quarta-feira, 29 de julho de 2015

Estatuto da Criança e Adolescente, 25 anos depois


Na vigência do ECA, caiu mortalidade infantil, avançaram escolarização e acesso à saúde
preventiva. Mas a violência contra jovens explodiu - e agora, eles podem pagar de novo
por isso

Por Lais Fontenelle


A infância tem sido encurtada e roubada diante de nossos olhos. Ao longo dos 25 anos de criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), completados neste 13 de julho, embora tenha havido conquistas, Estado e sociedade não têm cumprido seu papel na garantia dos direitos das crianças e adolescentes. Principalmente na proteção contra todas as formas de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão, como impõe o artigo 227 da Constituição Federal.

O maior motivo de comemoração, na verdade, está nesse artigo da “Constituição Cidadã”, que marca o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Ele prevê que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” Inaugura assim a doutrina da proteção integral da criança – além do conceito de prioridade absoluta da infância.

O ECA é seu desdobramento, e a partir de sua promulgação as crianças perderam sua invisibilidade social e ganharam um novo status. O que falta então? Efetividade ou o próprio entendimento da lei? Ou é uma questão ética e moral? Talvez o que falte seja a sociedade civil reconhecer crianças e adolescentes como seres vulneráveis – que experimentam fase peculiar de desenvolvimento e, por isso, precisam ser protegidos e resguardados. A infância é o período decisivo na formação da personalidade, dos valores e do desenvolvimento físico, cognitivo e emocional das crianças – que podem ser o prefácio de um mundo mais ético, justo e sustentável dependendo da forma como são olhadas e escutadas/ tratadas.

Olhando em retrospectiva para os direitos da infância em nosso país, podemos dizer que muitos avanços foram conquistados, passando pela queda expressiva na taxa de mortalidade infantil à matrícula de quase 100% das crianças no ensino fundamental. Vacinação, atendimento à saúde e alimentação foram garantidas com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e programas como o  Bolsa Família. No entanto, ainda não conseguimos, infelizmente, que os jovens deixassem de ser alvo de mortes violentas. Muito pelo contrário. Dados recentes do Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) indicam que o número de assassinatos de crianças e adolescentes até 19 anos passou de 5 mil para 10,5 mil por ano – são 28 por dia e transformam o Brasil em vice-campeão mundial no assassinato de jovens, só atrás da Nigéria.

Nos últimos anos, aconteceram muitos retrocessos em relação a direitos já conquistados – a começar pela pauta da redução da maioridade penal que, pasmem, dividiu opiniões e foi à votação através da emenda constitucional da PEC171/93, que reduz para 16 anos a idade penal. A proposta foi apresentada como solução para os problemas de segurança pública alegando, erroneamente, que a “impunidade” dos adolescentes era a causa dos altos índices criminais do país. A discussão toda foi descabida, principalmente por ferir o princípio positivado no artigo 60, §4, IV da Constituição, que veda o retrocesso em matéria de direitos fundamentais.

Segundo Guilherme Perisse, advogado do projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana, a PEC, assim como aqueles que votaram a seu favor, parecem desconhecer que levariam aos desumanos cárceres brasileiros adolescentes muitas vezes vítimas de sucessivas violações, o que não só contraria os direitos das crianças e adolescentes, mas em nada resultará na redução dos índices criminais. Mais violência não é solução. O caminho a ser seguido deveria ser exatamente o inverso, diz ele: “Assegurar os direitos previstos no texto constitucional e na legislação de forma a permitir o pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes.”

“Brincar é solução, redução não”

Meu desejo é de que um novo ciclo com foco na defesa dos direitos de nossas crianças seja efetivo e compartilhado por todos: família, sociedade, mercado e Estado. E a resposta de que isso é tão possível quanto urgente foi a mobilização “Juntos pelo Brincar”, que aconteceu dia 5 de julho no Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo. Depois de inúmeras reuniões, conversas e articulações para garantir um dia memorável, com diferentes atrações para as crianças, a mobilização trouxe esperança ao domingo mais frio do ano, quando o espaço público se tornou palco de diversas atividades lúdicas propostas por organizações da sociedade civil que defendem os direitos das crianças e trabalham para promovê-los, ali reunidas para celebrar o ECA.

