terça-feira, 28 de julho de 2020

Humanas x Exatas: uma falsa dicotomia


Por Josimar Priori 



Os profissionais da área de ciências humanas não cansam de ouvir piadas – de mau gosto – como estas: “não sei fazer esta conta, eu sou de humanas” e “ser de humanas é confiar que sempre o troco está correto”. De fato, recaem sobre “o pessoal de humanas” chacotas que os consideram como ignorantes em cálculos matemáticos, distraídos, esotéricos que gostam de aplaudir o sol e abraçar árvores. Eles seriam descolados da realidade, ingênuos e até um tanto bobalhões, incapazes de fazer coisas realmente importantes. Ao mesmo tempo as humanidades têm o seu status de ciência questionado com muita frequência.

Em outro campo estaria o “pessoal de exatas”. Estes seriam objetivos, produtivos, práticos e engajados em criar serviços realmente importantes para a sociedade. Não teriam tempo de contemplar a natureza porque estariam muito ocupados em seus relevantes afazeres. Sua produção intelectual estaria fundada na objetividade científica e os resultados seriam úteis e aplicáveis. Nesse diagrama, não haveria espaço para extensas leituras ou debates intermináveis sobre política ou filosofia, por exemplo.

Evidentemente, estas representações são caricatas, reforçam preconceitos e todos saem perdendo. Primeiramente, tal compreensão é prejudicial para os profissionais de ciências humanas e é lamentável que muitos de nós das humanidades reproduzamos isso como se fosse engraçado. Esquecemo-nos, porém, que ao sermos tomados como chacotas, estão desqualificando nossa inteligência e o fundamental conhecimento científico que produzimos. Os profissionais ligados às ciências exatas, por sua vez, perdem ao serem qualificados, por exemplo, como excessivamente objetivos, despolitizados, desinteressados por temáticas sociais e com dificuldades em realizar leituras extensas.

É óbvio que ciências humanas e cálculos não são incompatíveis, como também não são as ciências exatas e literatura, por exemplo. Na realidade, esse dualismo pouco sapiente gera prejuízos para o próprio avanço científico, pois acaba limitando o campo de atuação de um pesquisador em torno da sua disciplina. No entanto, ainda que as ciências sejam corretamente pensadas como plurais, elas possuem um ponto de partida comum que não deve ser ignorado.

É fundamental compreender que o princípio primeiro da ciência, herdado da filosofia, é a dúvida. O cientista – humano, exato, biológico, qualquer um – deve ser um cético por excelência. Ao duvidar das aparências, daquilo que o olho humano toma por óbvio e certo, das verdades estabelecidas, o estudioso põe em movimento uma rigorosa pesquisa, faz um minucioso escrutínio do objeto estudado, o compara com os demais, faz testes e experimentos, elabora e testa hipóteses e chega a uma conclusão que se expressa por meio de uma tese. Essa, no entanto, é sempre provisória, visto que novas evidências podem alterar a explicação sobre um fato.

Cada objeto de estudo exige técnicas e recursos diferentes para ser compreendido, daí a especificidade de cada ciência. Por exemplo, ao estudar os corpos celestes, os cientistas se valem de equipamentos como telescópios, sondas e modelos matemáticos. O estudo dos seres minúsculos requer o uso de microscópio. O estudo da cultura, da economia e da política, por seu turno, exige observações, entrevistas, aplicação de questionários, levantamento de documentos históricos. Ainda assim, as áreas do conhecimento se complementam, como quando as ciências sociais utilizam modelos matemáticos e estatísticos para compreender preferências políticas e econômicas ou a história e a arqueologia recorrem a exames laboratoriais para identificar a causa da morte de uma rainha ou a idade de um artefato.

O que estou sugerindo, de fato, é que embora as ciências precisem se organizar em disciplinas a fim de poderem aprofundar o conhecimento em temas específicos, todos compartilhamos de uma mesma matriz. Além disso, o conhecimento se torna muito mais profundo, complexo e sofisticado quando reconhecemos a colocamos em prática a interdependência e a complementaridade científica. É notório que os maiores gênios não conheciam apenas sobre seus objetos de estudo mais estritos. Albert Einstein, por exemplo, escreveu belíssimos textos de análise social. René Descartes era filósofo, físico e matemático. Karl Marx conhecia densamente a mecânica por traz das máquinas da revolução industrial.

