domingo, 16 de novembro de 2014

Consciência negra livre de machismo


    
O Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir


Por Jarid Arraes

O mês de novembro é conhecido nacionalmente como o mês da Consciência Negra, data oficializada no dia 20. Um grande ícone da resistência negra contra o racismo na ocasião é a memória de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares e grande guerreiro pela libertação da população negra no período escravocrata do Brasil. Por causa de sua coragem incisiva, Zumbi é celebrado como inspiração e símbolo do mês da Consciência Negra.

No entanto, embora Zumbi seja um grandioso exemplo para homens e mulher negros e toda a militância negra no Brasil, muitas figuras importantes acabaram sendo esquecidas ou foram apagadas da História – sobretudo protagonistas femininas, tais como a companheira de Zumbi, a guerreira quilombola Dandara dos Palmares.

Muitas pessoas desconhecem a história de Dandara e um dos maiores motivos para esse esquecimento é a própria educação brasileira, que não menciona sua existência. Mas seu apagamento é responsabilidade também dos historiadores, ou mesmo dos movimentos sociais, uma vez que mulheres negras como ela são preteridas até por militantes negros ou ativistas feministas. De fato, a invisibilidade de Dandara é apenas uma das evidências do que o racismo machista da cultura brasileira é capaz: milhares de mulheres negras vivem hoje em situações de abuso, violência, ausência de direitos e esquecimento.

Ana Flávia Magalhães Pinto: "São poucos os dados
que circulam, por exemplo, sobre a princesa
Aqualtune e Dandara". (Foto: Arquivo pessoal) 
Para a historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, esse quadro é bastante sintomático e revela uma das faces de um contexto social extremamente hostil contra as mulheres negras. “As histórias de resistência são normalmente contadas a partir da ação de uma liderança. Numa sociedade organizada a partir de valores machistas e racistas, como a nossa, não surpreende que a maioria das narrativas apresente as mulheres negras, quando muito, como coadjuvantes.” Para ela, ainda que as atuações de Ganga Zumba e Zumbi tenham sido decisivas na vida do Quilombo de Palmares, ainda temos muito o que aprender sobre as práticas de resistência mantidas por outras pessoas, com destaque para as mulheres.

Ana Flávia também chama a atenção para o papel coletivo dos quilombos como o Quilombo dos Palmares; algo que jamais poderia existir sem a atuação cotidiana das mulheres negras. “Infelizmente, são poucos os dados que circulam, por exemplo, sobre a princesa Aqualtune e Dandara. Apesar de estarmos falando de um quilombo, que pressupõe a ação de muitos, esse conhecimento limitado acaba nos aprisionando em modelos de combate ao racismo e às desigualdades nos quais as ações construídas individualmente parecem mais eficientes do que as garantidas pela ação coletiva”, pontua. De fato, o valor coletivo do combate ao racismo é de tremenda importância – e as pessoas que menos recebem reconhecimento, atenção e espaço frequentemente também fazem parte de outros grupos ditos minoritários, tais como as pessoas LGBT e as mulheres.

Na perspectiva de Ana Flávia, que é também militante do Movimento Negro, a análise desse contexto deve compreender as especificidades do racismo sofrido por homens e por mulheres, enxergando cada grupo com suas demandas diretas e relacionadas ao gênero. “Como as agressões cometidas contra os homens negros, via de regra, passam por ações brutais que resultam frequentemente em morte trágica, a violência racial que atinge as mulheres negras acaba tendo menos visibilidade. Acontece que, por exemplo, quando analisamos os dados das mortes maternas, das decorrentes de doenças evitáveis, controláveis e causadas por exposição a altos níveis de estresse, verificamos que as mulheres negras estão vulneráveis a fins tão trágicos quanto os homens”.

A violência trágica que atinge as mulheres negras tem suas nuances relacionadas à saúde física e mental, assim como estão intimamente interligadas à violência policial existente no país. O caso da auxiliar de limpeza Cláudia Silva Ferreira é um dos mais recentes exemplos que podem ser citados: baleada por uma polícia racista e arrastada pelas ruas como se não fosse uma pessoa humana, Cláudia foi mais uma mulher negra violada e assassinada pelo Estado brasileiro, que ainda legitima e promove ações de extermínio contra a população negra.

As mulheres negras brasileiras são mortas rotineiramente pelo racismo: o atendimento médico é intencionalmente negado ou atrasado, a violência obstétrica é uma realidade alarmante e a violência doméstica e sexual contra as mulheres negras tem números epidêmicos, além de serem vítimas dos maiores índices de estupro. De uma forma ou de outra, as mulheres negras acabam mortas; não obstante, a violência cometida contra os homens negros, seus filhos, pais, irmãos ou companheiros também acomete as mulheres negras de diversas formas.

