), o homem mais rico do Brasil como acionista. No Brasil a Warburg Pincus já aplicou em petshops e moda, por exemplo.

A abertura de capital nas bolsas de valores destes grandes conglomerados na educação acaba por aproximá-las do mercado financeiro e especulativo, impondo um ritmo de negócio ao setor que o afasta da educação de qualidade e dos princípios essenciais de uma escola livre e crítica. Impossível pensar que fosse diferente.

Allan Kenji da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), afirma que as quatro maiores empresas de educação no Brasil aglutinam 2.270 fundos institucionais, o que evidencia o efetivo interesse do mercado financeiro pelo sistema educacional brasileiro.

O próprio projeto Escola Sem Partido, defendido por parcelas do conservadorismo no Brasil, faz parte deste projeto de pasteurização e mercantilização das escolas, moldando-as ao mercado e aos desejos dos investidores.

Completa o quadro a expansão do Ensino à Distância no ensino básico, pedra angular nos lucros imaginados com a redução dos custos com professores e aulas presenciais, que em geral são os principais componentes na coluna dos gastos.

Não é de se estranhar que, em breve, os novos arautos da educação superior que se aventuram na básica defendam um FIES para as escolas privadas de ensino médio e fundamental. E não faltará quem os defenda.

O que fazer?

Os professores de escolas privadas conseguiram uma vitória importante recentemente contra a redução de seus direitos, propostos pelo sindicato patronal. A precarização dos direitos trabalhistas é essencial aos mercadores do ensino. Promessas de conflitos são esperadas nesta relação.

A luta pela ampliação das verbas em educação, como prevê o Plano Nacional de Educação em 10% do PIB, é uma bandeira das mais importantes no Brasil e deve estar nas pautas de todos os movimentos progressistas ligados ou não à educação.

A derrubada do congelamento do orçamento federal em educação e a ação mais efetiva do MEC na defesa da escola pública de qualidade, gratuita e laica é uma pauta que deve necessariamente atrair nossas atenções nas próximas eleições. Uma nova política de acompanhamento e fiscalização da qualidade no ensino superior privado é também necessária para garantir um mínimo de qualidade.

A derrota da Escola Sem Partido é outra batalha importante na defesa de uma escola de qualidade e crítica.

Enfim, são frentes de lutas importantes na educação brasileira no enfrentamento à mercantilização, financeirização e monopolização que arrastam a educação brasileira para o redemoinho do negócios. O resultado será uma inevitável catástrofe aos interesses nacionais e na construção de um Brasil mais justo e igual.


FONTE:  Controversia

domingo, 24 de junho de 2018

A volta da violência política no Brasil




Por Anne Vigna *

Imagem por Rodrigo Leão



Parecem longínquas as capas de revistas que prometiam ao Brasil um futuro radiante. Abalado por uma onda de violências, como o assassinato da vereadora socialista Marielle Franco, o maior país da América do Sul multiplica rupturas com a ordem constitucional, a ponto de certos direitos adquiridos após o fim da ditadura, em 1984, parecerem ameaçados. A começar pela liberdade de expressão e de escolher seus dirigentes

Desde 2016 e da destituição da presidenta Dilma Rousseff pelo Congresso – uma operação que a esquerda designa como “golpe de Estado parlamentar” –, o Brasil parece retomar um passado que muitos achavam superado: o de uma terra regida pelos “colonos” e “bandeirantes”, caciques locais que se utilizavam da violência para se livrar das pessoas consideradas um estorvo. Estorvo são os de esquerda e os pobres, notadamente os sem-terra que ocupam terras improdutivas, que, segundo a Constituição, deveriam ser redistribuídas no âmbito da reforma agrária.

Enquanto o país comemora os 130 anos de abolição da escravatura no próximo 13 de maio, um dos símbolos mais marcantes desse triste período figura nas telas de televisão: o chicote de couro. Grandes proprietários o utilizaram para bater em camponeses do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que esperavam a passagem da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Sul do país, no dia 22 de março. A senadora Ana Amélia Lemos, do Partido Progressista (PP, direita), os felicitou sem nenhum constrangimento: “Atirar ovo, levantar o relho, mostra onde estão os gaúchos”.

Ao longo de uma carreira política de mais de cinquenta anos, o ex-presidente Lula – preso desde o dia 7 de abril – sempre percorreu o país sem sofrer nenhum perigo. Contudo, apenas no mês de março, precisou enfrentar uma série de bloqueios de milícias armadas de tratores, pedras, fuzis. O objetivo: impedir a caravana mobilizada pelo candidato à Presidência para reunir o apoio da população contra sua condenação a doze anos de prisão por corrupção passiva – condenação denunciada pela esquerda e também por 122 juristas brasileiros que, em um conjunto de artigos, evidenciam a parcialidade de uma acusação fundada na convicção do juiz, e não em provas.1

Dez camponeses torturados e mortos em 2017

O inquérito policial aberto para apurar as investidas bélicas contra a caravana no dia 27 de março já identificou a origem dos ataques: a fazenda de Leandro Bonotto. Desde a década de 1990, esse proprietário se opõe violentamente ao MST e à recuperação de terras empreendida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Não é exatamente uma surpresa: todos os ataques perpetrados contra a caravana de Lula foram preparados por associações de grandes proprietários que atacam abertamente o MST em ações violentas. Um deles, Gedeão Ferreira, presidente da Federação de Agricultura do Rio Grande do Sul, declarou quando tomou posse desse cargo: “Vamos enfrentar o MST e o Incra. Suas ocupações têm como única finalidade privar os produtores rurais de suas propriedades”.2 Condenado em 2002 por “desobediência à justiça” e “iniciação ao crime” depois de ter recusado o acesso de técnicos do Incra às suas propriedades, Ferreira foi absolvido no ano seguinte pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região, a mesma corte que condenou em segunda instância o ex-presidente Lula.

