quarta-feira, 29 de junho de 2016

“Escolas sem partido” ou Pensamento Único?


Ao naturalizar desigualdade e opressão e pretender aulas "neutras", projeto
em exame no MEC busca silenciar vozes e criar espaços de conformismo
e resignação às injustiças

Por Pedro Henrique Oliveira Gomes


Para o projeto Escola Sem Partido, discutir feminismo e homofobia é doutrinação ideológica e imposição da ideologia de gênero nas escolas (I). Como reflexo da sociedade, as escolas são espaços nos quais a opressão às mulheres e a discriminação sexual são constantes. Na maioria dos casos, as ações e as reações são silenciadas e banalizadas. Será necessário promover tal discussão nas escolas? A seguir, veremos algumas pesquisas sobre o assunto. Certamente, nos mostrarão a urgência da discussão na sociedade e nas escolas.

Segundo dados do Mapa da Violência 2015 (II), de Julio Jacobo Waiselfisz, entre 2003 e 2013, o número de vítimas do sexo feminino mortas no Brasil passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. As 4.762 mortes em 2013 representam 13 homicídios femininos diários. Quando analisamos os casos de feminicídio, a população negra é vítima prioritária. Em 2014, o Sistema Único de Saúde atendeu 23.630 casos de violência sexual, a maioria envolvendo crianças e adolescentes. Segundo informações presentes no estudo “Violência contra a mulher: feminicídios no Brasil” (III), de 2013, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006 para combater a violência contra a mulher, não teve impacto no número de mortes por esse tipo de agressão.

Quando o assunto é escola, os dados sobre assédio ou violência contra mulheres estudantes são escassos ou inexistentes, nas secretarias de educação. Já sobre discriminação contra homossexuais os dados são preocupantes. Em pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior de São Paulo, 32% dos homossexuais entrevistados afirmaram sofrer preconceito dentro das salas de aula e também que os educadores ainda não sabem reagir apropriadamente diante das agressões no ambiente escolar, que podem ser físicas ou verbais (IV). Os dados, segundo os pesquisadores, convergem com aqueles apresentados em pesquisa do ministério da Educação, que ouviu 8.283 estudantes na faixa etária de 15 a 29 anos, no ano letivo de 2013, em todo o país, e constatou que 20% dos alunos não querem colega de classe homossexual ou transexual.

Na mídia, além da reprodução dos discursos e da estética de uma sociedade patriarcal, alguns personagens com grande visibilidade provocam e se promovem a partir de atitudes machistas, como o humorista Danilo Gentili e o ator Alexandre Frota. Por sinal, em recente audiência com o ministro da Educação, Mendonça Filho, Frota e um grupo associado ao movimento Escola Sem Partido levaram suas propostas para transformar a educação brasileira. Certamente, Alexandre Frota tem todo o direito de ser ouvido pelo ministro da Educação. Porém, quais os grandes problemas? Trata-se de alguém com passado marcado por machismos e atitudes boçais, conforme dito anteriormente. Além disso, há desigualdade no diálogo. Todos deveriam ser ouvidos. Os estudantes das escolas ocupadas estão sendo ouvidos? Muito pouco. Os professores em greve estão sendo ouvidos? Um pouco mais — porém, de forma, marginalizada. Até agora, reitores de universidades públicas federais não conseguiram marcar encontros com o atual ministro. Enfim, é preciso superar a seletividade do diálogo e analisar criticamente o projeto levado por Frota e sua trupe.

Voltemos ao parágrafo inicial. Qual é o absurdo do projeto Escola Sem Partido? Ignora-se a realidade para dar continuidade ao projeto de educação e sociedade em que vivemos faz tempo. O que esse movimento quer não é transformar a educação brasileira. Pretendem frear alguns avanços pedagógicos e sociais que tivemos nos últimos 15 anos, como as leis 10.639/03 e a 11.645/08. E por que apenas frear? Se analisarmos os conteúdos trabalhados e as atitudes desenvolvidas nas escolas, veremos poucas mudanças em relação à educação tradicional, conservadora e meritocrática. Nas salas de aula, falamos sobre (e muitos cultuam) a cultura eurocêntrica, o consumismo moderno, o agronegócio, a urbanização do mundo, a atuação das empresas multinacionais e suas grandes marcas, a corrida desenvolvimentista, a fábula da sustentabilidade, em pensadores brancos, homens e europeus, entre outros assuntos marcados pela hegemonia do saber.

Nos lugares da vida, mulheres são agredidas, jovens negros são assassinados, a cultura é elitizada, os espaços públicos são murados e fortificados, o caminhar é vigiado, o sucesso é baseado unicamente na ascensão econômica, entre outros vendavais que nos levam ao mundo fabuloso da desigualdade e da perversidade das relações. Nos lugares de fé, os profetas e seus seguidores cultuam emocionalmente suas verdades, ignoram suas realidades, e almejam criar bolhas de satisfação pessoal e comunitária. Tudo isso acirrando as disputas pelo existir e pelo mundo em que vivemos.

Para subverter minimamente esse quadro, precisamos criar leis para discutir a nossa origem e conhecer a história e a cultura africana e indígena nas escolas. Na prática, subvertemos sistemas para discutir a vida, a realidade e outros saberes necessários para transformar nossas ideias, nossas práticas, nossos espaços, nossas relações, nossa existência.

