quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Você sabe o que é o bolivarianismo?




Marsílea Gombata — A palavra da moda no Brasil é usada por muita gente que não faz ideia de seu significado. Entenda o que é bolivarianismo e por que ele nada tem a ver com “ditadura comunista”


Após ser apropriado pelo ex-presidente venezuelano Hugo Chávez, o termo originado do sobrenome do libertador Simón Bolívar aterrissou no debate político brasileiro. São frequentes as acusações de políticos de oposição e da mídia contra o governo federal petista. Lula e Dilma estariam “transformando o Brasil em uma Venezuela”. Mas o que é o tal bolivarianismo de que tanto falam? É um palavrão? O Brasil é uma Venezuela? Bolivarismo é sinônimo de ditadura comunista? Antes de sair por aí repetindo definições equivocadas, leia as respostas abaixo:

O que é bolivarianismo?

O termo provém do nome do general venezuelano do século 19 Simón Bolívar, que liderou os movimentos de independência da Venezuela, da Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia. Convencionou-se, no entanto, chamar de bolivarianos os governos de esquerda na América Latina que questionam o neoliberalismo e o Consenso de Washington (doutrina macroeconômica ditada por economistas do FMI e do Banco Mundial).

Bolivarianismo e "ditadura comunista" são a mesma coisa?

Não. Mesmo considerando a interpretação que Chávez deu ao termo, o que convencionou-se chamar bolivarianismo está muito longe de ser uma ditadura comunista. As realidades de países que se dizem bolivarianos, como Venezuela, Bolívia e Equador, são bem diferentes da Rússia sob o comando de Stalin ou mesmo da Romênia sob o regime de Nicolau Ceausescu. Neles, os meios de produção estavam nas mãos do Estado, não havia liberdade política ou pluralidade partidária e era inaceitável pensar diferentemente da ideologia dominante do governo. Aqueles que o faziam eram punidos ou exilados, como os que eram enviados para o gulag soviético, campo de trabalho forçado símbolo da repressão ditatorial da Rússia. Na Venezuela, por exemplo, nada disso acontece. A oposição tem figuras conhecidas como Henrique Capriles, Leopoldo López e Maria Corina Machado. Cenário semelhante ocorre na Bolívia, no Equador e também no Brasil, onde há total liberdade de expressão, de imprensa e de oposição ao governo.

Foi Chávez quem inventou o bolivarianismo?

Não. O que o então presidente venezuelano Hugo Chávez fez foi declarar seu país uma “república bolivariana”. A mesma retórica foi utilizada pelos presidentes Rafael Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia). A associação entre bolivarianismo e socialismo, no entanto, é questionável segundo a própria biógrafa de Bolívar, a jornalista peruana Marie Arana, editora literária do jornal americano The Washington Post. De acordo com ela, esse “bolivarianismo” instituído por Chávez na Venezuela foi inspirado nos ideais de Bolívar, tais como o combate a injustiças e a defesa do esclarecimento popular e da liberdade. Mas, segundo a biógrafa, a apropriação de seu nome por Chávez e outros mandatários latinos é inapropriada e errada historicamente: “Ele não era socialista de forma alguma. Em certos momentos, foi um ditador de direita”.

O que se tornou o bolivarianismo na Venezuela?

Quando assumiu a Presidência da República em 1999, Chávez declarou-se seguidor das ideias de Bolívar. Em seu governo uma assembleia alterou a Constituição da Venezuela de 1961 para a chamada Constituição Bolivariana de 1999. O nome do país também mudou: era Estado Venezuelano e tornou-se República Bolivariana da Venezuela. Foram criadas ainda instituições de ensino com o adjetivo, como as escolas bolivarianas e a Universidade Bolivariana da Venezuela.

Mas esse regime que Chávez chamava de bolivarianismo era comunista?

Não, apesar de o ex-presidente venezuelano ter usado o termo “Revolução Bolivariana” para referir-se ao seu governo. A ideia era promover mudanças políticas, econômicas e sociais como a universalização à educação e à saúde, além de medidas de caráter econômico, como a nacionalização de indústrias ou serviços. Chávez falava em “socialismo do século XXI”, mas o governo venezuelano continua permitindo a entrada de capital estrangeiro no País, assim como a parceria com empresas privadas nacionais e estrangeiras. Empreiteiras brasileiras, chinesas e bielo-russas, por exemplo, constroem moradias para o maior programa habitacional do país, o Gran Misión Vivienda Venezuela, inspirado no brasileiro Minha Casa Minha Vida.

O Brasil “virou uma Venezuela”?

Esta afirmação não faz sentido. O Brasil é parceiro econômico e estratégico da Venezuela, mas as diretrizes do governo Dilma e do governo de Nicolás Maduro são bastante distintas, tanto na retórica quanto na prática.

Os conselhos populares são bolivarianos?

Não, e aqui o engano vai além do uso equivocado do adjetivo. Parte da Política Nacional de Participação Social, os conselhos populares seriam a base de um complexo sistema de participação social, com a finalidade de aprofundar o debate sobre políticas públicas com representantes da sociedade civil. Ao contrário do alegado por opositores, os conselhos de participação popular não são uma afronta à democracia representativa. Conforme observou o ex-ministro e fundador do PSDB Luiz Carlos Bresser-Pereira, os conselhos estabeleceriam “um mecanismo mais formal por meio do qual o governo poderá ouvir melhor as demandas e propostas [da população]”.


Texto postado originalmente em:

http://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-e-bolivarianismo-2305.html


quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Conclusão ou Considerações Finais?



Por Aluizio Moreira


Repetidamente alguns alunos da graduação ou mesmo de pós-graduação, durante a elaboração da monografia, indagam-me se a última parte dos elementos textuais é CONCLUSÃO, CONSIDERAÇÕES GERAIS OU CONSIDERAÇÕES FINAIS, uma vez que se deparam ora com uma, ora com outra denominação.

Se nos reportarmos à ABNT NBR 14724:2011 (Trabalhos Acadêmicos), NBR 6022:2003 (Artigo em publicação periódica cientifica impressa), NBR 10719: 1989 (Relatórios Técnico-científicos) ao apresentarem as estruturas constitutivas dos trabalhos acadêmicos, artigos e relatórios, registram a palavra CONCLUSÃO (e não Considerações Finais) na última parte correspondente aos elementos textuais, entendida esta como dedução extraída dos resultados do trabalho. 

Algumas Instituições do Ensino Superior no entanto, defendendo o ponto de vista de que a palavra CONCLUSÃO traz implícito o sentido de que a pesquisa, ao seu término, atingiu resultados absolutos, portanto que não admite restrições, nem contestações, advogam os que adotam o uso das expressões CONSIDERAÇÕES FINAIS ou CONSIDERAÇÕES GERAIS(1). Neste caso a palavra consideração/considerações implicaria admitir, ao contrario de Conclusão, que a pesquisa apenas possibilita reflexões não definitivas, contestáveis, suscetíveis de revisões, argumentam seus defensores.