“O Brasil é um país muito violento, com um número recorde de homicídios, mas tradicionalmente não se conhecia esse fenômeno na política, contrariamente ao México ou à Colômbia”, analisa Maurício Santoro, professor de Ciência Política da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “No mesmo mês, atiraram na caravana do Lula e assassinaram uma vereadora de esquerda no Rio, Marielle Franco. Esses acontecimentos trágicos são inéditos em nossa história contemporânea”, completa. Pela primeira vez, a violência toca personalidades políticas de primeiro escalão. Para os movimentos sociais, isso não é novidade e tem crescido explicitamente. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), criada sob a ditadura militar pela Conferência Nacional dos Bispos no Brasil, setenta militantes foram assassinados em 2017, número maior que em 2016, com 61 vítimas. Entre as setenta mortes do ano passado, 52 foram ligadas a conflitos de terra.

“O fim do governo do PT [esquerda] conduziu a uma agudização nítida da violência”, confirma José Batista Afonso, advogado da CPT no estado do Pará. “Observa-se uma reorganização das associações de grandes proprietários de terra e sua aproximação com as forças da ordem. No Pará, isso é particularmente claro, com 21 assassinatos no ano passado. Há muito tempo não víamos isso”, completa. Entre esses mortos, estavam dez camponeses integrantes da Liga de Camponeses Pobres: foram torturados e em seguida executados durante uma ocupação da propriedade Santa Lúcia, no dia 24 de maio de 2017. Esse massacre em Pau D’Arco é o pior depois do massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, quando dezenove camponeses do MST foram executados por policiais. A investigação do caso em Pau D’Arco acaba de condenar 29 policiais. Os especialistas mostraram que, além dos ferimentos fatais, os corpos apresentavam múltiplas fraturas, atestando a tortura relatada por outras vítimas.

Em seus depoimentos, os policiais afirmam que entraram na fazenda com mandatos de interdição contra alguns camponeses e que eles atiraram. Dois policiais, contudo, fizeram acordo de delação premiada com redução da pena e confirmaram a versão dos sobreviventes. “Os especialistas mostraram também que os camponeses não atiraram; a versão dos policiais não se sustenta”, precisa o procurador Leonardo Caldas. O conflito é clássico nesse estado da Amazônia: a fazenda Santa Lúcia pertence à família Babinski e é uma de suas onze propriedades, que somam 40 mil hectares, quase quatro vezes o tamanho de Paris.

Mortes causadas pela polícia

De acordo com os movimentos sociais, essas terras eram bem utilizadas até a morte do patriarca, Honorato Babinski. As ocupações da Santa Lúcia começaram em 2013, quando 5.694 hectares deixaram de ser cultivados. O herdeiro, Honorato Babinski Filho, com 25 anos, vive no Rio de Janeiro e se apresenta como “ator” nas redes sociais, onde não esconde sua vida noturna agitada. Contudo, exige da justiça que expulse os ocupantes. À juíza que solicitou provas de atividade na fazenda, ele forneceu documentos como o contrato de compra e venda de setecentas vacas e um certificado de vacinação de 75 animais, porém com datas posteriores de um mês após as solicitações da justiça. Ele conseguiu então na justiça a expulsão dos camponeses, que voltariam a ocupar as terras mais três vezes. A última delas, fatal: “O inquérito deve determinar quem ordenou esse crime. Mas, como é comum no Pará, os policiais fazem bico como agentes de segurança para os latifundiários”, acrescenta o procurador, para explicar seu pessimismo quanto aos resultados da investigação.

Os policiais do Pará também vendem seus serviços a empresas de mineração. Em Barcarena, a associação Cainquiama denunciou diversas vezes os rejeitos de resíduos tóxicos praticados pela multinacional Norsk Hydro, presente em quarenta países e com 34,4% das ações pertencentes ao Estado norueguês. A Norsk Hydro possui em Barcarena “a maior refinaria de alumínio do mundo”, segundo a empresa. No dia 23 de fevereiro, a associação notificou novamente as autoridades sobre os rejeitos clandestinos, negados pela mineradora, mas confirmados pelas autoridades sanitárias locais. Ela mostrou às autoridades as canalizações dos rejeitos, obrigando a refinaria a reduzir sua produção em 50%. Duas semanas depois, em 12 de março, um dos dirigentes da associação, Paulo Sérgio, foi assassinado – o segundo em três meses.

