Por Marcio Pochmann
O início do século 21 trouxe
consigo questões de sobrevivência humana próprias do passado recente. Para além
da problemática nuclear herdada da segunda Guerra Mundial, a insustentabilidade
ambiental ganhou evidência a partir dos anos 1970.
Com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
realizada em Estocolmo e o estudo Limites do Crescimento, do Clube de Roma, o
tema do desenvolvimento passou a ser percebido como um sonho de difícil
realização ao conjunto das nações. Isso parece ter ficado evidente no
primordial livro de Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico,
publicado em 1974.
Ao mesmo tempo, os povos sofreram modificações substanciais resultantes
da passagem do antigo e longevo agrarismo à condição de sociedades urbanas. A
mesma ONU que contabiliza atualmente mais de 55% da população mundial vivendo
em áreas urbanas, projeta para 2050 quase 4/5 dos habitantes do planeta morando
nas cidades.
Simultaneamente, não se pode esquecer a marcha econômica que desloca o
sistema produtivo industrial do Ocidente para o Oriente. Com a Nova Rota da
Seda protagonizada pela China, versão bem mais grandiosa que o Plano Marshall
estadunidense que reconstruiu a Europa no segundo pós-guerra, a antiga Eurásia
ressurge em novas bases modernizantes, afirmando-se como o principal centro
dinâmico do mundo.
É nesse contexto que a Igreja Católica tem procurado se reposicionar
neste começo do século 21. Enquanto instituição milenar que emergiu em pleno
domínio do antigo império romano, fundado em profundas tradições assentadas nas
sociedades agrárias, a igreja tem se disposto a atualizar sua doutrina social
de tempos em tempos, sobretudo diante da constatação do aparecimento de novos
sujeitos sociais.
Foi assim no final do século 19, quando ficou evidente que o antigo
centro econômico agrário do mundo, comandado por hindus e chineses havia sido
derrotado pelo império inglês, deslocando o poder da Eurásia para a Europa. Em
1891, o papa Leão XIII lançou a encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), que
reposicionou a doutrina social da igreja em relação à emergência de novos que
substituíam aqueles pertencentes ao velho mundo agrário (servos, escravos,
camponeses e outros).
Numa época em que a globalização sequer era imaginada, a encíclica
inovou com importante abordagem a respeito da questão social que resultava da
expansão selvagem do liberalismo no capitalismo urbano e industrial. O
posicionamento da igreja sobre as precárias condições urbanas de vida e
trabalho dos operários reorientou o mundo, sobretudo o Ocidente, frente à
natureza desregulada do capitalismo a explorar a sobrevivência humana.
Os movimentos regulatórios da exploração capitalista que se expandiram
ao longo do século 20 trouxeram inegavelmente consigo a força da doutrina
social da igreja. Tanto na criação da Organização Internacional do Trabalho, em
1919, como nos diversos sistemas de regulação pública do trabalho adotados por
governos nacionais, a questão do novo sujeito social urbano e industrial
trazido pela Rerum Novarum esteve presente em maior ou menor medida.
Nos dias de hoje, o papa Francisco tem protagonizado nova geração de
encíclicas que dialogam com a emergência de sujeitos sociais resultantes das
principais transformações do capitalismo. A globalização neoliberal conduzida
por grandes corporações transnacionais privadas, que esvaziam o poder dos
governos nacionais, e o deslocamento da centralidade do Ocidente para o Oriente
encontram no papa Francisco a defesa de uma economia política não excludente.
Após 130 anos da Rerum Novarum de Leão XIII, a encíclica Fratelli tutti
(Todos irmãos) do papa Francisco enuncia outro olhar abrangente sobre a
transição da Era Industrial para a Digital, acoplada ao sujeito da sociedade de
serviços. Não mais o predomínio do trabalho material constituído pelo camponês
do antigo agrarismo ou pelo operário da outrora sociedade urbana e industrial,
mas a intensa expansão do labor imaterial a hegemonizar a condição humana deste
início do século 21.
O papa Francisco parece inovar também na perspectiva humanista de
avançar da visão iluminista ocidental de superioridade da razão sobre a emoção
para incorporar outros saberes não acadêmicos provenientes das comunidades
ancestrais e dos povos negros. Ao procurar responder aos enormes dilemas
contemporâneos da humanidade, a encíclica Fratelli tutti de 2020 atualiza a
abordagem assentada nos desafios da vida cotidiana imposta pela realidade
imediata.
Lança, assim, outras luzes de esperança renovada para iluminar o caminho
de um mundo melhor. Para tanto, a expectativa se volta aos sujeitos do trabalho
imaterial que em plena Era Digital da sociedade de serviços parecem, cada vez
mais, não ser economicamente viáveis no capitalismo neoliberal.
Fonte da matéria: https://terapiapolitica.com.br/2021/03/14/a-igreja-e-o-novo-sujeito-social/
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