Ora, na verdade uma das características da ciência, do conhecimento científico, é sua falibilidade, seu caráter não absoluto, não definitivo acerca dos resultados obtidos sobre o objeto de investigação do pesquisador. A palavra conclusão não implica numa situação conflituosa com essas características.

Para Ruiz (2006, p. 76) a conclusão teria como finalidade “reafirmar sinteticamente a ideia principal e os pormenores mais importantes” colocados naquela produção particularizada do conhecimento. É como se expressa Fachin (2003, p. 165), “um arremate final” resultante “dos dados obtidos ou dos fatos observados” naquela pesquisa. Não é outro o entendimento de Salomon (2010, p. 349): “A conclusão representa o momento para o qual caminhou todo o desenvolvimento do trabalho”. Reforça Máttar Neto (2003, p. 171): A conclusão objetiva “reorganizar as informações e interpretações discutidas durante o desenvolvimento do texto” [. . .]

Ou seja, a conclusão não transcende as deduções verificadas nesta ou naquela investigação, não está para além do resultado alcançado numa determinada pesquisa. 

É a conclusão a que cheguei!

_____
(1) Não se trata de uma tendência geral. Nos Manuais de orientação de monografia as IES PUC-Rio, PUC-SP, PUC-Minas, PUCRS, Presbiteriana Mackenzie, entre outras, seguem a denominação que consta nas Normas da ABNT.


Referências

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA E NORMAS TÉCNICAS. NBR 14724. Informação e Documentação – Trabalhos Acadêmicos. Apresentação. Rio de Janeiro, 2011.
______.  NBR 10719. Apresentação de Relatórios Técnico-Científicos. Rio de Janeiro, 1989.
______. NBR 6022. Informação e Documentação – Artigo em publicação periódica cientifica impressa. Apresentação, 2003.
FACHIN, Odília. Fundamentos de metodologia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
MÁTTAR NETO, João Augusto. Metodologia científica na era da Informática. São Paulo: Saraiva, 2003.
RUIZ, João Álvaro. Metodologia científica: guia para eficiência nos estudos. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006.
SALOMON, Délcio Vieira. Como fazer uma monografia. 12. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Consciência negra livre de machismo


    
O Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir


Por Jarid Arraes

O mês de novembro é conhecido nacionalmente como o mês da Consciência Negra, data oficializada no dia 20. Um grande ícone da resistência negra contra o racismo na ocasião é a memória de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e grande guerreiro pela libertação da população negra no período escravocrata do Brasil. Por causa de sua coragem incisiva, Zumbi é celebrado como inspiração e símbolo do mês da Consciência Negra.

No entanto, embora Zumbi seja um grandioso exemplo para homens e mulher negros e toda a militância negra no Brasil, muitas figuras importantes acabaram sendo esquecidas ou foram apagadas da História – sobretudo protagonistas femininas, tais como a companheira de Zumbi, a guerreira quilombola Dandara dos Palmares.

Muitas pessoas desconhecem a história de Dandara e um dos maiores motivos para esse esquecimento é a própria educação brasileira, que não menciona sua existência. Mas seu apagamento é responsabilidade também dos historiadores, ou mesmo dos movimentos sociais, uma vez que mulheres negras como ela são preteridas até por militantes negros ou ativistas feministas. De fato, a invisibilidade de Dandara é apenas uma das evidências do que o racismo machista da cultura brasileira é capaz: milhares de mulheres negras vivem hoje em situações de abuso, violência, ausência de direitos e esquecimento.

Ana Flávia Magalhães Pinto: "São poucos os dados
que circulam, por exemplo, sobre a princesa
Aqualtune e Dandara". (Foto: Arquivo pessoal) 
Para a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, esse quadro é bastante sintomático e revela uma das faces de um contexto social extremamente hostil contra as mulheres negras. “As histórias de resistência são normalmente contadas a partir da ação de uma liderança. Numa sociedade organizada a partir de valores machistas e racistas, como a nossa, não surpreende que a maioria das narrativas apresente as mulheres negras, quando muito, como coadjuvantes.” Para ela, ainda que as atuações de Ganga Zumba e Zumbi tenham sido decisivas na vida do Quilombo de Palmares, ainda temos muito o que aprender sobre as práticas de resistência mantidas por outras pessoas, com destaque para as mulheres.

Ana Flávia também chama a atenção para o papel coletivo dos quilombos como o Quilombo dos Palmares; algo que jamais poderia existir sem a atuação cotidiana das mulheres negras. “Infelizmente, são poucos os dados que circulam, por exemplo, sobre a princesa Aqualtune e Dandara. Apesar de estarmos falando de um quilombo, que pressupõe a ação de muitos, esse conhecimento limitado acaba nos aprisionando em modelos de combate ao racismo e às desigualdades nos quais as ações construídas individualmente parecem mais eficientes do que as garantidas pela ação coletiva”, pontua. De fato, o valor coletivo do combate ao racismo é de tremenda importância – e as pessoas que menos recebem reconhecimento, atenção e espaço frequentemente também fazem parte de outros grupos ditos minoritários, tais como as pessoas LGBT e as mulheres.

Na perspectiva de Ana Flávia, que é também militante do Movimento Negro, a análise desse contexto deve compreender as especificidades do racismo sofrido por homens e por mulheres, enxergando cada grupo com suas demandas diretas e relacionadas ao gênero. “Como as agressões cometidas contra os homens negros, via de regra, passam por ações brutais que resultam frequentemente em morte trágica, a violência racial que atinge as mulheres negras acaba tendo menos visibilidade. Acontece que, por exemplo, quando analisamos os dados das mortes maternas, das decorrentes de doenças evitáveis, controláveis e causadas por exposição a altos níveis de estresse, verificamos que as mulheres negras estão vulneráveis a fins tão trágicos quanto os homens”.

A violência trágica que atinge as mulheres negras tem suas nuances relacionadas à saúde física e mental, assim como estão intimamente interligadas à violência policial existente no país. O caso da auxiliar de limpeza Cláudia Silva Ferreira é um dos mais recentes exemplos que podem ser citados: baleada por uma polícia racista e arrastada pelas ruas como se não fosse uma pessoa humana, Cláudia foi mais uma mulher negra violada e assassinada pelo Estado brasileiro, que ainda legitima e promove ações de extermínio contra a população negra.

As mulheres negras brasileiras são mortas rotineiramente pelo racismo: o atendimento médico é intencionalmente negado ou atrasado, a violência obstétrica é uma realidade alarmante e a violência doméstica e sexual contra as mulheres negras tem números epidêmicos, além de serem vítimas dos maiores índices de estupro. De uma forma ou de outra, as mulheres negras acabam mortas; não obstante, a violência cometida contra os homens negros, seus filhos, pais, irmãos ou companheiros também acomete as mulheres negras de diversas formas.

