domingo, 30 de dezembro de 2018

Manter os pobres “no seu lugar”




Por Elaine Tavares *







Es­tudar e or­ga­nizar, ta­refas dos tra­ba­lha­dores



A lição é sim­ples: se o ca­pi­ta­lismo entra em crise sig­ni­fica que o lucro dos em­pre­sá­rios di­minui. Isso é ina­cei­tável para eles. Qual a saída? Ex­plorar o mais que puder os tra­ba­lha­dores para manter o lucro no mesmo nível apesar da crise. Sendo assim, quando se fala em crise, é bom que se tenha claro que ela é só para os mais po­bres. Os ricos pouco so­frem com crise. Já as ca­madas mé­dias se ar­re­bentam porque seus ne­gó­cios não con­se­guem aguentar o rojão e vão à breca. Apenas os mais ricos con­se­guem se manter por cima da carne seca.

Basta es­tudar um pouco a his­tória dos povos e já se pode com­provar essa ver­dade in­so­fis­mável. A cha­mada crise de 1929, co­nhe­cida como a grande de­pressão, durou longos anos só ter­mi­nando de­pois da se­gunda guerra mun­dial. Quem so­freu com ela: os po­bres. Entre a elite muita gente en­ri­queceu na­queles anos e a pró­pria guerra ajudou a aquecer a eco­nomia, ala­van­cando a in­dús­tria das armas e uma série de ou­tras que ser­viam para dar su­porte ao con­flito. Assim, en­quanto massas de gente mor­riam de fome ou pela guerra, uma pe­quena por­cen­tagem de em­pre­sá­rios en­chia as burras de di­nheiro.

Outro mo­mento de crise pro­funda foi agora, nesse sé­culo, em 2008, com a ex­plosão da dí­vida imo­bi­liária nos Es­tados Unidos, que levou a uma quebra geral nos bancos, todos de­vi­da­mente salvos com di­nheiro pú­blico, é claro. E, para salvar os bancos foi ti­rado tudo dos po­bres. Esses per­deram suas casas e seus in­ves­ti­mentos. Tudo co­mido sem dó. Os bancos se re­er­gueram, os grandes in­ves­ti­dores se­guiram lu­crando e tudo acabou bem para eles. Para eles, apenas. Os sem-casa nos EUA se­guiram sem poder re­cu­perar seus imó­veis e até hoje en­grossam as fi­leiras dos de­ses­pe­rados.

Enfim, re­pe­timos: a crise nunca é crise para os ricos. Não, para eles é sempre opor­tu­ni­dade de novos ne­gó­cios e novos in­ves­ti­mentos. Os po­bres que se las­quem, essa sempre foi a pa­lavra de ordem. Que fi­quem no “seu lugar”, que, para os ca­pi­ta­listas, é o de sus­tentar com seu tra­balho o luxo de poucos.

 Agora, o mundo vive nova crise do ca­pital. Ela surge em ci­clos porque jus­ta­mente os ca­pi­ta­listas con­se­guem ma­quiar os efeitos por algum tempo, ge­rando novas crises, cada vez mais pro­fundas e graves. É uma es­pécie de res­piro para que os tra­ba­lha­dores se re­com­po­nham mi­ni­ma­mente e possam ser no­va­mente ar­ro­chados até o osso. É um cír­culo vi­cioso, sem fim. A conta sempre vai parar na porta do tra­ba­lhador.

No Brasil, vamos pre­sen­ciar mais um longo mo­mento de ar­rocho e so­fri­mento para a mai­oria da po­pu­lação. Desde o se­gundo go­verno de Dilma Rous­seff as coisas vêm se pre­pa­rando para que o ca­pital re­cu­pere seus lu­cros e se man­tenha a salvo, pois es­tamos em mais uma onda de crise. Por isso as cha­madas re­formas. Elas vêm para le­gi­timar le­gal­mente o sa­queio dos tra­ba­lha­dores.

 Du­rante o go­verno Temer já vi­eram a re­forma do en­sino médio, pre­pa­rando o ter­reno para a mer­can­ti­li­zação da edu­cação de se­gundo grau, e a re­forma tra­ba­lhista, que re­tirou di­reitos dos tra­ba­lha­dores dei­xando-os to­tal­mente vul­ne­rá­veis ao longo pro­cesso de ex­pro­pri­ação que de­verá vir. O pró­ximo passo agora é a re­forma da Pre­vi­dência, que vai li­berar ainda mais o pa­tro­nato e o es­tado cap­tu­rado pelo ca­pital, das obri­ga­ções com os tra­ba­lha­dores. A ló­gica se­guirá sendo a mesma da do sé­culo 17: manter os tra­ba­lha­dores mi­ni­ma­mente vivos para que possam ser ex­plo­rados. Por isso a “ideia bri­lhante” de Ar­mínio Fraga – bra­si­leiro na­tu­ra­li­zado es­ta­du­ni­dense que já di­rigiu o Banco Cen­tral - de uma apo­sen­ta­doria uni­versal. Igual para todos.

Em prin­cípio, essa ideia de igual­dade pode pa­recer legal. Mas, não se pode tratar de ma­neira igual os de­si­guais. A pro­posta é ga­rantir 70% de um sa­lário mí­nimo a todas as pes­soas que pas­sarem dos 65 anos. “Muito bom”, dizem os in­cautos, acre­di­tando que isso é jus­tiça. Não é! Jus­tiça seria ga­rantir a cada um con­forme sua ne­ces­si­dade. Se fosse assim, um tra­ba­lhador, ao fim da vida la­boral, teria que ter ga­ran­tida uma mo­radia digna, edu­cação, saúde, se­gu­rança, ali­men­tação de qua­li­dade. Mas, sa­bemos que essa não é a re­a­li­dade. Pelo menos não no mundo ca­pi­ta­lista onde todas essas coisas pre­cisam ser com­pradas a peso de ouro.

Não é o caso de Cuba, por exemplo, onde o sa­lário é baixo, mas em com­pen­sação a pessoa não pre­cisa pagar por saúde, edu­cação, mo­radia, se­gu­rança e ainda tem uma cesta bá­sica ga­ran­tida. Mas, lá, é outro sis­tema. Não há com­pa­ração pos­sível. Vol­temos ao nosso mundo.

O novo go­verno eleito não chegou ao poder sem pro­postas. Isso é falso. Sempre foram muito claras as pro­postas do can­di­dato. Ao re­fe­ren­ciar suas falas nos exem­plos dos  Es­tados Unidos e Is­rael o can­di­dato apon­tava cla­ra­mente qual seria a linha de seu go­verno: tudo para os mais ricos, e os mais po­bres pa­gando a conta. É por isso que a re­forma da Pre­vi­dência virá avas­sa­la­dora, tra­ves­tida de  “igual­dade”. E, a con­si­derar a cam­panha cheia de no­tí­cias falsas, nada de­verá mudar. O bom­bar­deio de men­tiras con­ti­nuará sem freio. Até que a grande ficha co­mece a cair muita coisa será des­truída.