Neste contexto, a Escola Sem Partido (ou, melhor dita, Escola de Pensamento Único) é um projeto para silenciar vozes, buscar estabilidades e criar novos espaços de conforto e conformismo social, cultural e intelectual. A instabilidade, o diferente, a emergência incomodam. Discutir as desigualdades sociais, o feminismo, a discriminação sexual, entre outros assuntos, é provocar instabilidades nesse sistema de histórias e pensamentos únicos. Doutrinação ideológica está presente nas escolas desde sempre com seus conteúdos, com seus discursos, com suas relações. O pensar crítico é outro papo.

A atitude socialmente crítica é emancipação. Ela combate e rompe com o desenvolver enciclopédico e elitizante das escolas tradicionais. Educar é analisar as realidades e a nossa sociedade, selecionando aquilo que é urgente para ser conhecido, discutido, problematizado. Se analisar criticamente as realidades é um problema, que possamos subverter a lógica do pensamento único. É preciso prosseguir na luta para garantir uma educação para a liberdade e para a autonomia. Por uma educação que reconheça nossos povos tradicionais e seus saberes, garanta o bem estar das pessoas, valorize o fazer coletivo, pratique a democracia nas suas relações, entre outros assuntos que integram a educação em direitos humanos, especialmente por um mundo socialmente justo e ambientalmente responsável. Contra qualquer tipo de silenciamento, é preciso pensar, refletir, dialogar. Porém, é extremamente necessário fazer, agir.

Até porque, nosso grande Paulo Freire já mandou: “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”(V). Nas palavras do educador, é necessário sermos homens e mulheres radicais nesse sistema atual. A radicalidade está na luta por uma educação mais dialógica, humana e ativa marcada pela autonomia do educando e pela liberdade na construção dos saberes e nos caminhos escolhidos para a vida.

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(II)Conheça o documento: 

(III)Confira o documento do IPEA: 

(IV) Ver estudo “Discriminação e violência homofóbica segundo os participantes da 6ª parada do orgulho LGBT de Sorocaba-SP: subsídios para (re) pensar as práticas educativas”, publicado por Marcos Roberto Vieira Garcia, Viviane Melo de Mendonça e Kelen Christina Leite no periódico Cadernos de Pesquisa. Disponível em: 

(V) Ler com afeto o livro Ação Cultural: para a liberdade e outros escritos, publicado pela editora Paz e Terra.


Pedro Henrique Oliveira Gomes

Professor-pesquisador na escola Sá Pereira (Rio de Janeiro) e organizador do projeto Cine Debate Educação. É um ativista-entusiasta da educação e pesquisador com interesse em novas práticas educativas, em questões curriculares e nas transformações da educação brasileira.


quarta-feira, 22 de junho de 2016

Papa Francisco e os “golpes de Estado brancos” na América Latina




Por Luis Badilla 

No relato do encontro, publicado no site do Celam, escreve-se que o pontífice, refletindo sobre a situação atual da América Latina, falou de “golpe de Estado branco”. Concretamente, a expressão do papa – “golpe branco” – deve ser incluída nesta passagem, do modo como o Celam relata:

“O Santo Padre mostrou sua preocupação com os problemas sociais que estão sendo vividos na América em geral. Preocupam-lhe as eleições nos Estados Unidos pela falta de uma atenção mais viva à situação social dos mais pobres e excluídos. Preocupam-lhe os conflitos sociais, econômicos e políticos da Venezuela, Brasil, Bolívia e Argentina (…) De repente, pode-se estar passando por um “golpe de Estado branco” em alguns países. Preocupam-lhe as carências do povo haitiano e a falta de diálogo das autoridades dos países que compartilham a ilha, Haiti e República Dominicana, a fim de encontrar uma solução legal aos migrantes e aos deslocados. Preocupa-lhe a forma de entender o que é um Estado laico e o papel da liberdade religiosa por parte de algumas autoridades mexicanas. O papa se sente animado ao ver o avanço que está sendo dado nos processos de paz na Colômbia; também lhe anima a sua próxima viagem a esse país para fazer a visita pastoral a um povo que foi tão atingido pela violência e que precisa empreender caminhos de perdão e reconciliação. O papa se entusiasma quando começa a falar da Pátria Grande que é a América Latina e dos esforços que não devem cessar para alcançar a integração dos nossos povos. Para isso, é necessário aproximar posições, restabelecer o diálogo social e buscar soluções compartilhadas aos desafios que o mundo de hoje apresenta.”

O diagnóstico do Papa Francisco

A imprensa relatou com um certo interesse as reflexões atribuídas ao papa nesse importante encontro com as autoridades do órgão eclesial que, desde 1958, coordena as 22 Conferências Episcopais do México ao Chile. O mesmo aconteceu em ambientes políticos latino-americanos, incluindo governos e aparatos diplomáticos. O relato foi dissecado por analistas, observadores e especialistas. Para muitos, pareceu ser um paper importante.

Em primeiro lugar, despertou curiosidade a lista dos países que o Santo Padre teria evocado e nos quais se vivem crises de natureza e relevância diferentes, embora preocupantes: Venezuela, Brasil, Bolívia, Argentina, Haiti, República Dominicana, México e Colômbia.

Em segundo lugar, também chamou a atenção de analistas e observadores uma segunda lista, o das situações críticas que Francisco descreveu, primeiro genericamente, como “problemas ou conflitos sociais”, e, posteriormente, quando abordou esse diagnóstico geral com essas frases específicas: “lições nos EUA, situação social de pobres e excluídos, carências, falta de diálogo, migrantes e deslocados, Estado laico e liberdade religiosa, processos de paz, diálogo social, aproximação de posições e soluções consensuais”.

