segunda-feira, 6 de junho de 2016

Agora na Justiça, o levante das mulheres


Para DeFEMde, Rede Feminina de Justiça, não basta lutar por maior presença
 no Judiciário. É hora de um Direito que rompa dogmas tradicionais, reveja
relações machistas e deixe de ser ferramenta para subjugar mulheres


Por Inês Castilho


A onda de mobilizações de mulheres que se espalha pelo Brasil acaba de dar à luz uma iniciativa criadora. Formou-se esta semana (31.05), a Rede Feminista de Juristas,  formada por mulheres que atuam nas mais diversas áreas do direito: juízas, defensoras públicas, promotoras, sócias de escritórios de advocacia, professoras universitárias e pesquisadoras. A rede integra também psicólogas e assistentes sociais feministas que trabalham cotidianamente no sistema jurídico.

A DeFEMde, sigla que adotaram, amplia o vigoroso levante de mulheres que vem acontecendo, com coletivos de trabalhadoras rurais, de mulheres negras, de mulheres da periferia, de poetas, de cineastas, de mulheres do funk, do hip hop, de estudantes secundaristas, estudantes universitárias e outros tantos que estão sendo criados em praticamente todos os rincões deste país.

“A ‘primavera feminista brasileira’, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à luta das mulheres no Brasil. O desafio agora é transportar e representatividade virtual para a realidade jurídica do país”, afirmam elas ao abrir seu manifesto.

Bem a propósito dos constrangimentos provocados pelos delegados inicialmente encarregados do caso da menor vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, logo superados quando o caso foi assumido pela delegada Cristiana Bento, titular da Delegacia da Criança e Adolescente Vítima (DCAV), as juristas feministas afirmam:

“A DeFEMde não compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a reforça. Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma sociedade mais justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior participação das mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na aplicação e na avaliação do direito.”

A criação da Rede foi motivada pela análise do tratamento das mulheres na mídia e no judiciário que, afirmam, perpetua o machismo em vez de combatê-lo. Partindo do nível pessoal, elas inicialmente trocaram experiências sobre a discriminação sexista vivida no exercício da profissão – “situações como homexplicando (postura de homens que subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador de pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são submetidas mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.”

Entre seus objetivos estão “criar juntas estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e garantia dos direitos das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos, por exemplo, pela maior relevância do depoimento da vítima em casos de violência no ambiente de trabalho e doméstico.”

A Rede Feminista de Juristas convida todxs a visitar sua página e a contribuir para o debate. “O machismo é responsabilidade de toda a sociedade”, lembra. Leia abaixo a íntegra do manifesto.


Dos Ministérios ao Judiciário,
precisamos de mais mulheres feministas no Direito


A “primavera feminista brasileira”, que desabrochou ao longo de 2015, deu visibilidade à luta das mulheres no Brasil. Um dos desafios, agora, é transportar e representatividade virtual para a realidade jurídica do país.

Do mundo virtual às ruas, as mulheres e suas vozes ganharam mais espaço na esfera pública. As hashtags “#meuamigosecreto” e “#meuprimeiroassédio” levaram milhares de mulheres a compartilhar suas histórias de violência sexual e psicológica nas redes sociais. Com a campanha “Agora é que são elas”, de expressiva repercussão, ficou evidente a ausência de mulheres em espaços editoriais e na imprensa. Da mesma forma, o Projeto de Lei Nº 5069/2013, que dificulta o acesso de vítimas de estupro ao atendimento básico de saúde, apresentado apenas por parlamentares homens, levou 15 mil mulheres a saírem às ruas de São Paulo pela defesa de seus direitos e pela descriminalização e legalização do aborto.

Já em 2016, foram significativos os variados episódios de machismo que ganharam notoriedade em nossa sociedade, mostrando que a luta feminista não se faz necessária apenas para garantir a continuidade dos direitos já conquistados pelas mulheres, mas também para impedir o seu retrocesso – risco iminente na atual conjuntura política brasileira.

Assistimos a reiterados episódios de violência contra a mulher, como o feminicídio racista e lesbofóbico de Luana dos Reis, cometido pela Polícia Militar em Ribeirão Preto/SP, que deu nome e rosto à violência cotidiana praticada contra as mulheres, notadamente negras e periféricas. A juíza da vara de violência doméstica do Fórum do Butantã, em São Paulo, Tatiane Moreira de Lima, foi feita refém por um homem acusado de crimes de violência contra sua ex-companheira. Acompanhamos a intensa desqualificação pessoal e chacota pública a que foi submetida a advogada e professora Janaína Paschoal por sua atuação e discurso no processo de impeachment – do qual, pontue-se, discordamos frontalmente.