De tal maneira, o desejável é que nos tornemos profundamente interessados por qualquer conhecimento. O verdadeiro amante da ciência não se permite se enquadrar em caricaturas empobrecedoras como “sou de humanas” ou “sou de exatas. É necessário quebrar essa dicotomia, ensinar aos estudantes a importância e a complementaridade de todas as áreas do saber e, mais que tudo, reconhecer que o avanço social está intimamente associado ao investimento, ao respeito e à intersecção entre todas as ciências.


* A versão original deste texto foi publicada no Jornal Noroeste (Nova Esperança – PR).

** JOSIMAR PRIORI é Cientista Social, Doutor em Sociologia, professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e autor de A luta faz a lei (Maringá, Eduem, 2017).


terça-feira, 14 de julho de 2020

Por que o Brasil de Olavo e Bolsonaro vê em Paulo Freire um inimigo



Por Sérgio Haddad




Biógrafo analisa hostilidade contra o educador, em alta nos últimos anos

Biógrafo de Paulo Freire analisa como o principal educador brasileiro, autor de método de alfabetização que estimula alunos a refletirem sobre sua realidade, passou a ser visto como inimigo público e responsabilizado por maus resultados educacionais do país.

Em 29 de maio de 1994, em longa entrevista publicada no caderno “Mais”, da Folha, Paulo Freire comentou as razões de seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil.

“Em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas”, afirmou na ocasião.”

Passados 25 anos, Paulo Freire voltou a ser alvo de ataques nas redes sociais e nos discursos políticos, consequência da nova onda conservadora que assola o país.

Parece ser essa a sina do mais importante educador brasileiro (1921-1997). Cinco décadas atrás, Freire foi preso e exilado pelos militares após o golpe de 1964. Ele desenvolvia na época um programa nacional de alfabetização que seria implantado por João Goulart, inspirado em projeto que desenvolveu no Rio Grande do Norte com cerca de 400 jovens e adultos.

A experiência na cidade de Angicos ganhou notoriedade internacional por se propor a concluir em 40 horas o processo de alfabetização e a formar cidadãos mais conscientes de seus direitos e dispostos a defendê-los de maneira democrática.

O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando acerca de suas condições de vida, trabalho, saúde, educação e lazer, por exemplo. Unia, portanto, educação com cultura, ao tomar as experiências dos alunos e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar.

Os golpistas de 64 intuíram que o programa, ganhando dimensão nacional, poderia desestabilizar poderes constituídos ao capacitar, no curto prazo, grande quantidade de pessoas para o voto, então vedado aos analfabetos, permitindo que setores populares influíssem de maneira mais consciente em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método e seu autor.

Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima —um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar— divulgou o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos”.

“Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”, escreveu. Para Ibiapina Lima, Freire não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.

Na apresentação ao livro de Freire “Educação como Prática da Liberdade”, Francisco Weffort, ministro da Cultura no governo FHC, assim analisou os fatos ocorridos no Brasil: “Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares… Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular… Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota”. E acrescentaria: “Se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais, é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”.

Exilado por 15 anos — tendo passado por Bolívia, Chile, EUA e Suíça —, Freire regressaria ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores do mundo. Havia percorrido diversos países a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Nos últimos dez anos de seu exílio, trabalhando no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, totalizaria cerca de 150 viagens a mais de 30 países.

No seu retorno, começaria a dar aulas na PUC de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser secretário municipal da Educação. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República, nas eleições de Lula e Dilma.

Frente às inúmeras pressões das quais era alvo, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo ao professor Mário Sérgio Cortella, chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas.

Em 1º de maio de 1997, com a saúde fragilizada, Paulo Freire daria entrada no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, para uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no dia seguinte.

Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.

Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos ao longo da vida e depois da morte: mais de 350 escolas no Brasil e no exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais.

Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, foi declarado patrono da educação brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina (então no PSB, hoje no Psol).