Bambolê, bicicleta, corda, leitura de livros, pintura, trepa-trepa, troca de brinquedos e muitas outras atividades se espalharam pelo largo, unindo adultos e crianças em torno da mesma causa: fazer valer os direitos de nossas crianças e adolescentes. A mobilização “Juntos pelo Brincar” contou com o apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e da Subprefeitura de Pinheiros, mas foi construída de forma coletiva e horizontal com base em três eixos importantes garantidos pelo ECA. O direito ao brincar, fundamental no desenvolvimento da criança e do adolescente; o direito à convivência familiar e comunitária como forma de inserção no meio social para que eles interajam com o mundo de maneira saudável e segura; e o direito ao espaço público para encorajar as crianças e adolescentes a se reconhecerem como cidadãos e sujeitos de direitos.

O dia conseguiu mostrar que “Brincar é solução, redução não” de forma leve e lúdica. Que nos próximos anos, aconteçam mais manifestações coletivas em prol das crianças e do brincar, com cada vez mais pessoas e organizações empenhados em fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes. E que as crianças sejam ouvidas em seus direitos, principalmente o de ter infância. Não façamos o convite para que elas cresçam antes do tempo.

Que nos próximos 25 anos possamos honrar mais as crianças e que a maioria da população consiga entender que a culpabilização dos adolescentes, verificada nas propostas de redução da maioridade penal aprovada pela Câmara dos Deputados, é um retrocesso que não vai resolver o problema da violência no Brasil, mas, antes, agravá-lo. A solução para reduzir a violência é um maior investimento nas crianças e adolescentes. Devemos fazer valer o que está previsto no artigo 227 de nossa constituição Federal e no ECA, mostrando que a regra da prioridade absoluta não está sendo cumprida. Só assim chegaremos a alcançar uma sociedade mais digna, justa e igualitária para as crianças e adolescentes.


Lais Fontenelle Pereira, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio e autora de livros infantis, é especialista no tema Criança, Consumo e Mídia. Ativista pelos direitos da criança frente às relações de consumo, é consultora do Instituto Alana, onde coordenou durante 6 anos as áreas de Educação e Pesquisa do Projeto Criança e Consumo.


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Fiori: o caos ideológico


Parece necessário reconhecer que a origem da grande
confusão ideológica do país, neste momento, são as
próprias forças progressistas e o governo

Por José Luís Fiori | Imagem: Jasminka Banusik, Peixes


“O PSDB não tem um projeto de país”
Alberto Goldman, vice-presidente nacional do PSDB (FSP, 27/05/2015)

“O governo está sem rumo e está levando o PT junto”
Senador Paulo Paim (PT-RS) (Brasil 247, 27/05/2015)


Em meio à crise política e à retração econômica brasileira, o jantar do dia 12 de maio, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, no Waldorf Astoria de Nova York, reunindo banqueiros, empresários e políticos da alta cúpula do PSDB, em torno da pessoa dos ex-presidentes Bill Clinton e Fernando H. Cardoso, foi um clarão no meio da confusão ideológica dominante. Em termos estritamente antropológicos, representou uma espécie de pajelança tribal de reafirmação de velhas convicções e alianças que estiveram na origem do próprio partido socialdemocrata brasileiro. Mas do ponto de vista mais amplo, pode se transformar numa baliza de referência para a clarificação e remontagem do mapa político brasileiro.

Afinal, este grupo liderado pelo ex-presidente FHC, foi o único que esteve presente e ocupou um lugar de destaque nas reuniões formais e informais que cercaram a posse de Bill Clinton, em 1993, em Washington. Naquele momento foi sacramentada a aliança do PSDB com a facção democrata e o governo liderada pela família Clinton. Uma aliança que se manteve durante os dois mandatos de Clinton e FHC, assegurando o apoio do Brasil à criação da ALCA e garantindo a ajuda financeira americana que salvou o governo FHC da falência. Estes dois grupos estiveram juntos na formulação e sustentação das reformas e politicas do Consenso de Washington e voltaram a estar juntos nas reuniões da “Terceira Via”, criada por Tony Blair e Bill Clinton, em 2008, reencontrando-se agora de novo, na véspera da candidatura presidencial de Hillary Clinton.

