sábado, 31 de agosto de 2019

Weintraub propõe a universidade amordaçada



Concebido às pressas, “Future-se” é precário e mal-acabado. Mas sentido de suas parcas ideias é claro: um ensino superior sem autonomia, em conformidade com a cruzada de Bolsonaro contra a inteligência e o conhecimento


por Maria Caramez Carlotto




O Future-se, nome fantasia do “Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras”, foi lançado oficialmente pelo governo federal em 17 de julho. No dia anterior, o MEC já havia apresentado aos reitores das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) as linhas gerais do programa. Anunciado pelo twitter e transmitido ao vivo pela internet, o lançamento frustrou os que esperavam um documento mais completo, com estudos que justificassem a necessidade do projeto, com propostas detalhadas do que será exatamente implementado e com projeções concretas do impacto de cada medida. A comunidade acadêmica e demais interessados esperaram a divulgação do projeto “completo”, mas os únicos documentos que circularam foram um press realease intitulado “Para revolucionar é preciso despertar”, com 21 slides, e um documento aparentemente informal intitulado Future-se, de nove páginas, que nada mais é do que a cópia do site criado para consulta pública do programa.

Ou seja, de concreto, até agora, temos apenas isso: uma proposta de “revolução” apresentada em menos de dez páginas. Nada contra o poder de síntese, mas parece que falta, ainda, muita substância a esse esboço de ideias para que venha a ser, de fato, um projeto. O que está sendo colocado em consulta pública é, portanto, um brainstorm de ideias de estatutos diferentes: algumas já estão em vigor há anos; outras, carecem ainda de legislação específicas e, portanto, não têm viabilidade imediata; outras são tão genéricas que sequer dá para entender como serão realizadas e se existe marco legal para isso. É esse esboço de projeto, amplo e confuso que o governo quer que discutamos a sério.

Desde já, acho importante não subestimar qualquer projeto político vindo do governo. Mas tanto quanto o conteúdo, a forma do projeto diz muito sobre seus objetivos mais imediatos. Na melhor das hipóteses, parece que o governo correu muito para lançar essa proposta agora. Não que ela não estivesse sendo discutida, nem que não estivesse prevista, mas é visível que foi disponibilizada muito antes de estar pronta. O que sugere que o governo de fato quis gerar um momentum para sair da defensiva, como já analisei em texto anterior.

Isso posto sobre a forma, em termos de conteúdo, de concreto, o que tem até agora?

O objetivo geral do Future-se é “o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das IFES”. E pretende fazer isso através de dois meios principais assim explicitados:

I) “parceria com organizações sociais”; e

II) “fomento à captação de recursos próprios”

As universidades públicas estão entre as instituições mais importantes do país. A produção de conhecimento e de tecnologia de ponta, a formação de profissionais e cidadãos preparados para a pensar e intervir em temas complexos e a atuação junto à sociedade fazem das universidades e institutos técnicos federais instituições centrais em qualquer projeto de construção de um país mais justo, mais autônomo e com garantias mínimas de bem-estar para a maioria da população.

Justamente por isso, todos os setores sociais devem financiar a universidade, inclusive o setor privado.

O grande problema do Future-se, portanto, não é buscar meios de aumentar o financiamento privado às instituições públicas de ensino superior. Esse financiamento, aliás, já está previsto no atual modelo de funcionamento dessas instituições e vem sendo incentivado, há alguns anos, por uma série de mecanismos que o projeto do Future-se em parte reproduz como inéditos, em parte ignora totalmente sem qualquer justificativa.

O grande problema do Future-se, na verdade, é que ele projeta que os recursos privados serão a principal fonte de financiamento das instituições federais de ensino superior, em especial das universidades – substituindo, em grande medida, o financiamento público que hoje sustenta essas instituições.

Esse modelo é problemático por duas razões:

(I)

A primeira – e mais importante – é que o financiamento público é a garantia, consolidada historicamente, para a autonomia universitária. Essa autonomia é o fundamento da nossa liberdade de ensino, pesquisa e extensão, sem a qual o que fazemos perde todo sentido.

O fato do Estado – que idealmente representa o conjunto da sociedade – ser o principal financiador das universidades e institutos técnicos federais é o que garante que eles possam, na prática, contrariar setores específicos da sociedade com estudos e pesquisas que não têm compromisso de agradar seus financiadores imediatos. Não por acaso, portanto, os professores dessas instituições têm garantia constitucional de estabilidade. Em tese, o presidente da República ou o Ministro da Educação não podem me demitir, mesmo que eu critique, de modo enfático e fundamentado, as políticas que eles visam implementar.

Se a universidade pública dependesse majoritariamente do financiamento privado ou se os professores não tivessem estabilidade na carreira – ou seja, fossem contratados via Organizações Sociais, como explicitou em entrevista hoje, o Ministro da Educação – não teríamos estudos autônomos e, portanto, confiáveis sobre, por exemplo: o aumento do desmatamento, os riscos ambientais das grandes barragens, os efeitos colaterais de medicamentos rentáveis, as ameaças à saúde pelo uso de agrotóxicos, a correlação entre mortes e posse de armas de fogo, o crescimento da fome, o impacto da sonegação de impostos por parte das grandes empresas sobre as contas públicas, o efeito dos juros altos sobre o crescimento e o orçamento da união, o papel de discursos intolerantes no fortalecimento de preconceitos e no enfraquecimento da democracia, do marketing político e empresarial na construção de identidades e das novas tecnologias digitais na definição de comportamentos, inclusive eleitorais.

Visto desse ângulo e à luz dos interesses que sustentam o atual governo, fica claro onde o Furure-se quer realmente chegar: na desconstrução da autonomia universitária e, com ela, da possibilidade de produzir conhecimento sem compromissos de ocasião, formando profissionais livres para servir à maioria da sociedade e não a uma pequena parcela dessa.

O ataque inclassificável de Bolsonaro ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a sua negativa de aceitar os dados sobre o crescimento do desmatamento e da fome no país fazem parte desse amplo contexto. A redução do orçamento do Censo Demográfico do IBGE, o corte de bolsas de pesquisa e a suspensão das avaliações do INEP sobre a atuação das universidades, idem. Sem falar da recente afirmação do ministro da Educação de que os professores das universidades federais ganham muito e trabalham pouco, de em como a sua sugestão mudanças na forma de contratação dos docentes, com a eliminação dos concursos públicos e da estabilidade na carreira.