Seus livros se espalharam pelo mundo. “Pedagogia do Oprimido” ganhou tradução em mais de 20 idiomas. Estudo de junho de 2016 do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirma que essa era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas em todo o mundo, à frente de trabalhos de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. É também o único título brasileiro a aparecer na lista dos cem livros mais requisitados por universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a Revue Internationale d’Éducation de Sèvres, publicação francesa de prestígio, apontou Freire como um dos principais educadores da humanidade.

A despeito de tão vasto reconhecimento, Freire vem sendo reiteradamente desqualificado no debate público brasileiro desde a recente ascensão de setores conservadores.

Na onda intolerante que se formou no país após 2015, a partir da crise do governo Dilma Rousseff (PT), grupos foram às ruas com propostas antidemocráticas, homofóbicas, racistas e machistas. Era comum encontrar nas manifestações frases do tipo “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.

Com a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, as críticas ao educador e ao seu pensamento ganharam reforço contundente, estimuladas pelo escritor Olavo de Carvalho, de quem o presidente é seguidor. Durante a campanha eleitoral, em palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato Bolsonaro afirmou: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá”. E complementou: “Eles defendem que tem que ter senso crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”.

Em seu discurso de posse, o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, insistiu: “Se o Brasil tem uma filosofia de educação tão boa, Paulo Freire é uma unanimidade, por que a gente tem resultados tão ruins comparativamente a outros países? A gente gasta em patamares do PIB igual aos países ricos”.

A tentativa de banir Freire das escolas angariou forte apoio nas redes sociais desde a campanha. Grupos atacam a qualidade literária dos textos e da pedagogia de Freire, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que, quanto mais é estudado e lido nas universidades, mais a educação anda para trás; afirmam que seus escritos estão ultrapassados, que o lugar de fazer política é nos partidos, não nas escolas.

Não há base empírica que comprove essas afirmações. Freire nunca foi comunista, ainda é mais lido nas universidades do exterior do que nas brasileiras, nunca pregou uma educação partidária nas escolas. Do mesmo modo, a crítica à qualidade literária de seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento, um interlocutor consagrado e respeitado.

Um dos principais adversários das ideias de Paulo Freire, o movimento Escola Sem Partido se propõe a coibir a doutrinação ideológica nas escolas. Estabeleceu como estratégia política aprovar leis para vigiar as ações de professores nas escolas, produzindo um clima de perseguição política e denuncismo. Em nome de uma inexistente neutralidade, omissos em relação aos verdadeiros dilemas da educação brasileira, tentam desqualificar Freire.

Uma proposta legislativa patrocinada pelo movimento obteve as assinaturas necessárias para que o Senado discutisse retirar o título de patrono da educação brasileira de Freire. Depois de uma intensa batalha, a demanda não foi aprovada.

Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão de sua responsabilidade como educador no preparo das aulas e no domínio dos conteúdos.

Era contra a educação de uma via só, em que o professor dita aulas e o aluno escuta; em que o primeiro sabe e o segundo, não; em que um é sujeito e o outro, objeto. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “Não há docência sem discência”, afirmaria.

Freire foi criticado também em setores progressistas por ser idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método. Nunca foi unanimidade nos corredores das universidades, e nem esperava por isso.

Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, os debates e as polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para constituição do seu futuro.

Não acreditava em uma educação neutra, verdade reconhecida há anos pela sociologia da educação, mais uma vez constatada na gestão do ex-ministro da Educação de Bolsonaro Ricardo Vélez Rodríguez. Indicado por Olavo de Carvalho, tentou impor comportamentos e valores para toda a rede de ensino, com propostas de obrigar os alunos a cantarem o hino nacional, controlar as provas do Enem, alterar os livros didáticos para negar que tenha havido golpe militar em 1964, numa clara tentativa de reescrever a história aos moldes do seu grupo político.

Demitido antes de completar cem dias no cargo, Vélez apresentava claro apetite para a guerra cultural, mas se mostrava totalmente inoperante para os problemas reais da sua pasta.

O novo ministro, Weintraub, economista com mestrado em administração, atuou por mais de 20 anos no mercado financeiro. A exemplo de Vélez, nunca exerceu cargo de gestor público em educação. É também um seguidor de Olavo de Carvalho e, aparentemente, não deixará de lado o discurso de combate ideológico. Weintraub é mais um que enxerga comunistas em todas as partes, dominando as universidades, os meios de comunicação e, inclusive, setores do mercado.