O novo go­verno nem co­meçou e o de­senho do ar­rocho já está dado. A fusão dos mi­nis­té­rios da Agri­cul­tura e Meio Am­bi­ente é a cópia mal aca­bada do re­chaço am­bi­ental pro­mo­vido por Do­nald Trump, um dos mo­delos do pre­si­dente eleito. A terra es­pe­cu­lada até o úl­timo naco, au­men­tando ainda mais a pro­le­ta­ri­zação no campo. A re­ti­rada das uni­ver­si­dades do Mi­nis­tério da Edu­cação, jo­gando-as para o de Ci­ência e Tec­no­logia é outra me­dida contra os mais po­bres. O en­sino su­pe­rior já não será mais edu­cação e sim ne­gócio, e nos dois sen­tidos: sendo ne­gócio e pro­du­zindo ne­gócio. Aca­bará com aquilo que os re­me­di­ados, ra­cistas e in­to­le­rantes ja­mais su­por­taram: os po­bres na uni­ver­si­dade. Os cen­tros de pro­dução de ino­vação ou for­ma­dores da elite serão apenas para os que podem pagar. 

No campo da se­gu­rança o mo­delo é Is­rael, com a re­pro­dução de todo o ar­ca­bouço ra­cista e eu­gê­nico. A tal ponto de o go­ver­nador eleito do Rio de Ja­neiro, da mesma turma dos ra­cistas e an­ti­po­bres, ter su­ge­rido em pú­blico e sem pejo a eli­mi­nação de pes­soas com o uso de “sni­pers”, ati­ra­dores de elite. Ou seja. Bas­tará ser negro e car­regar um guarda-chuva para o su­jeito ser atin­gido sem dó, e com a alegre apro­vação da co­mu­ni­dade que pre­fere um ino­cente morto a correr riscos.
Soma-se a isso a pro­posta de per­se­guição po­lí­tica e fí­sica dos ver­me­lhos, co­mu­nistas e afins, su­ge­rida pelo pró­prio pre­si­dente eleito em nível na­ci­onal, e temos ar­mado um triste ce­nário que vai co­brar bem caro à nação, ainda que boa parte dela es­teja jus­ta­mente es­pe­rando por isso, para gozar de prazer, as­sis­tindo pela te­le­visão
.
 Assim que aos tra­ba­lha­dores res­tará a re­or­ga­ni­zação e a luta, como sempre foi ao longo da his­tória hu­mana. Não há novas re­ceitas nem novas fór­mulas. Agora, ter­mi­nado o frisson da eleição e da der­rota cabe um pro­fundo pro­cesso de ava­li­ação e aná­lise. En­frentar o que virá vai de­mandar boas es­tra­té­gias que só po­derão se armar com pen­sa­mento crí­tico, co­nhe­ci­mento e com­pre­ensão cer­teira do que levou o país a esse mo­mento dra­má­tico. Errar na aná­lise leva ao erro na ação. 

Por isso, en­quanto o pre­si­dente eleito arma seu grupo para go­vernar o Brasil, os tra­ba­lha­dores também pre­cisam armar os seus para o en­fren­ta­mento que virá. É tempo de pensar e re­or­ga­nizar. Os po­de­rosos querem os po­bres “no seu lugar”, ou seja, na sen­zala, fora da casa grande, no chão das fá­bricas, nas sar­jetas. Mas, como sempre foi, os em­po­bre­cidos se le­van­tarão e darão suas res­postas.



* Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC





quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Radiografia de uma operação criminosa (1)




Que significaria transferir à Boeing a maior empresa brasileira de alta tecnologia.
Por que acordo permanece envolto em sigilo. Quais as alternativas para
manter controle nacional.


Por Marcos José Barbieri Ferreira

Em 21 de dezembro de 2017, a empresa norte-americana Boeing anunciou a intenção de comprar a Embraer. Os termos dessa negociação não estão concluídos. Ainda assim, já há muito o que dizer, temer e fazer a esse respeito.

O calor dos acontecimentos nem sempre é a melhor temperatura para analisar em profundidade o momento presente, mas a espera por definições é um luxo que os trabalhadores e todos os interessados na soberania e indústria nacionais não podem se dar.

Com urgência, porém muito rigor, três sindicatos de metalúrgicos (de São José dos Campos, Botucatu e Araraquara) e o Dieese reuniram, num site e numa revista, treze artigos de pesquisadores e ativistas sindicais cujas trajetórias estão diretamente ligadas ao tema Embraer ou às questões que afetam os trabalhadores frente às fusões e aquisições em um cenário de crescente precarização e desregulamentação do trabalho. “Outras Palavras” passa a publicar uma seleção deste material.

O assunto será abordado por ao menos três vieses:

a) essa negociação é prejudicial à soberania nacional?

b) qual o futuro dos trabalhadores caso o controle total ou parcial da Embraer seja adquirido pela Boeing?

c) é possível para a Embraer sobreviver, em um mercado altamente competitivo, sem ter seu controle alienado para a Boeing ou outra companhia?

O diálogo entre a academia e dirigentes sindicais está presente a todo momento, a fim de que todos possam desempenhar plenamente suas atribuições ao relacionar de forma viva a pesquisa e a vivência prática.

Por fim, agradecemos profundamente todas as autoras e autores que prontamente contribuíram para fomentar esse debate.  Sem eles, não seria possível fazer chegar ao público essa contribuição diversa e de qualidade (Renata Belzunces, do Dieese)




Outras Palavras inicia publicação de uma série de artigos sobre a venda da Embraer para a Boeing. É uma parceria com os sindicatos dos metalúrgicos de São José dos Campos (CSP-Conlutas), Botucatu (Força Sindical) e Araraquara (CUT). Eles são parte da campanha “A Embraer é Nossa. Não à venda para a Boeing”  


Por Marcos José Barbieri Ferreira

O termo combinação — utilizado no comunicado oficial da Embraer, em 21 de dezembro de 2017 (EMBRAER, 2017), para justificar as conversações com a Boeing — é extremamente genérico e pode incluir todo tipo de acordo entre as duas empresas, desde restritos contratos comerciais ou tecnológicos até a completa aquisição da empresa brasileira pela sua congênere estadunidense. Em realidade, a primeira informação pública sobre essas conversas, divulgada no dia anterior ao comunicado da Embraer pelo conceituado Wall Street Journal (MATTIOLI, 2017), indicava que a Boeing tinha por objetivo um “Takeover”, isto é, adquirir o controle da fabricante brasileira de aeronaves.

Dada a importância econômica, tecnológica e estratégica que a Embraer possui para o Brasil, é fundamental que a negociação entre as duas empresas seja apresentada, esclarecida e discutida com toda sociedade.

O padrão de concorrência na indústria aeronáutica mundial é marcado pela contínua e crescente introdução de inovações tecnológicas. Por sua vez, esse elevado dinamismo tem resultado em custos e incertezas cada vez maiores, particularmente no que se refere ao desenvolvimento de novas aeronaves.

