sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tempos idos e vividos III


Por Aluizio Moreira


Recentemente estava eu em uma das salas de espera do setor de Cintilografia no Centro Diagnóstico Lucilo Ávila, juntamente com outras pessoas, quando no intervalo entre os testes, um senhor de 89 anos expôs que era delegado aposentado na cidade de Jaboatão e com um certo “orgulho” contou com a maior simplicidade que tinha mandado “despachar” para o cemitério, três adolescentes que roubavam semanalmente os passageiros de um ônibus que circulava naquele município. Apresentou um rapaz que o acompanhava como seu neto e que seguia a carreira militar, fato de que muito se orgulhava. Foi o gancho para me lembrar de minha rápida passagem pela caserna me fazendo refletir, como a vivência  das pessoas com determinada realidade pode leva-las, no aspecto politico-ideológico, para a direita ou para a esquerda, no seu significado mais “radical” (no sentido de ir à raiz) do termo.
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Vou fazer uma viagem um pouco longa, mas necessária a fim de contextualizar minha opção inicial pela carreira militar.

Sou filho de funcionário público municipal e de uma  dona de casa, ambos falecidos. O mais velho dos seis irmãos. Meu pai conseguira junto a Prefeitura do Recife onde trabalhava, uma Bolsa de Estudos  para que eu pudesse frequentar a escola, na época Instituto Ypiranga (depois Ginásio), no bairro onde morávamos, Arruda.

Obra que resgata a greve dos
acadêmicos no Recife em 1961
Quando conclui o antigo ginasial (hoje Fundamental II), meu pai virou-se pra mim e me deixou um dilema: eu teria que arcar com as despesas dos meus estudos dali pra frente, para que ele pudesse transferir a Bolsa de Estudos para minha irmã, a “segunda da fila”. Foi esta situação que me fez tomar uma decisão: seguir a carreira militar para continuar meus estudos. Embora a minha incorporação no Exército fora agendada para acontecer nos meados do ano (1961), o conhecimento que meu pai tinha com um capitão das terras das Alagoas (seu Estado natal), anteciparam minha incorporação para janeiro daquele ano, e lá fui eu para o 14º Regimento de Infantaria, em Socorro, Jaboatão dos Guararapes, o que ocorreu em 15.01.1961.

Consegui no próprio quartel frequentar o Curso de Formação de Cabo, quando estourou uma greve dos estudantes do Curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco no Recife, em  maio de 1961.

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Estudantes universitários durante a Palestra de
Célia de la Serna y LLosa, em uma das salas da FDR

Foto: Diário de Pernambuco
O fato é que naquele mês o Diretório Acadêmico do Curso de Direito tinha convidado Celia de la Serna y Llosa (1906-1965), cidadã argentina, militante politica (apoiou a Guerra Civil Espanhola, participou de movimentos de apoio aos aliados na Segunda Guerra Mundial, defensora da Revolução Cubana), mãe de Ernesto “Che’ Guevara, então Presidente do Banco Nacional de Cuba, para dar uma palestra na Faculdade de Direito do Recife, na praça Adolfo Cirne. Era 31 de maio de 1961.

Ao ser comunicado  pelo Diretório Acadêmico, o Diretor da Faculdade, Soriano Neto, proibiu o evento e na tentativa de boicotá-lo ordenou cortar a luz da Faculdade, mas segundo relato de participantes, a palestra aconteceu à luz de velas.

Dia seguinte os bacharelandos ocuparam o prédio, apresentando diversas reivindicações, inclusive fazendo criticas ao autoritarismo do Diretor, pediam sua renúncia. Entre as reivindicações citam-se maior qualificação dos professores (considerados desatualizados e de metodologia ultrapassada), renovação do acervo da Biblioteca, adoção de aulas de prática jurídica, além de reclamações relativas à  infraestrutura da Faculdade (ventiladores quebrados, salas escuras, sanitários estragados).

Diário de Pernambuco de 07.06.1961
Após tentativas frustradas do governador em exercício, Pelópidas Silveira, do Prefeito do Recife, Miguel Arraes, para a solução dos impasses diante da irredutibilidade do Diretor da Faculdade que se recusava a dialogar com os acadêmicos, ordem emanada da Presidência da República (Jânio Quadros), após solicitação do Ministro  de Educação e Cultura, sr. Brigido Tinoco, mobilizou o Exército como forma de pressionar os estudantes. Contingentes do 14º Regimento de Infantaria cercaram o prédio da Faculdade da Direito, em toda a extensão da praça Adolfo Cirne.