Em sentido oposto, Paulo Freire, como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor, de acordo com os seus interesses. 

Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, tendo sido muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro “O Caminho se Faz Caminhando”, reafirmaria sua postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.

Quando perguntado, Freire não se recusava comentar de forma crítica os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária não do socialismo, mas de sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista”.

Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em “Pedagogia da Indignação”. Nele, comentava o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo por cinco jovens em Brasília. “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável”, escreveu. Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar?”

Diante do ocorrido, proclamaria o dever de qualquer pessoa que educa de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais. Concluiria afirmando que, “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Em “Política e Educação Popular”, um dos mais importantes trabalhos sobre Freire, o professor Celso Beisiegel afirma que o seu compromisso do educador com os oprimidos estaria levando a um estreitamento das possibilidades de utilização das suas práticas pedagógicas — referia-se ao tempo dos governos autoritários instalados na América Latina nos anos 1960 e 1970. Beisiegel questionava se o educador não estaria se aproximando da realização daquela imagem do “ser proibido de ser”, concluindo: “Não seria inaceitável dizer que Paulo Freire veio se aproximando da realização da figura do educador proibido de educar”.



* SÉRGIO HADDAD é Doutor em Educação pela USP, pesquisador da Ação Educativa e professor da Universidade de Caxias do Sul. Prepara biografia de Paulo Freire a ser lançada pela editora Todavia. Publicado em


domingo, 5 de julho de 2020

A extinção judicial do Escola sem Partido



Por Salomão Ximenes e Fernanda Vick


Efeitos práticos de decisões do STF e o ponto final na farsa jurídica construída para impor censura antigênero nas escolas e perseguição a professores


Antes tarde do que nunca. O STF decidiu dar fim a uma das mais danosas farsas jurídicas da atualidade: as legislações antigênero na educação, que proliferam no Brasil desde 2014. Disseminadas por movimentos reacionários e grupos fundamentalistas junto aos Legislativos, essas normas e os debates parlamentares que as antecedem dão suporte institucional à cruzada antigênero e à censura nas escolas, servindo de plataforma ao pânico moral e suas consequências políticas e sociais.1 Há anos contestadas em mais de uma dezena de ações judiciais, desde fins de abril deste ano tais normas vêm sendo julgadas e declaradas inconstitucionais, uma a uma, por unanimidade, no discreto Plenário Virtual do STF.

É, portanto, o fim de um ciclo, ao menos no relevante plano dos embates jurídico-formais sobre a censura nas escolas. Neste ensaio, analisamos o contexto e, sobretudo, os efeitos práticos das decisões para a reconstrução dos ambientes pedagógicos e das dinâmicas da gestão escolar democrática, há anos vandalizados pela ação articulada de grupos reacionários e fundamentalistas.

A construção de uma farsa de graves consequências

O primeiro palco de encenação se deu entre 2013 e 2014, fase final de tramitação do Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014). Ali, entre outras polêmicas igualmente importantes, embora menos ruidosas, reacionários e fundamentalistas lograram emplacar uma falácia jurídica: a redação final do PNE teria excluído a abordagem de gênero e diversidade sexual, uma vez que a diretriz sobre a “erradicação de todas as formas de discriminação”2 não contemplara, por veto político desses grupos e omissão da maioria parlamentar, emendas que buscavam afirmar expressamente aquelas dimensões de desigualdades a serem combatidas. Formalmente, a questão não passa de uma polêmica terminológica, juridicamente estéril, como veio a reconhecer o STF nas últimas semanas. Ainda assim, foi suficientemente marcante para alastrar o tema nos debates legislativos dos planos municipais e estaduais de educação que se seguiram ao PNE.

Não à toa, foi nesse mesmo ano de 2014 que se iniciou a tramitação do primeiro projeto de lei nacional identificado ao Escola sem Partido (EsP), o PL n. 7.180/2014, que foi seguido do PL n. 867/2015, este um protótipo dos projetos apresentados no estado e no município do Rio de Janeiro pelos irmãos Flávio e Carlos Bolsonaro, respectivamente. Em seguida, surgiu um punhado de novos PLs com foco específico na temática antigênero.