Essas elevadas barreiras competitivas na indústria aeronáutica têm, continuamente, ampliado o tamanho mínimo exigido dos fabricantes de aeronaves, dado que somente as grandes empresas podem fazer frente aos crescentes desafios — tecnológicos e financeiros — inerentes ao processo de inovação. Como consequência, observou-se uma contínua concentração da estrutura produtiva da indústria aeronáutica mundial, que começou no pós-guerra e, posteriormente, expandiu-se para além da própria indústria aeronáutica. O resultado foi a criação dos grandes conglomerados aeroespaciais e de defesa (A&D) que, além da fabricação de aeronaves, também abrangem os setores espacial e militar. Nas últimas décadas, esses conglomerados tornaram-se a estrutura organizacional predominante na indústria aeronáutica mundial (FERREIRA, 2009).

Contudo, o caráter estratégico desses grandes conglomerados — seja pela posição-chave no fornecimento de produtos de defesa, seja por ser um setor de alta tecnologia (empregos mais qualificados e produtos de alto valor agregado) — fez com que o processo de concentração, que resultara na criação dessas grandes empresas, ficasse restrito às fronteiras nacionais. Ao contrário, a concentração em âmbito local permitiu a constituição de grandes conglomerados nacionais que se enfrentam na esfera internacional. O controle nacional dos grandes conglomerados A&D não apenas permaneceu, mas foi reforçado com o processo de concentração da indústria aeronáutica.

De acordo com dados recentes da consultoria Deloitte (2016), “nenhum” dos grandes conglomerados A&D do mundo tem a sua estrutura de controle comandada pelo capital estrangeiro. Mesmo no caso das operações realizadas dentro de um bloco econômico consolidado, como a União Europeia, o caráter nacional dos conglomerados A&D permanece incólume. Por exemplo, desde sua origem, a “europeia” Airbus tem o seu controle igualmente dividido entre os franceses e os alemães.

Apesar de necessário, esse vigoroso processo de concentração tem se mostrado insuficiente para fazer frente aos desafios impostos pela crescente complexidade tecnológica das novas aeronaves. Desta maneira, os conglomerados A&D de diferentes países vêm estabelecendo alianças estratégicas, que possibilitam a união de esforços de empresas de distintas nacionalidades sem que percam a autonomia, dado que não envolve a aquisição de uma empresa pela outra. Na maioria dos casos, as alianças estratégicas surgiram da crescente necessidade de se associar e integrar os recursos de diferentes empresas — em geral, de diferentes nacionalidades — para desenvolver um projeto específico.

Neste contexto, a discussão sobre a possível aquisição, ainda que parcial, da Embraer pela Boeing está em contraposição ao padrão de concorrência da indústria aeronáutica mundial, pois os países buscam preservar e reforçar o controle nacional dos seus respectivos conglomerados A&D.

Mesmo a aquisição do programa C-Series da canadense Bombardier pela europeia Airbus, que poderia ser apresentada com um contraponto à questão nacional, deve ser melhor esclarecida. Cabe ressaltar que o negócio está restrito ao problemático programa de aeronaves comerciais C-Series que, desde sua origem, apresentou custos elevados e baixas encomendas em razão dos erros estratégicos cometidos pela direção da Bombardier. Além disso, é importante ressaltar que o programa C-Series iniciou suas vendas em 2016 e ainda tem uma participação muito restrita nas receitas da Bombardier. Apesar de envolver um projeto problemático, deficitário e incipiente, a Bombardier manteve uma participação de 31% e a província de Quebec deteve 19% da subsidiária responsável pelo programa, a C-Series Aircraft Limited Partnership (CSALP). A Airbus adquiriu 50,01% das ações dessa unidade de negócios, mas pelo acordo a sede administrativa e a principal linha de produção continuarão no Canadá (Oliveira, 2017). Em realidade, este caso demonstra a importância do controle nacional dos grandes conglomerados A&D, mesmo sobre projetos específicos, ao invés de refutá-lo.

No caso brasileiro, a importância de se manter o controle nacional da Embraer é ainda mais crucial. Primeiro, ela responde sozinha por mais de 80% das receitas do conjunto de empresas que compõem o setor aeroespacial brasileiro (AIAB, [s.d.]). Ademais, o restante da cadeia produtiva da indústria aeronáutica brasileira é muito restrita, formada majoritariamente por fornecedores de segundo e terceiro níveis, altamente dependentes da Embraer (FERREIRA, 2016). Desta maneira, é possível afirmar que a eventual perda de controle da Embraer significaria a perda de controle do conjunto da indústria aeronáutica brasileira, seja pela atuação direta dessa empresa, seja pela coordenação que ela exerce sobre a cadeia de suprimentos.

Segundo, a Embraer é uma marca da exceção dentro da estrutura produtiva brasileira, destacando-se como a única grande empresa nacional com ativa inserção internacional num setor de alta tecnologia, contando inclusive com subsidiárias em outros países, como Portugal e EUA. Em suma, a Embraer é a única global player que o Brasil possui num setor de alta tecnologia e, certamente, seria uma grande perda subordiná-la aos interesses de uma empresa estrangeira.

Os desafios que se impõem à indústria aeronáutica mundial — particularmente aos grandes conglomerados A&D — são crescentes, em decorrência da incorporação de um amplo conjunto de tecnologias inovadoras somado ao acirramento da concorrência internacional, marcada pelo avanço da China. No entanto, a Embraer vem ocupando uma posição de destaque no cenário internacional. De acordo com os dados da Deloitte (2016), a Embraer é o 22º maior conglomerado A&D do mundo, ocupando a terceira posição entre as maiores fabricantes de aviões, com reconhecida competência em todos os mercados que atua: comercial, executivo e militar.

Essa ativa inserção internacional é o reflexo da elevada capacitação tecnológica e gerencial que a Embraer construiu ao longo das suas quase cinco décadas de existência. Além da reconhecida competência no desenvolvimento de aeronaves, a Embraer foi considerada a empresa que mais investiu em processos de manufatura avançada no Brasil, nestes últimos anos. A isto soma-se uma elevada inteligência de mercado que possibilita à Embraer identificar janelas de oportunidade e alcançá-las à frente dos seus concorrentes. Como resultado, a empresa conquistou encomendas de aeronaves que totalizavam mais de US$ 18 bilhões, no final de 2017 (EMBRAER, [s.d.]).

Essas características fazem com que a Embraer tenha um elevado poder de mercado para negociar alianças estratégicas com parceiros internacionais sem a necessidade de transferir o controle da empresa, ainda que parcialmente. Na realidade, desde sua origem, a Embraer vem adotando de maneira muito bem-sucedida a estratégia de parcerias, acordos e alianças com diversas empresas estrangeiras, visando à sua capacitação tecnológica e comercial, sem envolver o controle. Destacam-se os acordos com os italianos da Aermacchi e Alenia nos programas Xavante e AMX; com a estadunidense Piper na fabricação de aviões leves; com a Harbin para entrada no mercado chinês e, mais recentemente, com a sueca Saab no programa de transferência de tecnologia do avião de caça Gripen NG. Não faz sentido dentro da lógica competitiva da indústria aeronáutica, a transferência do controle da Embraer ou de algum segmento ou programa específico, ainda mais agora que a empresa alcançou uma posição de liderança global.