Há um amplo e inequívoco movimento do governo contra a produção de conhecimento autônomo e confiável, que seja capaz de fazer frente à política de desinformação e obscurantismo que se quer implementar.

O Future-se é, sem dúvida, parte disso.

(II)

A segunda razão pela qual a substituição do financiamento público pelo privado previsto no Future-se é problemática é mais simples e pragmática: esse financiamento simplesmente não virá ou não virá na proporção que o MEC imagina para poder, de fato, se isentar do financiamento das instituições de ensino superior.

O setor privado, tradicionalmente e por razões econômicas bem identificadas pela literatura, não investe em pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Basta olhar os dados da Pintec (Pesquisa de Inovação Tecnológica), feita a cada três anos pelo IBGE, para constatar isso. Mesmo depois de todos os incentivos criados pelas leis de propriedade intelectual de 1996, 1997 e 1998, pela Lei de Inovação de 2004 e pelo Marco de Ciência e Tecnologia de 2016, os patamares de investimento continuam muito baixos. A Lei de Fundos Patrimoniais aprovada recentemente, segundo todas a análises, não vai alterar substancialmente esse cenário.

Pode ser que o governo, que tanto despreza dados e evidências, esteja apostando realmente que o Future-se pode ganhar densidade a ponto de se tornar uma fonte prioritária e real de financiamento do ensino superior público. Caso isso fosse viável, seria preciso alterar substancialmente o formato do projeto para incrementar a autonomia universitária e fortalecer a carreira docente de modo a preservar o caráter público – no sentido de fiel ao interesse público, ou seja, da maioria da população – do ensino e, principalmente, da pesquisa produzida nessas instituições.

Mas penso que o Future-se não busca consolidar uma fonte alternativa real de financiamento da universidade através da venda de pesquisas e outros expedientes extravagantes previstos no projeto. Seu objetivo principal é incidir, no curto prazo, no debate sobre financiamento do ensino superior, seja naturalizando o corte de 30% do orçamento das instituições de ensino superior, seja enfraquecendo a pressão que vamos exercer, no Congresso, para que o orçamento de 2020 garanta o funcionamento mínimo das instituições federais de ensino superior. Em tempos de orçamento impositivo, essa batalha é central e o Future-se é, na minha visão, uma estratégia discursiva para naturalizar a redução do orçamento para educação superior pública.

Sem financiamento, as universidades e institutos federais não poderão seguir produzindo conhecimento em condições normais e o governo terá cumprido sua agenda central. De quebra, abre espaço para a discussão que realmente interessa para o setor privado do país. Não é nem a pesquisa, nem a inovação, muito menos a nomeação de prédios e outras banalidades previstas no projeto original, mas a exploração comercial do ensino, sobre o qual o Future-se, estrategicamente, não diz palavra.

Não custa lembrar que o Brasil tem os maiores e mais internacionalizados grupos empresariais do mundo atuando no ensino superior privado e que a vice-presidente a Associação Nacional de Universidades Particulares (ANUP) é Elisabeth Guedes, irmã de Paulo Guedes, superministro da Economia. O atual ministro da Educação. Abraham Waintroub atuou, durante a campanha de Bolsonaro a presidente, na equipe de Paulo Guedes, participando da formulação do programa econômico do atual governo. Dizem que foi Guedes quem o colocou no MEC.

Ha alguns dias, circulou uma informação de que o slogan Future-se era originalmente de uma universidade privada que vendia MBA à distância em parceria com universidades privadas dos Estados Unidos. Será esse o Futuro que o governo quer para nós?

Se ficarmos só nos objetivos gerais, pensamos – erroneamente – que se trata de um projeto voltado exclusivamente às atividades meio das universidades e institutos, ou seja, uma transformação da administração e financiamento das universidades.

No entanto, ao apresentar os eixos da proposta, fica claro que o objetivo geral está mal construído, porque somente o Eixo 1 (“Governança, gestão e empreendedorismo”) fala efetivamente das “atividades meio”, e ainda assim, não somente delas. Os dois eixos seguintes: Eixo 2 (“Pesquisa e inovação”) e o Eixo 3 (“Internacionalização”) são voltados às chamadas “atividades-fim” dessas instituições: isto é, ensino, pesquisa e extensão. Portanto essas propostas estão longe de ser mera “modernização da gestão”, por mais “revolucionária” que esta seja.

As IFES que aderirem, se comprometem a:

“i. Utilizar a organização social contratada para o suporte à execução de atividades relacionadas aos eixos de gestão, governança e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização;

ii. Adotar as diretrizes de governança que serão futuramente definidas pelo Ministério da Educação;

iii. Adotar programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria externa”

Sobre isso, três perguntas:

1. As Organizações Sociais poderão trabalhar diretamente nas atividades-fim?

2. As IFES que aderirem assinam um cheque em branco, uma as diretrizes de governança ainda não foram definidas.?

3. No que esse programa de “de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria externa” avança em relação ao que já temos hoje?

Por fim, é importante frisar que o programa, apesar de ter validade indeterminada, prevê adesão voluntária das universidades por tempo determinado, no prazo da vigência dos contratos individuais firmados com as Organizações Sociais que – ponto importante – serão, num primeiro, as já credenciadas no MEC ou em outros ministérios, sem necessidade de chamamente público novo ou espeífico. Quem vai ganhar com isso, em primeiro lugar, portanto, são as OSs atualmente qualificadas.

Cada um desses eixos desdobra-se em propostas mais ou menos concretas que vou analisar em outra nota porque são muito amplas, complexas, confusas e, mais do que isso, de estatuto distinto: algumas propostas já estão em vigor; outras inviáveis no atual marco legal; outras tantas que carecem de estudo que justifiquem a sua necessidade.


sábado, 24 de agosto de 2019

Prepara-se a Greve Mundial pelo Clima




Marcada para 20/9, ela promete reforçar a face contemporânea da luta ambiental: muito jovem, indignada, claramente anticapitalista. Pode ser maior que nunca. Brasil – onde Bolsonaro lança ataque inédito à natureza – participará?


por Redação



A estranha ausência do Brasil nas mobilizações globais em defesa do planeta – contra a mudança climática e as corporações que a promovem – pode ter fim em breve. Está marcada para o próximo 27 de setembro uma nova greve em defesa do ambiente. Será, provavelmente, a maior já realizada. É convocada, em 125 países, por milhares de organizações, redes internacionais, coletivos locais, grupos de cidadãos indignados. Sua preparação coincidirá, em nosso país, com um momento de efervescência entre a juventude. A partir de 13 de agosto, recomeçarão as grandes manifestações em defesa da Educação, da Universidade e da Ciência, ameaçadas pelo governo obscurantista e reacionário. É uma chance de articular as lutas de oposição a Bolsonaro com uma agenda igualmente política – porque capaz tanto de aprofundar a crítica ao capitalismo quanto de expor o atraso patético dos grupos que controlaram ao poder em Brasília.