Segundo Ana Flávia, além das múltiplas violências que as atingem diretamente, as mulheres negras também sofrem com os ataques cometidos contra outros membros de seu grupo familiar e sua comunidade. “Os números alarmantes que atestam a vigência de práticas genocidas contra jovens negros apontam para o impacto nefasto que essas mortes têm causado na vida de milhares e milhares de mulheres. As denúncias feitas por grupos de solidariedade entre mães vítimas da violência do Estado, como as Mães de Maio, são uma amostra do estrago que o racismo tem promovido na vida das mulheres negras. A afirmação do direito à vida é um ponto central na luta sintetizada no Dia Nacional da Consciência Negra”, explica.

Por todos esses fatores, o Dia da Consciência Negra deve voltar seu foco também para as demandas e pautas específicas das mulheres negras. O recorte de gênero é urgente e precisa acontecer para além dos modelos machistas que estamos acostumados a reproduzir.

A consciência que empodera a mulher negra

Laís Fialho: "Todos devem repensar
as opressões que reproduzem, até os
que acham que já problematizam o
suficiente." (Foto: Arquivo pessoal)
Laís Fialho é acadêmica de História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e batuqueira dos grupos de Maracatu Ingazeiro, também de Maringá, e da Nação Porto Rico, de Recife. A estudante é um impressionante exemplo de empoderamento e da transformação que a consciência negra – sobretudo da própria negritude – pode fazer por uma mulher e seu meio social.

Ela conta: “Quando criança. eu estudei num colégio particular, era bolsista. Era violentada psicologicamente e simbolicamente o tempo todo. Eles me chamavam de macaca, de Cirilo, achavam que eu não tinha nenhuma característica feminina por não ter cabelos longos, claros e lisos e as maçãs do rosto rosadas – e por isso me tiravam o direito de me achar feminina também. Quando mais velha, eu era preterida em todos os outros espaços: os meninos que ficavam comigo sempre precisavam esconder isso por algum motivo”. Fialho só começou a entender sua situação quando entrou na Universidade e teve acesso a discussões mais efetivas sobre o racismo.

Não por acaso, o relato de Fialho dialoga com milhares de mulheres negras. Episódios de discriminação na infância, objetificação sexual e dificuldade para compreender a dimensão do sofrimento gerado pelo racismo fazem parte dos depoimentos compartilhados por muitas mulheres negras que atuam politicamente, seja no movimento negro ou feminista.

Fialho ainda salienta que o racismo sofrido pelas mulheres negras nem sempre é tão explícito e escandaloso, por isso é muito mais difícil denunciá-lo e convencer as pessoas de que aquelas atitudes são racistas. “O racismo que a mulher negra sofre é mais sutil, ele impõe uma submissão e um silenciamento. Nós nunca nos sentimos a vontade pra denunciar essa opressão que sempre está ligada em maior grau a raça ou gênero, porque está ligado á nossa subjetividade. É sempre muito sutil e ardiloso”. Para ela, são as sutilezas que oprimem as mulheres negras. “Ás vezes nos fazem nos sentir como loucas e paranoicas, mas não, o problema não é nosso. Todos devem repensar as opressões que reproduzem, até os que acham que já problematizam o suficiente”, destaca.

O caminho rumo ao empoderamento pode ser árduo, já que a invisibilidade e a misoginia se unem contra a emancipação da mulher negra, atingindo sua autoimagem e percepção de papel no mundo. “O racismo sofrido pelas mulheres negras, ao meu ver, é multifacetado, velado e cruel. São precisos anos de terapia e autoafirmação pra nós mulheres negras nos sentirmos um pouco confortáveis sobre isso, pra poder sequer falar do assunto. Nossa autoestima é mais frágil, construída a partir de outros pressupostos”, afirma Laís Fialho, referindo-se, por exemplo, ao constante ataque à aparência física e à invalidação da mulher negra enquanto sujeito.

Um exemplo recente desse mecanismo perverso pode ser visto no último programa voltado ao Teleton 2014, que aconteceu no SBT. Na ocasião, o dono da emissora e apresentador Silvio Santos insinuou, em forma de “piada”, que a atriz Julia Olliver, de apenas 11 anos, não poderia continuar na carreira artista com o cabelo crespo e natural que tem. Embora muitas pessoas tenham encarado a atitude do apresentador como uma brincadeira, para as meninas negras a realidade é bem diferente e dolorosa. Afinal, “brincadeiras” como as do bilionário demarcam um espaço construído pelo racismo, que destina às mulheres negras papéis muito limitados, estereotipados e cheios de condições, entre elas está a de se submeter ao alisamento dos fios naturais.

Por isso, o caminho para o empoderamento da mulher negra passa pela articulação de suas experiências e vivências pessoais, destacando sua tomada de consciência a respeito das questões de gênero e raça. Sem essa possibilidade, se torna muito mais difícil construir uma autoestima saudável – sobretudo porque as oportunidades de melhoria de vida lhes são constantemente negadas, seja por causa do racismo ou por causa da misoginia. “A opressão e a intolerância aparecem de várias formas em todos os espaços possíveis. Quando não estamos sendo invisibilizadas por sermos negras, somos por sermos mulheres, por estarmos transgredindo o status quo, por sairmos dos espaços privados e ocuparmos espaços públicos. Isso aperreia muito”, relata Fialho.