A possível transferência de controle das atividades de desenvolvimento, produção e comercialização de aeronaves civis (comerciais e executivas) para a estadunidense Boeing — como veiculado, recentemente, na imprensa (Adachi & Torres, 2018) — significaria o desmonte da empresa brasileira e vai na contramão do processo de consolidação da estrutura produtiva da indústria aeronáutica mundial, que resultou na constituição dos grandes conglomerados A&D, sendo a própria Embraer um dos casos de sucesso desse processo.

A busca pela atuação dual (civil e militar) visa a robustecer a atuação dos grandes conglomerados por meio da possibilidade de ampliar os ganhos provenientes da sinergia entre os diferentes negócios da empresa, além da mitigação dos riscos proporcionada pela maior diversidade de operações. No caso específico da Embraer, o segmento militar tem sido responsável pela introdução da maioria das inovações tecnológicas. Já o segmento civil (comercial e civil) fornece a escala produtiva, respondendo por mais de 80% das receitas da empresa. A possível execução desta proposta transformaria a área de aeronaves civis da Embraer em uma subsidiária estrangeira com o centro de decisões transferido para o exterior. Por sua vez, relegaria a área de defesa à inviabilidade econômica, implicando em sérias dificuldades para execução dos programas estratégicos de defesa sob sua responsabilidade, além de consequências ainda mais negativas para o futuro.

A transferência do controle da Embraer — ou de parte dos seus negócios — para Boeing ou qualquer outra empresa estrangeira seria o fim da Embraer como a conhecemos, seria o fim da global player brasileira. A Embraer pode mais do que isso e solução passa pela construção de alianças estratégicas internacionais que efetivamente preservem a integridade e o controle nacional da empresa.

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Referências

ADACHI, V.; TORRES, F. Boeing quer ter o controle de até 90% da ‘nova Embraer’. Valor Econômico, 6 de fevereiro de 2018. Disponível em: 
<http://www.valor.com.br/empresas/5308429/boeing-quer-ter-o-controle-de-ate-90-da-nova-embraer. Acessado em: 2018.

AIAB – ASSOCIAÇÃO DAS INDÚSTRIAS AEROESPACIAIS DO BRASIL. Base de dados. [s.d.]. Disponível em: <http://www.aiab.org.br/>. Acessado em: 2018.

DELOITTE. 2016 Global aerospace and defense sector outlook. Disponível em: file:///C:/Users/Barbieri/Downloads/sea-mfg-2016-global-aerospace-defense-outlook-noexp%20(1).pdf. Acessado em: 2017.

EMBRAER. Boeing e Embraer Confirmam discussões sobre Potencial combinação. Embraer, 21 dez 2017. Disponível em: <https://embraer.com/br/pt/noticias#/4113-Boeing-e-Embraer-Confirmam-Discussoes-sobre-Potencial-Combinacao>. Acessado em: 2017.

EMBRAER. Informações Instituionais, [s.d.]. Disponível emt: <http://goo.gl/wxu57x>. Acessado em: 2017.

FERREIRA, M.J.B. Dinâmica da inovação e mudanças estruturais: um estudo de caso da indústria aeronáutica mundial e a inserção brasileira. 2009. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia, Universidade de Campinas, Campinas, 2009.

FERREIRA, M.J.B. Plataforma Aeronáutica Militar. In.: IPEA/ABDI. Mapeamento da Base Industrial de Defesa. Brasília: ABDI – Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial: Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2016.

MATTIOLI, D.; CIMILLUCA, D.; HOFFMAN, L. Boeing Held Takeover Talks With Brazilian Aircraft Maker Embraer. Wall Street Journal, Dec. 21, 2017. Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/boeing-held-takeover-talks-with-brazilian-aircraft-maker-embraer-1513874742>. Acessado em: 2017.

OLIVEIRA, J.J. Airbus e Bombardier se unem para produzir jatos comerciais C-Series. Valor Econômico, 17 out. 2017. Disponível:
<http://www.valor.com.br/empresas/5158088/airbus-e-bombardier-se-unem-para-produzir-jatos-comerciais-cseries>. Acessado em: 2017.


domingo, 16 de dezembro de 2018

Seremos, então, todos precários?



Elogio de Bolsonaro à “informalidade” do trabalho não é vão. Futuro governo tem planos concretos para rebaixar valor dos salários e favorecer empregadores. Mas é faca de dois gumes…




Por Vitor Nuzzi, em Rede Brasil Atual


Não é de hoje que o Ministério do Trabalho vem sendo desmantelado, diz em entrevista o professor Marco Gonsales, da Universidade São Judas Tadeu. “Para que existir, se a sua função é tida como um dos maiores empecilhos para o sucesso do projeto de país que essa gente aspira? O principal alvo dessa guerra não é o ministério, é o trabalhador e a trabalhadora e, portanto, o trabalho, no sentido dos direitos conquistados”, afirma, sobre o plano de “fatiar” a pasta,cujas atribuições, na gestão Bolsonaro, deverão se espalhar por três áreas.

Isso deixará ainda mais pendente, pró capital, uma balança que a rigor nunca teve equilíbrio no Brasil, avalia o professor, que antes de ir para a academia atuou no meio empresarial e formação em Administração de Empresas. “Um fenômeno também global característico desta fase neoliberal do capitalismo. Há pelo menos 50 anos, países centrais e periféricos realizam os ajustes rumo à tão sonhada “austeridade” fiscal. Em suma, eliminam direitos – sob o pretexto do equilíbrio das contas públicas.”

As consequências nocivas ao trabalhador serão várias, enumera. “Para que fiscalização, se o trabalho análogo a escravidão será legalizado com as carteiras verde e amarela?”, questiona Gonsales. “Os empresários não terão mais motivos para não formalizar os seus trabalhadores. Direitos conquistados ao longo do século 20 serão suprimidos. Grande parte do atual e do futuro governo é composta por grupos empresariais responsáveis pelo trabalho escravo e infantil no país, tanto no campo quanto nos centros urbanos.”

Ele avalia que a situação irá piorar, em um país que já tem 27 milhões de desempregados ou subempregados, com uma “regulamentação de desregulamentação”. Normas de saúde e segurança também deverão ser comprometidas. “Temos uma média de 700 mil acidentes de trabalho por ano no Brasil. Ocupamos o trágico quarto lugar no mundo em ocorrência de acidentes de trabalho, atrás somente da China, Índia e Indonésia. Em suma, a quase metade da classe que trabalha no Brasil reclama por salários atrasados, um quinto implora por uma alimentação digna e outros 16% por mínimas condições de trabalho. Não tem como o Brasil não ser um dos lugares mais perigosos para se trabalhar no mundo e, com toda certeza, esse cenário só deve piorar com o futuro governo.”

