terça-feira, 29 de junho de 2021

Na ONU, Brasil será alvo de acusação de genocídio de indígenas e negros

   Por Jamil Chade, do UOL


            Logo da ONU em sede de Nova York (Imagem: Lucas Jackson)

O governo brasileiro será alvo de denúncias nesta segunda-feira [28.06], na ONU, por genocídio tanto no que se refere à população negra como na questão indígena. Violência policial e racismo no país também estarão na agenda de um dia que promete ser tenso para a diplomacia brasileira.

A reunião para debater a questão do genocídio ocorre no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Ainda que não haja uma decisão final que represente sanções contra governos e nem ações judiciais contra líderes, o encontro é visto como uma plataforma importante para marcar uma narrativa em relação a fenômenos de violações de direitos humanos em diferentes partes do mundo.

Um dos grupos que usará o encontro para denunciar o Brasil é a Justiça Global. O objetivo da ONG é o de chamar a atenção internacional para a situação vivida pela juventude negra no país. O termo genocídio, portanto, será usado para denunciar o Brasil durante o evento.

Indígenas brasileiros também usarão o encontro para fazer uma denúncia contra o país, de forma mais específica sobre situações de grupos como os Yanomanis e os ataques sofridos nas últimas semanas.

O que os grupos querem é que a realidade brasileira entre no radar da conselheira especial do secretário-geral da ONU para a prevenção de Genocídio, Alice Wairimu Nderitu.

Ainda que governos como o do Brasil se recusem a aceitar o uso do termo genocídio para lidar com a realidade vivida no país, cresce a pressão inclusive sobre a procuradoria do Tribunal Penal Internacional para abrir um exame formal sobre a situação dos indígenas no país, além da própria crise sanitária gerada pela pandemia da covid-19.

George Floyd ameaça colocar Brasil no debate internacional

 Outra pressão sobre o Brasil virá com a publicação do inquérito conduzido pela ONU sobre a morte de George Floyd, nos EUA. Nas semanas que seguiram ao caso, uma resolução foi aprovada no Conselho das Nações Unidas, dando um mandato para que a entidade realizasse uma investigação sobre a violência policial e racismo.

Ainda que o tema se concentre principalmente nos EUA, o governo brasileiro já se prepara para ser alvo de pressão por eventuais referências à violência policial em outras partes do mundo.

Não por acaso, quando a resolução foi aprovada há um ano, o governo de Jair Bolsonaro foi um dos poucos no mundo a ficar ao lado do presidente Donald Trump e tentar esvaziar o mandato investigador.

Não apenas a ação da diplomacia brasileira ajudava o então aliado, mas Brasília também considerava que uma eventual investigação global colocaria o foco sobre a violência policial no Brasil e racismo.

O temor do governo tem explicação. Durante a mesma sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, outros dois informes apontarão para a violência policial no país. Num deles, sobre execuções sumárias, o Brasil é colocado ao lado de Venezuela, Filipinas e Nigéria.

“O maior número de mortes por policiais ocorreu no contexto das chamadas guerras contra drogas e contra atividades criminais, levando a relatoria a emitir dezenas de cartas de pedidos de ação urgente sobre assassinatos ilegais de residentes de comunidades pobres nas Filipinas, Venezuela, Brasil, Nigéria e outros”, aponta.

Num outro documento, também da ONU, é questionada a estratégia brasileira de ação contra as drogas, e o número elevado de mortes nas operações.

 

FONTE: https://www.geledes.org.br/

terça-feira, 15 de junho de 2021

Educação, grande alvo da extrema-direita

 




Por Boaventura de Sousa Santos


 Os movimentos translocais de ideias, de filosofias, de visões do mundo, de doutrinas sobre a vida e sobre a política e a sociedade são tão antigos quanto a difusão do uso dos metais, das trocas comerciais, da escrita e das primeiras civilizações urbanas a partir da Idade de Bronze 3000 ou 4000 AEC. Certamente com origem na Mesopotâmia e no que viemos a chamar o antigo Médio Oriente, essas trocas espalharam-se por toda essa vasta área da Eurásia, que mais tarde passamos a dividir entre o Ocidente (a Europa) e o Oriente (sobretudo a China e a Índia). Sabemos hoje que a Mesopotâmia foi o berço da cultura grega e que esta esteve presente no Norte da Índia nos primeiros séculos da Era Comum, muito antes de se transformar em patrimônio europeu, o que, aliás, só foi possível graças ao magnífico trabalho de tradução dos textos gregos empreendida em Bagdá pelos árabes do califado Abássida a partir de meados do século VIII, época que ficou conhecida como a Idade de Ouro do Islã.