Tudo o que o papa listou não só é verdade, mas também, muitas vezes, se trata de questões que fazem manchetes todos os dias na América Latina e em outros lugares. Muitas vezes, fala-se disso também na imprensa internacional, aumentando a percepção, verdadeira, de um continente que lida com graves crises sociopolíticas e institucionais que não são registradas desde o período do retorno aos regimes democráticos.

Particularmente, entre as opiniões e impressões do papa, porém, provocou e ainda provoca discussão entre políticos e diplomáticos a expressão “golpe de Estado branco”.

Na América Latina, dizer “golpe de Estado branco” tem conotações históricas, sociopolíticas e institucionais precisas. Significa a derrubada de fato de um governo, forçado, sem sangue nem convulsões sociais, a mudar de rota, de programa e de projeto, ou destituição de um governante através de manobras jurídicas, parlamentares e constitucionais de legitimidade democrática questionável.

Em ambos os casos, embora as modalidades sejam diferentes, o denominador comum é um só: inversão da vontade democrática do eleitorado.

O último “golpe” na América Latina há 14 anos

Desse modo, na América Latina, muitos se perguntaram, e ainda se perguntam, a que o Papa Francisco se referiu, ou queria se referir, especificamente. Obviamente, não temos uma resposta à pergunta, legítima e oportuna. Podemos apenas levantar hipóteses, e, entre estas, a mais plausível, nos faz acreditar que o Santo Padre tenha querido expressar, sobretudo, um temor, justamente, de que as crises atuais, em vez de encontrarem soluções democráticas, abertas e declaradas, preferivelmente consensuais, sejam contornadas com artifícios obscuros, pseudojurídicos, que, no fim, não resolvem nada, remetendo a novas crises, piores ainda, aquilo que não se quis enfrentar com honestidade e clareza no momento necessário.

É preciso lembrar que, na América Latina, a última tentativa de golpe em 2002 contra Hugo Chávez, fracassou depois de poucas horas. Depois, no entanto, registraram-se duas derrubadas de governos que, agora, passam pelo nome de “golpe branco ou golpe suave”, e que foram bem sucedidos: em Honduras, contra Manuel Zelaya (2009), e no Paraguai, contra Fernando Lugo (2012).

Muitos definiriam a recente suspensão da presidente Dilma Rousseff no Brasil como um “golpe branco” e muitos temem uma situação semelhante na Venezuela, com o presidente Nicolás Maduro. As insistências e as pressões, por enquanto fracassadas, provenientes de várias partes, muitas vezes acompanhadas por declarações belicosas, a fim de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) aplique na Venezuela a chamada “Carta democrática”, isto é, declare que, naquele país, desapareceu o Estado de direito, é interpretada como uma tentativa de “golpe branco”.

O poder onívoro do dinheiro

As preocupações do Papa Francisco com a situação geral da América Latina, visível e notoriamente piorada desde o dia em que ele, em fevereiro de 2013, pegou um avião para participar do conclave que devia eleger um novo papa depois da renúncia de Bento XVI, são mais do que justificadas e fundamentadas.

São as mesmas preocupações dos governos da região e dos analistas mais atentos e bem informados. São também preocupações compartilhadas e expressadas publicamente pelas Conferências Episcopais latino-americanas.

O núcleo do diagnóstico está na constatação da grave e persistente deterioração da política, dos políticos e dos partidos, ao mais baixo nível de popularidade e consenso. A insatisfação com a luta política é generalizada, desde o Rio Grande até a Patagônia, e, embora possa parecer uma generalização inapropriada, a percepção é de que hoje as classes governantes latino-americanas são sinônimo de corrupção e de ineficiência.

A bela temporada do retorno às democracias, depois de anos muito duros de repressão militar, parece uma recordação atávica e, em vez daquelas grandes mobilizações pela liberdade e pelos direitos humanos, entrou em cena a resignação e a indiferença.

Então, de várias partes e de modo cada vez mais insistente, na América Latina, diz-se: sem política, sem dialética democrática autêntica, sem debate político e cultural, vencem os mais fortes, ou seja, o dinheiro, instrumento capaz de fagocitar qualquer coisa.

É o poder imenso desse dinheiro, transnacional, que finalmente toma as decisões e condiciona a vida dos povos e das suas instituições. O dinheiro e a corrupção substituem as eleições. As manobras obscuras dos palácios, dentro e fora da região, substituem os verdadeiros e legítimos atores nacionais. Os interesses das altas finanças e da geopolítica tomam o lugar das necessidades e das prioridades dos povos.

Veremos…

Se os temores do Papa Francisco, quando ele fala de “golpe de Estado branco” (sem sangue), são aqueles que aparentemente nós entendemos, há dois testes para medir o grau de veracidade histórica: as soluções das crises na Venezuela e no Brasil. É questão de pouco tempo. Veremos.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/556042-papa-francisco-e-os-qgolpes-de-estado-brancosq-na-america-latina

Postado por: Ricardo 


FONTE: Controversia

domingo, 19 de junho de 2016

Tempos idos e vividos VII


Por Aluizio Moreira


Proibida de funcionar pela ditadura militar, a União Nacional dos Estudantes  (UNE) teve sua sede incendiada no Rio de Janeiro, logo após o golpe de 1964.

Estudantes sob cerco policial-militar em Ibiuna
Em 12 de outubro de 1968, estudantes universitários de todo país se mobilizaram para o XXXº Congresso da UNE, que deveria ser realizado em Ibiuna, num sitio do Bairro dos Alves, em São Paulo.