Durante todo este tempo, os socialdemocratas brasileiros mantiveram sua defesa incondicional do alinhamento estratégico do Brasil, ao lado dos EUA, dentro e fora da América Latina; sua opção irrestrita pelo livre-comércio e pela abertura dos mercados locais; pela redução do papel do Estado na economia; pela defesa da centralidade do capital privado no comando do desenvolvimento brasileiro; e finalmente pela aplicação e irrestrita das politicas econômicas ortodoxas. Estas posições orientaram a politica interna e a estratégia internacional dos dois governos do PSDB, na década de 90, e seguem orientando a posição atual do PSDB, favorável à reabertura de negociações para criação da ALCA; à mudança do regime de exploração do “pré-sal”; ao fim da exigência de conteúdo nacional nos mercados de serviços e insumos básicos da Petrobras e das grandes construtoras brasileiras.

Isto pode não ser “um projeto de país”, mas com certeza é um programa de governo rigorosamente liberal, que só coincide de forma circunstancial e oportunista com as teses neoconservadoras defendidas hoje no Brasil por movimentos religiosos de forte conteúdo fundamentalista. A novidade destes movimentos no cenário politico brasileiro atual surpreende o observador, mas suas teses sobre família, sexo, religião etc não são originais e sua liderança carece da capacidade de formular e propor um projeto hegemônico para a sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito com relação ao poder real das recentes mobilizações de rua e de redes sociais, que fazem muito barulho mas também não conseguem dar uma formulação intelectual e ideológica consistente às suas próprias iras e reivindicações.

Deste ponto de vista, parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda. Não é fácil identificar o denominador comum que une todas estas forças, mas não há duvida que seu projeto econômico aponta muito mais para o ideal de um “capitalismo organizado” sob liderança estatal, do que para o modelo anglo-saxônico do “capitalismo desregulado”; para uma politica agressiva de redistribuição de renda e prestação gratuita de serviços universais, do que para uma política social de tipo seletiva e assistencialista; e finalmente, para uma estratégia internacional de liderança ativa dentro de América Latina, e de uma aliança multipolar com as potências emergentes sem descartar as velhas potencias do sistema, muito mais do que para um alinhamento focado em algum país ou bloco ideológico de países.

Se assim é, como explicar à opinião publica mais ou menos ilustrada, que um governo progressista deste tipo coloque no comando de sua politica econômica um tecnocrata que não tem apenas convicções e competências ortodoxas, mas que seja também um ideólogo neoliberal que defende abertamente em todos os foros, uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para o país absolutamente idêntica a que é defendida pelo grupo que participou do jantar no Waldorf Astoria, no dia 12 de maio? E como entender um ministro de Energia, que defende em reuniões internacionais, o fim da politica de “conteúdo local” e do “regime de partilha”, do pré-sal, duas politicas que são uma marca dos últimos 13 anos de governo, e uma diferença fundamental com a posição defendida pelos mesmos comensais de Nova York?

Por fim, para levar a confusão até o limite do caos, como explicar que o ministro de Assuntos Estratégicos deste mesmo governo, proponha abertamente, pela imprensa, como se fosse apenas um acadêmico de férias, que se faça uma revisão completa da política externa brasileira da última década, com a suspensão do Mercosul que foi criado e é liderado pelo Brasil, e com a mudança do foco e das prioridades estratégicas do país, que deveria agora alinhar-se com os EUA para enfrentar a ameaça da “ascensão econômica e militar chinesa”?

Tudo isto dito de forma absolutamente tranquila, exatamente uma semana antes da visita oficial do primeiro-ministro chinês ao Brasil, que já havia sido anunciada junto com um pacote de projetos e de recursos para levar a frente uma estratégia de longo prazo que passa – entre outras coisas – pela construção de uma ferrovia transoceânica capaz de dar ao Brasil, finalmente, um acesso direto ao Pacifico, com repercussões óbvias no campo da geopolítica e geoeconomia continental. Além disto, este “grande estratego” do governo fez sua proposta um mês antes da reunião do BRICS, na Rússia, em que será criado o banco de investimento conjunto do grupo, sob a óbvia liderança econômica da China. Uma trapalhada pior do que esta, só se fosse proposta também a internacionalização da Amazônia.

Talvez por isto tantos humanistas sonhem hoje com o aparecimento de uma nova utopia de longo prazo, como as que moveram os revolucionários e os grandes reformadores dos séculos XIX e XX. Mas o mais provável é que estas utopias não voltem mais, e que o futuro tenha que ser construído a partir do que está aí, a partir da sociedade e das ideias que existem, com imaginação, criatividade, a uma imensa paixão pelo futuro do país.