Desde janeiro, a associação denunciou ameaças de morte proferidas por integrantes da Polícia Militar. “Imediatamente entrei em contato com o secretário de Segurança do estado do Pará para que ele destacasse uma proteção”, conta Armando Brasil, procurador de justiça militar no Pará. “Ele me respondeu que não era seu papel e ainda disse que os dirigentes da associação eram invasores de terras. Como se isso tivesse qualquer relação com o caso. Sem mencionar que isso jamais foi provado. Por outro lado, o assassinato aconteceu de fato”, relata. Segundo ele, “todo mundo sabe que policiais trabalham para a refinaria. O inquérito vai provar; de qualquer forma, não vejo outra explicação para esses assassinatos”. Desde então, pelo menos três mulheres da associação também sofreram ameaças de morte e ainda não contam com nenhuma medida de proteção. Até existe um programa de proteção de militantes, mas ele é ineficaz: as 683 pessoas que se beneficiam dele na maioria das vezes recebem apenas acompanhamento via telefone. Apenas catorze estão de fato sob proteção policial.

Presos sob acusações falaciosas

“Enfrentamos um ataque sem precedentes”, conta Ney Strozake, advogado do MST. “Em março, uma de nossas ocupações foi atingida com produtos tóxicos expelidos por aviões de grandes proprietários da Bahia. No Sul, vários de nossos militantes foram presos sob pretextos falaciosos, e liberá-los tem se mostrado bem complicado”, conta.

No dia 27 de março, ainda no Pará, o padre José Amaro foi preso. A polícia o acusa de uma série de crimes que vão de assédio sexual a lavagem de dinheiro, passando por invasão de terras. Esse padre lutou ao lado da religiosa Dorothy Stang, assassinada em 2005 por latifundiários. A prisão de Amaro foi denunciada por todos que conhecem suas ações junto aos pobres da região. “Trata-se de uma nova tática visando impedir o trabalho dessas pessoas”, comenta o diretor da Comissão Pastoral da Terra, Ruben Siqueira. “O assassinato de Dorothy Stang freou as ações violentas de latifundiários pela atenção internacional que o caso atraiu; destruir a reputação de um homem, contudo, pode ser mais eficaz para acabar com sua ação militante que matá-lo”, avalia.

Mesmo com as acusações partindo de latifundiários, a justiça confirmou a detenção provisória do padre Amaro. Ameaçado de morte repetidas vezes, o padre está na mesma prisão que o assassino de Stang, no estado brasileiro mais perigoso para os militantes. E a justiça não vê nenhum inconveniente nesse fato.



*Anne Vigna é jornalista.



1 Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele Ricobom e João Ricardo W. Dornelles (orgs.), Comentários a uma sentença anunciada, o processo Lula, Bauru, Canal 6 Editora, 2017.

2 Joaquim de Carvalho, “Ruralista pró-Bolsonaro, candidata do MBL, ativista pró-armas… quem está organizando os ataques a Lula no Sul”, Diário do Centro do Mundo, São Paulo, 25 mar. 2018.



terça-feira, 19 de junho de 2018

Por uma esquerda que supere o mito do trabalho




Diante da automação e da inteligência artificial, é preciso ampliar as
lutas pela redução radical da jornada e para assegurar, a todos, os bens
indispensáveis à vida digna


Por Júlio Fisherman | Ilustração: Diego Rivera, Detroit Industry, afresco (1932-33)


“O paraíso terrestre fora desacreditado
exatamente no instante em que se tornara praticável”
(George Orwell, 1984)


Um dos maiores desafios que se coloca para os que lutam e desejam o crescimento humano, não o econômico, é superar o discurso já sem fundamento da criação de mais postos de trabalho como agenda para o desenvolvimento e mesmo o enfrentamento de crises.

Há muito tempo que a dinâmica industrial/gerencial (tecnologias do automatismo, racionalização econômica) tornou supérflua a necessidade do trabalho em larga escala no processo produtivo e já não haverá, num mundo globalizado capitalisticamente, processo de reestruturação produtiva e expansão de mercados que consiga (re)absorver a quantidade de desempregados estruturais no planeta.

O sociólogo alemão Robert Kurz, que incansavelmente apontou para este problema-limite do capitalismo, certa vez expressou assim a dimensão da questão:

O capitalismo, na verdade, nada mais é que um sistema industrial “bola de neve”, que converteu a transformação contínua e crescente de energia humana abstrata em dinheiro num fim em si mesmo. A revolução tecnológica microeletrônica põe fim a essa dinâmica, pois torna supérfluo, de maneira perene e absoluta, mais trabalho do que pode ser reabsorvido pela produção ampliada. Por isso os mercados financeiros se desvincularam, de modo estrutural, da economia de bases reais. A criação de moeda sem substância contradiz, entretanto, a lógica capitalista. Este é o verdadeiro nó da crise. Mas, enquanto não houver uma crítica prática, a agonia desse sistema pode arrastar-se sem prazo e criar novos surtos de pobreza e desespero.

É preciso assim assumir o poder da observação cristalina sumarizada por Oscar Wilde há mais de 100 anos:

Atualmente, as máquinas competem com o homem. Em condições adequadas, servirão ao homem.