As matérias, caras à família presidencial, ganharam destaque nacional com a criação de uma Comissão Especial do Escola sem Partido na Câmara dos Deputados, onde tudo foi reunido, hegemonizada desde lá pela nata do que viria a ser o bolsonarismo parlamentar, com a participação ativa de Jair e Flávio Bolsonaro, já então deputado federal como o pai. O projeto e seus defensores parlamentares mais destacados viajaram o país nos anos que se seguiram, disseminando a ideia e, mui oportunamente, corporificando o caldo de cultura em franca expansão. Desse périplo resultaram pelo menos 201 projetos de lei e 46 leis aprovadas que tratam dos temas,3 seguidos de dezenas de questionamentos judiciais.

Os alertas de movimentos feministas, LGBTQIs e educadores quanto aos impactos mais amplos dessas leis e o cenário em gestação nos debates foram inicialmente minimizados: “Isso é cortina de fumaça”, ouvia-se. A cegueira quanto à centralidade dessa agenda no projeto antidemocrático que se anunciava, em alguma medida, perdurou até que seus efeitos foram duramente sentidos no debate eleitoral. Simbolicamente, na edição do Jornal Nacional de 28 de agosto de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro apresentou ao país a falsa prova de livros didáticos que teriam sido distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC), com conteúdo sexual impróprio para menores, enquanto uma rede de robôs e aguerridos militantes complementavam a desinformação, disseminando maciçamente fotos de apetrechos eróticos que igualmente estariam em uso nas escolas. O estrago eleitoral estava feito. O programa máximo desses movimentos é estabelecer a censura real nas escolas, de preferência a autocensura, aquela que alcança mais gente e dá menos trabalho. Para isso, apostaram nas investidas legislativas para criar deveres genéricos e constrangedores ao exercício do magistério, cuja indeterminação jurídica tornaria sempre presente o fantasma da ameaça de processos administrativos e ações judiciais. Essa sombra estaria em cada sala de aula brasileira, emanada de um cartaz obrigatório, com os “Deveres do Professor”.

O mecanismo de censura na educação, contudo, não se fechou. Não foi aprovada uma lei federal sobre o tema – em consequência, nenhum cartaz oficial foi afixado – e, na visão da militância “raiz” desses movimentos, há inépcia do MEC na condução da agenda, como fica evidente nas críticas públicas desse segmento ao que interpretam como traição e abandono oficiais. Mais que bravatas sobre a “feiura” de Paulo Freire e as “balbúrdias” acadêmicas, queriam ações concretas de censura e perseguição; queriam, enfim, uma nova legislação federal. É nesse contexto de embates no interior do campo reacionário, de reaquecimento da pauta no Congresso Nacional com a criação de uma nova Comissão Especial,4 que ganham importância as recentes decisões do STF, ao desautorizar suas teses jurídicas mais elementares.

O conteúdo das decisões do STF

Há no STF atualmente quinze ações sobre o tema, a maior parte contra legislações municipais antigênero. Dessas, quatro foram julgadas sucessivamente, entre 27 de abril e 26 de junho deste ano, data do último julgamento. Foram eliminadas as leis dos municípios de Novo Gama (GO), Foz do Iguaçu (PR), Ipatinga (MG) e Cascavel (PR).5 Por unanimidade, cada novo caso reitera os anteriores, formando o que no campo do Direito se entende como uma posição consolidada do Tribunal, um conjunto de precedentes vinculantes que extrapolam os casos específicos, um conjunto estável de teses de interpretação constitucional de grande repercussão.

Podemos resumi-las a cinco teses:

1. A censura às temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual nas escolas viola a liberdade constitucional de ensinar, aprender, divulgar a arte e o saber e interdita o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

2. Professores têm liberdade de expressão no exercício profissional, e a censura prévia às suas atividades é incompatível com as liberdades fundamentais de opinião e pensamento.

3. Crianças e adolescentes têm direito fundamental ao conhecimento e à proteção que os estudos escolares sobre gênero e sexualidade proporcionam.

4. O Estado tem o dever de zelar pelas liberdades, direitos e garantias anteriores e de atuar por meio de políticas públicas e sistemas de ensino, de escolas públicas e privadas, para o enfrentamento de todas as formas de discriminação com fundamento em gênero e orientação sexual;

5. Quanto aos pais, entre os direitos sobre a educação de seus filhos não se incluem poderes para questionar ou vetar conteúdos específicos do ensino que compõem os objetivos republicanos e democráticos do direito à educação.