Com efeitos sistêmicos, a temerária execração pública da maior autoridade do país, a presidenta Dilma Rousseff, é motivada essencialmente por ela ser mulher.Não queremos dizer que toda a crítica ao seu governo é uma crítica machista, mas sim que o machismo perpassou o tratamento institucional e midiático de sua imagem e da sua atuação política, tanto no discurso de apoiadores do governo quanto de opositores, e que esse tratamento foi o que enfraqueceu sua condição de chefe do Executivo, com perdas irreparáveis para a democracia.

A presidenta foi constantemente reduzida a estereótipos que o patriarcado faz da mulher, seja na sua função familiar, conforme a divisão sexual do trabalho (a “Dilmãe”), seja em sua função social de objeto sexual, o que resultou em abomináveis adesivos para carros, nos quais aparecia com pernas abertas em posição de alvo das bombas de gasolina. O machismo sofrido por Dilma contou com exemplos de todos os partidos, mostrando ser muito mais profundo do que as divisões ideológicas ou de classe.

A misoginia, focada na figura da presidenta, pôs em andamento o golpe de Estado que rompe com o programa político escolhido nas urnas e atenta contra a primeira mulher que chegou a esta posição em nossa história – um rompimento liderado por homens brancos, de elite, conservadores, cisgêneros, declaradamente heterossexuais e dissociados das pautas da juventude. Não é surpreendente que um dos primeiros atos do governo interino tenha sido, justamente, a extinção do Ministério de Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade Racial.

Estes eventos não podem ser analisados isoladamente, pois são resultado das premissas misóginas e patriarcais que fundam e mantêm nossa sociedade, o direito e a política. É nesse contexto que mulheres atuantes nas mais diversas áreas do mundo jurídico decidiram criar a Rede Feminista de Juristas.

O que queremos?

A Rede Feminista de Juristas entende que o positivismo e a dogmática tradicional não conseguem tratar a discriminação das mulheres nem oferecer segurança e confiança para que as vítimas de violações de seus direitos obtenham reparação. Avaliamos que não existe o reconhecimento bastante de que a condição da mulher é diferente da do homem, nem no ordenamento, nem na prática jurisdicional e/ou legislativa, nem na política.

Nessa linha, defendemos e atuamos para que o direito incorpore a análise das relações machistas que subsumam a condição da mulher perante todas as instituições, adote uma perspectiva alternativa à dogmática tradicional e seja utilizado como ferramenta de emancipação e não de subjugo das mulheres.

A DeFEMde não compactua com a ilusão de neutralidade dos operadores do direito, pois deixar de abordar a discriminação contra as mulheres não a elimina; pelo contrário, a reforça. Entendemos que o direito deve ser utilizado para atingirmos uma sociedade mais justa e igualitária, o que só é possível por meio da maior participação das mulheres em posições de poder e liderança, na produção, na aplicação e na avaliação do direito.

Concretamente, queremos mais mulheres feministas em carreiras públicas, escritórios de advocacia, cargos políticos e na academia, com base na percepção de que a desigualdade de poder entre homens e mulheres tem origem estrutural.

O que fazemos?

Nos reunimos, em um primeiro momento, para trocas de experiências pessoais relacionadas à misoginia: violências às quais nós somos diariamente submetidas no exercício de nossas carreiras. Trata-se de situações como homexplicando (postura de homens que subestimam nossos conhecimentos) e casos de assédio sexual por orientador de pós-graduação, ou até episódios de violência e violações aos quais são submetidas mulheres que nos procuram em busca de orientação jurídica.

As correspondências que firmamos nos inspiraram a criar a DeFEMde para que possamos criar juntas estratégias e teses jurídico-feministas para a defesa e garantia dos direitos das mulheres em todos os campos do direito. Argumentamos, por exemplo, pela maior relevância do depoimento da vítima em casos de violência no ambiente de trabalho e doméstico.

Atuaremos também para o avanço normativo e judicial das garantias dos direitos de todas as mulheres, seja por meio de advocacy junto aos membros do Legislativo, seja pela disputa da interpretação das leis em sentenças e decisões judiciais.

Por fim, almejamos realizar litigância estratégica para a defesa dos direitos das mulheres, com representação em ações coletivas, assistência técnica (já que nossa rede conta também com mulheres feministas que, embora não sejam juristas, trabalham cotidianamente em nosso sistema jurídico, como psicólogas e assistentes sociais) e apresentação de amici curiae.


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