O que a esquerda deve, portanto, é empunhar a bandeira da apropriação coletiva e global do que é sim socialmente produzido e não individual/particularmente realizado simplesmente porque alguns poucos, cada vez um grupo mais reduzido, detêm o poder sobre os meios técnicos da produção. Todos estes meios de produção são frutos históricos do principal, do realmente indispensável meio de reprodução da vida social, que é e sempre será o esforço e zelo humano em suas diversas manifestações.

Com isto claro, faz-se necessário atacar firmemente a irracional lógica privatista e excludente que beneficia a plutocracia e financia apenas o consumismo obsceno (bombardeado ainda a ideal de felicidade) de castas privilegiadas que sequer estão interessadas em resolver o problema da fome, numa era de abundância produtiva. A dita escassez é um mito, só existe como resíduo ideológico, misticismo vulgar.

Via maior cooptação nos parlamentos e intervenções jurídicas – o Brasil é um ótimo exemplo -, o capital vem  parasitando cada vez mais o aparelho de Estado a fim de dominar tudo e todas as brechas, elevando à enésima potência sua capacidade de sugar o máximo dos trabalhadores que ainda conseguem participar do jogo da solvência econômica. Aqui, ali e acolá, lubrificam-se com suor, lágrimas e sangue as engrenagens nefastas de sua permanência enquanto guia da produção e reprodução da vida.

Mesmo que insuficientes, palavras de ordem elementares para os progressistas em todo globo deveriam ser já há muito tempo pela redução radical da jornada de trabalho e oferecimento universal e gratuito de condições inegociáveis de estruturas, serviços e bens.

Hannah Arendt já destacava no prólogo de umas das suas mais importantes obras, “A condição humana”, porque dialeticamente segue-se cultuando o trabalho mesmo quando ele já deveria passar a ceder lugar a novas práticas:

A era moderna trouxe consigo uma glorificação teórica do trabalho, e resultou numa transformação factual de toda a sociedade em uma sociedade trabalhadora. (…) É uma sociedade de trabalhadores a que está para ser liberada dos grilhões do trabalho, uma sociedade que já não conhece aquelas outras atividades superiores e mais significativas em vista das quais essa liberdade mereceria ser conquistada.

Enquanto não se enfrentar decididamente o enraizado e autoritário mito do “trabalho que dignifica o homem” – dignifica seja lá que trabalho for, o que revela a completa falta de atenção com o conteúdo sensível das atividades humanas – não se estará enfrentando a crise de frente, fazendo muito pouco pela transformação das relações sociais.

Vale destacar que esta cantilena do trabalho ganhou novo vigor e frescor com a pregação diuturna neoliberal de que toda existência precisa agora ser justificada não apenas pelo trabalho, mas pelo trabalho bem sucedido na competição. Aliás, quando não há mais perspectiva de emprego para todos e numa atmosfera de concorrência totalitária temperada pelo individualismo exacerbado, não é de se surpreender que o fascismo se reforce.

Dia após dia agigantam-se os poderes destrutivos de um status quo sufocante que não emancipa, que não libera as energias criativas, desinteressadas e generosas dos seres humanos. Um arranjo societário que prefere promover a autofagia, que é mesquinho porque infunde o egoísmo, pobre porque destila avareza contra o bem estar geral, estúpido porque insustentável, genocida uma vez que assassino em massa.

Redistribuição e compartilhamento do que se produz, solidariedade, cuidado, cooperação, generosidade, fraternidade, ócio, bem viver, não devem ser tomados como conceitos abstratos, distantes, desbotados, mas como verdadeiro projeto de governo alternativo ao estado atual não apenas das coisas, senão que principalmente dos homens, mulheres e crianças.


segunda-feira, 11 de junho de 2018

Uma possível era pós-Lula





Esgotado o modelo sindicalista que animou vitórias do PT, há oportunidade para novo um projeto da esquerda: não desvinculado da figura do ex-presidente, mas ultrapassando-a


Por Sebastián Ronderos e Lucas Augusto da Silva *


Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, existe uma constante oscilação na posição ideológica dos pré-candidatos para as eleições presidenciais. Basta uma notícia, uma entrevista, um evento (ou mesmo a omissão sobre tais) associado ao nome do candidato e o campo político se reestrutura.

Certas vezes, basta a explícita opinião de um adversário para que um ou outro candidato seja arremessado para um espaço abstrato na disputa ideológica (afim ou oposto à opinião deflagrada). Bolsonaro é um desses casos emblemáticos: a própria existência de um candidato que flerta com a ditadura militar, que impõe um discurso de asco às demandas identitárias das minorias e que destila ofensas contra os parlamentares progressistas acaba gerando uma espécie de afinidade ideológica entre os demais candidatos que declaram oposição ao neofascismo. A existência de Bolsonaro aproxima relativamente Marina Silva e Guilherme Boulos, por exemplo, na luta contra a ascensão de um sugestivo totalitarismo de extrema direita.

Inúmeros acontecimentos sucederam-se e deslocaram com relevância as peças nessa espécie de gráfico dinâmico de orientação política e identificação popular: os escândalos de corrupção contra membros do alto escalão do MDB, a campanha de Michel Temer pela aprovação da contrarreforma da previdência, a intervenção militar no Rio de Janeiro e, mais recentemente, a execução de Marielle Franco. A ocorrência mais relevante para esta reorganização ideológica, porém,  aconteceu em 6 de abril.