Ao longo dos séculos, estes movimentos de ideias sempre tiveram uma origem local (às vezes, em vários locais simultaneamente) e a partir daí se difundiram e se transformaram em movimentos globais. As trocas, as influências cruzadas e as adaptações locais sempre foram uma constante dos movimentos de ideias. O protagonismo da Europa nestes movimentos é muito tardio. Só começa no século XVI e, para muitos, só nos séculos XVIII e XIX. Para me limitar aos últimos cem anos, podemos dizer que a marca europeia nas ideias políticas está presente nos seguintes movimentos globais contemporâneos: liberalismo, socialismo, direitos humanos, conservadorismo. Este último é uma contra-corrente em relação aos outros, pois enquanto estes estão informados pela tensão entre regulação social e emancipação social, donde decorrem avanços na melhoria das condições de vida para as maiorias e na inclusão social, o conservadorismo dá total prioridade à regulação social e opõe-se às ideias de maiorias e de inclusão social (daí, o seu racismo e sexismo). O conservadorismo tem três características principais: sendo um movimento global, afirma-se como contrário à globalização; sendo tão moderno quanto os outros três, apresenta-se como um regresso ao passado, uma reação que tanto pode ser moderada (direita) como extremista (extrema-direita); tem uma visão muito seletiva da soberania nacional que não o impede de ser subserviente à globalização capitalista neoliberal. Depois da Segunda Guerra Mundial o eixo desta difusão de ideias deslocou-se para o Atlântico norte, devido à supremacia dos EUA. Passou então a falar-se de eurocentrismo.

Estes quatro movimentos de ideias têm três facetas importantes: ocorrem simultaneamente, mas alternam na predominância; adaptam-se criativamente aos diferentes contextos locais; incidem nos processos educativos porque aí se formam as próximas gerações que os podem reproduzir. O período em que vivemos sinaliza uma transição para o predomínio do conservadorismo. Mas é uma transição muito incerta devido sobretudo às questões novas que a pandemia do novo coronavírus veio levantar. Elas apontam para ideias (por exemplo, novas relações com a natureza, alternativas ao desenvolvimento, relações entre o Ocidente e o Oriente) que não cabem nas versões dominantes do liberalismo, do socialismo ou dos direitos humanos. Vivemos, assim, transições de sinal contrário que por vezes dão a aparência de impasse ou de esgotamento ideológico. Hoje, detenho-me na ascendência global do conservadorismo, tanto em sua versão moderada como extremista, e nas suas recentes manifestações na área da educação no Brasil, na Índia, na Colômbia e em Portugal.

Antes da pandemia esta ascendência era particularmente visível em países tão diferentes como Reino Unido, EUA, Brasil, Índia, Filipinas, Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Bolívia, Equador, Chile, Colômbia, Israel, Guiné-Bissau, Marrocos, Egito, Camarões. A pandemia veio criar um problema inesperado para a direita: os países em que estava no poder foram aqueles em que a proteção da vida foi, em geral, mais deficiente. Os governos de direita não só se revelaram incompetentes para proteger a vida, como em alguns casos extremos (EUA e Brasil) tomaram medidas que diretamente puseram em risco a vida dos cidadãos. Apesar disso, não é claro que os próximos processos eleitorais os punam nas urnas. O risco existe e, para o prevenir, estamos a assistir ao mais preocupante desenvolvimento possível: o conservadorismo de direita está a deslizar para a extrema direita. Nos EUA, Donald Trump, perante a perspectiva de perder as eleições, está a promover campanhas maciças de desinformação, a recorrer às forças militares e a mobilizar milícias neonazis, de extrema direita, o que pode vir a pôr o país à beira de uma guerra civil, sobretudo se Trump não conseguir manipular com êxito os processos eleitorais e perder as eleições. O Brasil pode vir a seguir o mesmo caminho em 2022.

Como referi, um dos alvos privilegiados do novo (velho) conservadorismo de direita e de extrema-direita é a educação. Cito quatro casos a título de exemplo. No Brasil, podem identificar-se duas ações principais. A primeira consiste na iniciativa Escola Sem Partido, criada em 2004 com o objetivo de supostamente eliminar a “doutrinação ideológica” nas escolas. A partir de 2013, com a viragem da política brasileira para a direita (intensificação da desinformação de extrema-direita por via das fake news, perseguição político-judicial ao Partido dos Trabalhadores no âmbito da Operação Lava-Jato, especialmente contra o ex-presidente Lula da Silva, impedimento da Presidente Dilma Rousseff em 2016, eleição de Jair Bolsonaro em 2018), a Escola sem Partido intensificou a sua ação com dezenas de projetos de lei apresentados aos órgãos legislativos dos vários níveis de governação (municipal, estadual e federal) com medidas que violavam os direitos humanos fundamentais, a liberdade docente e a própria Constituição, um conjunto altamente ideológico conservador cuja inconstitucionalidade tem sido questionada por várias instâncias nacionais e internacionais.