Qual o significado, em termos institucionais, do fim ou do “fatiamento” do Ministério do Trabalho?

Temer e Bolsonaro são faces da mesma moeda. A diferença é o como fazer, mas o objetivo é o mesmo. Para esses representantes das frações dominantes brasileiras, o objetivo é claro: manter o Brasil na posição de país subalterno, semi-periférico, norteado pelos interesses do grande capital internacional. É assim que a nossa elite aprendeu historicamente a acumular riqueza, se perpetuar no poder e saquear o país: explorando o trabalhador e trabalhadora e/ou entregando as nossas riquezas, naturais e socialmente construídas. Veja o caso da Embraer. Um patrimônio brasileiro que FHC privatizou, Temer preparou e será entregue definitivamente por Bolsonaro.

O desmantelar do MT não é de hoje. Quem não se lembra da nomeação de Cristiane Brasil, por Michel Temer, para a pasta do ministério? A filha de Roberto Jefferson tinha sido processada pela Justiça do Trabalho, além de possuir três ações movidas contra ela por três antigos funcionários. Já o atual ministro, Caio Luiz de Almeida, Vieira de Mello, recebeu 24 atuações entre 2005 e 2013 da própria pasta que passou a comandar. Um escárnio!

Como apresentado, de maneira ainda muito leviana, pra não dizer amadora, pelo futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, a Secretaria de Políticas Públicas deve ficar com os ministérios da Economia, de Paulo Guedes, e Cidadania, de Osmar Terra. Este último foi ministro do Desenvolvimento Social de Michel Temer e responsável pelo cancelamento de 85 mil auxílios-doença e pelo corte de 4,4 milhões de famílias do Bolsa Família.

Em suma, o fim do MT começou a ser desenhado após o golpe parlamentar de 2016. Para que existir, se a sua função é tida como um dos maiores empecilhos para o sucesso do projeto de país que essa gente aspira? O principal alvo dessa guerra não é o MT, é o trabalhador e a trabalhadora e, portanto, o trabalho, no sentido dos direitos conquistados. As frações burguesas brasileiras, e de muitos outros países periféricos, vivem ancoradas na lógica do capitalismo de rapina.

Parece fato que o MT deixou de ter peso nas decisões governamentais. Mas sua extinção não enfraquece ainda mais a área social, em favor da econômica, predominante? A balança não fica ainda mais desequilibrada?

A balança, que por aqui nunca teve equilíbrio, também, desde 2016, pende radicalmente a favor do capital. Um fenômeno também global característico desta fase neoliberal do capitalismo. Há pelo menos 50 anos, países centrais e periféricos realizam os ajustes rumo à tão sonhada austeridade fiscal. Em suma, eliminam direitos – sob o pretexto do equilíbrio das contas públicas. É claro que esse caminho não é linear, cada povo tem as suas particularidades sociais, culturais e políticas, há também os conflitos entre os próprios capitalistas, além das lutas das classes subalternas que também dão o tom neste processo.

A própria América Latina elegeu diversos governos progressistas no começo deste século em meio ao período neoliberal capitalista. O próprio México, ao que tudo indica, deve adentrar em um período de conquistas de direitos pelas classes subalternas. Mas não há dúvida, o capitalismo em sua fase neoliberal – principalmente após as quedas da URSS e do muro – desequilibra a balança das lutas de classes a favor das elites. Não por menos, os estudos sobre a desigualdade social no capitalismo contemporâneo, de Thomas Piketty, são best-sellers.

Como fica, por exemplo, a atuação dos grupos móveis de fiscalização de combate ao trabalho escravo, criados em 1995 e que se tornaram uma política do Estado? Lembrando que essa ação específica sempre esteve na mira de grupos críticos ao que chamam de “excessivo” rigor da lei.

Para que fiscalização se o trabalho análogo a escravidão será legalizado com as carteiras verde e amarela? Segundo Paulo Guedes, a carteira de trabalho verde e amarela garantirá apenas três direitos: férias remuneradas, 13º e FGTS. Os empresários não terão mais motivos para não formalizar os seus trabalhadores. Direitos conquistados ao longo do século 20, como salário mínimo, hora extra, vale transporte, aviso prévio, seguro-desemprego, repouso semanal remunerado, salário-família, licença-maternidade, licença-paternidade auxílio-doença, adicional noturno, insalubridade e aposentadoria, serão suprimidos. No mais, a fiscalização é uma das principais funções do MT. No entanto, grande parte do atual e do futuro governo é composta por grupos empresariais responsáveis pelo trabalho escravo e infantil no país, tanto no campo quanto nos centros urbanos. A União Democrática Ruralista (UDR), uma das organizações de classe que mais apoiou o Bolsonaro, chama de “indústria das multas de cunho ideológico” as equipes de fiscalização do ministério.

Em relação às políticas públicas, o que se pode esperar caso essa área específica fique mesmo sob o comando de Paulo Guedes na Economia?

O principal objetivo do MT é pensar a geração de emprego. No Brasil, hoje, há mais de 27 milhões de desempregados ou subempregados e fica evidente que este quadro deve piorar. A política pública do futuro governo, no âmbito do trabalho, nós já sabemos. É a criação das “carteiras de trabalho verdes e amarelas”, idealizadas por Paulo Guedes. Uma sequência lógica após a reforma trabalhista realizada pelo governo Michel Temer. Em suma, ambas seguem a linha de muitas outras reformas realizadas recentemente em grande parte do mundo, onde o trabalho intermitente e com nenhum ou quase nenhum direito garantido, tem sido regulamentado. Em suma, regulamenta-se a desregulamentação. É a legalização do trabalho análogo a escravidão. É um mundo onde ser explorado (legalmente), tornou-se um privilégio.

A partir da pasta do Trabalho se elaboram também, por exemplo, normas técnicas de segurança e saúde no trabalho. Essa função pode ficar comprometida?

Não tem como não ficar comprometida. Temos uma média de 700 mil acidentes de trabalho por ano no Brasil. Ocupamos o trágico quarto lugar no mundo em ocorrência de acidentes de trabalho, atrás somente da China, Índia e Indonésia. Mais da metade da classe trabalhadora brasileira necessita da hora extra ou faz jornada dupla, em casa ou em outro emprego. Segundo o Dieese, há cinco anos, a classe trabalhadora brasileira realiza uma média de 2 mil greves por ano. Somos um dos países que mais pulsa no mundo. Os principais motivos para as greves são: atraso de salário (38%), reajuste (30%), alimentação (18%), condições de trabalho (16%). Em suma, a quase metade da classe que trabalha no Brasil reclama por salários atrasados, um quinto implora por uma alimentação digna e outros 16% por mínimas condições de trabalho. Não tem como o Brasil não ser um dos lugares mais perigosos para se trabalhar no mundo e, com toda certeza, esse cenário só deve piorar com o futuro governo. Em suma, tanto a fiscalização quanto a segurança do trabalho devem ser menosprezadas, assim como já são pelo o atual governo.