Descoberto antes de sua realização, 250 militares do Exército cercaram o local e fizeram cerca de 1.000 estudantes prisioneiros e levados para o presidio Tiradentes para interrogatórios. Uma publicação do DOPS sobre a “Operação Ibiúna”, registra a prisão de 695 estudantes.

Desses 1.000 prisioneiros cerca de 70 permaneceram presos considerados líderes do movimento. Entre os presos, segundo os jornais da época, 22 estudantes pernambucanos. No entanto nos Registros do DOPS sobre a repressão ao Congresso da UNE, encontramos um total de 34 estudantes do Recife, sendo 23 da UFPE, 2 da UPE, 7 da UNICAP e 2 da Universidade Rural.

Da relação dos universitários oriundos de Pernambuco, constam:        

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE  (23) : Ademir Alves de Melo, Aírton José de Lima, Antônio Batista da Silva,  Antônio Fábio Bonavides Maia, Cândido Pinto de Melo, Carmen Castro Chaves, Francisco Flávio Modesto de Andrade, Geruza Jenner  Rosas, Guilhermina de Souza Beserra, Irineu de Holanda, José Luiz Brasileiro de Oliveira, José Tomaz da Silva  Neto, Luciano Correia de Araújo, Manoel Fernando, Marcos Antônio Tavares Marinho, Marcos José Burle, Maria Henrique da Silva, Maria Luzinete de Lima, Maria Teresa Costa Sales de Melo, Miguel Ramos Rodrigues, Netovitch  Maia Duarte, Ranusia Alves Rodrigues, Vera Maria Martins de Albuquerque

FACULDADE DE CIENCIAS MÉDICAS – UPE  (2): Francisco de Sales Gadelha de Oliveira, Paulo Santos Carneiro.

UNIVERSIDADE CATOLICA DE PERNAMBUCO – UNICAP  (7): Alberto Romeu Gouveia Leite, Hugo Farias Ramos, José Delgado Noblat, Luiz Augusto Pontual, Marcus Vinícius Oliveira de Athayde, Paulo Henrique Maciel, Romildo Rangel do Rego Barros

UNIVERSIDADE RURAL DE PERNAMBUCO (2): Juares José Gomes, Valmir Costa.

A “Operação Ibiúna”, publicação do DOPS, no inicio do documento sob o titulo “Plano de Ação”, registra-se que


O “S.S.” do Departamento de Ordem Politica e Social de São Paulo, conseguiu desde a morte do estudante Edson Luiz na Guanabara, preciosos informes demonstrando que o Movimento Estudantil era utilizado por grupos da esquerda revolucionária, para atingir proporções QWQ representassem uma contribuição real ao Movimento Revolucionário, desde que conduzido dialeticamente até sua própria ampliação e consequente  absorção ao movimento geral. Com a aproximação do XXX Congresso da extinta UNE, esperavam os grupos de esquerda o desenvolvimento  consequente do Movimento Estudantil e sua condução à absorção num movimento mais amplo e radical, o chamado "Movimento Proletário de Libertação.

Publicação do DOPS "Operação Ibiúna"
Segundo o referido "Plano de Ação"  constante da Operação Ibiúna,  o documento que a UNE discutiria naquele Congresso era  uma "documentação de caráter nitidamente politico, toda voltada para a coordenação de forças estudantis e populares para impulsionar uma revolução", além de  "contribuir com sua parcela para a coordenação das demais forças interessadas" [. . .] "na mesma finalidade em outros países da América Latina através da O.C.L.A.E. (Organização Continental Latino Americana de Estudantes), com sede em Cuba" de acordo com a orientação da China Comunista.
           
Além de jornalistas que se encontravam no local para cobertura do Congresso, foram presos para averiguações um motorista profissional e Domingos Simões, proprietário do sitio, onde se realizaria o Congresso.

Entre as lideranças do Movimento Estudantil, foram presos Franklin Martins, Vladimir Palmeira, José Dirceu, Luis Travassos.

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Em Pernambuco, no dia 14.10, estudantes das Universidades públicas e particulares nos reunimos no hall do Bloco A, da Unicap para protestarmos contra a prisão dos estudantes em Ibiúna. Tínhamos instalado um microfone para chamamento dos alunos, ao som de “Pra não dizer que não falei de flores” do Vandré. Um pelotão da cavalaria, chegou e prostou-se junto ao portão de entrada da Universidade na Rua do Príncipe, que mantínhamos fechado. O Magnifico Reitor Padre Freitas, foi até ao portão, confabulou com o que parecia comandar a cavalaria que em seguida deixou o local. Não por mera coincidência, dias depois do fato, o Padre Freitas não era mais Reitor da UNICAP. 

Após alguns discursos de estudantes que se revezavam, saímos em passeata pelas ruas do centro do Recife, protestando contra a prisão dos colegas em Ibiúna, onde se realizaria o XXXº Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Houve repressão de policiais na rua da Concórdia, perseguições, mas todos voltamos ilesos para a Unicap, onde nos dispersamos.
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Cinco meses depois, em fins de fevereiro de 1969, Costa e Silva, à frente do Governo militar, assinou o Decreto Nº 477 pelo qual se punia professores, estudantes e funcionários das Universidades suspeitos de atividades “subversivas”. Pelo Decreto, os estudantes eram expulsos e ficavam proibidos de cursarem qualquer universidade por 3 anos. Só que o afastamento por 3 anos, implicava em jubilamento (desligamento) da Instituição de Ensino.