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*José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ, é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”,www.poderglobal.net. O último livro publicado pelo autor, O Poder Global, Editora Boitempo. 


sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tempos idos e vividos III


Por Aluizio Moreira


Recentemente estava eu em uma das salas de espera do setor de Cintilografia no Centro Diagnóstico Lucilo Ávila, juntamente com outras pessoas, quando no intervalo entre os testes, um senhor de 89 anos expôs que era delegado aposentado na cidade de Jaboatão e com um certo “orgulho” contou com a maior simplicidade que tinha mandado “despachar” para o cemitério, três adolescentes que roubavam semanalmente os passageiros de um ônibus que circulava naquele município. Apresentou um rapaz que o acompanhava como seu neto e que seguia a carreira militar, fato de que muito se orgulhava. Foi o gancho para me lembrar de minha rápida passagem pela caserna me fazendo refletir, como a vivência  das pessoas com determinada realidade pode leva-las, no aspecto politico-ideológico, para a direita ou para a esquerda, no seu significado mais “radical” (no sentido de ir à raiz) do termo.
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Vou fazer uma viagem um pouco longa, mas necessária a fim de contextualizar minha opção inicial pela carreira militar.

Sou filho de funcionário público municipal e de uma  dona de casa, ambos falecidos. O mais velho dos seis irmãos. Meu pai conseguira junto a Prefeitura do Recife onde trabalhava, uma Bolsa de Estudos  para que eu pudesse frequentar a escola, na época Instituto Ypiranga (depois Ginásio), no bairro onde morávamos, Arruda.

Obra que resgata a greve dos
acadêmicos no Recife em 1961
Quando conclui o antigo ginasial (hoje Fundamental II), meu pai virou-se pra mim e me deixou um dilema: eu teria que arcar com as despesas dos meus estudos dali pra frente, para que ele pudesse transferir a Bolsa de Estudos para minha irmã, a “segunda da fila”. Foi esta situação que me fez tomar uma decisão: seguir a carreira militar para continuar meus estudos. Embora a minha incorporação no Exército fora agendada para acontecer nos meados do ano (1961), o conhecimento que meu pai tinha com um capitão das terras das Alagoas (seu Estado natal), anteciparam minha incorporação para janeiro daquele ano, e lá fui eu para o 14º Regimento de Infantaria, em Socorro, Jaboatão dos Guararapes, o que ocorreu em 15.01.1961.

Consegui no próprio quartel frequentar o Curso de Formação de Cabo, quando estourou uma greve dos estudantes do Curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco no Recife, em  maio de 1961.

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Estudantes universitários durante a Palestra de
Célia de la Serna y LLosa, em uma das salas da FDR

Foto: Diário de Pernambuco
O fato é que naquele mês o Diretório Acadêmico do Curso de Direito tinha convidado Celia de la Serna y Llosa (1906-1965), cidadã argentina, militante politica (apoiou a Guerra Civil Espanhola, participou de movimentos de apoio aos aliados na Segunda Guerra Mundial, defensora da Revolução Cubana), mãe de Ernesto “Che’ Guevara, então Presidente do Banco Nacional de Cuba, para dar uma palestra na Faculdade de Direito do Recife, na praça Adolfo Cirne. Era 31 de maio de 1961.

Ao ser comunicado  pelo Diretório Acadêmico, o Diretor da Faculdade, Soriano Neto, proibiu o evento e na tentativa de boicotá-lo ordenou cortar a luz da Faculdade, mas segundo relato de participantes, a palestra aconteceu à luz de velas.

Dia seguinte os bacharelandos ocuparam o prédio, apresentando diversas reivindicações, inclusive fazendo criticas ao autoritarismo do Diretor, pediam sua renúncia. Entre as reivindicações citam-se maior qualificação dos professores (considerados desatualizados e de metodologia ultrapassada), renovação do acervo da Biblioteca, adoção de aulas de prática jurídica, além de reclamações relativas à  infraestrutura da Faculdade (ventiladores quebrados, salas escuras, sanitários estragados).

Diário de Pernambuco de 07.06.1961
Após tentativas frustradas do governador em exercício, Pelópidas Silveira, do Prefeito do Recife, Miguel Arraes, para a solução dos impasses diante da irredutibilidade do Diretor da Faculdade que se recusava a dialogar com os acadêmicos, ordem emanada da Presidência da República (Jânio Quadros), após solicitação do Ministro  de Educação e Cultura, sr. Brigido Tinoco, mobilizou o Exército como forma de pressionar os estudantes. Contingentes do 14º Regimento de Infantaria cercaram o prédio da Faculdade da Direito, em toda a extensão da praça Adolfo Cirne.