O mandado de prisão expedido contra o ex-presidente Lula remodelou a matriz ocupada pelas candidaturas de esquerda e refletiu na adaptação de seus discursos. Ausente do debate central (e do palanque no qual o petista discursou no Sindicato dos Metalúrgicos de SBC), Ciro Gomes reafirmou seu distanciamento ao modelo organizado pelos altos quadros do PT, o que não surpreendeu boa parte dos candidatos da esquerda. O candidato do PDT parece repisar sua estratégia de ocupação de um espaço de fato vazio de personificação (centro-progressista), sustentada fundamentalmente na tecnocracia e em sua experiência política. Contudo, a organização dos demais candidatos da esquerda de união em solidariedade a Lula afasta Ciro da agenda progressista e o aproxima das candidaturas que concorrem para conquistar os votos dos eleitores que tentam fugir da polarização política.

Enquanto Ciro parece se afastar da esquerda e se concentrar ao redor de outros candidatos que mantêm um posicionamento mais frouxo sobre a prisão de Lula, como a chapa formada por Marina Silva e Joaquim Barbosa, a fotografia simbólica no palanque do sindicato na qual constam as três candidaturas expoentes da esquerda no pleito presidencial prenuncia um fôlego providencial frente à preocupação com a aliança feroz e fortalecida entre o grupos de mídia, poderes Legislativo e Judiciário, e grandes concentradores de riqueza que orquestraram a prisão de Lula e que desenvolvem um  programa regressivo que ameaça as conquistas democráticas dos últimos anos. Travestidos em um discurso anticorrupção, estas energias fortalecem e reproduzem as bases que permitem que o sistema criticado continue em progressão.

Esta espécie de cartografia decantada após a prisão arbitrária de Lula permite empreender uma análise mais sóbria sobre as estratégias envolvidas e nos leva a oferecer algumas teses sobre o atual momento e futuro da esquerda brasileira.

Os Limites do Consenso

Uma condição central está submersa naquilo que consideramos ser o esgotamento de um determinado modelo de poder baseado na aglutinação de demandas antagônicas (assemblage), através de uma capacidade privilegiada de negociação. Esta estratégia, desenvolvida ao longo da história do Partido dos Trabalhadores, através da condução inquestionável de Lula, relacionamos ao que chamaremos de “modelo sindicalista de poder”’ (MSP). Lula tem se destacado através de sua história como um líder carismático com uma capacidade admirável de articulação e uma sensibilidade estadista única na formulação de políticas públicas, na reestruturação e profissionalização diplomática, na redistribuição de renda e democratização do acesso à educação e demais serviços públicos. Mantendo a conciliação, o ex-presidente astutamente estruturou uma cooperação dos setores estratégicos na conformação do seu modelo de governo, conseguindo, com evidente sucesso, transformações demográficas históricas.

Tal agenda mostrou-se perfeitamente harmonizada com os próprios processos históricos impulsionados por grandes pactos nacionais, desde a independência do país — decretada e alcançada primordialmente por um sistema de concessões entre oprimidos e opressores — até a derrocada da ditadura que, depois de finda, não resultou em um plano de acerto de contas pelas elites militares. Ao invés de relevantes rupturas protagonizadas pelos setores subalternos como impulso para as transformações sociais, o que se observa na história política do Brasil são constantes rearranjos de pactos que blindam os interesses dos atores dominantes e, em contrapartida, oferecem concessões pontuais às classes exploradas. Isso justifica, por exemplo, o isolamento do país diante dos vizinhos latino-americanos nos processos de descolonização e abolição da escravatura.

As conquistas obtidas pelo modelo aplicado são indiscutíveis: o Brasil deixou o mapa da pobreza, as minorias raciais acessaram espaços anteriormente exclusivos e o país voltou a ser um relevante protagonista nas instâncias de atuação internacional. Ato contínuo, o golpe institucional de 2016 e a inelegibilidade de Lula em 2018 são os reflexos evidentes do esgotamento desta estratégia de coalizão. Ao ascender ao espaço de governo, o petismo tentou neutralizar os antagonismos inerentes à própria disputa política, expressa desde Maquiavel já no século XVI, fechando os olhos para as relações de poder que extrapolam as ocupações efêmeras das instituições formais. A conformação das estruturas de poder, centralizadas nas elites históricas, que possibilitou a promiscuidade entre os poderes institucionais para atacar ferozmente o PT, não foram ocupadas de forma adversa à gestão petista, mas fortalecidas pelo seu MSP.

Longe de estabelecer a construção de uma contra-hegemonia, propiciando novos espaços de poder que conseguissem sustentar uma nova correlação de forças diante das necessárias reformas estruturais, o PT pareceu tentar incluir seus representados e eleitores no racional da própria estrutura hegemônica imperante, esculpida desde há muito por seus algozes. Qualquer das partes neste acordo poderia ter reconhecido os limites orgânicos desta coalizão. Na hora H, os inimigos estavam mais atentos e atacaram. No momento em que este modelo apresentou certa inconveniência aos interesses de acumulação e concentração do capital, bem como percebeu-se um tímido avanço no redesenho das fronteiras constitutivas das classes sociais, a elite política, respaldada pelo apoio das camadas médias brasileiras que “olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem” (palavras do ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad), desatou os acordos a que tinha aderido e iniciou a demonização do (ex)parceiro.