Segundo Ana Flávia, além das múltiplas violências que as atingem diretamente, as mulheres negras também sofrem com os ataques cometidos contra outros membros de seu grupo familiar e sua comunidade. “Os números alarmantes que atestam a vigência de práticas genocidas contra jovens negros apontam para o impacto nefasto que essas mortes têm causado na vida de milhares e milhares de mulheres. As denúncias feitas por grupos de solidariedade entre mães vítimas da violência do Estado, como as Mães de Maio, são uma amostra do estrago que o racismo tem promovido na vida das mulheres negras. A afirmação do direito à vida é um ponto central na luta sintetizada no Dia Nacional da Consciência Negra”, explica.

Por todos esses fatores, o Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir.

A consciência que empodera a mulher negra

Laís Fialho: "Todos devem repensar
as opressões que reproduzem, até os
que acham que já problematizam o
suficiente." (Foto: Arquivo pessoal)
Laís Fialho é acadêmica de História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e batuqueira dos grupos de Maracatu Ingazeiro, também de Maringá, e da Nação Porto Rico, de Recife. A estudante é um impressionante exemplo de empoderamento e da transformação que a consciência negra – sobretudo da própria negritude – pode fazer por uma mulher e seu meio social.

Ela conta: “Quando criança. eu estudei num colégio particular, era bolsista. Era violentada psicologicamente e simbolicamente o tempo todo. Eles me chamavam de macaca, de Cirilo, achavam que eu não tinha nenhuma característica feminina por não ter cabelos longos, claros e lisos e as maçãs do rosto rosadas – e por isso me tiravam o direito de me achar feminina também. Quando mais velha, eu era preterida em todos os outros espaços: os meninos que ficavam comigo sempre precisavam esconder isso por algum motivo”. Fialho só começou a entender sua situação quando entrou na Universidade e teve acesso a discussões mais efetivas sobre o racismo.

Não por acaso, o relato de Fialho dialoga com milhares de mulheres negras. Episódios de discriminação na infância, objetificação sexual e dificuldade para compreender a dimensão do sofrimento gerado pelo racismo fazem parte dos depoimentos compartilhados por muitas mulheres negras que atuam politicamente, seja no movimento negro ou feminista.

Fialho ainda salienta que o racismo sofrido pelas mulheres negras nem sempre é tão explícito e escandaloso, por isso é muito mais difícil denunciá-lo e convencer as pessoas de que aquelas atitudes são racistas. “O racismo que a mulher negra sofre é mais sutil, ele impõe uma submissão e um silenciamento. Nós nunca nos sentimos a vontade pra denunciar essa opressão que sempre está ligada em maior grau a raça ou gênero, porque está ligado á nossa subjetividade. É sempre muito sutil e ardiloso”. Para ela, são as sutilezas que oprimem as mulheres negras. “Ás vezes nos fazem nos sentir como loucas e paranoicas, mas não, o problema não é nosso. Todos devem repensar as opressões que reproduzem, até os que acham que já problematizam o suficiente”, destaca.

O caminho rumo ao empoderamento pode ser árduo, já que a invisibilidade e a misoginia se unem contra a emancipação da mulher negra, atingindo sua autoimagem e percepção de papel no mundo. “O racismo sofrido pelas mulheres negras, ao meu ver, é multifacetado, velado e cruel. São precisos anos de terapia e autoafirmação pra nós mulheres negras nos sentirmos um pouco confortáveis sobre isso, pra poder sequer falar do assunto. Nossa autoestima é mais frágil, construída a partir de outros pressupostos”, afirma Laís Fialho, referindo-se, por exemplo, ao constante ataque à aparência física e à invalidação da mulher negra enquanto sujeito.

Um exemplo recente desse mecanismo perverso pode ser visto no último programa voltado ao Teleton 2014, que aconteceu no SBT. Na ocasião, o dono da emissora e apresentador Silvio Santos insinuou, em forma de “piada”, que a atriz Julia Olliver, de apenas 11 anos, não poderia continuar na carreira artista com o cabelo crespo e natural que tem. Embora muitas pessoas tenham encarado a atitude do apresentador como uma brincadeira, para as meninas negras a realidade é bem diferente e dolorosa. Afinal, “brincadeiras” como as do bilionário demarcam um espaço construído pelo racismo, que destina às mulheres negras papéis muito limitados, estereotipados e cheios de condições, entre elas está a de se submeter ao alisamento dos fios naturais.

Por isso, o caminho para o empoderamento da mulher negra passa pela articulação de suas experiências e vivências pessoais, destacando sua tomada de consciência a respeito das questões de gênero e raça. Sem essa possibilidade, se torna muito mais difícil construir uma autoestima saudável – sobretudo porque as oportunidades de melhoria de vida lhes são constantemente negadas, seja por causa do racismo ou por causa da misoginia. “A opressão e a intolerância aparecem de várias formas em todos os espaços possíveis. Quando não estamos sendo invisibilizadas por sermos negras, somos por sermos mulheres, por estarmos transgredindo o status quo, por sairmos dos espaços privados e ocuparmos espaços públicos. Isso aperreia muito”, relata Fialho.

“As pessoas não se incomodam quando eu as sirvo, mas quando transgrido a ordem e ocupo espaços de visibilidade, com falas empoderadas, com um discurso coerente e inteligente; as pessoas se assustam, como se não fosse possível uma negra ter acesso a esse tipo de discussão. É esse tipo de susto que eu gosto de dar”, conta Fialho. A acadêmica conta que faz questão de expôr suas opiniões e críticas, principalmente no que diz respeito á expropriação cultural negra. “É legal fazer eles pensarem que a raiz daquilo é negra, é divertido lidar com as caras espantadas deles por eu ter conhecimento disso. Eles esperam isso de um homem, talvez até negro, mas de uma mulher negra não, esperam só que a gente dance até o chão (não que isso não seja legítimo, eu também faço as vezes)”. Falar com propriedade, ocupar espaços e se impor são transgressões diárias para as mulheres negras.

Na ótica da batuqueira, as mulheres negras detém um tipo de conhecimento que a sociedade desvaloriza, que é o conhecimento popular. Por enfrentarem obstáculos em todas as esferas sociais, o empoderamento das mulheres negras é, segundo ela, mais lento e difícil. No entanto, o resgate cultural é uma das ferramentos de efetivação desse processo, algo que pode ser trabalho no mês da Consciência Negra, usando como oportunidades os eventos voltados ao tema. Fialho conta, por exemplo, que na cidade onde mora só é possível ver iniciativas públicas ou privadas para a discussão das questões raciais no período de novembro. Nas palavras da estudante, o mês da Consciência Negra ainda é encarado como uma espécie de folclore e em muitos casos o assunto é tratado de forma rasa. No entanto, isso é somente mais uma evidência da importância da data.