Lá estava eu!  Integrante de um pelotão de reserva que se instalara junto ás paredes do prédio da Faculdade, aguardando o desenrolar os acontecimentos.

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Muitos que faziam a imprensa local, políticos da Câmara e da Assembleia Legislativa no Estado, policiais e militares em geral, passaram a atribuir ao movimento dos acadêmicos de Direito parte de um plano dos comunistas infiltrados no meio universitário e/ou estudantes influenciados pela Revolução Cubana. Mas a questão era muito mais profunda, na medida em que os estudantes universitários no país, se mobilizavam na defesa de uma Reforma Universitária. Tanto que no mesmo dia eclode um movimento grevista nas Escolas de Agronomia e Veterinária da Universidade Rural de Pernambuco (hoje Universidade Federal Rural de Pernambuco) em Dois Irmãos, independente do movimento da Faculdade de Direito. Tinham os acadêmicos da Universidade Rural as mesmas preocupações dos seus colegas de Direito, voltadas para a melhoria dos cursos, inclusive reivindicando aulas práticas.

Como acontecera com a Faculdade de Direito, destacamentos do 14º Regimento de Infantaria, ocuparam as dependências das Escolas de Agronomia e Veterinária em Dois Irmãos. Lá estava eu mais uma vez, “servindo a pátria” contra estudantes desarmados.

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Cerco do prédio da FDR  por pelotões do Exército
Foto: Diário de Pernambuco
Expulsos do recinto da Faculdade por conta da ocupação das forças militares, os Acadêmicos de Direito foram procurar refúgio na Escola de Engenharia, situada naquela época na Rua do Hospício, alguns metros da praça Adolfo Cirne. Solidários com os novos “moradores”, os estudantes de Engenharia, se incorporaram à luta dos colegas de Direito e os das Escolas de Agronomia e Veterinária que também para lá se deslocaram. A Escola de Engenharia assumia portanto o papel de “Quartel General”  dos universitários pernambucanos em greve.

De vários Estados do país, chegavam manifestações de solidariedade de entidades estudantis e operárias, ao movimento grevista dos acadêmicos pernambucanos.

Diário de Pernambuco de 16.06.1961
 As tentativas de solução dos conflitos esbarravam sempre na recusa dos diretores da Faculdade de Direito e das Escolas de Agronomia e Veterinária, até que no dia 15 de junho as tropas do Exército desocupam a praça Adolfo Cirne e retiram-se  da Universidade Rural.

No dia seguinte os universitários decidem por fim à greve.

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No período que passei no 14º Regimento de Infantaria (de 15.01.1961 a 17.02.1962), a minha concepção de ser militar equidistante dos interesses de classe e que defendesse a sociedade como um todo, se desfez. 

E as primeiras reflexões sobre o Estado, as forças armadas, a politica, as classes sociais, começaram a ocupar meu pensamento. Afinal de contas, o que justificaria estarmos ali, armados, ocupando Faculdade e Escolas contra centenas de estudantes desarmados que reivindicavam uma educação de qualidade? O que tinha o movimento legítimo dos universitários pernambucanos a ver com subversão, com comunismo como propalavam nas ruas e no quartel? Comecei a perceber que eu fazia parte de um aparelho repressivo a serviço do Estado, mantenedor de um sistema econômico-social, sob a hegemonia de uma determinada classe social.  

Esta conclusão não invalida um outro momento por mim vivido no quartel: o 25 de agosto de 1961, a renuncia do então Presidente Jânio Quadros. Desta vez não fomos para as ruas. Ficamos de prontidão, privados de sair do âmbito do quartel, dormindo uniformizados, de coturno e tudo. E dia sim dia não, um tenente ia ao nosso alojamento, onde sentados no chão, ouvíamos um discurso sem direito a perguntas, no qual éramos informados, do ponto de vista da corporação, o desenrolar da situação do país e o risco que representava João Goulart, enquanto vice-presidente, assumir o posto mais alto do poder executivo da nação. 