Lula: de Significante Mestre a Significante em Disputa

Depois do triunfo da Revolução Cubana, Fidel Castro pediu a Regis Debray que percorresse a América Latina e fizesse uma análise sobre a repercussão do processo cubano na região. Debray desenvolveu um relatório no qual reconhece que as elites latino-americanas e os Estados Unidos compreenderam com maior rapidez a importância de dita Revolução do que a própria esquerda. Esta característica parece se repetir na atual conjuntura política no Brasil.

O período que sucedeu o impeachment de Dilma Rousseff exigiu da militância da esquerda brasileira a construção de uma narrativa monocórdia ancorada em dois significantes simbólicos importantes: o “golpe” e o “Fora Temer”. Vale frisar que boa parte das disputas integradas pela oposição a Michel Temer durante este período, como o combate à reforma da previdência, foi alicerçada nesta construção discursiva. Todavia, existe uma evidente limitação nas articulações destas peças. Hoje o impeachment estabeleceu-se como golpe dentro do idílio da esquerda nacional e com reverberações internacionais, porém Michel Temer deve concluir seu mandato sem maiores transtornos.

Com a prisão de Lula, contudo, o que avistamos, distantes da leitura mainstream que enfatiza um iminente (e óbvio) retrocesso democrático, é a germinação de um interregno que indica a necessidade de transição estratégica da esquerda através do reforço dos antagonismos sociais após Junho de 2013. Uma oportunidade única de aproveitar os avanços e as bases até agora cimentadas, compreendendo-as não como erros táticos, mas como fundamentos na configuração estratégica de uma transição estrutural, que reclama um processo de autocrítica e renovação na configuração organizacional da esquerda. As elites, por sua vez, parecem ter avistado esse interregno com maior avidez, reestruturando-se com a mudança de ciclo econômico e se articulando mais rapidamente na guerra de posições.

A inelegibilidade (prática) e o encarceramento do ex-presidente apresentam-se como revelação das cartas guardadas na manga pela oligarquia político-econômica durante os mandatos petistas, e que agora foram escancaradas e estão transparentes no tabuleiro ideológico. Longe de negar o evidente retrocesso republicano que as instituições formais operam neste momento no Brasil, cabe, em paralelo, analisar este acontecimento como uma janela de oportunidade para o contra-ataque progressista.

Ao pronunciar “não sou mais um humano; sou uma ideia”, Lula reconhece sua capacidade ímpar de pautar o debate ideológico e disponibiliza seu próprio nome (e legado) como significante a ser apropriado, além de perceber implicitamente os limites que seu modelo de poder e o futuro curto de sua carreira política (sobretudo pela sua idade) lhe impõem. É nesta vacância, neste espaço a ser ocupado que identificamos a oportunidade sem precedentes da construção de um projeto de robustecimento da esquerda: não desvinculado do Lulismo, porém conscientemente reformulado a partir de seu potencial discursivo e da inevitável crítica às bases metodológicas do MSP (mais uma vez, modelo sindicalista de poder).

Da Razão Sindical ao Bloco Histórico

Na entrevista que Lula concedeu a Félix Guattari em 1982, quando questionado sobre o programa econômico de seu partido (embora orientado por uma macro-proposta de estatização de empresas privadas) o líder sindical pondera que “é preciso estar com os pés no chão e saber que os processos de transformação não se dão porque queremos, mas em virtude das forças políticas sobre as quais eles se apoiam. (…) Nós não queremos ir com sede ao pote. Nós queremos é matar nossa sede”. Em outra pergunta, Lula diz que “o PT aproximou as pessoas; criou novas relações de fraternidade e lá as pessoas se sentem mais iguais”.

Ao recorrer à obediência às forças políticas operantes nos processos de transformação e à capacidade de conciliação entre contrários como emblemas de seu projeto de poder, a liderança petista cria características auto-explicativas do que aqui chamamos de MSP. Mais do que isto, sustentamos que as potencialidades do MSP estabelecidas enquanto o partido ainda não havia acessado o Executivo federal foram elas próprias as causas do enfraquecimento dos mandatos Lula-Dilma e, atualmente, do esgotamento do próprio modelo, como numa espécie de doença autoimune.

Não à toa o arquiteto do golpe foi o próprio vice-presidente que compôs chapa com Dilma Rousseff em 2014; não à toa cinco dos seis votos contrários ao habeas corpus impetrado por Lula foram anunciados por ministros indicados pelos ex-presidentes petistas; não à toa foram os mandachuvas das empreiteiras privadas que mais lucraram na era Lula os mesmos que ofereceram o dossiê probatório no qual foram sustentados todos os processo instaurados contra o ex-presidente. A estratégia de comando político do PT, ao integrar aqueles que pareciam ser o sistema imunológico perfeito contra as ameaças da oposição, ofereceu, consecutivamente, o ambiente mais adequado para o ataque desenfreado dos anticorpos contra as próprias células de seu tecido estrutural.