“É nesse mês que as escolas chamam nosso grupo de maracatu pra contar um pouco sobre a importância de ecoarmos nossos tambores como forma de resistência à cultura hegemônica branca e cristã. É nesse momento que são chamados os grupos de capoeira. É nesse momento que as cozinheiras preparam pratos típicos pra mostrar a riqueza da culinária afro. Esses espaços também são majoritariamente ocupados por homens negros, não podemos negar. Mas existe sim uma brecha que como eu citei é o empoderamento e o conhecimento. Se nós mulheres negras nos impomos e dizemos a eles que sabemos, temos fundamento, e queremos nos fazer ouvir, eles são obrigados a nos deixar falar. É aí que sambamos na cara da sociedade machista e racista, que antes de tudo é capitalista – quando precisam usar nosso conhecimento, mesmo que pra vender uma imagem de politicamente correto, precisam recorrer a nós, detentoras desse conhecimento”, finaliza Fialho.

Novembro das mulheres

A discussão racial no Brasil precisa avançar e conquistar novos terrenos e o crescimento do Feminismo Negro no país é um exemplo dessa necessidade, que arde antes de tudo nos núcleos onde mulheres negras se reúnem para debater e construir novas perspectivas. Os grupos feministas negros devem servir de exemplo para que outras feministas e integrantes do movimento negro possam desenvolver um padrão de autocrítica, para que as especificidades das mulheres negras não sejam sufocadas ou esquecidas dentro dos espaços de militância.

Em um país que ainda torce o nariz para o Dia da Consciência Negra, sob argumentos estapafúrdios que mascaram a discriminação racial, a mobilização das mulheres negras vem com toda força para romper paradigmas. Nos últimos meses, temos testemunhado vários indicativos de mudança, como o protesto organizado contra a série global Sexo e as Nêga – as mulheres negras incomodaram, e muito, o status quo. Outro exemplo notável, citado pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, é a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que acontecerá no dia 13 de Maio de 2015, em Brasília. Coletivos, instituições e militantes de todo o Brasil já estão se mobilizando e planejando a participação na Marcha, promovendo rodas de conversa, ciclos de debates e atividades em seus estados.

Essa movimentação é inspiradora e empoderadora para as mulheres negras e precisa ser reconhecida. Laís Fialho conhece bem o valor disso tudo: “Me sinto muito feliz por estar inserida num movimento de mulheres negras que têm se colocado cada vez mais em evidência, denunciando o racismo e as opressões de classe e gênero. Audre Lorde nos diz que não há hierarquia de opressões e que é preciso ser combativa contra todas. Me emociono com a sororidade que estamos construindo de preta pra preta. Acho que o feminismo precisa de nós, assim como nós do feminismo”, afirma.

Entre depoimentos e argumentos, a reflexão assertiva é de que o mês da Consciência Negra deve ser cada vez mais o mês da mulher negra, do reconhecimento de sua luta no passado e no presente e da incansável batalha pelo fim do machismo racista em todas as áreas de nossa sociedade. Ancestralidade, política e resistência se unem, por fim, na loa de Maracatu deixada por Laís Fialho, que fecha a entrevista cantando: “As mulheres da minha nação são guerreiras, batuqueiras, baianas e Yalorixás, conhecem a fundo os segredos do mundo com o brilho da Oxum e a coragem de Oyá. Kolofé! Axé mulheres guerreiras, mulheres de fé!”.

Foto de capa: Antônio Cruz/ABr

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Papa consagra Teoria da Evolução


Por Frei Betto



O evolucionismo e o Big Bang não são incompatíveis com a existência de um Criador, declarou o papa Francisco à Academia de Ciências do Vaticano, a 28/10/2014: "Quando lemos a respeito da Criação no Gênesis, corremos o risco de imaginar que Deus era um mágico, com varinha de condão capaz de tudo fazer. Mas isso não é assim.”

A declaração coincide com o momento em que membros da Academia Brasileira de Ciências se reunirão, em Campinas, no 1º Congresso Brasileiro do Design Inteligente. Alguns desses cientistas defendem a teoria do TDI (Teoria do Design Inteligente), segundo a qual uma Inteligência Suprema, que muitos denominam Deus, criou diretamente a complexidade da célula humana.

A teoria da evolução afirma que todos os seres vivos descendem de um ancestral comum, e que o principal mecanismo responsável pelo surgimento das características desses seres é a seleção natural. Já o Big Bang é a explosão primordial que deu origem ao Universo.

A teoria do Big Bang foi esboçada pelos cálculos de Alexander Friedmann. Em 1927, o padre e cosmólogo belga George Lemaître publicou um artigo defendendo-a. Se as galáxias continuam a se afastar umas das outras, isso significa que, no passado, estiveram mais próximas. Considerada a distância dessa proximidade num tempo demasiadamente longo, então se conclui que houve um momento em que não havia espaços vazios entre as galáxias. Todo o céu era feericamente iluminado. Portanto, antes desse tempo teria existido uma época em que não havia espaços vazios entre as estrelas, precedido por um tempo em que não havia espaço entre os átomos e os núcleos no interior dos átomos.

Lemaître imaginou que, "um dia", todo o Universo coube numa esfera que batizou de "átomo primordial”. Ele teria explodido e se fragmentado em partículas elementares que formaram átomos, estrelas e galáxias, sem que houvesse explosão audível, pois não existiam ondas sonoras, e tanto o espaço quanto o tempo teriam tido início a partir daí.

Teria o inconsciente de Lemaître o remetido à imagem bíblica da Criação? Por ser ele sacerdote, sua teoria serviu de motivo de gracejos durante anos. Em 1927, ele tentou se aproximar de Einstein na 5ª Conferência Solvay, em Bruxelas, a fim de defender seu ponto de vista. O cientista alemão foi rude: "Seus cálculos são corretos, mas sua visão física é abominável."

Einstein, além de se sentir incomodado por uma cosmologia que negava seu Universo estático, desconfiava que Lemaître, como religioso, pretendia harmonizar a origem do Universo com a Criação bíblica.

Em 1931, em sua edição de 19 de maio, o New York Times deu em manchete: "Lemaître sugere que um único grande átomo, que continha toda a energia, foi o princípio do Universo." Tornou-se uma celebridade, a ponto de Einstein reparar seu preconceito e, malgrado sua falta de convicção, admitir que a tese do jovem sacerdote era a "maior, mais bela e satisfatória interpretação de fenômenos astronômicos."

Em 1996, João Paulo II admitiu: "Novas descobertas nos levam a reconhecer que a evolução é mais do que uma hipótese. A convergência dos resultados de estudos independentes constitui, em si mesma, argumento significativo em favor da teoria." E, em nome da Igreja Católica, penitenciou-se e reabilitou Galileu Galilei e Charles Darwin.