Mais uma vez o “espectro” do comunismo rondava o país: a posse legal de Jango com a vacância da presidência, punha em perigo nossa “vocação cristã e democrática”. Em junho o perigo vinha dos acadêmicos, em agosto de João Goulart. Estávamos na antessala do golpe de 1964. 
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terça-feira, 14 de julho de 2015

Mapa do Encarceramento: prisão como instrumento de controle dos excluídos



Por Cristina Fontenele


Segundo Mapa do Encarceramento - Os jovens do Brasil, publicado recentemente pela Secretaria Nacional da Juventude (SNJ), da Presidência da República, e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a população carcerária do Brasil aumentou 74% entre 2005 e 2012. Crimes relacionados a questões patrimoniais e drogas representaram 70% das causas das prisões.

O Mapa informa que, de 2008 a 2012, os crimes patrimoniais corresponderam a
aproximadamente metade das prisões efetuadas no período, seguida pelos crimes de
entorpecentes, que respondem por 20% e crimes contra a pessoa, menos de 12%

Em entrevista à Adital, Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária diz que vivemos um evidente processo de encarceramento em massa. Para ele, o país fez uma opção clara de lidar com seus conflitos sociais pela via penal, e utilizar o cárcere como instrumento de controle das classes historicamente excluídas.

Perfil dos presos

O relatório revela que o perfil da população que está nas prisões do país é constituída por homens, jovens (abaixo de 29 anos), negros, com ensino fundamental incompleto, acusados por crimes patrimoniais. No caso dos presos adultos, os condenados cumprem regime fechado, em sua maioria, com penas de quatro até oito anos.

Para Jorge Chediek, representante residente do Pnud no Brasil, o país precisa de uma "mudança cultural”, que não será resolvida com o aumento do número de pessoas nos sistema prisional. "Devemos ter mecanismos mais sofisticados para administrar punições e para assegurar a redução de desigualdades e progressão criminosa”.


Entre as recomendações do estudo está o incentivo e o fortalecimento de políticas públicas, que visem a desacelerar o encarceramento, em especial de jovens, negros e mulheres, grupos que vêm sendo alvo do crescimento das penas de prisão.

De acordo com o secretário nacional de Juventude, Gabriel Medina, "não é verdade essa ideia de que o adolescente não é punido; inclusive, o sistema socioeducativo, muitas vezes, tem uma punição mais acelerada que o sistema penal e, em alguns casos, como os de homicídios simples, ele é até mais duro do que próprio sistema penal”, comenta.

Jovens negros


O relatório informa que, em 2012, para cada grupo de 100 mil habitantes jovens acima de 18 anos, havia 648 jovens encarcerados, enquanto que, para cada grupo de 100 mil habitantes não jovens acima de 18 anos, havia 251 encarcerados, ou seja, proporcionalmente, o encarceramento de jovens foi 2,5 vezes maior do que o de não jovens em 2012.

Malvezzi diz que pela experiência de trabalho nas prisões brasileiras, o número de negros e indígenas no sistema prisional é exponencialmente maior do que mostram os dados oficiais. Isto ocorre, segundo ele, devido à ausência de um critério e método únicos no país para levantar esses dados, e, em muitos estados, sequer esta classificação seria realizada. Para o assessor jurídico da Pastoral, o levantamento deixa claro que são os jovens negros a "clientela” preferencial da justiça penal. "Apesar do uso e do comércio generalizado de drogas entre universitários brancos e das classes mais abastadas, todo o trabalho de repressão penal é feito visando às comunidades empobrecidas e buscando esse ‘perfil criminoso’”, destaca.


Considera-se jovem o grupo etário de 15 a 29 anos (no caso do sistema prisional, acima de 18 anos) e não jovem o grupo acima de 30 anos de idade.

Quanto à redução da maioridade penal, Malvezzi ressalta que seria uma decisão "catastrófica” para a situação já "desumana” das prisões brasileiras. "Mas o perfil dos nossos presos permaneceria o mesmo, já que são nossos jovens e negros, que também estão encarcerados nos estabelecimentos de internação de adolescentes”.

Dados do Ministério da Justiça apontam que apenas 0,9% dos crimes cometidos no Brasil são realizados por adolescentes entre 16 e 18 anos. Deste 0,9%, apenas 0,5% envolve crimes contra a vida (homicídio e tentativa de homicídio).

Em 2005, 58,4% da população carcerária era negra e, em 2012, o índice subiu para 60,8%. O estudo indica que, quanto mais cresce a população prisional no país, mais cresce o número de negros encarcerados. Os estados que possuíam as maiores taxas de encarceramento de negros, em 2012, eram, respectivamente: São Paulo, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo e Acre. Outro dado é que os negros foram presos 1,5 vezes a mais do que os brancos.