Todo este processo se insere numa disputa política a campo aberto, pautada, desde 2008, por uma nova crise do capitalismo financeiro e da democracia representativa a nível internacional. Em determinadas ocasiões, e cada vez com maior força, costuma ser a extrema direita que se conecta sem meias palavras com essa insatisfação genuína frente ao limite dos marcos liberais, embora propondo mecanismos que elevariam a precarização dos direitos econômicos, civis e políticos a uma condição crônica.

Se as instituições tradicionais da democracia liberal carecem de empatia representativa no atual contexto político das sociedades ocidentais, a reprodução das narrativas germinadas no interior dos mandatos petistas tampouco apresentam uma alternativa satisfatória. É preciso compreender que não só a extrema direita se apresenta como ameaça a esta oportunidade de recomposição das estruturas democráticas, mas a própria manutenção de um projeto conciliador e neutralizador das identidades antagônicas, com disponibilidade para o diálogo com as ortodoxas e experientes elites políticas brasileiras, também põe em risco a construção de uma contra-hegemonia.

Esgotado o modelo, sobrevive o legado e uma oportunidade histórica se revela.

Uma vez arrefecida a potência de uma racionalidade sindical como modelo de governo, uma alternativa que pode confluir as demandas sociais dispersas sem esvaziar o significante do “lulismo” seria a composição do que vinculamos com o que Antonio Gramsci chamou de ‘Bloco Histórico’. Este conceito supõe um conjunto complexo de relações sociais, potencializando estrategicamente forças tanto materiais quanto simbólicas. Estabelece uma junção de formas jurídicas, políticas, jornalísticas, artísticas, filosóficas e religiosas ao serviço da consciência do momento histórico, empreendendo lutas populares sintonizadas que superem as formas tradicionais de resistência e retaguarda, cavando trincheiras criativas num movimento de avanço. Entende a centralidade do Estado, mas compreende também a necessidade da criação e ocupação de espaços informais que cultivam a memória social sensível, constituída primordialmente por expressões culturais.

E por que talvez esta seja a oportunidade única para o desenvolvimento desse embrião? Porque a própria complexidade do momento levou a uma convocação espontânea de um quadro que extrapola as fragmentações partidárias, propondo quase de forma inadvertida a união precisa para uma estratégia vitoriosa, pois conecta com demandas contemporâneas e acessa espaços por onde a esquerda tradicionalmente tem dificuldade de caminhar. Além disso, se apropria do alcance que o significante “Lula” tem de transbordar os limites convencionais, superando as próprias armadilhas que a esquerda construiu discursivamente, ao estruturar pautas transversais que atingem a sensibilidade do cidadão comum, mas, desta vez, revelando os antagonismos que a própria polarização política exige.

O ocaso do MSP levou a uma interseccionalidade de agentes, propiciando a ocupação deste discurso, e o símbolo maior deste “bloco histórico” foi o palanque constituído no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo: a aglutinação de lideranças políticas e sociais, artísticas e religiosas, unidas em prol de uma radicalização da democracia, representa uma ressignificação precisa do devir do “lulismo”.

Mais do que mostrar os dentes, o momento exige saber onde e como morder. Exige repensar as alianças baseadas nas entranhas dos antagonismos sociais e conectar com os insumos de insatisfação, concentrando o alvo naquelas reservas subjetivas e coletivas expressas na carência de representação, que continuam dispersas e órfãs desde 2013.

Este projeto não se confunde com a unificação das estratégias eleitorais, nem com a propositura (equivocada) de uma chapa única para o pleito eleitoral a seguir. Pelo contrário, ele as engloba: a chapa formada por Guilherme Boulos (liderança social consolidada) e Sônia Guajajara (expoente nas lutas dos povos indígenas) somada à candidatura de Manuela D’Ávila (que empunha com maestria o discurso feminista) e às figuras de Celso Amorim (voz ecoante nas internacionalidades), João Pedro Stédile (líder do MST), Osmar Prado (representando a classe artística) e peças-chave da Igreja Católica eleva a interseccionalidade a um nível de diálogo com a sociedade civil providencial para o projeto de radicalização do discurso da esquerda.

Basta saber se, desta vez, o PT estará disposto a abandonar seu modelo de governo para disputar o poder ou continuará alimentando os anticorpos que atacam seu próprio tecido.


* Sebastián Ronderos (foto) é cientista político colombiano, doutorando em ideología e análise de discurso pela Universidade de Essex. Lucas Augusto da Silva é poeta, advogado e mestrando em Sociologia pela Universidade de Lisboa.


sábado, 2 de junho de 2018

A democracia republicana morreu


Não é novidade, mas, pelo menos, desde a década de 1980 que as democracias ocidentais foram completamente sequestradas pelo sistema financeiro. E no Brasil esse processo se aprofundou com a deposição da ex-presidenta Dilma Rousseff


                                                     Foto: Arquivo/Agência Brasil



Por Marcelo Hailer  


Não é novidade, mas, pelo menos, desde a década de 1980 que as democracias ocidentais foram completamente sequestradas pelo sistema financeiro. É certo que em cada país tal processo se deu de maneira mais ou menos acelerada. No Brasil, este processo se aprofundou com a deposição da presidenta Dilma.