Lá estava eu!  Integrante de um pelotão de reserva que se instalara junto ás paredes do prédio da Faculdade, aguardando o desenrolar os acontecimentos.

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Muitos que faziam a imprensa local, políticos da Câmara e da Assembleia Legislativa no Estado, policiais e militares em geral, passaram a atribuir ao movimento dos acadêmicos de Direito parte de um plano dos comunistas infiltrados no meio universitário e/ou estudantes influenciados pela Revolução Cubana. Mas a questão era muito mais profunda, na medida em que os estudantes universitários no país, se mobilizavam na defesa de uma Reforma Universitária. Tanto que no mesmo dia eclode um movimento grevista nas Escolas de Agronomia e Veterinária da Universidade Rural de Pernambuco (hoje Universidade Federal Rural de Pernambuco) em Dois Irmãos, independente do movimento da Faculdade de Direito. Tinham os acadêmicos da Universidade Rural as mesmas preocupações dos seus colegas de Direito, voltadas para a melhoria dos cursos, inclusive reivindicando aulas práticas.

Como acontecera com a Faculdade de Direito, destacamentos do 14º Regimento de Infantaria, ocuparam as dependências das Escolas de Agronomia e Veterinária em Dois Irmãos. Lá estava eu mais uma vez, “servindo a pátria” contra estudantes desarmados.

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Cerco do prédio da FDR  por pelotões do Exército
Foto: Diário de Pernambuco
Expulsos do recinto da Faculdade por conta da ocupação das forças militares, os Acadêmicos de Direito foram procurar refúgio na Escola de Engenharia, situada naquela época na Rua do Hospício, alguns metros da praça Adolfo Cirne. Solidários com os novos “moradores”, os estudantes de Engenharia, se incorporaram à luta dos colegas de Direito e os das Escolas de Agronomia e Veterinária que também para lá se deslocaram. A Escola de Engenharia assumia portanto o papel de “Quartel General”  dos universitários pernambucanos em greve.

De vários Estados do país, chegavam manifestações de solidariedade de entidades estudantis e operárias, ao movimento grevista dos acadêmicos pernambucanos.

Diário de Pernambuco de 16.06.1961
 As tentativas de solução dos conflitos esbarravam sempre na recusa dos diretores da Faculdade de Direito e das Escolas de Agronomia e Veterinária, até que no dia 15 de junho as tropas do Exército desocupam a praça Adolfo Cirne e retiram-se  da Universidade Rural.

No dia seguinte os universitários decidem por fim à greve.

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No período que passei no 14º Regimento de Infantaria (de 15.01.1961 a 17.02.1962), a minha concepção de ser militar equidistante dos interesses de classe e que defendesse a sociedade como um todo, se desfez. 

E as primeiras reflexões sobre o Estado, as forças armadas, a politica, as classes sociais, começaram a ocupar meu pensamento. Afinal de contas, o que justificaria estarmos ali, armados, ocupando Faculdade e Escolas contra centenas de estudantes desarmados que reivindicavam uma educação de qualidade? O que tinha o movimento legítimo dos universitários pernambucanos a ver com subversão, com comunismo como propalavam nas ruas e no quartel? Comecei a perceber que eu fazia parte de um aparelho repressivo a serviço do Estado, mantenedor de um sistema econômico-social, sob a hegemonia de uma determinada classe social.  

Esta conclusão não invalida um outro momento por mim vivido no quartel: o 25 de agosto de 1961, a renuncia do então Presidente Jânio Quadros. Desta vez não fomos para as ruas. Ficamos de prontidão, privados de sair do âmbito do quartel, dormindo uniformizados, de coturno e tudo. E dia sim dia não, um tenente ia ao nosso alojamento, onde sentados no chão, ouvíamos um discurso sem direito a perguntas, no qual éramos informados, do ponto de vista da corporação, o desenrolar da situação do país e o risco que representava João Goulart, enquanto vice-presidente, assumir o posto mais alto do poder executivo da nação. 

Mais uma vez o “espectro” do comunismo rondava o país: a posse legal de Jango com a vacância da presidência, punha em perigo nossa “vocação cristã e democrática”. Em junho o perigo vinha dos acadêmicos, em agosto de João Goulart. Estávamos na antessala do golpe de 1964. 
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