A fim de evitar ser alcançado pelo 477, não matriculei-me no Curso de Jornalismo da UNICAP em 1969. Como o fato de um aluno não matricular-se no período era tratado como abandono de Curso, criando-se a possibilidade de matricula após abandono, pensei em afastar-me por dois semestres e retornar no seguinte, sem correr o risco de ser jubilado. Fui bastante otimista quanto ao meu retorno.

Um ano após meu afastamento voluntário, retornei à UNICAP para uma nova matricula. O novo Reitor, professor Potiguar Matos,  que assumira o lugar do Padre Freitas, não era um jesuíta como de praxe, era um civil, indicativo de uma intervenção. Assim mesmo dirigi-me ao Magnifico para solicitar autorização para minha rematrícula. Olhou-me com um sorriso no canto da boca: “Já estou expulsando os subversivos daqui, como vou permitir a sua volta?” Agradeci e prolonguei meu afastamento, agora involuntário, por alguns anos mais.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

O que os secundas têm a ensinar à academia?



Não poderíamos fazer mais do que dar aulas públicas sobre democracia, mudar nossas
fotografias no Currículo Lattes e escrever cartas abertas "dos intelectuais"
contra o golpe?
 



Por Alex Martins Moraes | Imagem: Mídia Ninja


É moeda corrente nos ambientes universitários eue os estudantes secundaristas têm algo a ensinar para quem frequenta as salas de aula do Ensino superior. Desde que a ocupação das escolas se alastrou pelo país, os universitários se mobilizaram como puderam para prestar apoio e solidariedade aos secundaristas conflagrados, cuja luta se tornou uma das primeiras trincheiras de afirmação da democracia, da vontade de participação e das demandas “dos de baixo” no Brasil pós-golpe parlamentar. A admiração pelo protagonismo dos secundaristas se mistura com um certo mal-estar nos corredores da Universidade. Por que a relativa calmaria no campus? Não poderíamos fazer mais do que dar aulas públicas sobre democracia, mudar nossas fotografias no Currículo Lattes e escrever cartas abertas “dos intelectuais” contra o golpe? Estas perguntas pipocam entre estudantes e professores universitários Brasil afora.

Em artigo recente publicado na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro Machado evoca alguns cenários da vida acadêmica que nos dão pistas para entender a origem da timidez política do meio universitário num momento crítico da democracia brasileira. Ela se refere ao mundo acadêmico como uma “máquina nefasta marcada por brigas de núcleos, seitas, grosserias, humilhações, assédios, concursos e seleções fraudulentas” perpetuada por gerações de universitários ao longo de suas experiências institucionais. Rosana nos fala de acadêmicos que aprendem desde cedo a destruir a si mesmos e aos outros e comenta que o número de alunos que choram em seu gabinete é maior que os que se dizem felizes. E conclui: a vida acadêmica não precisa ser essa máquina trituradora de pressões múltiplas. A autora deposita suas esperanças numa nova geração de cotistas e bolsistas PROUNI e Fies que vê a Universidade com olhos críticos, contesta a supremacia das camadas médias brancas e coloca em xeque a meritocracia.

Contudo, a relação entre democratização relativa da Universidade e questionamento efetivo dos velhos paradigmas não parece ser assim tão direta. Como Rosana menciona em seu texto, o ensino superior está atravessado por fortes constrangimentos morais e materiais. Tais constrangimentos coexistem “pacificamente” com a crítica e o antagonismo apenas na medida em que estes não coloquem em xeque as hierarquias e valores estabelecidos. Neste contexto, as vontades, sonhos, desejos e indignações que movem o “novo estudantado” acabam em larga medida suprimidos nos espaços convencionais de ensino e pesquisa. A máquina funciona. E não é de agora que ela mutila as sensibilidades de muitos em favor da preservação de um modus operandi que só é amigável com o ethos de classe de um punhado de pessoas.

Para compreender a eficácia desse contínuo processo de pacificação é preciso olhar com atenção para nossa realidade mais imediata. Cada disciplina acadêmica tem sua própria cultura de disciplinamento. Darei um exemplo de minha área, a antropologia. Ali, grosso modo, a pacificação costuma funcionar assim: das portas para dentro da academia circunscreve-se uma espécie de espaço “neutro” ancorado em certas rotinas institucionais e estilos pedagógicos. Instalados nesse espaço, os acadêmicos são convidados, desde muito cedo, a falar sobre “os outros”, lá fora, em sua ausência. Se o próprio antropólogo for um “outro” – feminista, gay, crente, índio, militante popular, etc. –, como tem se tornado comum nos últimos anos, sua legitimidade acadêmica estará condicionada a que ele se assuma abertamente como “nativo”. Isto implica se esforçar por discernir, nos seus discursos e práticas, aquilo que seriam desvios ideológicos daquilo que é compatível com as matrizes de pensamento e os modos de conduta estabelecidos. O protocolo de boa conduta é vigiado por uma espécie de polícia disciplinar difusa e intermitente. Qualquer pessoa ou grupo pode ativar a função de polícia arbitrariamente quando lhe convier. Trata-se de um instrumento discursivo sustentado institucionalmente e disponibilizado a quem quiser usá-lo. Quando mobilizada, a função de polícia converte pares em párias e sua eficácia depende do que o antropólogo e ativista David Graeber denomina “ideologia da harmonia”. Esta última consiste numa espécie de consenso tradicional sobre a existência de interesses comuns a todos os acadêmicos, mais além de suas diferenças particulares.