Tais teses reconhecem ideias presentes no Manual de defesa contra a censura nas escolas (www.manualdedefesadasescolas.org.br), levadas ao STF por organizações e movimentos do campo educacional que lá intervêm como Amici Curiae.6

O fim de uma retórica de censura: tirar o PNE da defensiva

O fato é que onde os ideólogos do EsP e os movimentos antigênero viram censura o STF viu o contrário. O PNE inclui entre suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Entre estas, entendeu o Tribunal, compreendem-se as discriminações com fundamento em gênero e orientação sexual, reiterando para a educação escolar o entendimento já firmado desde a decisão de 2011 sobre direito à união civil de pessoas do mesmo sexo.

No campo educacional, entretanto, tal interpretação tem efeitos que devem ir além do mero reconhecimento e proteção, mas impõe a adoção de políticas públicas de diversas naturezas, na formação de professores, disseminação de materiais didáticos e projetos curriculares adaptados a cada fase do desenvolvimento do educando: “o dever estatal de promoção de políticas públicas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade”.7


(PCdoB na Câmara)
O alcance das decisões do STF

Ainda que as quatro ações julgadas digam respeito, cada uma, a um município em específico, os fundamentos das decisões de controle de constitucionalidade no STF impõem efeitos nacionais que, na prática, inviabilizam a proliferação jurídica da censura nas escolas.

Pela Constituição de 1988, uma decisão de controle de constitucionalidade do STF estabelece obrigações vinculantes às demais esferas do Judiciário e aos demais poderes, alcançando a todos, o que inclui, por óbvio, os órgãos da administração educacional de todos os municípios, Estados e da própria União, além de escolas públicas e privadas. Isso porque tais decisões não apenas retiram da esfera jurídica as leis em debate, mas também colocam nessa mesma esfera as teses constitucionais em que se fundamentaram.

Nas demais instâncias do Judiciário e no próprio STF, as teses contra a censura e a favor da educação em gênero e sexualidade devem ser reproduzidas em julgamentos futuros. Decisões de instâncias inferiores que contrariem os fundamentos desses casos podem ser objeto de reclamação diretamente ao STF, por descumprimento de seus julgados, que as julgará cassadas. E mais, havendo processo judicial em seu desfavor, abre-se uma via rápida para que qualquer professor, formalmente perseguido ou ameaçado, possa reclamar seus direitos diretamente no STF.

Na prática, os Tribunais de Justiça estaduais que hoje analisam dezenas de ações sobre a inconstitucionalidade de normas similares devem resolver rapidamente a questão, uma vez que ficou inviável dar interpretação dissonante ao tema. Mesmo que novas leis de censura venham a ser aprovadas, confrontando as decisões do STF, não poderão ser aplicadas na prática e, uma vez questionadas no Judiciário, serão eliminadas.

Juízes de primeira instância também estão vinculados aos fundamentos dessas decisões, com destaque para dois prováveis efeitos práticos em favor dos professores. Primeiro, devem ser extintas, também de imediato, as ações judiciais de responsabilização contra docentes, movidas sob o incentivo da militância pró-censura com o objetivo de constranger a ação pedagógica e o debate de temas sensíveis a determinadas visões políticas ou religiosas. O mesmo vale na esfera da administração pública, em que as decisões do STF afastam definitivamente a possibilidade de uso de procedimentos disciplinares como estratégias de perseguição. Aliado à ação legislativa, esse é o outro foco de atuação cotidiana dos movimentos reacionários, para a disseminação do pânico moral e do medo na base dos sistemas educacionais, mantendo viva a ameaça constante de denúncias infundadas, de notificações “extrajudiciais” e, claro, disso tudo articulado à exposição nas redes sociais.

Portanto, procedimentos de apuração ou disciplinares em curso com fundamento em censura pedagógica devem ser sumariamente arquivados. Autoridades e superiores que persistam em sentido contrário podem, estes sim, ser responsabilizados por improbidade. Em suma, não cabe mais discutir penas judiciais ou administrativas aos educadores nesses conflitos, que devem se limitar, portanto, ao ambiente político-pedagógico das escolas.