A TDI mescla inadequadamente religião e ciência e, a partir de uma leitura literal da Bíblia, defende que descendemos de seu Adão e dona Eva. Ora, Adão, em hebraico, significa "terra”; e Eva, "vida”. O autor do Gênesis não teve intenção de ensinar ciência, e sim que Deus incutiu em sua Criação uma dinâmica evolutiva própria, ora desvendada pela ciência.

Se Adão e Eva tiveram dois filhos homens, Caim e Abel, como estamos aqui? Os criacionistas aprovam o incesto de Eva com seus filhos?

Pobre da fé que busca na ciência muletas para se sustentar. Infeliz da ciência que se arvora em negar ou afirmar a existência de Deus.


Frei Betto é escritor, autor de "A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.


FONTE: Adital

domingo, 9 de novembro de 2014

A radicalização deles e a nossa



Participante da Ocupação Santa Luzia, em São Gonçalo, Rio de Janeiro

Derrotada nas urnas, direita reage contra PT e projeto de mudanças superficiais. Dilma contemporiza. E se entrarem em cena os movimentos sociais?


Por Guilherme Boulos

Acabou a batalha do segundo turno. Dilma foi reeleita para a presidência da República em votação apertada. Ao final, a vantagem no Norte e Nordeste foi suficiente para compensar a derrota em São Paulo e no Sul do país.

A campanha deste segundo turno foi marcada por uma polarização que não víamos desde 1989. Mas diferente de 1989 — quando Lula falava em suspender o pagamento da dívida pública e em fazer reformas estruturais — agora não estavam em jogo projetos políticos tão antagônicos.

O PT manteve desde 2003 as linhas mestras da política econômica tucana. O controle da inflação às custas de juros e câmbio sobrevalorizado, a política de superávit primário para pagamento da dívida e as concessões da infraestrutura nacional e da exploração de petróleo para grandes empresas privadas.

Na política, ambos governam alicerçados no que há de mais atrasado na sociedade brasileira. Ambos mantiveram o PMDB como eminência parda da política nacional.

O PT nem ensaiou nestes 12 anos levantar a bandeira das reformas populares — bloqueadas no país desde João Goulart. Reformas urbana e agrária, reforma tributária progressiva, reforma política e do sistema financeiro. Auditoria da dívida pública, desmilitarização das polícias e democratização das comunicações. Estas são as pautas populares e de esquerda para o Brasil. Alguém as viu nos últimos governos?

Porém, a disputa entre Dilma e Aécio foi extremamente polarizada, tendo a elite brasileira e todos os setores mais conservadores se alinhado com o candidato do PSDB. Por que isso, se as diferenças não são tão grandes assim?

Quem polarizou as eleições de 2014 foi a direita. Ao PT não interessava a polarização, afinal governou durante 12 anos com discurso de um pacto social, de que todos se beneficiariam. Mas os setores mais atrasados da sociedade brasileira -assanhadinhos desde o ano passado- resolveram tomar o antipetismo como razão de existência.

Na linha mais conservadora, construíram um discurso racista, antipopular e de ódio aos pobres. As manifestações pró-Aécio fizeram lembrar a Marcha da Família com Deus de 1964. Os protagonistas inclusive foram os mesmos: a classe média de São Paulo e a fina-flor da elite urbana brasileira.

Até dirigentes do PSDB entraram na onda. José Aníbal evocou Carlos Lacerda, o maior golpista da história da República, para dizer que, tomando posse, Dilma não poderia governar. FHC enterrou algum resquício de credibilidade intelectual -se é que tinha- com sua fala sobre o voto dos nordestinos. Dizem que o governo Dilma não terá legitimidade. Legitimidade para essa gente significa o apoio da classe média do Sudeste.

Mas o segundo turno acabou e o PT levou a fatura. A eterna turma do deixa-disso, liderada por Michel Temer, já começa a costurar a repactuação das forças políticas e o fatiamento do novo governo. Polarização foi até domingo, agora é hora da união republicana pela governabilidade.

Ledo engano! Agora é que vai começar a ficar interessante. Polarização política, quando levada ao sentimento popular, não se desmonta com facilidade. E a situação econômica exige decisões que não poderão ser tão conciliadoras.

É claro que a vontade de Dilma é recosturar alianças e fazer um governo de unidade. Deixou claro isso em seu discurso da vitoria. Mas ela sabe que o mar não está para peixe. O crescimento econômico refluiu e isto impacta no Orçamento. A ideia de governar para todos — com lucros recordes para os bancos e empresas e algumas melhorias para os trabalhadores — não se sustenta na nova conjuntura.

A hora é de decisões. Ou se tomam medidas impopulares — daquelas anunciadas com regozijo por Aécio Neves — ou se enfrenta o desafio de reformas populares. O modelo lulista de conciliação nacional dá sinais claros de esgotamento, pois está baseado na combinação de crescimento econômico com desmobilização social. Junho de 2013 e a polarização eleitoral de 2014 foram sintomas disso.

Evidentemente, seria ilusório acreditar que o PT resolverá, de uma hora para outra, fazer as transformações estruturais que tirou de sua agenda desde antes de 2002. Tem de prestar contas para a JBS Friboi e para a Odebrecht, para Katia Abreu e Renan Calheiros. Mesmo que desejasse, não teria condições de dar esta guinada.

Mas é aí que entra o terceiro turno. A polarização da classe média de direita nas ruas reascendeu o outro polo: os trabalhadores organizados. Aliás, desde junho de 2013 as lutas populares urbanas e as greves tiveram um crescimento expressivo e contínuo. Assim como a radicalização da direita, a crise do modelo de conciliação começa a produzir uma radicalização popular.

Nesse cenário, se Dilma começar 2015 com cortes orçamentários e ajuste de tarifas, ela pode pacificar a elite e a turma do PSDB, mas terá de enfrentar a mobilização das ruas.

Pela primeira vez nesses 12 anos de petismo criou-se um caldo que pode recolocar na agenda as reformas populares. Não deixa de ser sintomático que Dilma tenha mencionado o plebiscito pela reforma política em seu discurso de união nacional. As contradições estão pulsando. É claro que a construção desta agenda não se dará por iniciativa nem vontade do PT, mas pela polarização das ruas e pelo fim de um ciclo econômico.

Será o terceiro turno das lutas. Agora sim os grandes antagonismos da sociedade brasileira poderão entrar em jogo.


O autor é integrante da Coordenação Nacional do MTST.

FONTE: Outras Palavras

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A Venezuela não é aqui


Por Luciano Martins Costa 



A mídia tradicional do Brasil está relegando a segundo plano a pauta da corrupção, que predominou durante a campanha eleitoral no rastro de reportagens, declarações, vazamentos e alguma ficção maquinada para alimentar debates e propaganda política.