“As pessoas não se incomodam quando eu as sirvo, mas quando transgrido a ordem e ocupo espaços de visibilidade, com falas empoderadas, com um discurso coerente e inteligente; as pessoas se assustam, como se não fosse possível uma negra ter acesso a esse tipo de discussão. É esse tipo de susto que eu gosto de dar”, conta Fialho. A acadêmica conta que faz questão de expôr suas opiniões e críticas, principalmente no que diz respeito á expropriação cultural negra. “É legal fazer eles pensarem que a raiz daquilo é negra, é divertido lidar com as caras espantadas deles por eu ter conhecimento disso. Eles esperam isso de um homem, talvez até negro, mas de uma mulher negra não, esperam só que a gente dance até o chão (não que isso não seja legítimo, eu também faço as vezes)”. Falar com propriedade, ocupar espaços e se impor são transgressões diárias para as mulheres negras.

Na ótica da batuqueira, as mulheres negras detém um tipo de conhecimento que a sociedade desvaloriza, que é o conhecimento popular. Por enfrentarem obstáculos em todas as esferas sociais, o empoderamento das mulheres negras é, segundo ela, mais lento e difícil. No entanto, o resgate cultural é uma das ferramentos de efetivação desse processo, algo que pode ser trabalho no mês da Consciência Negra, usando como oportunidades os eventos voltados ao tema. Fialho conta, por exemplo, que na cidade onde mora só é possível ver iniciativas públicas ou privadas para a discussão das questões raciais no período de novembro. Nas palavras da estudante, o mês da Consciência Negra ainda é encarado como uma espécie de folclore e em muitos casos o assunto é tratado de forma rasa. No entanto, isso é somente mais uma evidência da importância da data.

“É nesse mês que as escolas chamam nosso grupo de maracatu pra contar um pouco sobre a importância de ecoarmos nossos tambores como forma de resistência à cultura hegemônica branca e cristã. É nesse momento que são chamados os grupos de capoeira. É nesse momento que as cozinheiras preparam pratos típicos pra mostrar a riqueza da culinária afro. Esses espaços também são majoritariamente ocupados por homens negros, não podemos negar. Mas existe sim uma brecha que como eu citei é o empoderamento e o conhecimento. Se nós mulheres negras nos impomos e dizemos a eles que sabemos, temos fundamento, e queremos nos fazer ouvir, eles são obrigados a nos deixar falar. É aí que sambamos na cara da sociedade machista e racista, que antes de tudo é capitalista – quando precisam usar nosso conhecimento, mesmo que pra vender uma imagem de politicamente correto, precisam recorrer a nós, detentoras desse conhecimento”, finaliza Fialho.

Novembro das mulheres

A discussão racial no Brasil precisa avançar e conquistar novos terrenos e o crescimento do Feminismo Negro no país é um exemplo dessa necessidade, que arde antes de tudo nos núcleos onde mulheres negras se reúnem para debater e construir novas perspectivas. Os grupos feministas negros devem servir de exemplo para que outras feministas e integrantes do movimento negro possam desenvolver um padrão de autocrítica, para que as especificidades das mulheres negras não sejam sufocadas ou esquecidas dentro dos espaços de militância.

Em um país que ainda torce o nariz para o Dia da Consciência Negra, sob argumentos estapafúrdios que mascaram a discriminação racial, a mobilização das mulheres negras vem com toda força para romper paradigmas. Nos últimos meses, temos testemunhado vários indicativos de mudança, como o protesto organizado contra a série global Sexo e as Nêga – as mulheres negras incomodaram, e muito, o status quo. Outro exemplo notável, citado pela historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, é a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver, que acontecerá no dia 13 de Maio de 2015, em Brasília. Coletivos, instituições e militantes de todo o Brasil já estão se mobilizando e planejando a participação na Marcha, promovendo rodas de conversa, ciclos de debates e atividades em seus estados.

Essa movimentação é inspiradora e empoderadora para as mulheres negras e precisa ser reconhecida. Laís Fialho conhece bem o valor disso tudo: “Me sinto muito feliz por estar inserida num movimento de mulheres negras que têm se colocado cada vez mais em evidência, denunciando o racismo e as opressões de classe e gênero. Audre Lorde nos diz que não há hierarquia de opressões e que é preciso ser combativa contra todas. Me emociono com a sororidade que estamos construindo de preta pra preta. Acho que o feminismo precisa de nós, assim como nós do feminismo”, afirma.

Entre depoimentos e argumentos, a reflexão assertiva é de que o mês da Consciência Negra deve ser cada vez mais o mês da mulher negra, do reconhecimento de sua luta no passado e no presente e da incansável batalha pelo fim do machismo racista em todas as áreas de nossa sociedade. Ancestralidade, política e resistência se unem, por fim, na loa de Maracatu deixada por Laís Fialho, que fecha a entrevista cantando: “As mulheres da minha nação são guerreiras, batuqueiras, baianas e Yalorixás, conhecem a fundo os segredos do mundo com o brilho da Oxum e a coragem de Oyá. Kolofé! Axé mulheres guerreiras, mulheres de fé!”.

Foto de capa: Antônio Cruz/ABr

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