As greves pelo clima são um fenômeno recente e em rápida expansão. Estão marcadas por duas características: fortíssima presença de adolescentes e jovens – que parecem não se conformar nem com a inação dos governos, nem com o amortecimento dos adultos…  – e politização crescente. Um movimento precursor ocorreu às vésperas da Conferência sobre o Clima em Paris, em novembro de 2015. Em mais de cem países, cerca de 50 mil pessoas foram às ruas, já defendendo bandeiras que articulavam o ambiental com o social. Havia, então, três reivindicações básicas: redução drástica do uso de combustíveis fósseis, desenvolvimento de fontes energéticas alternativas e garantia dos direitos dos refugiados climáticos – em oposição à xenofobia hoje crescente no mundo eurocêntrico.

Mas uma nova fase, muito mais densa, teve início no final do ano passado. Foi desencadeada por uma garota sueca – Greta Thumberg – então com 15 anos. Em agosto de 2018, Greta, cuja história e formação mental singulares podem ser conhecidas na Wikipedia, iniciou um protesto pessoal. Durante as três semanas que precederam as eleições legislativas de seu país, ela dirigiu-se todos os dias ao Parlamento, no horário de aulas, portando um cartaz onde se lia “greve estudantil pelo clima”. Passado o pleito, anunciou que manteria a ação todas as sextas-feiras, e denominou-as Fridays for Future.

Num mundo interconectado e intranquilo, também as ações de crítica ao sistema podem espalhar-se rapidamente. Já em novembro, ações semelhantes (porém coletivas) espalharam-se por diversos países europeus – mas também pela Índia, África do Sul, Ruanda e Colômbia. Em dois momentos, neste ano – 15/3 e 24/5 – houve greves estudantis globais. Nelas, os estudantes não se limitam a deixar as aulas: ocupam as ruas, em atos sempre indignados, porém criativos e esperançosos. Em países como a Inglaterra, o movimento adquiriu características próprias e autonomia: surgiu daí a Extinction Rebellion, cuja multiplicidade de ações parou Londres, em abril.

O foco central de tais greves não é o sistema social, e sim o risco de destruição do planeta. Mas o caráter anticapitalista que o movimento rapidamente assume é claro. Basta ver os cartazes das manifestações, que claramente se voltam contra as corporações transnacionais e os governos lenientes a elas. Ou, então, ouvir as falas de Greta. “Nosso futuro foi entregue para que um pequeno número de pessoas possa acumular quantidades inimagináveis de dinheiro (…) Agora, as pessoas estão aos poucos se tornando mais conscientes, mas as emissões [de CO²] continuam a crescer. Não podemos nos contentar com pouco. No essencial, nada mudou (…). Não se trata apenas de gente jovem cansada de políticos. É uma crise existencial. É algo que afetará o futuro de nossa civilização”, disse ela em Londres, durante os protestos da Extinction Rebellion.

Assim como os protestos anteriores, a próxima, em setembro, não tem uma coordenação central. As atividades – que começam no dia 20, mas se estenderão por uma semana – podem ser registradas num site, traduzido em diversos idiomas, inclusive o português. Lá é possível atualizar-se, recolher material de divulgação, obter um interessante guia prático para organização de eventos e registrar atividades programadas. Elas podem ser múltiplas: de grandes manifestações de rua a debates, aulas públicas, pressão sobre os políticos, pequenas intervenções de conscientização local.

O mais interessante, é claro, é organizar de forma coletiva. O texto abaixo é um exemplo disso. Na Espanha, um leque vasto de organizações, articuladas por quatro redes (Juventud por el Clima, Fridays for future Espanha, 2020 Rebelión por el Clima, Alianza por el clima e Emergencia climática ya) juntou-se, organizou uma agenda comum, lançou um manifesto. Está publicado a seguir. Basta sua leitura para compreender a radicalidade possível da luta (A.M.)

27 de Setembro: Greve Mundial pelo Clima

Os relatórios mais recentes sobre a situação da biodiversidade, do IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos), e sobre o aquecimento global de 1,5ºC, do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), alertam sobre os rumos que levam ao desgaste de um grande número de ecossistemas — terrestres e marinhos — e à extinção de um milhão de espécies que se encontram gravemente ameaçadas pela atividade humana. Também, estamos quase chegando ao ponto de não retorno das mudanças climáticas.

Uma crise climática que é consequência de um modelo de produção e consumo que já demonstrou que não é o mais adequado para satisfazer as necessidades de muitas pessoas, que põe em risco a nossa sobrevivência e afeta de maneira injusta, principalmente, as populações mais pobres e vulneráveis do mundo. Não responder com rapidez e força suficientes à emergência ecológica e civilizatória, suporia a morte de milhões de pessoas, além da extinção irreversível de espécies imprescindíveis para a vida na Terra, considerando as complexas inter-relações do ecossistema.

A solidez dos dados demonstra como as regiões mediterrâneas são as mais vulneráveis às mudanças climáticas, portanto, não limitar o aquecimento global em 1,5ºC sairá bem caro para as gerações presentes e futuras. A responsabilidade das instituições europeias e do governo espanhol, bem como dos governos das diversas comunidades autônomas e das prefeituras alinhadas com todos os grupos políticos, é de estar à altura das necessidades que o momento exige.

As organizações signatárias pedem que, na nova etapa política, seja declarada de forma imediata a emergência climática e que sejam tomadas as medidas efetivas necessárias para reduzir rapidamente até o ponto zero as emissões dos gases de efeito estufa, alinhados com os critérios estabelecidos pela ciência e pela justiça climática. Evitar que a temperatura aumente mais de 1,5ºC deve ser a prioridade da humanidade. É preciso reduzir urgentemente as emissões de CO²eq, reajustando o rastro ecológico à biocapacidade do planeta.

Para conquistar esses objetivos, eis os requerimentos necessários:

Honestidade: assumir a urgência da situação atual, reconhecendo o diagnóstico, as indicações e os caminhos de redução indicados no último relatório sobre os 1,5ºC, com o aval da comunidade científica. Reconhecer o hiato de carbono existente entre os compromissos espanhóis e as indicações científicas. Os meios de comunicação possuem um papel fundamental para transmitir essa realidade.