Complementarmente, ficam fortalecidos os educadores em sua defesa contra agressões injustas e infundadas, quando os casos de censura venham a configurar algo mais grave, como constrangimento ilegal e outros crimes eventualmente praticados contra si no exercício regular de suas atividades de ensino. Nesses casos, as decisões do STF reforçam a ideia de que as escolhas pedagógicas são parte do exercício regular da condição docente, sendo inclusive parte de sua liberdade fundamental de expressão na profissão. Eventuais equívocos técnicos e pedagógicos têm preservados seus espaços de revisão e supervisão, já regulamentados em todos os sistemas de ensino. Reforçam também que as diversidades de abordagens e de métodos são valores educacionais, não problemas a serem combatidos.

Professores e estudantes devem ter assim assegurado e protegido o ambiente escolar contra os impulsos litigiosos de movimentos fundamentalistas e pró-censura. Estudantes, pais e responsáveis têm direito a participar dos canais de gestão democrática das escolas e da política educacional, mas tal participação, assim como nos legislativos, não pode afrontar direitos e garantias constitucionais. Conforme propõe o Manual de defesa, quando surjam os conflitos, deve-se privilegiar, sempre que possível, seu tratamento no próprio ambiente escolar, mediante estratégias político-pedagógicas; mas ações violentas e inaceitáveis de censura por grupos organizados merecem respostas exemplares.

O decidido no STF, portanto, também produz efeitos para os governos. Além do efeito no exercício do poder disciplinar, já comentado, abre-se a possibilidade de reconstruir o espaço de políticas públicas contra-hegemônicas de educação para as relações de gênero e sexualidade.

Governos devem enfrentar esse desafio nas três esferas federativas. Isso porque as decisões afastaram definitivamente a ideia de que, em matéria de combate à discriminação de gênero e orientação sexual, seria suficiente ao Estado, quando muito, uma obrigação passiva e punitiva, ou seja, evitar e apurar discriminações. Não é um tema que se esgota na delegacia de polícia.

É obrigatório adotar políticas públicas ativas, educacionais e em outras áreas para erradicar todas as formas de discriminação, o que deve alcançar o conteúdo de bases curriculares, projeto pedagógico, planos de ensino, material didático, atividades de extensão, formação de professores e financiamento adequado e permanente dessas ações. Um renovado plano nacional de combate à homofobia nas escolas, entre outras ações.

Determina-se, assim, o tratamento profissional das temáticas de sexualidade, gênero e orientação sexual nas escolas, como dimensão do direito à educação e dos direitos de crianças e adolescentes. Tais temáticas são um dever do Estado na educação. A omissão nesse ponto é que passa a ser questionável, inclusive judicialmente, o oposto do que pretendiam os censores.

O fato de tais obrigações serem ignoradas no governo Bolsonaro não as deslegitima, pelo contrário, reafirma sua urgência.


Salomão Ximenes é doutor em Direito (USP), professor da UFABC e membro do grupo de pesquisa Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola (DiEPEE/CNPq) e da Rede Escola Pública e Universidade (Repu). E-mail: salomao.ximenes@ufabc.edu.br. Fernanda Vick é advogada, mestra em Direito (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. E-mail: fernanda.vicksena@gmail.com.


1 Ver Rogério Junqueira, “A invenção da ideologia de gênero”, Revista Psicologia Política, v.18, n.43, São Paulo, set.-dez. 2018

2 PNE, art. 2º, inciso III. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm.

3 Professores contra o Escola sem Partido, Levantamento Parcial de Projetos de Lei e Leis de Censura Escolar. Disponível em: https://profscontraoesp.org/vigiando-os-projetos-de-lei/.

4 Carol Siqueira, “Câmara recria comissão especial para analisar Escola sem Partido”, Agência Câmara, 4 dez. 2019.

5 São resultado do julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) n.457, 467, 526 e 460, respectivamente.

6 Ação Educativa, “Em nova decisão, STF afirma que é dever do Estado abordar gênero e sexualidade na escola”, 2 jun. 2020.

7 Trecho do Acórdão da ADPF 457, relatoria do ministro Alexandre de Moraes.


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