Mulheres

Ainda segundo o informe, em sete anos (2005 a 2012), o crescimento da população carcerária feminina foi de 146%, e o da masculina, 70%. A região Norte teve o maior taxa de crescimento, com 105%.

Para Malvezzi esse crescimento pode ser atribuído à maior participação da mulher na estrutura do tráfico de drogas, em posições de alto risco e extrema vulnerabilidade. Ele comenta que, geralmente, as mulheres atuam como "mulas”, transportando drogas com seus próprios corpos, sem respaldo jurídico da organização criminosa e, muitas vezes, a pedido de seus filhos e companheiros. "É mais um exemplo do machismo estrutural da nossa sociedade.”, afirma.

Tempo de prisão e regimes

48% dos presos brasileiros receberam penas de até oito anos. 18,7% dos presos não precisariam estar presos, pois, de acordo com o Código Penal, estes se enquadrariam no perfil do cumprimento de penas alternativas.

O estudo aponta que 38% da população prisional no país são presos provisórios, ou seja, pessoas que estão sob a custódia do Estado, sem que tenham sido julgadas. Outros 61% dos presos são condenados e 1% está sob medida de segurança.

"Precisamos restringir ao máximo o uso de prisões provisórias”, destaca Malvezzi. Para ele, esta medida, que deveria ser uma exceção, tornou-se a regra no processo penal brasileiro. Iniciativas "interessantes” como a audiência de custódia, que consiste na apresentação pessoal do preso perante um juiz em até 24 horas, podem ajudar a diminuir a quantidade dessas prisões temporárias.

Em relação aos presos condenados, observou-se que 69% deles estão no regime fechado, 24% no regime semiaberto e 7% no regime aberto.

Para Jacqueline Sinhoretto, pesquisadora e autora do Mapa, todos os estados brasileiros já estão com superpopulação carcerária. "A média do Brasil é 1,7 preso para cada vaga, a um custo variando entre R$ 2 mil e R$ 3 mil por preso. No entanto, há unidades com índice superior a cinco presos por vaga”.

Dois estados do Nordeste apresentaram o maior déficit de vagas do sistema prisional: em Alagoas, para cada vaga disponível no sistema prisional existiam 3,7 presos; em Pernambuco a taxa era de 2,5. Amapá e Amazonas também contabilizavam mais de duas pessoas presas por vaga.

De acordo com Malvezzi, o cenário tende a ficar "ainda pior”, com mais violência e degradação nos cárceres. "Na situação em que estamos, ou pensamos urgentemente em estabelecer metas de redução da população prisional, com medidas concretas do Executivo, Judiciário e Legislativo, ou caminharemos, inequivocamente, para a barbárie.”, alerta.

Regiões

Em 2012, a região Sudeste foi a responsável pelo maior número de presos no país. No Nordeste, Pernambuco era o estado com o maior número, com 28.769 presos, embora o Rio Grande do Norte tenha se destacado com crescimento de 161% no número de presos. No Centro-Oeste, Mato Grosso do Sul era o estado que tinha mais presos (11.298), e Goiás o estado que teve o maior crescimento no número de presos.

Na região Sudeste, verificou-se o crescimento acentuado no Estado do Espírito Santo, e Minas Gerais apresentou o crescimento de 624% da população carcerária. E somente em São Paulo, em 2012, existiam 190.828 presos.

Na região Sul, Rio Grande do Sul tinha, em 2012, o maior número de presos (29.243). Já no Paraná, verificou-se que a população prisional mais do que dobrou no período analisado (104%). Na região Norte, percebeu-se o crescimento acentuado do número de presos nos estados do Amazonas (126%) e Tocantins (125%), sendo que o estado com o maior número de presos foi o Pará (10.989).


FONTE: Adital

quinta-feira, 9 de julho de 2015

O melancólico declínio do Ensino Rural brasileiro


Ruínas da  Escola Rural Municipal Takeo Teshima, em Rolândia - PR

Mais de 37 mil escolas foram fechadas, nos últimos 15 anos, oito por dia. Retração reflete opção de sucessivos governos pelo agronegócio — que deseja um campo sem gente


Por Maura Silva, no site do MST


“Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”, já dizia Paulo Freire em uma de suas mais famosas citações.