A nova palavra de ordem da agenda que os jornais tentam impor ao campo político é: "bolivarianismo”. A expressão foi destacada na primeira página da edição de segunda-feira (3/11) da Folha de S.Paulo, em artigo do colunista Luiz Felipe Pondé e em entrevista do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, e ganhou as redes sociais na terça-feira (4).

No caso do articulista, pode-se arquivar o texto na "cesta seção”, onde um dia os arqueólogos do besteirol reacionário irão identificar os protagonistas que a imprensa classificava como "intelectuais” nas primeiras décadas do século 21. O problema cresce quando a imprensa se serve de um ministro da Suprema Corte para alimentar teorias conspiratórias.

O Brasil não é a Venezuela, não ocorreu no passado recente o advento de um líder caudilhesco que se possa comparar ao presidente Hugo Chávez, morto em 2013, e a política nacional inaugurada em 2003 com a ascensão da aliança liderada pelo Partido dos Trabalhadores não guarda a mais remota similaridade com o processo venezuelano.

O que há é um esforço de representantes do estrato mais conservador da sociedade para colocar o bode na sala e obrigar a presidente reeleita a negociar o bloqueio de qualquer projeto que se aproxime da regulação da mídia, nem que seja para cumprir o que determina a Constituição sobre a concentração dos meios de comunicação.

Assim age o cartel da imprensa: primeiro ameaça com uma crise por meio de boatos, especulações e meias-verdades, depois propõe a negociação. No caso que se evidencia nesta semana, trata-se de exacerbar os ânimos da massa de manobra que não aceita o resultado das urnas, com a tese de que a presidente vai transformar o Brasil numa ditadura em seu segundo mandato.

Por mais insano que possa parecer, esse é o mantra que vem sendo recitado na redação da revista Veja nos últimos dias. Os editores da revista dizem a quem quiser ouvir que estão empenhados em uma cruzada contra o fantasma de Hugo Chávez.

Jogo perigoso

A revista que já foi a joia da coroa do editor Victor Civita está preparando uma entrevista com um empresário venezuelano do setor de mídia para que ele diga como seria a imprensa num Brasil "bolivariano”. Depois das páginas amarelas de Veja, o conteúdo será reproduzido pelos jornais e provavelmente comentado pela TV Globo, no Fantástico ou no Jornal Nacional.

Protagonistas ensandecidos como o colunista da Folha acreditam piamente que "está em curso um processo de destruição da liberdade de pensamento no Brasil”. Ele chama Dilma Rousseff de "presidente bolivariana reeleita”.

O leitor fiel e de boa fé da Folha de S.Paulo pode argumentar que essa é apenas uma das muitas opiniões no diversificado cardápio de leituras que o jornal oferece diariamente. Afinal, personagens assim destrambelhados podem trazer alguma graça ao cotidiano da imprensa, para temperar a sisudez de um Clovis Rossi ou um Janio de Freitas. Mas não é possível dissimular que se trata de um texto de encomenda, ou seja, que faz parte da estratégia de edição.

Senão, vejamos: o assunto foi levantado na segunda-feira (3) em entrevista do ministro Gilmar Mendes, mas qual seria a oportunidade para transformar o jurista em notícia, se nada o destaca entre seus pares neste momento? Se ele estivesse dirigindo o Tribunal Superior Eleitoral, haveria aí uma pauta natural, uma vez que o principal partido da oposição questiona oficialmente o resultado das urnas. Fora isso, entrevistar Gilmar Mendes é apenas uma manobra para colocar na boca dele o que os editores querem dizer: que em dois anos o novo governo deverá nomear novos ministros do STF, e Mendes e os jornais acham que isso irá transformar a Suprema Corte em um "tribunal bolivariano”.

Não importa o argumento segundo o qual um tribunal formado por maioria de ministros nomeados por governos petistas condenou à prisão a antiga cúpula do PT. A imprensa teme que o tribunal se torne permeável ao cumprimento da regra constitucional sobre a concentração da mídia. O objetivo da manobra é dar credibilidade ao desvario sobre intenções totalitárias da presidente da República.

Com os aloprados golpistas assanhados nas ruas, trata-se de um jogo muito perigoso.


FONTE: Adital

domingo, 2 de novembro de 2014

O Brasil e as expectativas de mudanças ou de recuos


Por Aluizio Moreira


A partir do primeiro governo Lula em 2003, até o primeiro governo Dilma em 2014, algumas medidas chamadas “progressistas” ou “populares”, foram instituídas no Brasil. Não se tratava, aliás, como muitos “otimistas da esquerda” e “pessimistas de direita” pensavam, de uma caminhada em direção a uma transformação paulatina rumo ao socialismo, ou seja, da criação de uma base, para que a opção não capitalista no Brasil fosse possível. Embora fosse o que defendia  Lula da Silva, no discurso proferido em 1981, durante a 1ª Convenção Nacional do Partido dos Trabalhadores, quando admite que o PT  não poderia “jamais representar os interesses do capital” e afirmaria no mesmo discurso:  
“Nós, do PT, sabemos que o mundo caminha para o socialismo. Os trabalhadores que tomaram a iniciativa histórica de propor a criação do PT já sabiam disso muito antes de terem sequer a ideia da necessidade de um partido (…) Por isso sentimos na própria carne e queremos, com todas as forças, uma sociedade (…) sem exploradores. Que sociedade é esta senão uma sociedade socialista.” 
De 1981 para 2002, o discurso seria outro.

Na “Carta ao povo brasileiro” divulgada em 2002 e citada no artigo anterior, podemos colher algumas expressões que pontualmente apontavam na direção que o futuro governo Lula propunha: crescimento econômico conjugado às politicas sociais “consistentes e criativas”, que ía desde o incentivo às exportações tornando o pais mais competitivo no mercado internacional, ao agronegócio, à ampliação do mercado consumidor de massas, passando pelas reformas agrária e tributária. A proposta socialista não tinha mais espaço.

Na verdade era um leque de medidas bastante amplo que poderia  ser posta em prática, dependendo das negociações com os parlamentares, dentro dos limites do possível, e que não ferissem os interesses da burguesia, o que deveria acontecer se o Governo insistisse na Reforma Agrária, e outras reivindicações como as relacionadas à questão indígena e afrodescendentes, que por sinal nem sequer fizeram parte da “Carta ao povo brasileiro”, como de forma idêntica, nem uma palavra à saúde e à educação. 