Tenho certeza que em outras disciplinas a polícia opera segundo critérios distintos, mas certamente ela existe. Caso contrário, o campus não estaria tão calmo. Neste ponto, vale notar que é principalmente nas instituições universitárias mais recentes, menos especializadas do ponto de vista disciplinar e com hierarquias mais débeis onde podemos observar disrupções significativas. É o caso da Universidade Federal do Pampa (ler a cobertura do Esquerda Diário).

A máquina trituradora que dinamiza a vida acadêmica é reforçada pela avassaladora docilização da prática investigativa nas universidades. Tal processo decorre da paulatina instauração de critérios de avaliação quantitativista e produtivistas (me dediquei a analisar estes critérios em um texto publicado há alguns anos por Outras Palavras) que não reconhecem na prática científica outro valor mais além daquele outorgado pelos mercados editorais. O produtivismo empobrece os critérios de avaliação da produção científica e fortalece o senso comum conservador segundo o qual o compromisso intelectual de um pesquisador universitário se estabelece, em primeira instância, com as modas teóricas e a parafernália burocrática do seu próprio campo de conhecimento.

Neste cenário, a máxima proferida por Salvador Allende numa palestra dirigida aos estudantes da Universidade de Guadalajara em 1972, nove meses antes do golpe de Estado pinochetista, parece ressoar com renovada atualidade: “a revolução não passa pela universidade”. “A revolução – prosseguia Allende – passa pelas grandes massas; a revolução é feita pelos povos; a revolução é feita, essencialmente, pelos trabalhadores”. Não há nada de simplista nesta assertiva. Salvador Allende nunca negou o potencial da Universidade como espaço de elaboração de um saber crítico sobre o mundo. Contudo, ele sinalizava que os processos decisivos de transformação de qualquer situação passavam, fundamentalmente, pelas lutas populares. Se o público universitário estivesse interessado em somar-se a essas lutas, seria necessário que ele expandisse sua comunidade de diálogo e “deviesse massa” a partir do exercício de outras lealdades sociais. Isto significaria, em consonância com David Graeber, liberar nossa vontade de saber – afinal, foi ela que nos levou até a universidade – das amarras burocráticas e deixá-la escoar em simbiose com as paixões que nos comovem atualmente. Em poucas palavras, trata-se de fazer a Universidade passar pela revolução, entendida, esta última, como politização de tudo aquilo que nos subleva, de tudo aquilo que a polícia acadêmica procura negar e que as lágrimas dos alunos da colunista da Carta Capital insistem em delatar.

A ocupação das escolas demonstra que a politização da experiência adquire dimensões transformadoras quando é protagonizada pelos estudantes. Professores e diretores podem escolher entre serem mais ou menos autoritários, mais ou menos democratas, mais ou menos solidários com a luta dos estudantes. Mas é justamente esta capacidade de escolha que evidencia o poder desmesurado que eles detêm. A luta política estudantil, por sua vez, é a única cujo êxito impediria que o bem-estar e a capacidade de fala de muitos dependa do arbítrio e da boa vontade de poucos. Quando os estudantes resolvem fazer democracia na prática, algo muda dramaticamente nas instituições que eles habitam e tensões políticas decisivas vêm à tona. Neste sentido, o protagonismo estudantil é portador de uma chave democrática universal, que o coloca em sintonia com a vontade de mudança expressa em outros espaços da sociedade, abrindo caminho para o devir massa – ou multidão – do público universitário. Esta, creio eu, é uma das grandes lições oferecidas pelos secundaristas nas últimas semanas: para estar em simbiose com os problemas dos demais é necessário, antes de qualquer coisa, politizar radicalmente nossos próprios problemas e definir critérios para superá-los aqui e agora.

A vaidade acadêmica permitirá que os docentes universitários reconheçam a centralidade dos estudantes na luta democratizadora? Ou eles continuarão a investir seus esforços intelectuais na tentativa de difundir coordenadas políticas que estão muito aquém de real potência do alunado? O apego aos lugares de poder estabelecidos nos conselhos universitários, nos departamentos e programas de pós-graduação permitirá à burocracia acadêmica acompanhar os estudantes na exploração das consequências mais radicais de seu descontentamento político? Esta é uma pergunta que deveríamos responder na prática como, a propósito, já estão fazendo os secundaristas.


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Existe ainda uma alternativa socialista?


Por Aluizio Moreira



MÉSZÁROS, Istvan. Atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema parlamentar. Tradução: Paulo Cezar Castanheira, São Paulo: Boitempo, 2010.

A conclusão a que Mészáros chega nesta obra, da necessidade de uma estratégia ofensiva socialista como fundamental para a transformação da sociedade, é decorrente, em primeiro lugar, da observação  da conduta  política assumida pelo Governo Tony Blair com a vitória do seu Partido Trabalhista em 1997, na Inglaterra.

Enquanto Partido caracterizado como reformista, no poder, torna-se mais conservador do que o governo conservador de Margaret Thatcher (a quem fez ferroz oposição), chegando a declarar que seu Partido era o “Partido do empresariado e das indústrias modernas na Inglaterra” (p. 12). Externamente submeteu-se à política de alinhamento com a política  militarista de Washington, mesmo sob os protestos de milhares de cidadãos.

Mas o olhar de Mészáros não se fixa apenas na Inglaterra. Percebe que o movimento trabalhista e socialista no Ocidente, na medida em que participam da vida parlamentar burguesa, submetem-se “às regras do jogo parlamentar”, como força integrante do processo de reprodução do capital.  Para o Autor, o capital controla “inclusive o processo legislativo parlamentar, ainda que se suponha que este seja considerado totalmente independente do capital” (p. 36).

