Parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo |
Por José Luís Fiori | Imagem: Jasminka Banusik, Peixes
“O PSDB não tem um projeto de país”
Alberto Goldman, vice-presidente nacional do PSDB (FSP, 27/05/2015)
“O governo está sem rumo e está levando o PT junto”
Senador Paulo Paim (PT-RS) (Brasil 247, 27/05/2015)
Em meio à crise política e à retração econômica brasileira, o jantar do dia 12 de maio, da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos, no Waldorf Astoria de Nova York, reunindo banqueiros, empresários e políticos da alta cúpula do PSDB, em torno da pessoa dos ex-presidentes Bill Clinton e Fernando H. Cardoso, foi um clarão no meio da confusão ideológica dominante. Em termos estritamente antropológicos, representou uma espécie de pajelança tribal de reafirmação de velhas convicções e alianças que estiveram na origem do próprio partido socialdemocrata brasileiro. Mas do ponto de vista mais amplo, pode se transformar numa baliza de referência para a clarificação e remontagem do mapa político brasileiro.
Afinal, este grupo liderado pelo ex-presidente FHC, foi o único que esteve presente e ocupou um lugar de destaque nas reuniões formais e informais que cercaram a posse de Bill Clinton, em 1993, em Washington. Naquele momento foi sacramentada a aliança do PSDB com a facção democrata e o governo liderada pela família Clinton. Uma aliança que se manteve durante os dois mandatos de Clinton e FHC, assegurando o apoio do Brasil à criação da ALCA e garantindo a ajuda financeira americana que salvou o governo FHC da falência. Estes dois grupos estiveram juntos na formulação e sustentação das reformas e politicas do Consenso de Washington e voltaram a estar juntos nas reuniões da “Terceira Via”, criada por Tony Blair e Bill Clinton, em 2008, reencontrando-se agora de novo, na véspera da candidatura presidencial de Hillary Clinton.
Durante todo este tempo, os socialdemocratas brasileiros mantiveram sua defesa incondicional do alinhamento estratégico do Brasil, ao lado dos EUA, dentro e fora da América Latina; sua opção irrestrita pelo livre-comércio e pela abertura dos mercados locais; pela redução do papel do Estado na economia; pela defesa da centralidade do capital privado no comando do desenvolvimento brasileiro; e finalmente pela aplicação e irrestrita das politicas econômicas ortodoxas. Estas posições orientaram a politica interna e a estratégia internacional dos dois governos do PSDB, na década de 90, e seguem orientando a posição atual do PSDB, favorável à reabertura de negociações para criação da ALCA; à mudança do regime de exploração do “pré-sal”; ao fim da exigência de conteúdo nacional nos mercados de serviços e insumos básicos da Petrobras e das grandes construtoras brasileiras.
Isto pode não ser “um projeto de país”, mas com certeza é um programa de governo rigorosamente liberal, que só coincide de forma circunstancial e oportunista com as teses neoconservadoras defendidas hoje no Brasil por movimentos religiosos de forte conteúdo fundamentalista. A novidade destes movimentos no cenário politico brasileiro atual surpreende o observador, mas suas teses sobre família, sexo, religião etc não são originais e sua liderança carece da capacidade de formular e propor um projeto hegemônico para a sociedade brasileira. O mesmo pode ser dito com relação ao poder real das recentes mobilizações de rua e de redes sociais, que fazem muito barulho mas também não conseguem dar uma formulação intelectual e ideológica consistente às suas próprias iras e reivindicações.
Deste ponto de vista, parece necessário reconhecer que a origem da grande confusão ideológica do país, neste momento, são as próprias forças progressistas e o governo que acabou de ser eleito por uma coalizão de centro-esquerda. Não é fácil identificar o denominador comum que une todas estas forças, mas não há duvida que seu projeto econômico aponta muito mais para o ideal de um “capitalismo organizado” sob liderança estatal, do que para o modelo anglo-saxônico do “capitalismo desregulado”; para uma politica agressiva de redistribuição de renda e prestação gratuita de serviços universais, do que para uma política social de tipo seletiva e assistencialista; e finalmente, para uma estratégia internacional de liderança ativa dentro de América Latina, e de uma aliança multipolar com as potências emergentes sem descartar as velhas potencias do sistema, muito mais do que para um alinhamento focado em algum país ou bloco ideológico de países.
Se assim é, como explicar à opinião publica mais ou menos ilustrada, que um governo progressista deste tipo coloque no comando de sua politica econômica um tecnocrata que não tem apenas convicções e competências ortodoxas, mas que seja também um ideólogo neoliberal que defende abertamente em todos os foros, uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo para o país absolutamente idêntica a que é defendida pelo grupo que participou do jantar no Waldorf Astoria, no dia 12 de maio? E como entender um ministro de Energia, que defende em reuniões internacionais, o fim da politica de “conteúdo local” e do “regime de partilha”, do pré-sal, duas politicas que são uma marca dos últimos 13 anos de governo, e uma diferença fundamental com a posição defendida pelos mesmos comensais de Nova York?
Por fim, para levar a confusão até o limite do caos, como explicar que o ministro de Assuntos Estratégicos deste mesmo governo, proponha abertamente, pela imprensa, como se fosse apenas um acadêmico de férias, que se faça uma revisão completa da política externa brasileira da última década, com a suspensão do Mercosul que foi criado e é liderado pelo Brasil, e com a mudança do foco e das prioridades estratégicas do país, que deveria agora alinhar-se com os EUA para enfrentar a ameaça da “ascensão econômica e militar chinesa”?
Tudo isto dito de forma absolutamente tranquila, exatamente uma semana antes da visita oficial do primeiro-ministro chinês ao Brasil, que já havia sido anunciada junto com um pacote de projetos e de recursos para levar a frente uma estratégia de longo prazo que passa – entre outras coisas – pela construção de uma ferrovia transoceânica capaz de dar ao Brasil, finalmente, um acesso direto ao Pacifico, com repercussões óbvias no campo da geopolítica e geoeconomia continental. Além disto, este “grande estratego” do governo fez sua proposta um mês antes da reunião do BRICS, na Rússia, em que será criado o banco de investimento conjunto do grupo, sob a óbvia liderança econômica da China. Uma trapalhada pior do que esta, só se fosse proposta também a internacionalização da Amazônia.
Talvez por isto tantos humanistas sonhem hoje com o aparecimento de uma nova utopia de longo prazo, como as que moveram os revolucionários e os grandes reformadores dos séculos XIX e XX. Mas o mais provável é que estas utopias não voltem mais, e que o futuro tenha que ser construído a partir do que está aí, a partir da sociedade e das ideias que existem, com imaginação, criatividade, a uma imensa paixão pelo futuro do país.
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*José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ, é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”,www.poderglobal.net. O último livro publicado pelo autor, O Poder Global, Editora Boitempo.
FONTE: Outras Palavras
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