E os recursos do FAT e do FGTS, como ficaria sua gestão?

Aparentemente, os recursos do FAT e do FGTS, capital da classe trabalhadora, deve ficar com a pasta da Economia, um patrimônio de R$ 800 bilhões. Acenam revisar parte dos gastos obrigatórios e Paulo Guedes, recentemente, se posicionou favorável a restringir e até acabar com o abono salarial e com o seguro-desemprego. Em suma, mais direitos suprimidos, um saque, à luz do dia, à classe trabalhadora brasileira.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Os negócios multimilionários da “Escola sem Partido”



Não há apenas ideologia da ultra-direita por trás da proposta. Se aprovada, ela será um maná de dinheiro
d para certas escolas e editoras de livros didáticos. "Investidor", Paulo Guedes será um dos beneficiados



Por Amanda Audi, no Intercept  | Imagem: Vitor Teixeira


Jair Bolsonaro não poderia ter escolhido um comandante para o Ministério da Educação mais alinhado ao que defende para o setor. O colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodríguez acredita que o sistema de ensino estaria contaminado por uma “doutrinação de índole cientificista e enquistada na ideologia marxista” e “destinado a desmontar os valores tradicionais da nossa sociedade”.

Caberá a ele definir prioridades para um orçamento de mais de R$ 120 bilhões, o terceiro maior da União (atrás de Desenvolvimento Social e Saúde), e discutir temas que são caros ao presidente eleito e seus apoiadores, mas que estão longe de consenso na sociedade e no meio político – como a Escola sem Partido.

Indicado pelo filósofo de extrema direita Olavo de Carvalho, Rodríguez é professor da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e professor associado da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em seu blog pessoal, ele publicou, antes de ser confirmado no cargo, um “roteiro para o MEC”, no qual defende que a educação seja recolocada “a serviço das pessoas” e não para “perpetuar uma casta que se enquistou no poder”. Ele também chama o golpe militar de 1964 de “intervenção” e acha que o Enem é “instrumento de ideologização”. Em outra postagem, de setembro de 2017, opinou sobre o projeto Escola sem Partido: “uma providência fundamental”.

Mas não é só uma questão ideológica. O projeto Escola sem Partido, uma lei que propõe abordagens “neutras”, como tratar a ditadura militar brasileira como “contra-revolução democrática de 31 de Março de 1964″, e sem educação sexual para livrar salas de aula de “doutrinação de esquerda”, também envolve dinheiro. E alguns dos mais interessados estão justamente na base do presidente eleito.

As propostas de Bolsonaro para a Educação valorizam o ensino privado, em que temas como a Escola Sem Partido acabam tendo mais entrada, já que as instituições ficam mais livres para desenharem seus currículos educacionais ao sabor do mercado. Já foi anunciado que haverá corte de recursos para universidades públicas, e a equipe analisa a cobrança de mensalidade em instituições federais e a distribuição de “vouchers” para alunos de baixa renda estudarem nessas instituições. O próximo governo também quer priorizar o ensino à distância, considerado mais barato que o convencional. Bolsonaro já defendeu o ensino privado e à distância como forma de combater o “marxismo”.

Se for aprovado, além de satisfazer a onda conservadora que varre o país, o Escola Sem Partido também será uma ótima oportunidade de negócio para empresas de educação, sejam elas escolas ou editoras que imprimem livros didáticos. Publicações e currículos terão de ser reescritos, e quem se adiantar ao projeto larga em vantagem.

Um dos principais beneficiados com o projeto é o seu guru da Economia, Paulo Guedes. Nos últimos anos, o Posto Ipiranga do novo presidente teve como foco de investimento justamente o setor de educação particular, que agora deve florescer.

Os negócios em educação de Guedes podem lucrar em duas frentes: com o reforço da educação privada e com as mudanças que podem ocorrer nos próximos anos com o Escola Sem Partido.

Na Bozano Investimentos, ele investiu em grupos de escolas, universidades e editoras de livros escolares, prevendo que o ensino particular iria trazer maior retorno. As empresas que fazem parte da cartela da Bozano reúnem, hoje, centenas de milhares de estudantes. O bom desempenho garantiu retorno financeiro à Bozano (e, por consequência, a Guedes).

Um deles é o autointitulado maior grupo educacional do mundo – o Kroton. Ele alcançou a posição após comprar a Somos Educação. Esta, por sua vez, cresceu vertiginosamente nos últimos anos. Para isso, recebeu ajuda: investimentos da empresa de Guedes.

Não fica claro quanto, exatamente, foi parar no bolso do economista. Os balanços operacionais da Bozano foram retirados do site recentemente. Mas, se as empresas investidas têm lucro, os fundos de Guedes recebem mais dinheiro, e uma parte é dividida entre os sócios.

Para se ter uma ideia, em 2012, quando entrou no fundo BR Educacional, uma gestora de ativos pertencente a Guedes, o grupo Anima projetou que passaria de 42 mil para 100 mil alunos. Foi o que aconteceu. No balanço de resultados deste ano, o grupo apontou ter chegado aos 97,9 mil estudantes. O lucro bruto, no primeiro semestre deste ano, foi de R$ 246 milhões contra R$ 70 milhões no começo de 2012. O MPF está investigando o fundo por suspeita de irregularidades na gestão de dinheiro de fundo de estatais.

Curiosamente, no mesmo texto em que traça um “roteiro para o MEC”, o novo ministro da Educação critica empresas financeiras que, “através de fundos de pensão internacionais, enxergam a educação brasileira como terreno onde se possam cultivar propostas altamente lucrativas para esses fundos”. Resta saber se ele será tão duro assim com os negócios de Guedes, seu colega de primeiro escalão.

Lobby no Congresso

Não é só Paulo Guedes que tem interesse no Escola sem Partido. Um dos autores do projeto de lei sobre o assunto na Câmara, o deputado Izalci Lucas, é um velho defensor do ensino particular. Ele diz, no projeto, que a “ideologia de gênero” estaria sendo usada em sala de aula para destruir famílias. Izalci foi eleito para o Senado e já declarou apoio a Bolsonaro. Ele é presidente do PSDB do Distrito Federal e integrante da bancada da Bíblia.

Izalci ainda consta como sócio de instituições de ensino em Brasília, apesar de alegar que se afastou dos negócios quando entrou na política. Ele também já foi presidente do sindicato do setor duas vezes. Enquanto líder sindical, criou o Cheque Educação, que oferecia descontos de até 50% na mensalidade de universidades particulares para estudantes de baixa renda – proposta muito parecida com o voucher de Guedes. Uma de suas propostas de lei pede isenção de impostos para instituições de ensino privadas.

Em 2014, a sua campanha à Câmara foi financiada por grandes grupos educacionais. As doações somaram R$ 218 mil, cerca de um quarto do total arrecadado por ele na época. A prestação de contas da campanha de 2018 ainda não foi divulgada.