Compromisso: declarar a emergência climática, assumindo compromissos políticos reais e efetivos, muito mais ambiciosos do que os atuais, com a conjunta designação de recursos para encarar a crise. Garantir as reduções dos gases de efeito estufa, respeitando o relatório do IPCC, o qual estabelece uma faixa de redução das emissões globais entre 40% e 60% para 2030, em comparação com 2010 — para que o aumento da temperatura global não ultrapasse os 1,5ºC. Além disso, é fundamental deter a perda da biodiversidade para evitar um colapso de todos os sistemas naturais, inclusive o do humano.

Ação: abandonar os combustíveis fósseis, apostar numa energia 100% renovável e reduzir a zero as emissões líquidas de carbono, com urgência e prioridade, o antes possível. Exigimos que os governos analisem formas de cumprir com esse objetivo e que proponham os planos de atuação necessários: impedindo novas infraestruturas fósseis (centrais, escavações, grandes portos, etc); reduzindo os níveis de consumo de materiais, a energia e as necessidades de mobilidade; mudando o modelo energético sem soluções falsas, como a energia nuclear; reorganizando os sistemas de produção; educando e adotando outras medidas eficazes. Tudo isso deve ficar registrado na Lei de Mudança Climática e Transição e no Plano Nacional Integrado de Clima e Energia.

Solidariedade: o desgaste ambiental das condições de vida é sentido de formas desiguais, dependendo da classe social, do sexo, da origem e das capacidades. Defendemos que a transição enfrente essas hierarquias e defenda e reconheça de forma diferenciada a população mais vulnerável.

A degradação do planeta e a crescente desigualdade têm uma origem em comum e se alimentam entre elas. Assim, por exemplo, muitas grandes empresas e bancos obtêm enormes benefícios por meio da especulação imobiliária, dos despejos, da gentrificação e da turistificação que expulsa famílias de suas casas e vizinhos de seus bairros. Embora existam cada vez mais investimentos em tecnologia para realizar a transição energética, continuam existindo muitos fundos que sustentam e financiam as grandes empresas do oligopólio energético que exploram o planeta — cujo resultado acaba num aumento da pobreza, inclusive da energética.

Não podemos deixar que a situação dos coletivos mais desfavorecidos continue a piorar, portanto, a transição deve se dar com justiça social. No caso dos territórios e trabalhadores e trabalhadoras afetados, é preciso adotar medidas para garantir empregos alternativos em setores sustentáveis, enfrentar a crise energética, reduzir a jornada de trabalho, melhorar a distribuição dos empregos e do desenvolvimento de outros mecanismos, em torno de uma Transição Justa que consiga que ninguém fique para trás.

Democracia: a justiça e a democracia devem ser os pilares fundamentais de todas as medidas aplicadas, motivo pelo qual devem ser criados mecanismos adequados de participação e controle, do ponto de vista da cidadania, para abordar as questões sociais mais complexas e ser parte ativa da solução, mediante a democratização dos sistemas energéticos, alimentares, de transporte, etc. Nestes processos deve-se garantir a igualdade de gênero na tomada de decisões.

Dar um giro de 180º nas políticas comerciais internacionais, acabando com os tratados de comércio e investimento que aprofundam o problema do aumento dos gases de efeito estufa, por incrementarem o transporte marítimo interoceânico, bem como o da aviação civil, que dificulta a luta contra as mudanças climáticas através das cláusulas de proteção aos investimentos (ISDS). As medidas do mercado não devem interferir no planejamento adequado da transição ecológica.

Os países pobres são que têm a menor responsabilidade sobre a degradação do planeta. Porém, são os mais vulneráveis às consequências da violação dos limites. Os países mais ricos são os que mais acumulam dívida ambiental, por isso, e atendendo aos critérios da justiça climática, devem ser países como os europeus os que devem adquirir os maiores compromissos. É imperioso reverter o fato de que 20% da população mundial consuma o 80% dos recursos naturais.

Em defesa do futuro, de um planeta vivo e de um mundo justo, as pessoas e coletivos signatários aderimos à convocatória internacional de Greve Mundial pelo Clima, uma mobilização que será greve estudantil, do consumo, de mobilizações nos centros de trabalho e nas ruas, com fechamentos em apoio à luta climática… e convidamos todos os cidadãos, agentes sociais, ambientais e sindicais para apoiarem esta chamada e para se somarem às diversas mobilizações que acontecerão no dia 27 de setembro. (Tradução: Simone Paz)


sábado, 10 de agosto de 2019

Como exterminar o futuro do ensino público



Reitores e docentes denunciam cunho privatista do “Future-se”, que irá desresponsabilizar governo em manter instituições. População também perde: interesse empresarial afetará pesquisa voltada à sociedade e prejudicará áreas estratégicas




Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz


Professores, movimento estudantil, associações, sindicatos docentes e movimentos sociais do campo educacional reagiram com apreensão ao lançamento do Future-se, apresentado pelo Ministério da Educação (MEC) em um evento no auditório do Instituto de Pesquisa Anísio Teixeira (Inep) em Brasília no dia 17 de julho. Segundo a Pasta, o programa, que fica em consulta pública até o dia 15 de agosto, tem como objetivo o “fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão” das universidades e institutos federais, por meio de parcerias com entidades de caráter privado, as Organizações Sociais (OSs), e do fomento à captação de recursos próprios, bem como o estímulo ao chamado empreendedorismo no meio acadêmico, como aponta seu próprio nome oficial: Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras.

Lançado poucos meses após manifestações de massa tomarem as ruas de várias capitais do país contra o contingenciamento anunciado pelo MEC nos recursos de custeio das instituições federais de ensino superior da ordem de R$ 5,8 bilhões – e que, segundo vários reitores, ameaça inviabilizar seu funcionamento até o final de 2019 – o programa foi recebido com desconfiança pelas associações que representam os reitores das instituições federais.

Durante coletiva de imprensa realizada após a apresentação do Future-se, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) cobrou do MEC a suspensão do contingenciamento nos recursos discricionários das instituições, que gira em torno de 30% em média, mas que segundo a associação chega a 54% em alguns casos, como na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A entidade ressaltou ainda que não foi ouvida pelo MEC antes da formulação do programa, e que pretende formar grupos de trabalho para avaliar o Future-se e formular propostas a partir do que foi apresentado pelo ministério.