Ora, se o Parlamento é uma “camisa de força” para o movimento operário e socialista, como estes poderão  ter uma atuação independente e direcionada à transformação do sistema do capital? Até que ponto a participação dos socialistas no parlamento burguês enquanto estratégia política, viabilizará qualquer  ação que deveria culminar com o fim da democracia neoliberal  e com o “fenecimento do Estado”?

A  única alternativa possível será o movimento socialista assumir uma postura ofensiva diante do capital; postura ofensiva esta, que implicará na organização extraparlamentar dos cidadãos; considerando  que essa organização deverá assumir forma alternativa ao modelo parlamentar. Esse modelo possível será o da “autogestão plenamente autônoma da sociedade de produtores livremente associados em todos os domínios”, conclui Mészaros (p. 16).

Não é difícil concordar com o Autor quando afirma que o movimento revolucionário “não pode ser apenas um tipo de partido político orientado para a obtenção de concessões parlamentares, que em geral são, mais cedo ou mais tarde, anuladas pelos interesses especiais da ordem estabelecida que também prevalecem no Parlamento” (p. 43). Ou quando transcreve Rosa Luxemburgo (p. 21): “O sistema parlamentar é o viveiro de todas as atuais tendências oportunistas da social-democracia ocidental”, pois “transformou-se na mola propulsora dos carreiristas  políticos”. 

Paralelamente às discussões acerca das limitações do Parlamento diante das causas populares e da alternativa socialista a esse mesmo Parlamento, duas outras observações devem ser feitas acerca da obra de Mészáros: a primeira se refere ao contexto utilizado pelo Autor para demonstrar a “atualidade da ofensiva socialista”. Trata-se da análise do quadro da crise do capitalismo, caracterizada como crise estrutural, objeto do 2º capitulo. 

A segunda observação é a menção que faz da atuação, ao longo das fases do movimento socialista, das estratégias parlamentaristas que estiveram sempre presentes em vários momentos de sua História. Relembra a prática da II Internacional e de importantes partidos socialistas e comunistas, que embora alinhados às Resoluções da III Internacional, aderiram à “estrada parlamentar para o socialismo”: o Partido Comunista Frances e o Partido Comunista Italiano. Não muito diferente das tendências do “eurocomunismo”, da “terceira via” e mais recentemente das “Refundações” dos Partidos Comunistas, notadamente após o fim da URSS e da queda do muro de Berlim.

Atualidade histórica da ofensiva socialista” é uma leitura indispensável para todos aqueles que ainda se mantêm acreditando nas possibilidades do socialismo e do comunismo como “alternativa histórica” ao capital. Mas também indispensável para aqueles que ainda admitem a solução Parlamentar como caminho para a emancipação dos trabalhadores.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Agora na Justiça, o levante das mulheres


Para DeFEMde, Rede Feminina de Justiça, não basta lutar por maior presença
 no Judiciário. É hora de um Direito que rompa dogmas tradicionais, reveja
relações machistas e deixe de ser ferramenta para subjugar mulheres


Por Inês Castilho


A onda de mobilizações de mulheres que se espalha pelo Brasil acaba de dar à luz uma iniciativa criadora. Formou-se esta semana (31.05), a Rede Feminista de Juristas,  formada por mulheres que atuam nas mais diversas áreas do direito: juízas, defensoras públicas, promotoras, sócias de escritórios de advocacia, professoras universitárias e pesquisadoras. A rede integra também psicólogas e assistentes sociais feministas que trabalham cotidianamente no sistema jurídico.

A DeFEMde, sigla que adotaram, amplia o vigoroso levante de mulheres que vem acontecendo, com coletivos de trabalhadoras rurais, de mulheres negras, de mulheres da periferia, de poetas, de cineastas, de mulheres do funk, do hip hop, de estudantes secundaristas, estudantes universitárias e outros tantos que estão sendo criados em praticamente todos os rincões deste país.

“A ‘primavera feminista brasileira’, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à luta das mulheres no Brasil. O desafio agora é transportar e representatividade virtual para a realidade jurídica do país”, afirmam elas ao abrir seu manifesto.

Bem a propósito dos constrangimentos provocados pelos delegados inicialmente encarregados do caso da menor vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, logo superados quando o caso foi assumido pela delegada Cristiana Bento, titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), as juristas feministas afirmam:

“A DeFEMde não compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a reforça. Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma sociedade mais justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior participação das mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na aplicação e na avaliação do direito.”

A criação da Rede foi motivada pela análise do tratamento das mulheres na mídia e no judiciário que, afirmam, perpetua o machismo em vez de combatê-lo. Partindo do nível pessoal, elas inicialmente trocaram experiências sobre a discriminação sexista vivida no exercício da profissão – “situações como homexplicando (postura de homens que subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador de pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são submetidas mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.”

Entre seus objetivos estão “criar juntas estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e garantia dos direitos das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos, por exemplo, pela maior relevância do depoimento da vítima em casos de violência no ambiente de trabalho e doméstico.”

A Rede Feminista de Juristas convida todxs a visitar sua página e a contribuir para o debate. “O machismo é responsabilidade de toda a sociedade”, lembra. Leia abaixo a íntegra do manifesto.


Dos Ministérios ao Judiciário,
precisamos de mais mulheres feministas no Direito


A “primavera feminista brasileira”, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à luta das mulheres no Brasil. Um dos desafios, agora, é transportar e representatividade virtual para a realidade jurídica do país.