No mesmo ano de sua posse, em novembro de 2003, o Governo Federal lançava o Programa LUZ PARA TODOS, criado pela então Ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, que visava levar energia elétrica para a população do meio rural.  E para demonstrar como Luiz Inácio tinha uma visão clara da interdependência de muitas medidas propostas para consolidar o capitalismo, numa entrevista concedida à Revista Carta Capital, nº 821, de 15 de outubro de 2014, ao ser perguntado sobre os benefícios do Bolsa Família e do crédito consignado, o ex-presidente se refere ao Programa Luz Para Todos da seguinte forma: 

[...] quando a gente levava o Luz para Todos, o beneficiado ligava três lâmpadas, comprava uma geladeira, 80% deles compravam um televisor. Ou seja, um simples programa chamado Luz para Todos, que levou energia para 15 milhões de brasileiros, resultou na venda de quase 4 milhões de mercadorias. Até empresas multinacionais ganharam muito com esse programa social.

É a logica do capital!. Como tal, a reprodução do sistema capitalista se dá em beneficio dos donos do capital, num processo constante de acumulação.  Não há como humanizar o capitalismo.

Mas como o capitalismo é um sistema cíclico, em que momentos de expansão são intermediados por momentos de crise, desde o final do século passado aos inicios desde século, o capitalismo internacional entrou numa fase de depressão, cujos sintomas estouraram em várias partes o mundo: a Primavera Árabe, Occupy Wall Street, os Indignados na Espanha, os movimentos rebeldes na Turquia, Grécia, Islândia. . . atingindo o Brasil em junho de 2013. Nosso país começava a dar indícios de esgotamento. Afinal, numa economia globalizada, os efeitos das crises também são globalizadas, “para mais ou para menos”.

Lá fora, como aqui, os movimentos de massas se direcionam contra os efeitos do capitalismo (não contra suas causas), que termina por provocar uma crise de representatividade parlamentar (ver o caso da  Islândia), a favor de mudanças. Ai está o tom da politica eleitoral no Brasil: mudanças.

A bandeira das mudanças no processo eleitoral no nosso país, mobilizou muito mais pelo chamamento, do que pelo conteúdo dessas mudanças. A tônica do discurso da mudança propunha um país solidário, um país de todos, um país honesto, um  pais respeitoso, um país generoso, sem definir o solidário, o de todos, o honesto, o respeitoso, o generoso.

Junto a esses slogans de campanha que não diziam muita coisa, outras questões mobilizadoras foram criadas caindo como uma luva na “cabeça” dos eleitores, e até certo ponto, com sua logicidade: se o sentimento era de mudança, não tinha sentido votar pela permanência do PT no poder.
   
Resultado que refletiu na bipolaridade: reeleição de Dilma e o crescimento de uma onda conservadora e de direita. A mídia, as redes sociais, são termômetros dessa realidade: a campanha contra a Venezuela, contra os cubanos do Programa Mais Médicos, contra a Rússia, contra o que chamaram avanço do comunismo no Brasil (Já vivenciamos clima idêntico em 1963/1964).

As coisas beiram as raias do absurdo, em direção à intransigência por total falta de informação (ou manipulação das informações?). Por exemplo o Programa Mais Médicos quando implantado, ofereceu prioritariamente vagas para médicos brasileiros para atuar em regiões onde havia falta de profissionais. O não preenchimento das vagas abriu espaço para a candidatura de médicos estrangeiros (não especificamente para médicos cubanos). Outro exemplo: não existe a mínima possibilidade de um país transferir para outro sua experiência politica, digamos, o “bolivarianismo” venezuelano ou o “sovietismo” russo. 

Neste fim de outubro, antes mesmo da posse dos parlamentares eleitos, a politica já sinalizava para o que será a convivência executivo/legislativo pelos próximos 4 anos. 

A questão do plebiscito proposto pela presidenta para a Reforma Politica, foi de imediato descartada por nossos parlamentares, antes mesmo que chegasse na Câmara para discussão. O Renan Calheiros por sua vez, já antecipou a posição do Senado: “por ali não passará”. Por dedução, nem pensar numa Assembleia Constituinte exclusiva, pois tiraria do parlamentar em exercício, a possibilidade de legislar em causa própria. Sobrou o referendo (?). 

Na terça feira 29 de outubro, a Câmara rejeitou o Decreto 8.243/2014, que criava a Politica Nacional de Participação Social (PNPS), disciplinando a atuação dos Conselhos e Comissões existentes na sociedade civil, que ampliaria o diálogo com os movimentos sociais, e que muito embora a PNPS não crie mecanismos que rivalize com os poderes constituídos, foi sutilmente identificado com os conselhos “bolivarianos” e até com os “sovietes”.

Diante deste quadro, a se consolidar a politica de estreitamento politico liderado pelos conservadores e direitistas no Congresso e fora dele, as propostas do Governo voltadas para o atendimento das principais reivindicações dos movimentos sociais e da sociedade civil e no sentido de uma democracia participativa, podem não acontecer.

O que já temos percebido, é que o clima de antipetismo tente a perdurar para além das eleições. Paira no ar (e na mídia e nas redes online), uma atmosfera de tentativa de desestabilizar e desacreditar o Governo reeleito, dificultando ou impedindo aprovações de propostas de iniciativa da Presidência, e de apelação indisfarçada ao golpismo. 

Quais as opções politicas oferecidas ao Governo e à sociedade civil? Vejamos: o Governo tender para uma guinada mais à esquerda, nos parece ser uma possibilidade bastante remota. Segunda opção: o Governo Dilma poderá ceder às pressões das forças politicas de oposição criminalizando os movimentos sociais ou se omitindo, em troca da chamada governabilidade. Por fim, aos movimentos sociais organizados (urbanos e rurais, incluindo indígenas, afrodescendentes, LGBT) e à sociedade civil, restaria a ocupação do espaço público nas cidades e no campo, como forma de pressionar a sociedade politica, na busca de uma solução negociada para suas reivindicações.

Esperamos que as contradições, mais que os antagonismos, sejam superadas a favor da maioria da sociedade. Afinal de contas, não está em jogo a transformação da estrutura socioeconômica do país como muitos infundadamente temem, mas de viabilizar o capital.

sábado, 1 de novembro de 2014

Carta Aberta da CPT à presidenta Dilma Rousseff


Sra. Presidenta da República Dilma Rousseff

                                                                                                 
Excelentíssima Senhora,


A Comissão Pastoral da Terra, CPT, reunida em Conselho Nacional, em Luziânia-GO, entre 27 e 29 de outubro de 2014, dirige-se respeitosamente a V. Excia. para, em primeiro lugar, parabenizá-la pela reeleição e desejar-lhe um novo mandato profícuo e benéfico para toda a nação brasileira, de modo especial para os menos favorecidos, já que foram estes a maioria dos que a reelegeram. Por isso merecem uma atenção toda especial de sua parte.