Já o Conif, o Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, também reiterou que não foi ouvido pelo MEC durante a elaboração do programa, e convocou uma reunião extraordinária nos dias 31 de julho e 1º de agosto para discutir e elaborar um posicionamento institucional sobre o Future-se. Segundo nota emitida em maio pelo conselho, o contingenciamento anunciado pelo MEC no final de abril compromete entre 37% e 42% dos recursos de custeio das instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, ou cerca de R$ 900 bilhões.

Gestão por OSs e fundo de investimentos

O Future-se vai funcionar por meio de contratos de gestão entre a União, universidades e institutos federais e organizações sociais. Segundo a minuta do projeto de lei de criação do programa, as OSs terão como atribuição, além de apoiar a execução de atividades vinculadas aos três eixos do programa – que são: ‘governança, gestão e empreendedorismo’; ‘pesquisa e inovação’; e ‘internacionalização’ – a de apoiar a execução de planos de ensino, pesquisa e extensão, gerir recursos relativos a investimentos em empreendedorismo, pesquisa, desenvolvimento e inovação e também auxiliar na gestão patrimonial dos imóveis das instituições participantes do programa, cuja adesão, segundo o MEC, é facultativa.

Durante a apresentação do programa, o secretário de Educação Superior do Ministério, Arnaldo Lima, evocou em vários momentos como um exemplo a EBSERH, sigla para Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, criada em 2011 para gerir os hospitais universitários. Segundo Lima, hoje as universidades direcionam 55% de suas despesas discricionárias para cinco áreas: vigilância, gestão de mobiliário, limpeza, água e contratos de terceirização. “A gente quer isentar os reitores dessa tarefa, assim como a EBSERH fez genialmente, para que os reitores, estudantes e professores pensem em pesquisa, pensem em dar aula”, ressaltou o secretário.

No caso do Future-se, as organizações sociais contratadas terão também entre suas atribuições gerir os recursos de um Fundo de Autonomia Financeira das Instituições Federais de Educação Superior, vinculado ao Ministério da Educação, e que de acordo com a minuta do projeto de lei do programa será composto pelas receitas decorrentes do aluguel e da concessão de uso de terrenos e imóveis ociosos de propriedade das instituições, da “prestação de serviços” como estudos, pesquisas, consultorias e projetos, de matrículas e mensalidades de pós-graduação lato sensu, de doações feitas às instituições e até mesmo da comercialização de bens e produtos com a marca das instituições e da cessão de seus campi ou edifícios para serem “patrocinados” por empresas privadas, como acontece hoje com os estádios de futebol. Segundo o MEC, o valor estimado de aporte para o fundo é de R$ 102 bilhões, dos quais R$ 50 bi virão na forma da cessão, pelo Ministério da Fazenda ao MEC, de imóveis de propriedade da União que hoje estão ociosos.

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, afirmou durante o lançamento do programa que o modelo do Future-se mira no que acontece em universidades do Canadá e dos Estados Unidos, onde esses tipos de fundos são comuns. Weintraub também afirmou que o programa visa facilitar e ampliar uma prática que hoje já existe para captação de recursos pelas universidade, que são as parcerias público-privadas para o desenvolvimento de pesquisas e projetos específicos. “O Future-se coloca o Brasil no mesmo patamar de países desenvolvidos. Nós buscamos as melhores práticas e adaptamos para a realidade brasileira. A maioria das medidas já acontece aqui. Nós vamos potencializá-las”, disse o ministro.

Segundo o MEC, as instituições atualmente já geram cerca de R$ 1 bilhão em receitas próprias, mas o dinheiro acaba não beneficiando-as diretamente porque o que é que arrecadado vai para a Conta Única do Tesouro. O Ministério defende que o Future-se vai desburocratizar o recebimento desse dinheiro.

Reação

Porém, mesmo os gestores que defendem a flexibilização do uso de recursos extraorçamentários pelas universidades federais veem problemas no que está sendo proposto pelo Future-se. O reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rui Vicente Oppermann, em matéria publicada no site da instituição no dia 19, alertou que delegar a administração do patrimônio e da gestão acadêmica das universidades para organizações sociais seria abrir mão da autonomia acadêmica e de gestão das instituições garantidas pela Constituição Federal de 1988.

Já Flávio Nunes, reitor do Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul), que representou o Conif no lançamento em Brasília, divulgou uma nota no dia 18 afirmando ser contrário ao programa. De acordo com ele, o Future-se fere a autonomia institucional pedagógica e administrativa das instituições. Em entrevista ao Portal EPSJV, Flávio se disse preocupado especialmente com dois trechos da minuta do projeto de lei do Future-se: um que determina que as instituições que aderirem ao programa deverão se comprometer a “adotar diretrizes de governança” estabelecidas pelo MEC; e outro que estabelece, como competência das organizações sociais contratadas, o apoio à execução de planos de ensino, extensão e pesquisa. “A gente percebe que as OSs poderão ir muito além do que está sendo colocado nesse momento inicial. Na minha interpretação, e eu acho que grande número de reitores também tem tido interpretação parecida, é que podemos ter sim ingerência, com a possibilidade da criação de organizações sociais para cuidar do ensino, da extensão, da pesquisa, abrindo essa brecha para a privatização”, afirma Flávio.

Eblin Farage, secretária-geral do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), também alerta para o que chama de “cunho privatista” da proposta. “O governo está se desresponsabilizando de garantir a universidade pública. Ele joga a responsabilidade pelo financiamento da pesquisa sobre os próprios professores, que terão que ir atrás de financiamento privado para produzir conhecimento direcionado para interesses privados, e não para o avanço da ciência e da tecnologia para a melhoria das condições de vida da população como um todo”, afirma.

Para ela, ainda que o governo afirme que a adesão ao programa é voluntária, as universidades e institutos federais não terão alternativa senão aderir ao Future-se, uma vez que a perspectiva é de redução cada vez maior dos recursos públicos para a educação superior por conta do teto de gastos.  “Já estávamos funcionando de maneira muito precária. Aí o governo, ao mesmo tempo em que contingencia mais de 30% de um orçamento de custeio das universidades, que já vinha sofrendo cortes desde 2015, lança esse programa para supostamente aumentar a captação de recursos. Ou seja, não é uma alternativa, é uma imposição. Ou você vai buscar parceria ou a universidade não vai sobreviver”, critica.