Do mundo virtual às ruas, as mulheres e suas vozes ganharam mais espaço na esfera pública. As hashtags “#meuamigosecreto” e “#meuprimeiroassédio” levaram milhares de mulheres a compartilhar suas histórias de violência sexual e psicológica nas redes sociais. Com a campanha “Agora é que são elas”, de expressiva repercussão, ficou evidente a ausência de mulheres em espaços editoriais e na imprensa. Da mesma forma, o Projeto de Lei Nº 5069/2013, que dificulta o acesso de vítimas de estupro ao atendimento básico de saúde, apresentado apenas por parlamentares homens, levou 15 mil mulheres a saírem às ruas de São Paulo pela defesa de seus direitos e pela descriminalização e legalização do aborto.

Já em 2016, foram significativos os variados episódios de machismo que ganharam notoriedade em nossa sociedade, mostrando que a luta feminista não se faz necessária apenas para garantir a continuidade dos direitos já conquistados pelas mulheres, mas também para impedir o seu retrocesso – risco iminente na atual conjuntura política brasileira.

Assistimos a reiterados episódios de violência contra a mulher, como o feminicídio racista e lesbofóbico de Luana dos Reis, cometido pela Polícia Militar em Ribeirão Preto/SP, que deu nome e rosto à violência cotidiana praticada contra as mulheres, notadamente negras e periféricas. A juíza da vara de violência doméstica do Fórum do Butantã, em São Paulo, Tatiane Moreira de Lima, foi feita refém por um homem acusado de crimes de violência contra sua ex-companheira. Acompanhamos a intensa desqualificação pessoal e chacota pública a que foi submetida a advogada e professora Janaína Paschoal por sua atuação e discurso no processo de impeachment – do qual, pontue-se, discordamos frontalmente.

Com efeitos sistêmicos, a temerária execração pública da maior autoridade do país, a presidenta Dilma Rousseff, é motivada essencialmente por ela ser mulher.Não queremos dizer que toda a crítica ao seu governo é uma crítica machista, mas sim que o machismo perpassou o tratamento institucional e midiático de sua imagem e da sua atuação política, tanto no discurso de apoiadores do governo quanto de opositores, e que esse tratamento foi o que enfraqueceu sua condição de chefe do Executivo, com perdas irreparáveis para a democracia.

A presidenta foi constantemente reduzida a estereótipos que o patriarcado faz da mulher, seja na sua função familiar, conforme a divisão sexual do trabalho (a “Dilmãe”), seja em sua função social de objeto sexual, o que resultou em abomináveis adesivos para carros, nos quais aparecia com pernas abertas em posição de alvo das bombas de gasolina. O machismo sofrido por Dilma contou com exemplos de todos os partidos, mostrando ser muito mais profundo do que as divisões ideológicas ou de classe.

A misoginia, focada na figura da presidenta, pôs em andamento o golpe de Estado que rompe com o programa político escolhido nas urnas e atenta contra a primeira mulher que chegou a esta posição em nossa história – um rompimento liderado por homens brancos, de elite, conservadores, cisgêneros, declaradamente heterossexuais e dissociados das pautas da juventude. Não é surpreendente que um dos primeiros atos do governo interino tenha sido, justamente, a extinção do Ministério de Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial.

Estes eventos não podem ser analisados isoladamente, pois são resultado das premissas misóginas e patriarcais que fundam e mantêm nossa sociedade, o direito e a política. É nesse contexto que mulheres atuantes nas mais diversas áreas do mundo jurídico decidiram criar a Rede Feminista de Juristas.

O que queremos?

A Rede Feminista de Juristas entende que o positivismo e a dogmática tradicional não conseguem tratar a discriminação das mulheres nem oferecer segurança e confiança para que as vítimas de violações de seus direitos obtenham reparação. Avaliamos que não existe o reconhecimento bastante de que a condição da mulher é diferente da do homem, nem no ordenamento, nem na prática jurisdicional e/ou legislativa, nem na política.

Nessa linha, defendemos e atuamos para que o direito incorpore a análise das relações machistas que subsumam a condição da mulher perante todas as instituições, adote uma perspectiva alternativa à dogmática tradicional e seja utilizado como ferramenta de emancipação e não de subjugo das mulheres.

A DeFEMde não compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a reforça. Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma sociedade mais justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior participação das mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na aplicação e na avaliação do direito.

Concretamente, queremos mais mulheres feministas em carreiras públicas, escritórios de advocacia, cargos políticos e na academia, com base na percepção de que a desigualdade de poder entre homens e mulheres tem origem estrutural.

O que fazemos?

Nos reunimos, em um primeiro momento, para trocas de experiências pessoais relacionadas à misoginia: violências às quais nós somos diariamente submetidas no exercício de nossas carreiras. Trata-se de situações como homexplicando (postura de homens que subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador de pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são submetidas mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.

As correspondências que firmamos nos inspiraram a criar a DeFEMde para que possamos criar juntas estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e garantia dos direitos das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos, por exemplo, pela maior relevância do depoimento da vítima em casos de violência no ambiente de trabalho e doméstico.

Atuaremos também para o avanço normativo e judicial das garantias dos direitos de todas as mulheres, seja por meio de advocacy junto aos membros do Legislativo, seja pela disputa da interpretação das leis em sentenças e decisões judiciais.

Por fim, almejamos realizar litigância estratégica para a defesa dos direitos das mulheres, com representação em ações coletivas, assistência técnica (já que nossa rede conta também com mulheres feministas que, embora não sejam juristas, trabalham cotidianamente em nosso sistema jurídico, como psicólogas e assistentes sociais) e apresentação de amici curiae.


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