Durante as semanas que antecederam a votação que tiraria Dilma Rousseff da presidência da República era comum matérias na imprensa tradicional atentarem para o fato de que o mercado financeiro viveria dias de glória com a saída do PT. Ainda que uma série de denúncias apontavam para o caminho oposto.

Mas não teve jeito. A direita, que antes fazia parte da base do governo Dilma, se aliou ao mercado financeiro e fritou a democracia. De lá pra cá o país foi ladeira abaixo, pois, não existe acordo possível entre os setores progressistas e os conservadores com a ruptura democrática na qual o Brasil está mergulhado. Mas, a questão é que o modelo aplicado em nosso país é tipo exportação, isto porque, este sistema que derruba governos e ou impõe sanções econômicas na América Latina, na Ásia, África e em alguns países europeus é o mesmo que pratica saques e genocídios há, pelo menos, 500 anos.

É a partir deste contexto que devemos refletir sobre a deposição da presidenta Dilma Rousseff. O Partido dos Trabalhadores foi a primeira oportunidade, em 500 anos, de trabalhadores ascenderem ao poder – em várias esferas e não apenas palaciana. Com a série de incentivos econômicos à classe trabalhadora, sempre alijada das decisões dos governos anteriores, e com as inúmeras políticas inclusivas (mulheres, negr@s e LGBT), o sistema colonialista, que ainda rege o andar de cima, não permitiria, de maneira alguma, que o projeto petista completasse 16 anos no comando do Brasil.

E olha que os bancos – público e privado – e o tal do sistema financeiro faturaram como nunca. Mas aqui, talvez, esteja um dos principais equívocos da gestão federal do PT: a crença absoluta na conciliação de classes. Esta é uma conta que jamais fechará. No sistema liberal não existe conciliação entre os andares da pirâmide, visto que este regime se utiliza do Estado e de seus aparatos militares e financeiros para justamente deixar os ricos mais ricos e os pobres ainda mais pobres.

Não contente em decidir qual governo deve permanecer no poder, o sistema financeiro – nacional e estrangeiro – privatizou por completo a eleição para o legislativo. Basta analisarmos as duas últimas legislaturas eleitas para o Congresso Nacional: representações populares reduzidas em mais de 50% e setores oligarcas praticamente dominando as cadeiras.

Daí é que vem a pergunta: o sistema democrático republicano pluripartidário tem futuro?

É fato que uma ruptura sistêmica, ainda que eleita pelo voto direto, necessita de plano de transição mas, quando analisamos as candidaturas à esquerda, nenhuma delas sinaliza para tal caminho: seja pela ruptura direta ou por meio de um plano de transição. No limite, as propostas apresentadas desejam uma regulação mais forte do sistema financeiro – o que é bom e desejável -, porém, ainda que o controle sobre o mercado tenda a ficar mais forte, ele continuará a ser uma sombra e, se não domina a gestão central, tende a controlar o sistema legislativo.

Há um pixo que diz “Reformar o capitalismo é igual perfumar merda”. Fato. Não apenas as regiões reféns dos antigos senhores coloniais, mas também regiões do sistema colonialista estão com os seus respectivos regimes democrático republicano em colapso. E, ainda que haja uma crise financeira em nível global, o mercado continua a faturar como nunca. Eis um paradoxo que só se explica pela miséria que se alastra e que retorna em determinados países.

Não espanta que projetos com soluções fáceis – obviamente fascistas – ganhem forte adesão no Ocidente – colonizado e colonialista. O liberalismo civilizado e o socialismo não apresentam saídas: o primeiro trabalha para manter o status quo e o segundo labuta para reformar o primeiro. É neste sentido que um e outro se confundem. É dentro desta conta que os parlamentos já não servem para nada, ou pior, quando resolvem trabalhar é para retirar direitos sociais e trabalhistas.

Portanto, pouco ou quase nada vai mudar nesta e nas próximas eleições do Brasil. Tem sido comum escutar amigos dizerem “eleger fulano para estancar a sangria de direitos usurpados”. Esta frase é o resumo da falência sistêmica do Brasil. Se faz necessário projetos de rupturas (com transição, não acredito em transformações da noite para o dia) para que deixemos para trás o atual sistema, que já cumpriu o seu papel e não vai além. A democracia republicana, tal como a conhecemos, morreu.

Que tipo de projeto? Este assunto fica para o próximo texto.



Marcelo Hailer Jornalista (USJ), mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e doutorando em Ciências Socais (PUC-SP). Professor convidado do Cogeae/PUC e pesquisador do Núcleo Inanna de Pesquisas sobre Sexualidades, Feminismos, Gêneros e Diferenças (NIP-PUC-SP). É autor do livro “A construção da heternormatividade em personagens gays na televenovela” (Novas Edições Acadêmicas) e um dos autores de “O rosa, o azul e as mil cores do arco-íris: Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente” (AnnaBlume).


FONTE: Revista Forum

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