Ex-reitor da UFRJ e pesquisador da área de educação, Roberto Leher argumenta que a proposta de ampliar as parcerias entre laboratórios de universidades e empresas como forma de garantir recursos para o custeio das instituições não faz sentido. “Atualmente, o marco legal de ciência e tecnologia já não apresenta nenhum obstáculo intransponível para que grupos de pesquisa estabeleçam parcerias, acordos e outras formas de colaboração com o setor privado. Mas o financiamento à pesquisa por meio de contrato com empresas não resulta em recursos para o que nós chamamos de custeio da universidade; os recursos são dirigidos aos laboratórios onde as pesquisas serão realizadas. Ao contrário, normalmente isso envolve um gasto adicional do custeio geral da universidade”, afirma Leher. E cita acordos para o desenvolvimento tecnológico firmados entre laboratórios da UFRJ e a Petrobras como exemplo, que segundo ele acarretam contas de energia elétrica de até R$ 1,2 milhão por ano ao laboratório.

“Isso é o orçamento de custeio da universidade quem paga. Então a pesquisa, a interação com o setor produtivo, via de regra, aumenta o gasto de custeio, e não reduz. É claro que muitas vezes esses contratos permitem desenvolvimentos tecnológicos importantes para a universidade e o país, mas em nenhuma hipótese nós podemos enxergar nesses contratos do setor produtivo a solução para o custeio. Ao contrário: mais contrato de pesquisa, mais gasto de custeio”, ressalta o ex-reitor da UFRJ.

Ele lembra que hoje os recursos extraorçamentários captados pelas universidades federais acabam na Conta Única do Tesouro, sendo destinados, por exemplo, para o pagamento de juros e do serviço da dívida pública, que em 2019 consumiu em torno de 44% do orçamento da União, recursos sobre os quais não incidem os efeitos da Emenda Constitucional 95, do teto de gastos. “Isso obviamente é um desestímulo para que a universidade busque captar. Se houvesse real disposição de melhorar a gestão financeira das universidades poderia se falar em ampliar a liberdade que elas têm de utilizar seus recursos próprios. Há muitas medidas práticas que poderiam ser tomadas para melhorar a gestão financeira, mas não é isso que está sendo falado”, avalia.

Andrea Caldas, pesquisadora de Políticas Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do grupo de pesquisa Relações Público-Privadas na Educação da UFRGS, expressa preocupação com outra dimensão do Future-se bastante enfatizada durante a apresentação do MEC no dia 17, que é a de condicionar o financiamento de pesquisas aos seus potenciais resultados econômicos. “Essa ideia de que o mercado vai definir o quê é prioritário na universidade implica que de modo geral você vai ter uma priorização do que tem retorno imediato. Então aquelas pesquisas de base, que são importantes inclusive para as pesquisas mais instrumentais, correm o risco de não ter financiamento. E no mundo todo, de modo geral, as pesquisas de base são financiadas pelo Estado, porque elas precisam de um tempo maior de maturação, de desenvolvimento”, diz Andrea.

Ela afirma ser “uma ilusão” apostar que um programa como esse vai significar mais recursos vindos da iniciativa privada para o desenvolvimento de pesquisas dentro da universidade no Brasil, onde historicamente são os recursos públicos que financiam a maior parte das pesquisas. “Esse programa tem muito mais a ver com a interferência na gestão do que com o alardeado objetivo de trazer novos recursos para a universidade”, aponta Andrea, que teme, no entanto, que a proposta seja “sedutora” para alguns segmentos da universidade. “Eu acho que há um grande risco de que algumas pessoas acreditem que vão poder trazer mais recursos para suas pesquisas. Inclusive o governo fala explicitamente que professores, mesmo com dedicação exclusiva, vão poder vender serviços, consultorias, explorar comercialmente eventuais patentes. Estão tentando investir nessa sedução”, avisa.

Financeirização da educação

Allan Kenji, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que estuda a atuação dos grupos empresariais na educação e sua vinculação com o capital financeiro, também vê perigos no que ele chama de “submissão do ensino superior e da pesquisa aos interesses privados”. Kenji cita o exemplo da tecnologia de internet 5G, que hoje se encontra no centro de uma guerra comercial entre China e Estados Unidos. “A automatização de processos industriais, engenharia de dados de grande volume, de big data, a telemedicina, robótica, uma série de outras formas de automação dependem da velocidade e da qualidade de sinal que o 5G vai significar. Para chegar à tecnologia do 5G foi necessário um conjunto de pesquisas desenvolvidas na China em áreas como transmissão de ondas e comportamento de partículas que não tinham resultado econômico imediato”, afirma. E complementa: “Então além das pesquisas na área de humanas e sociais, em que é difícil de mensurar o retorno econômico, uma proposta como a do Future-se ameaça também o desenvolvimento científico em áreas estratégicas, como o desenvolvimento de satélites, telecomunicações, medicina, entre outras, que dependem de muita pesquisa de base”.

Ele avalia que a aposta nos fundos de investimento revela que, para o governo, o retorno econômico das pesquisas é central. Mas para Kenji a proposta dos fundos como forma de financiamento das universidades é perigosa também por outros motivos.  Isso porque há diferenças importantes entre um fundo patrimonial – que foi o termo utilizado pelo MEC durante a apresentação do Future-se e é o modelo usado pelas universidades dos Estados Unidos citadas como exemplos, como Harvard –  e um fundo de investimento, que é o que está no texto da minuta de projeto de lei do programa.

Segundo ele, o fundo patrimonial atua sobre bens imobiliários e é uma forma de tornar líquido um patrimônio. Um exemplo de como isso se daria é a concessão de um terreno de propriedade da universidade ou da União para uso, por determinado tempo, por uma empresa privada, que em troca paga uma determinada quantia ao fundo. “O fundo continua sendo o proprietário desse terreno, recebendo-o de volta no futuro, mas no presente ele tem dinheiro nas mãos para fazer aplicações. Ele pega uma parte desse recurso e mantém no fundo para aplicação e a outra parte ele reverte em financiamento das instituições”. É o que acontece em Harvard, por exemplo. Mas de acordo com Allan, nem a minuta do PL e nem a apresentação do Future-se esclareceram como isso será feito no Brasil. “O secretário [Arnaldo Lima] em sua apresentação não disse que uma parte dos recursos do fundo iriam para as instituições de ensino superior; ele disse que eles seriam destinados para aplicações e o que rendesse de juros e dividendos destas aplicações é que iriam para as IES”, pontua.

Já o fundo de investimento, segundo o pesquisador, é mais amplo do que o patrimonial, sem se limitar a um patrimônio físico. “Ele pode trabalhar, por exemplo, com patrimônio monetário, cotas de capitais, e aplicar no mercado financeiro, como acontece hoje de uma maneira limitada com os fundos de pensão, que pegam o dinheiro de aposentadorias e investem no mercado financeiro. Então ele é mais amplo que o fundo patrimonial”, explica Kenji.