A segunda ação consiste no ataque multifacetado às universidades públicas que envolve, nomeadamente, os cortes orçamentais e consequente subfinanciamento e o questionamento do sistema democrático da eleição dos reitores das universidades públicas federais. O governo de Jair Bolsonaro tem vindo a ignorar a eleição de reitores progressistas e mesmo a nomear reitores-interventores, tal como no tempo da ditadura que vigorou no país entre 1964 e 1985.

Na Índia, desde que Narenda Modi e o seu partido (BJP) chegaram ao poder (2014) tem havido um ataque sem precedentes à liberdade acadêmica. O sistema universitário indiano é muito diverso, composto por universidades públicas e privadas, centrais (ou federais) e estaduais, universidades para minorias, universidades religiosas, entre outras. Os ataques às universidades públicas centrais é o que tem tido mais publicidade. Intensificaram-se depois de 2014, embora tivessem ocorrido antes dirigidos pela organização juvenil do partido que agora está no poder. Professores e líderes estudantis têm sido criminalizados ao abrigo da lei contra o terrorismo e reuniões e encontros promovidos por estudantes ou professores têm sido proibidos a pretexto de que abordam temas politicamente sensíveis. À semelhança do que tem acontecido noutros países, os ataques diretos à liberdade acadêmica têm sido complementados com ataques indiretos, nomeadamente com a precarização dos contratos dos docentes, a nomeação de administradores impostos pelo Estado, a supervisão ideológica dos planos de estudo e a sistemática nomeação para posições universitárias de topo de ideólogos de direita e partidários do BJP, muitas vezes sem as necessárias qualificações acadêmicas.

Na Colômbia, o governo de direita e as organizações sociais que o apoiam têm promovido múltiplos ataques à universidade pública e ao pensamento crítico. Mediante acusações falsas, estigmatizações e montagens judicias, têm incriminado professores e estudantes sob o pretexto de pertencerem a grupos terroristas. Além disso, professores que “incomodam” só por pertencerem ao movimento universitário em defesa da educação pública têm sido ameaçados de morte. Perante a resistência da universidade pública, o governo tem vindo a asfixiá-la financeiramente, transferindo fundos para as universidades privadas. O objetivo é abrir o caminho para o capitalismo universitário de modo a que a universidade se transforme numa empresa e a suposta “doutrinação ideológica” seja substituída pelo monopólio da ideologia do mercado. E, tal como no caso português (a seguir), o conservadorismo de direita e de extrema-direita colombiano tem atacado a educação sexual nas escolas sob o pretexto de difundir a “ideologia de gênero”, acusando inclusivamente o Acordo de Paz de 2016 de a promover.

Em Portugal, o conservadorismo de extrema-direita, que sempre existiu antes e depois da Revolução do 25 de Abril de 1974, tem hoje um partido, o Chega, que congrega à sua volta todos os movimentos neonazis e nacionalistas que nunca se conformaram com a derrota que sofreram com a Revolução. A sua estratégia futura vai assentar na capitalização do descontentamento que a crise econômica e social decorrente da pandemia pode vir a provocar. O conservadorismo moderado ficou imobilizado com a pandemia porque o consenso no combate à crise sanitária foi inicialmente avassalador e o governo de esquerda mostrou eficácia e coerência nas medidas de curto prazo. Desesperado em busca de agenda que possa chamar a si os seus adeptos, encontrou-a recentemente na disputa sobre o caráter obrigatório ou optativo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento no ensino secundário. A disciplina é obrigatória. A polêmica surgiu quando os pais de dois alunos de Vila Nova de Famalicão invocaram a objeção de consciência para não deixar que os filhos frequentassem a disciplina, com o argumento de que os temas da disciplina eram uma responsabilidade da família. Os alunos reprovaram por faltas, foram admitidos pela escola a transitar de nível, o Ministério de Educação recusou o procedimento e exigiu que os alunos frequentassem um plano de recuperação, plano que os pais rejeitaram, avançando com uma providência cautelar que foi aceite pelo tribunal. Está pendente a decisão.