Atendendo à sua abertura e solicitação para o diálogo, expresso em seu primeiro pronunciamento após a vitória nas eleições, queremos apresentar-lhe situações e questões nacionais que passaram ao largo de toda a campanha eleitoral e que, agora, forçosamente, se tornam em alertas e reivindicações. São situações, questões e reivindicações dos povos dos campos, das águas e das florestas com quem a CPT atua e apoia.

A Senhora ao assumir a presidência jurou, e novamente vai jurar, defender e aplicar a Constituição Federal. Esta, em seu artigo 184, diz que "compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”. Constatamos que, sobretudo em seu mandato atual, no que exige este artigo, a Constituição foi tratada como letra morta, pois foi efetuado o menor número de desapropriações dos últimos 20 anos. Também não foi feita a retomada das áreas devolutas e da União que estão nas mãos de grileiros. Atribuímos isso à total falta de interesse político de seu governo em relação a este tema. São claramente privilegiados os interesses de grupos ruralistas que estão entre os principais que sempre comandaram e desmandaram sobre este país.

Estes grupos alinhados ao modelo desenvolvimentista predador estão entre os responsáveis pela devastação ambiental dos nossos biomas, com o desmatamento e a utilização intensiva de agrotóxicos que suprimem a proteção vegetal e contaminam solos, águas, ar e trabalhadores e trabalhadoras. Provocam ainda o secamento e morte de nascentes e rios, e o rebaixamento de lençóis freáticos e aquíferos. A destruição dos Cerrados compromete a segurança hídrica atual e futura, o que já se evidencia na crise de abastecimento de várias regiões do país, que não se pode atribuir simplesmente à falta de chuvas. Ao se expandir para a Amazônia, este modelo chega à última fronteira, agrava a crise ecológica e nos põe a temer ainda mais pelo futuro...

Seu governo e os do Presidente Lula, tidos como "populares”, nos quais – acreditava-se – fariam a diferença, em relação aos anteriores, para os povos do campo, acabaram se submetendo às exigências econômicas e políticas do agronegócio e deixaram milhares e milhares de famílias em situações mais que precárias, desumanas, em acampamentos à beira de estradas.

Senhora Presidenta, a retomada da Reforma Agrária, ressignificada, efetiva e melhorada, é uma medida mais que urgente que seu novo governo deve tomar, pois ela irá melhorar os índices da produção familiar, que já é responsável por 70% dos alimentos consumidos no País. Uma política de maior apoio aos camponeses e camponesas das várias categorias existentes no País, potencializará uma produção alimentar qualitativamente diferente, saudável e harmônica com os bens da terra. Os programas de seu governo – Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Política Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – provam a eficácia da agricultura familiar, responsável principal pela saída do Brasil do mapa mundial da fome, segundo a ONU em recente relatório.

Outro dispositivo constitucional, que deve ser aplicado com firmeza e determinação e com a maior urgência, é o Art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que diz que "a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Passaram-se 26 anos e a maior parte das terras indígenas ainda não foi demarcada. E o mais lamentável é que seu governo tenha determinado a suspensão da identificação das Terras Indígenas, propondo "mesas de conciliação”, que são uma forma de reduzir ou mesmo eliminar o direito à terra dos povos e comunidades, pois, como bem se sabe, "a corda sempre arrebenta do lado mais fraco”... Dezessete decretos de homologação de Terras Indígenas estão sobre sua mesa só aguardando sua assinatura, Presidenta! Outros tantos estão sobre a mesa do Ministro da Justiça para encaminhamento. Isso demonstra a falta de sensibilidade em relação a esta causa, que é de todos nós. A isso se soma a tentativa de retirar da FUNAI a competência para a identificação e demarcação dos territórios indígenas, repassando-a a órgãos que pouco ou nada sabem da realidade e história indígenas. Com isso crescem os conflitos, carregados de violência, com aumento do número de assassinatos e que colocam os primeiros habitantes deste País numa situação de inferioridade, a perpetuar o massacre da época colonial.

O mesmo acontece em relação aos quilombolas. O artigo 68 das ADCT dispõe que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. No seu primeiro mandato, esta determinação também não foi praticamente efetivada, fazendo crescer o número de conflitos envolvendo estas comunidades.

Os interesses do agronegócio – com suas monoculturas de soja, cana de açúcar, gado, eucalipto e outros –, o das mineradoras e a aposta em grandes projetos como o de construção de barragens e outras obras de energia, se sobrepõem aos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das comunidades de fundo e fecho de pasto, dos pescadores artesanais, dos faxinalenses, dos extrativistas e de outras comunidades tradicionais, e até de assentados e assentadas da reforma agrária, que são expulsos da terra com o consequente desenraizamento das famílias.

Senhora Presidenta, os conflitos e a violência, inclusive com assassinatos de camponeses e camponesas, 130 no seu governo, conforme os dados registrados pela CPT, acobertados pela impunidade, só tenderão a crescer se se mantiverem a inoperância e a corrupção em muitos órgãos governamentais, ao par do que fazem ou deixam de fazer o Legislativo e o Judiciário. O INCRA, a Fundação Cultural Palmares, além da FUNAI, devem ser fortalecidos, aprimorando os seus quadros e sua atuação.

Outra situação que merece especial atenção da sua parte é a dos trabalhadores e trabalhadoras submetidos à condição análoga à de escravos. Neste sentido lembramos que a Senhora assinou a Carta-Compromisso, proposta pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), de garantir a continuidade e a intensificação do combate ao trabalho escravo, especificamente de que não haja nenhum retrocesso na legislação vigente.

A CPT também se preocupa com a educação no e do campo. Milhares de escolas rurais têm sido fechadas, nos últimos anos, obrigando estudantes a longas viagens para longe de seu meio. Com isso a eles e elas se oferece uma educação descontextualizada que favorece o êxodo rural e o esvaziamento do campo. Muitas outras escolas que se mantêm abertas estão em condições mais que precárias. Senhora Presidenta, é urgente uma política educacional voltada para a permanência das famílias no campo, com o fortalecimento das Escolas Família Agrícola (EFAs), das Casas Familiares Rurais, das escolas indígenas, das escolas quilombolas e outras do gênero.

Senhora Presidenta, podemos esperar de sua parte uma atuação ativa para garantir aos povos dos campos, das águas e das florestas seus direitos constitucionais, sobretudo de acesso às terras e aos territórios que historicamente lhes pertencem e dos quais foram esbulhados? Ou vamos continuar assistindo a uma atuação de cunho colonialista, que vê nestes povos e comunidades simplesmente "entraves ao desenvolvimento”, ao "crescimento”?

Esperamos de V. Excia. um governo renovado, mais comprometido com as causas populares, que estavam na origem de seu partido. De nossa parte conte com este nosso apoio: continuar ao lado dos camponeses e camponesas do Brasil, em suas lutas e esperanças.

Luziânia, 29 de outubro de 2014.

Dom Enemésio Lazzaris
Presidente


FONTE: Adital

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