O problema, diz ele, é que por conta disso os fundos de investimento têm muito mais chance de apresentarem prejuízo do que um fundo patrimonial. Foi o que aconteceu com o fundo de pensão Postalis, vinculado aos servidores dos Correios. “O que este fundo faz hoje é recapitalizar em cima dos trabalhadores dos Correios, que foram reonerados nas folhas de pagamento para recompô-lo. No caso do Future-se, são as organizações sociais que vão fazer a gestão dos riscos desses fundos de investimento, e no caso de um prejuízo, elas podem, por exemplo, decidir liquidar patrimônio físico da universidade para se recapitalizar”, alerta, lembrando que parte do patrimônio de várias universidades federais como a UFRJ e a UFSC , por exemplo, é muito valorizada pelo mercado imobiliário.

Ele argumenta que a experiência das universidades americanas deveria ser tomada como advertência, e não como exemplo. “Por lá, o que acontece tradicionalmente é, uma vez composto o fundo patrimonial, a universidade perde completamente a autonomia para gerir ensino e a pesquisa. Como tem metas e o financiamento passa a ser condicionado pela avaliação do cumprimento dessas metas de gestão, cada vez mais o grupo gestor do fundo é quem controla a disposição dos recursos. A reitoria vai perdendo importância na tomada de decisões estratégicas”, alerta, complementando que isso aconteceu inclusive com as universidades de elite americanas, como Harvard. “Chegou ao ponto dela, por exemplo, ceder seu nome para assegurar a qualidade de cursos oferecidos por terceiros, como uma marca, que inclusive não pertence mais à universidade, e é licenciada em nome do fundo patrimonial”, revela.


sábado, 3 de agosto de 2019

O Encarceramento Feminino no Brasil





Implicações sobre punições às mulheres no crime


Por Fernanda Furlani Isaac e Tales de Paula Roberto de Campos


Ao nos depararmos com dados como o de que as prisões brasileiras apresentam a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 42 mil mulheres presas (INFOPEN, 2018), torna-se evidente que o encarceramento feminino é um assunto de grande relevância quando analisamos o Brasil e, portanto, devem ser feitos mais estudos a seu respeito, de modo a superarmos análises superficiais e incompletas do fenômeno.

No crime, as mulheres encontram-se na pobreza – fator que as impulsiona para o envolvimento com atividades consideradas ilícitas e, consequentemente, ao encarceramento. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano 1995, “a pobreza tem o rosto de uma mulher – de 1.3 bilhão de pessoas na pobreza, 70% são mulheres.” Contudo, este não é um fator que se reduz ao Brasil. Em um estudo realizado em 176 países, chegou-se à conclusão de que mulheres com formação escolar até o secundário se veem forçadas a recorrer ao tráfico de drogas para a subsistência. O desemprego entre as mulheres também é um fator considerável para o engajamento em atividades ilegais. Apesar do avanço no nível educacional feminino, o que tende a aumentar suas chances de inclusão no mercado de trabalho, elas também possuem, concomitantemente, maiores oportunidades no submundo do crime, o que explicaria o aumento da criminalidade feminina (CLOUTIER, 2016).

Quando analisamos o perfil das mulheres encarceradas, percebe-se um padrão: a grande maioria é negra ou parda, já fora alvo de algum tipo de violência (física, sexual, psicológica), com baixo nível de escolaridade, fruto de uma família desestruturada e presa por tráfico de drogas. A partir desse conhecimento, não se pode ignorar tal regularidade, uma vez que tratar similaridades como coincidências é uma forma extremamente simplista e incompleta de se lidar com os fenômenos sociais.

De fato, o Brasil é um país desigual. Da mesma maneira, o sistema carcerário é desproporcional em relação ao seu atendimento a homens e mulheres. Deve-se levar em consideração que a universalização desse sistema, inicialmente criado por homens e para homens, é algo perigoso e que só tem a prejudicar as minorias, com destaque ao grupo feminino. As mulheres apresentam demandas e necessidades diferenciadas àquelas manifestadas pelo grupo masculino e, por isso, o reconhecimento da importância da análise do encarceramento feminino enquanto uma categoria única e particular é um passo fundamental para a sua compreensão.

A questão feminina possui uma especificidade fundamental: as mulheres são, geralmente, as responsáveis por seus filhos, seja aqueles que geraram durante o período pré-cárcere, seja aqueles que nasceram entre as grades. No primeiro caso, o encarceramento da mãe gera uma devastadora desestruturação familiar, uma vez que esses filhos, que não estão mais sobre a sua tutela, têm de transitar entre casas de familiares e abrigos de adoção. Já, no segundo caso, a gravidez durante o cárcere se mostra traumática. As mulheres não dispõem de auxílio adequado durante o período da gestação, assim como não usufruem de uma estrutura apropriada após o parto, pelo contrário, seus filhos nascem presos, como elas. A partir disso, percebe-se, portanto, que o sistema prisional brasileiro é estruturado com base em um entendimento machista e patriarcal, o qual negligencia as necessidades específicas da mulher encarcerada, aprofundando ainda mais sua exclusão e opressão frente à sociedade.

Assim como o tráfico de drogas é a principal causa para o encarceramento no Brasil, trata-se do principal tipo de infração cometido por mulheres. De acordo com o INFOPEN (2018), “crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico”.

A grande maioria das mulheres, dentre as diversas posições subsidiárias existentes no tráfico, são “mulas de droga”, ou seja, traficam uma pequena quantidade de droga para que, estrategicamente, sejam repreendidas e uma maior quantidade de drogas passe despercebida pelas autoridades, posteriormente. Logo, as mulheres constituem uma “massa de manobra” para a realização de transportes e crimes em maior escala. E, conforme apontado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a divisão de gênero não se limita ao mercado formal de trabalho, mas também se mostra presente na organização do tráfico, a qual é marcada pela vulnerabilidade do feminino. Compreende-se, portanto, que a mulher é desamparada em todos os âmbitos, seja no domínio legal, seja no campo da ilegalidade.