Entretanto, personalidades de direita, tanto secular como religiosa, publicaram um manifesto em favor do caráter facultativo da disciplina. Não podiam escolher um alvo menos adequado e um tempo menos oportuno. Vivemos em pleno período de crise sanitária que nos tem vindo a ensinar a necessidade de consenso político nas questões de que depende o nosso futuro e o das gerações que nos sucedem. Educar para a cidadania, em todas as suas expressões, é hoje mais urgente que nunca. Neste contexto, afirmar liberdades que possam desestabilizar a educação dos jovens e questionar ainda mais as suas expectativas assume uma particular gravidade. Todos se recordam das manifestações nos EUA das forças de direita e de extrema-direita contra o uso das máscaras e o distanciamento sanitário. A repulsa foi geral. No caso da educação sexual (porque é esse o cerne do incômodo) não está em causa a desobediência a orientações da OMS; está em causa a violação de tratados internacionais de direitos humanos que Portugal ratificou. Recordemos que o princípio da igualdade de gênero e do respeito pela diversidade sexual está hoje internacionalmente reconhecido, e é dele que decorre a exigência da educação sexual nas escolas, o que, aliás, sucede em toda a Europa. E para surpresa dos conservadores portugueses, os estudos revelam que os pais norte-americanos, qualquer que seja a sua orientação política, são, em esmagadora maioria, a favor da educação sexual na escola. Entre outras motivações, muitos deles preferem que seja a escola a tratar de temas que, por mais importantes, podem ser incômodos quando tratados na intimidade familiar. Outros temem que, na ausência da escola, as redes sociais ocupem esse espaço sem qualquer controlo.

A polêmica que se levantou na sociedade portuguesa mostra até que ponto o Portugal profundo continua sexista (e certamente também racista, já que os dois preconceitos vão juntos, como vários casos recentes mostram). Há cinquenta anos as escolas ensinavam que as mulheres deviam obediência aos maridos, que não podiam exercer certos cargos por carecerem de capacidade física ou mental e que os homossexuais eram doentes (quando não criminosos). As transformações políticas, por que passamos, e os movimentos sociais que se lhes seguiram em favor dos direitos sexuais, e todo o movimento global pelos direitos humanos, foram sedimentando numa nova cultura de paz e de convivência, de reconhecimento da diferença e de respeito pela diversidade. Essa cultura sobrepõe-se a séculos de preconceitos – e a séculos de privilégios em que tais preconceitos se traduziram e continuam a traduzir. A inércia social que isso causa aflora a cada momento, como no caso presente. Daí a necessidade de a escola se envolver ativamente na aprendizagem de uma cultura democrática, não excludente, promotora dos direitos humanos. E certamente que as escolas o fazem de uma maneira muito mais confiável que as redes sociais.

À luz de qualquer dos três movimentos globais de ideias de matriz europeia (liberalismo, socialismo, direitos humanos), esta iniciativa do conservadorismo português significa uma violação dos objetivos de inclusão social igualitária que dominaram nos últimos cem anos e, em Portugal, apenas nos últimos cinquenta anos. Devido a esta particularidade portuguesa, pôr em causa a vigência plena da educação para a cidadania é particularmente grave. É que, por detrás da convicção de conservadores da direita moderada, esconde-se a extrema-direita, provavelmente com o objetivo de se sobrepor a ela na polarização que vai explorar a todo o custo. A presença da hierarquia da Igreja Católica, em aberta desobediência ao Papa Francisco, é um sinal adicional de preocupação. Não esquecemos ainda que a hierarquia da Igreja Católica portuguesa defendeu o fascismo (e o colonialismo) até aos seus últimos estertores. E, obviamente, é particularmente importante que os tribunais não abdiquem de fazer valer os direitos da igualdade sexual e da orientação sexual consignados nas leis e na Constituição. Lembremo-nos de que nesta matéria houve decisões recentes altamente problemáticas e justificadas com fundamentos ilegais.

Não é optativo retroceder. Os retrocessos na educação são sempre um péssimo augúrio para a sociedade. Se a igualdade sexual fosse ideologia de gênero, a igualdade entre raças seria ideologia racial e a luta contra a pobreza seria ideologia classista. E, em última instância, a luta contra o fascismo seria ideologia… democrática.

 

FONTE: Controvérsia


domingo, 6 de junho de 2021

A igreja e o novo sujeito social




Por Marcio Pochmann


O início do século 21 trouxe consigo questões de sobrevivência humana próprias do passado recente. Para além da problemática nuclear herdada da segunda Guerra Mundial, a insustentabilidade ambiental ganhou evidência a partir dos anos 1970.