Todavia, o cruzamento de dados disponíveis pelo Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) nos mostra que a educação no campo corre no sentido contrário. Apenas em 2014, mais 4.084 escolas do campo fecharam suas portas. Se tomarmos os últimos 15 anos, essa quantidade salta para mais de 37 mil unidades educacionais a menos no meio rural. Se dividirmos esses números ao longo do ano, temos oito escolas rurais fechadas por dia em todo país.

Dentre as regiões mais afetadas, norte e nordeste lideram o ranking. Só em 2014 foram 872 escolas fechadas na Bahia. O Maranhão aparece no segundo lugar, com 407 fechadas, seguido pelo Piauí com 377.

Há tempo que estes números preocupam entidades e movimentos sociais ligados ao campo e à educação, ainda mais pelo fato dos municípios mais pobres serem os mais afetados.

Para Clarice Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB), “esses números revelam o fracasso da atual política de educação no campo”. Para ela, os instrumentos criados precisam ser revistos para que se alcance o resultado esperado. “Se por um lado existe um esforço do governo federal em ampliar o transporte escolar rural, por outro, esse esforço não é o mesmo para evitar o fechamento das escolas”, exemplifica. “Não faz sentido pensarmos em transporte sem alunos. Ou seja, é um conjunto de critérios que demonstram as falhas das atuais políticas educacionais”, ressalta Santos.

Já para Erivan Hilário, do setor de educação do MST, o fechamento destas escolas representa um atentado à educação, um direito historicamente conquistado. “O fechamento das escolas no campo não pode ser entendido somente pelo viés da educação. O que está em jogo é a opção do governo por um modelo de desenvolvimento para o campo, que é o agronegócio”, aponta.

Segundo Erivan, a situação que vivemos “não está isolada desta opção, porque o agronegócio pensa num campo sem gente, sem cultura e, portanto, um campo sem educação e sem escola”. Ele observa que ao mesmo tempo em que há fechamento sistematizado das escolas no campo, o número de construções de novas unidades educacionais nos centros urbanos têm crescido. “Esse é um dado importante de ser analisado. O fechamento das escolas do campo contribui para o êxodo rural, além de consolidar o papel do agronegócio nessas regiões com a priorização dos lucros”, ressalta.

Além da falta de escolas, outro fenômeno observado é a chamada “nucleação”, quando várias unidades escolares são concentradas numa “escola polo”. Isso tende a minar cada vez mais a educação já cambaleante nestas regiões, dificultando o processo de aprendizagem e crescimento de crianças e jovens.


Empurra-empurra

A falta de investimento das prefeituras locais é apontada como um dos grandes motivos para o fechamento das escolas no campo. As prefeituras, por sua vez, alegam que o número de alunos matriculados não é o suficiente para manter novas unidades educacionais. Porém, o fechamento dessas escolas atingiu cerca de 83 mil alunos em todo o país.

De acordo com Erivan, mesmo nas regiões onde existem vagas, sobra precariedade. Das 70.816 instituições na área rural registradas em 2013 (uma década antes eram 103.328), muitas delas continuam sem infraestrutura adequada — biblioteca, internet ou laboratório de ciências. Outro ponto de alerta é a falta de adequação do material didático. Sem falar da adoção de conteúdos, práticas e atividades distantes do universo cotidiano e simbólico dos alunos camponeses, quilombolas ou ribeirinhos, bem como aponta Erivan.

Falta de fiscalização

Lançada em 2014, a Lei 12.960 tinha como objetivo mudar as Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e um dos pontos previstos era justamente aumentar o grau de exigência para que uma escola fosse fechada, mas na prática não foi o que aconteceu.

Para o integrante do MST, o grande problema é a falta de fiscalização. “O MEC institui as portarias, as leis são sancionadas, mas, na prática, quem tem o poder de fechar as escolas é o município. Se o município alega falta de alunos e de verbas, as escolas acabam sendo fechadas, e políticas que poderiam impedir esse fato não são colocadas em prática”.

“Não faz sentindo investir na formação de professores se não tem escolas. Por isso, bato na tecla de que a questão central é a articulação política do governo com os municípios — que são os responsáveis diretos pelos fechamentos — e também um pacote que contemple as demandas prioritários”, diz Santos.

“Dentro desse contexto, eu vejo um cenário negativo, que só poderá ser revertido com muita luta, de quem acredita que a educação é a única maneira efetiva de construção social”, destaca Erivan.


FONTE:  Outras Palavras

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