No Brasil, em 2006, foi promulgada a Lei 11.343, nomeada “Lei das Drogas”, a qual endurece as penas por tráfico de drogas e, consequentemente, aumenta o encarceramento. Antes dela, 13% dos presos cumpriam sentença por tráfico, enquanto, atualmente, no estado de São Paulo, esse contingente é de 60% nas cadeias femininas (VARELLA, 2017). Por conseguinte, pode-se perceber que o aumento do encarceramento feminino se deu, principalmente, à maior delegação de poder a políticas de repressão às drogas no Brasil e à subalternização da mulher na hierarquia do tráfico.

No entanto, apesar da maior severidade legislativa observada em relação  ao tráfico de drogas, as prisões brasileiras são compostas, em sua maioria, por usuários de drogas ilícitas e pequenos traficantes, justamente porque a Lei das Drogas (2006) não define a quantidade que diferenciaria o usuário do traficante. Logo, aqueles que chefiam o narcotráfico no Brasil normalmente não são detidos, pelo contrário, os presos são, no geral, os conhecidos como “peixes pequenos”, dentre eles, as “mulas de droga”.

A partir do governo Bolsonaro, vê-se um endurecimento ainda maior das políticas de repressão ao uso e tráfico de drogas, com a aprovação do Projeto de Lei 37/2013, o qual foi transformado na lei 13.840 no dia 5 de junho de 2019. A nova Política Nacional sobre Drogas (2019) prevê o tratamento baseado na abstinência – não mais na redução de danos; no apoio a comunidades terapêuticas (geralmente de cunho religioso) e no estímulo à visão de que são as circunstâncias do flagrante que devem determinar se o indivíduo é um usuário ou um traficante. Tal modelo acaba por privilegiar a internação compulsória e distanciar o cidadão do sistema de saúde, assim como se mostra ineficaz no que tange à reabilitação dos usuários de drogas.

Em contraposição à atuação do governo brasileiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) permitiu o uso da maconha para produção de medicamentos, o que é considerado, por parte do governo federal, um passo para a regulamentação da substância. Desde 2015, é permitida a importação de produtos farmacêuticos à base de canabidiol, assim como aproximadamente 6.7 mil pacientes  têm tido acesso a medicamentos derivados de cannabis no Brasil, com permissão governamental. Entretanto, a medida entra em atrito com a gestão Bolsonaro, a qual é totalmente contrária a essa política.

Percebe-se, portanto, que, nos tempos atuais, o espectro político brasileiro é marcado por discussões e problematizações frente às drogas consideradas ilícitas, a fim de se determinar qual seria a melhor política a ser implementada. Contudo, não se pode falar da política de guerra às drogas, reafirmada pelo governo Bolsonaro em 2019, sem se pensar na relevância que esta exerce no aumento do encarceramento brasileiro, com destaque ao cárcere feminino. Tratam-se de temas interseccionados.

O encarceramento feminino é cíclico e, este ciclo, contempla a exclusão social, a pobreza e a opressão perante uma sociedade machista e excludente. A partir disso, a mulher, subalternizada socialmente, busca, no crime e no tráfico de drogas, uma solução para seus problemas financeiros. Contudo, por ser, muitas vezes, o “braço vulnerável” do crime organizado, acaba sendo presa pouco depois de cometer o crime, enquanto os traficantes de maior porte saem impunes. Uma vez no sistema prisional, o Estado não se preocupa em adaptar tal sistema às necessidades femininas, pelo contrário, as mulheres recebem o mesmo tratamento dado aos homens, de modo que a adequação segundo o gênero é desconsiderada.

Referências:

CANCIAN, Natália. Anvisa quer dar aval para cultivo de maconha para remédios e pesquisa. Folha de São Paulo. 07 jun., 2019.

CASTRO, Helena Salim de. Mulher: o elo mais fraco da “guerra às drogas”. Terra em Transe. 24 abril, 2017. Disponível em: https://outraspalavras.net/terraemtranse/2017/04/24/o-elo-mais-fraco-da-guerra-as-drogas/. Acesso em: 29/05/2019.

CLOUTIER, Gretchen. Latin America’s Female Prisoner Problem: How the War on Drugs, Feminization of Poverty, and Female Liberation Contribute to Mass Incarceration of Women. Clocks and Clouds. Vol. 7, n° 1, 2016. Disponível em: http://www.inquiriesjournal.com/articles/1563/2/latin-americas-female-prisoner-problem-how-the-war-on-drugs-feminization-of-poverty-and-female-liberation-contribute-to-mass-incarceration-of-women. Acesso em: 20/05/2019.

DOLCE, Julia. SILANO, Ana Karoline. FONSECA, Bruno. Duplamente punidas. Agência Pública. 25 abril, 2019. Disponível em: https://apublica.org/2019/04/duplamente-punidas/. Acesso em: 19/05/2019.

FÁBIO, Cabette André. 5 pontos para entender o aprisionamento feminino no Brasil. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/16/5-pontos-para-entender-o-aprisionamento-feminino-no-Brasil> (Acesso em 20/05/2019).

INFOPEN Mulheres – 2ª edição / organização Thandara Santos; colaboração Marlene Inês da Rosa… [et al.]. – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Departamento Penitenciário Nacional, 2017.

INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. ITTC Analisa: Infopen Mulheres 2016 e marcadores sociais da diferença. Disponível em: < http://ittc.org.br/infopen-mulheres-2016-e-marcadores-sociais-da-diferenca/ > (Acesso 01/02/2019).

SALINAS, Evelyn. The Mexican Drug War’s Collateral Damages on Women. Encuentro Latinoamericano. Vol. 2, n° 2, November/2015. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/ad9a/76674818bf6708ac00b081e0452d1e650e28.pdf. Acesso em: 19/05/2019.

TELLES, Ana Clara. Mothers, Warriors and Lords: Gender(ed) Cartographies of the US War on Drugs in Latin America. Contexto Internacional. Vol. 41, n°1, jan/apr. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cint/v41n1/0102-8529-cint-201941010015.pdf. Acesso em: 19/05/2019.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. A gender perspective on the impact of drug use, the drug trade, and drug control regimes. UN Women Policy Brief. July, 2014. Disponível em: 
https://www.unodc.org/documents/ungass2016/Contributions/UN/Gender_and_Drugs_-_UN_Women_Policy_Brief.pdf. Acesso em: 20/05/2019.

UNITED NATIONS OFFICE ON DRUGS AND CRIME. Women and Drugs: Drug use, drug supply and their consequences. In: UNITED NATIONS. World Drug Report 2018. Disponível em: 
https://www.unodc.org/wdr2018/prelaunch/WDR18_Booklet_5_WOMEN.pdf. Acesso em: 20/05/2019.

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.


Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...