Com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo e o estudo Limites do Crescimento, do Clube de Roma, o tema do desenvolvimento passou a ser percebido como um sonho de difícil realização ao conjunto das nações. Isso parece ter ficado evidente no primordial livro de Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico, publicado em 1974.

Ao mesmo tempo, os povos sofreram modificações substanciais resultantes da passagem do antigo e longevo agrarismo à condição de sociedades urbanas. A mesma ONU que contabiliza atualmente mais de 55% da população mundial vivendo em áreas urbanas, projeta para 2050 quase 4/5 dos habitantes do planeta morando nas cidades.

Simultaneamente, não se pode esquecer a marcha econômica que desloca o sistema produtivo industrial do Ocidente para o Oriente. Com a Nova Rota da Seda protagonizada pela China, versão bem mais grandiosa que o Plano Marshall estadunidense que reconstruiu a Europa no segundo pós-guerra, a antiga Eurásia ressurge em novas bases modernizantes, afirmando-se como o principal centro dinâmico do mundo.

É nesse contexto que a Igreja Católica tem procurado se reposicionar neste começo do século 21. Enquanto instituição milenar que emergiu em pleno domínio do antigo império romano, fundado em profundas tradições assentadas nas sociedades agrárias, a igreja tem se disposto a atualizar sua doutrina social de tempos em tempos, sobretudo diante da constatação do aparecimento de novos sujeitos sociais.

Foi assim no final do século 19, quando ficou evidente que o antigo centro econômico agrário do mundo, comandado por hindus e chineses havia sido derrotado pelo império inglês, deslocando o poder da Eurásia para a Europa. Em 1891, o papa Leão XIII lançou a encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), que reposicionou a doutrina social da igreja em relação à emergência de novos que substituíam aqueles pertencentes ao velho mundo agrário (servos, escravos, camponeses e outros).

Numa época em que a globalização sequer era imaginada, a encíclica inovou com importante abordagem a respeito da questão social que resultava da expansão selvagem do liberalismo no capitalismo urbano e industrial. O posicionamento da igreja sobre as precárias condições urbanas de vida e trabalho dos operários reorientou o mundo, sobretudo o Ocidente, frente à natureza desregulada do capitalismo a explorar a sobrevivência humana.

Os movimentos regulatórios da exploração capitalista que se expandiram ao longo do século 20 trouxeram inegavelmente consigo a força da doutrina social da igreja. Tanto na criação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, como nos diversos sistemas de regulação pública do trabalho adotados por governos nacionais, a questão do novo sujeito social urbano e industrial trazido pela Rerum Novarum esteve presente em maior ou menor medida.

Nos dias de hoje, o papa Francisco tem protagonizado nova geração de encíclicas que dialogam com a emergência de sujeitos sociais resultantes das principais transformações do capitalismo. A globalização neoliberal conduzida por grandes corporações transnacionais privadas, que esvaziam o poder dos governos nacionais, e o deslocamento da centralidade do Ocidente para o Oriente encontram no papa Francisco a defesa de uma economia política não excludente.

Após 130 anos da Rerum Novarum de Leão XIII, a encíclica Fratelli tutti (Todos irmãos) do papa Francisco enuncia outro olhar abrangente sobre a transição da Era Industrial para a Digital, acoplada ao sujeito da sociedade de serviços. Não mais o predomínio do trabalho material constituído pelo camponês do antigo agrarismo ou pelo operário da outrora sociedade urbana e industrial, mas a intensa expansão do labor imaterial a hegemonizar a condição humana deste início do século 21.

O papa Francisco parece inovar também na perspectiva humanista de avançar da visão iluminista ocidental de superioridade da razão sobre a emoção para incorporar outros saberes não acadêmicos provenientes das comunidades ancestrais e dos povos negros. Ao procurar responder aos enormes dilemas contemporâneos da humanidade, a encíclica Fratelli tutti de 2020 atualiza a abordagem assentada nos desafios da vida cotidiana imposta pela realidade imediata.

Lança, assim, outras luzes de esperança renovada para iluminar o caminho de um mundo melhor. Para tanto, a expectativa se volta aos sujeitos do trabalho imaterial que em plena Era Digital da sociedade de serviços parecem, cada vez mais, não ser economicamente viáveis no capitalismo neoliberal.

Fonte da matéria: https://terapiapolitica.com.br/2021/03/14/a-igreja-e-o-novo-sujeito-social/


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...