O projeto Escola sem Partido ainda deverá ser aprovado no plenário da Câmara e do Senado. Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal pode decidir sobre uma lei do Alagoas semelhante à Escola sem Partido. Mesmo valendo apenas para o estado, a decisão irá firmar a posição da Corte sobre o assunto.

Se não for à votação este ano, a partir de 2019 o trâmite será facilitado, pois o PSL, partido de Bolsonaro, terá a segunda maior composição da Casa. Foram eleitos notórios apoiadores da medida, como Joice Hasselmann, Alexandre Frota e Kim Kataguiri, que trabalharão para ela ser aprovada.

No ano passado, a ONU manifestou preocupação com a proposta. Relatório enviado ao governo brasileiro diz que a proposição permite “alegar que um professor está violando as regras pelo fato de autoridades ou pais subjetivamente considerarem a prática como propaganda político-partidária”, e poderá retirar das salas de aula “discussões de tópicos considerados controversos ou sensíveis, como discussões de diversidade e direitos da minorias”.

Dos 45 deputados que integram a comissão especial na Câmara, a maioria (23) pertence à bancada evangélica. O presidente, Marcos Rogério, do PDT de Rondônia, se diz defensor dos “valores da família e princípios cristãos”. Os primeiro e segundo vice-presidentes são pastores evangélicos.

O relator do projeto na comissão, deputado Flavinho, do PSC de São Paulo, diz em seu parecer que é possível que uma criança mude de sexo por influência dos professores. O texto foi chamado de “brilhante” por Miguel Nagib, procurador de São Paulo que criou uma empresa e uma associação com o nome Escola sem Partido. Ele dá palestras sobre o assunto pelo país, e lucra com isso.

A bandeira também é defendida publicamente por grupos neoliberais como o Movimento Brasil Livre e o Revoltados Online – este último tem como uma de suas coordenadoras uma cunhada de Nagib.

Sem partido mas com a conta cheia

No mercado editorial, há expectativa entre as editoras de material didático de que sejam aplicadas regras da Escola sem Partido no próximo edital para compra de livros didáticos (o governo é o maior comprador), de acordo com Carlo Carrenha, editor e fundador do Publishnews. Algumas se adiantaram e já estão adaptando os materiais, numa espécie de autocensura. “Tenho ouvido de escritores e ilustradores que não pode mais aparecer criança nua tomando banho, por exemplo. Isso seria pornografia’”, afirma Volnei Canônica, especialista em literatura infantil e diretor do clube de livros Quindim.

A professora Fernanda Moura, que estudou o Escola sem Partido para a dissertação de mestrado, defende que o movimento é moralista na aparência, mas esconde interesses econômicos. A ideia é criar pânico, como se os estudantes realmente estivessem aprendendo sobre socialismo e educação sexual de forma inadequada. “Assim, aumenta-se o mercado para materiais didáticos e aulas prontas, e também a demanda por matrículas em sistemas particulares de ensino nos quais os professores têm autonomia extremamente restrita”, afirma.


terça-feira, 27 de novembro de 2018

Universidades vivem clima de denuncismo e temem repressão em sala de aula







Por Renata Cafardo – Essas são algumas das histórias que o Estado ouviu na última semana. Universidades públicas e privadas do País vivem um clima de denuncismo e medo. A reportagem conversou com dezenas de alunos e professores de instituições de vários Estados e constatou o receio da perda da liberdade nos ambientes acadêmicos.

Interferências autorizadas por juízes em universidades na semana anterior à do segundo turno das eleições tornou maior a tensão. Trata-se do reflexo a um dos momentos políticos mais polarizados da história do País. Outro motivo de apreensão para docentes e estudantes é a iminência da aprovação do projeto conhecido como Escola sem Partido, defendido pelo presidente eleito.

“A afronta à autonomia universitária e à liberdade de cátedra não acontece só pela intervenção do Estado ou poder político, como na ditadura militar”, diz o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Floriano de Azevedo Marques Neto. “Isso pode acontecer por meio de grupos que queiram impedir aulas, por exemplo, seja de direita ou esquerda”.

Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) uma lista com cerca de 15 nomes circulou na semana passada, intitulada “Doutrinadores e alunos que serão banidos do Centro de Filosofia e Ciências Humanas”. Cada professor ou estudante era identificado com insultos específicos, como “comunista antidemocrático”, “socialista que faz apologia do uso de drogas”, “viado” e “feminazi”.

Na mesma instituição, o professor de Filosofia Rodrigo Jungmann, de 52 anos, teve cartazes no estilo “procura-se” pendurado pelo câmpus. “Eles me chamam de fascista e têm a fantasia de que eu quero ser reitor e privatizar a universidade”, disse. “Declarei meu voto ao Bolsonaro, mas nunca fiz campanha nas minhas aulas”. Jungmann chegou a ser impedido de sair da cantina e dar aulas porque alunos o cercaram com ofensas e ameaças de agressão.

A guarda universitária teve de escoltá-lo até em casa. A instituição divulgou nota repudiando o comportamento de ambos os lados e disse que vai comunicar os fatos ao Ministério Público e àPolícia Federal.

“Está muito difícil dar aulas, há pressão para que a gente não fale as coisas que pensa e passamos a ter medo dos alunos”, afirma um professor da Belas Artes, centro universitário particular com cursos de comunicação, artes e arquitetura. Ele não quer ter o nome divulgado por medo de represália. Segundo docentes, a reitoria da instituição declarou apoio ao projeto Escola sem Partido e pediu que não sejam feitos comentários sobre política.

Em texto no site da instituição, o reitor e proprietário da Belas Artes, Paulo Cardim, diz que “é público e notório” e “com crescimento considerável durante o governo petista”, que professores “usam a sala de aula como palanque para as suas pregações ideológicas”. O pró-reitor acadêmico Sydnei Leitediz que a posição do reitor é pessoal e não reflete o que ocorre na faculdade. “Muito pelo contrário, a recomendação é puxar a corda, levar os autores, os pensadores, queremos que os alunos tenham dúvidas.”

O polêmico projeto Escola sem Partido está em discussão em uma comissão especial da Câmara e sua votação vem sendo adiada. Em resumo, ele proíbe que atividades usem os termos gênero ou orientação sexual e que professores digam suas opiniões, preferências ideológicas, religiosas, morais e políticas. O texto afirma ainda que “o poder público não se imiscuirá (intrometerá) no processo de amadurecimento sexual dos alunos”. Se virar lei, as salas de aula do ensino básico ao superior terão cartazes com os deveres do docente.

“Me preocupa dizer que universidade não é lugar de discutir política, se não, vamos discutir aonde?”, diz o diretor do Direito da USP. Para ele, é muito difícil definir o que seria um conteúdo aceitável, segundo a lei. “A ideia do conhecimento neutro já foi demonstrada como falsa. O melhor antídoto para o conhecimento direcionado é a pluralidade.”

O reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Knobel, também se diz “completamente contrário” ao projeto. “Não é possível consolidar as bases de um ambiente acadêmico eficiente sem a garantia do livre debate de ideias, que garantem a todos o direito de assumir e externar livremente suas convicções.”

Redes sociais

Em uma universidade federal do Sudeste, professores que pediram para não serem identificados contam que os conflitos se intensificaram nas redes sociais. Estudantes fotografam a lousa em aulas das quais discordam do conteúdo e divulgam em grupos de WhatsApp, com acusações. Deixam também mensagens no Facebook de professores avisando que farão denúncias caso a “doutrinação” e a “idolatria a anticristãos” continuem. “Nosso temor é que alunos se sintam bem mais à vontade para expressar opiniões preconceituosas”, diz uma docente.

“Meu medo é que não fique só na ameaça”, diz a professora de Biologia do Norte do País cujo aluno afirmou que lhe daria um tiro. Dias antes, houve um debate na turma sobre biodiversidade na Amazônia e a docente chamou a atenção para os planos de governo dos candidatos sobre o assunto. “Mas ele não se manifestou nesse dia. Depois, quando recebeu a prova, me ameaçou e falou de Bolsonaro.”

“Algumas manifestações correspondem um pouco ao que se fazia antes”, diz o sociólogo e professor da USP  Brasilio Sallum, referindo-se ao período da Ditadura Militar. Sallum era aluno da instituição quando colegas foram presos e 24 professores foram compulsoriamente aposentados, em 1969. A decisão partiu do comando militar após o Ato Institucional Nº 5, que suspendeu garantias constitucionais e foi assinado por um ex-professor da USP, o então ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva.

Entre os colegas cassados, estavam o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o sociólogo Florestan Fernandes e o próprio então reitor da USP, Helio Lourenço, que havia reclamado da medida. “Há temores, um clima de suspeita de que coisas arbitrárias virão, mas acho difícil. As estruturas estão muito consolidadas na universidade.”

Pesquisadores de gênero temem boicote de verbas

Professores e pesquisadores de áreas como gênero e sexualidade se preocupam com a diminuição de verbas para pesquisas. Agências federais são as grandes financiadoras da Ciência no País. “O que nos assusta é a falta de conhecimento básico, reduzir gênero a uma ideologia simplista. Pesquisamos situações de mulheres na sociedade, sexualidade, bullying”, diz a professora de uma universidade pública do Rio, que pediu anonimato.

Os estudos de gênero existem desde a década de 70, são reconhecidos como uma área importante da sociologia e têm crescido. Segundo outra pesquisadora, falar de gênero na escola significa ensinar as crianças a identificar uma violência sexual e respeitar umas as outras a despeito da diversidade. “Não se combate a pedofilia jogando a discussão sobre sexualidade para debaixo do tapete”, diz.

Há ainda temores de menos verbas para Humanas em geral e para a ciência básica. “O governo eleito parece querer favorecer a pesquisa aplicada, que dê mais resultado”, diz um aluno de doutorado em astronomia.


https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Educacao/Universidades-vivem-clima-de-denuncismo-e-temem-repressao-em-sala-de-aula/54/42369



Fonte: Controversia

terça-feira, 13 de novembro de 2018

“Merlí”, Filosofia e reformas educacionais



Em série espanhola, professor irreverente interfere nos dramas dos alunos com
conceitos filosóficos - enquanto apresenta Aristóteles, Deleuze, Hobbes e muitos
outros. Como o ensino brasileiro poderia aprender com ele? 

Por Milena Buarque (*)


Um professor propõe a estudantes que reflitam sobre a disciplina enquanto caminham pela cozinha, elege como pupilo o aluno que nada anota em classe e para falar sobre a matéria do dia picha o tema da aula na parede da escola. Merlí Bergeron (Francesc Orella) é professor de filosofia, protagonista de uma série catalã homônima e tem muito a dizer em tempos de reformas educacionais.

Com a primeira temporada de 13 episódios disponível na Netflix, “Merlí”, do diretor Héctor Lozano, conta a história de um professor de uma escola pública que procura investir em métodos pouco ortodoxos para motivar e incentivar os questionamentos de seus alunos. No meio do caminho, Merlí se vê em conflitos com pais e com os próprios funcionários do Instituto Àngel Guimerà.

Tida como uma das séries de maior audiência do canal TV3 (Televisió de Catalunya) – estreou em 2015 no horário nobre –, “Merlí” é daquelas peças disponíveis no catálogo da Netflix (desde dezembro do ano passado) que, se não dispõe da mesma popularidade das grandes produções do serviço de streaming, certamente merece mais atenção.

A vã filosofia

A série não trata apenas de relacionar os arquétipos da adolescência com linhas e pensamentos da filosofia. A estrutura montada para que cada episódio aborde uma escola filosófica ou um pensador, como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Thomas Hobbes, para citar alguns, acaba servindo não só de fio condutor para os acontecimentos da trama como também aproximando o público de temas ligados ao universo da filosofia.

No primeiro episódio, Merlí batiza seus alunos de “os peripatéticos”, como ficaram conhecidos os membros da escola de discípulos do grego Aristóteles, que “passeavam” e aprendiam ao ar livre.

Os dramas pessoais dos alunos retratados na série ganham no debate quando colocados à luz dos conceitos de alguns filósofos. É o que acontece no episódio dedicado ao francês Guy Debord e à exposição de um vídeo íntimo de uma das estudantes da classe. Merlí traz para a aula a ideia de “sociedade do espetáculo” e do acúmulo de imagens. Ou então na segunda temporada (ainda não disponível na Netflix) quando para falar sobre a nova professora trans que chega ao colégio acrescenta ao conteúdo programático (nunca seguido por ele, aliás) a contemporânea Judith Butler e suas ideias sobre construção cultural de gênero.

A série facilita essas conexões ao criar um professor que dialoga intensamente com os dramas dos alunos. Apesar de o comportamento gerar controvérsia, são inegáveis os impactos positivos das atitudes de Merlí, que ultrapassam as fronteiras da sala de aula: com o mito da caverna de Platão e muita cautela, o professor consegue fazer com que o aluno Ivan vença a agorafobia (o medo de estar em espaços abertos) e retorne ao ambiente escolar. Ou seja, a filosofia deixa de ser uma mera disciplina e torna-se ferramenta de transformação social.

A premissa do professor-amigo, no entanto, não é exatamente o que dá originalidade à série. Filmes como “Sociedade dos Poetas Mortos”, de Peter Weir, estão aí desde a década de 1990. A tematização de episódios com produções literárias – guardadas as devidas e evidentes diferenças – também já foi arriscada por séries competentes, como a brasileira “Tudo o que é sólido pode derreter” (2009), de Rafael Gomes e Esmir Filho.

O potencial de “Merlí” está na transgressão de todos os arquétipos (as tais das “imagens primordiais”) da adolescência apresentados logo no primeiro episódio (para citar só alguns: a aluna rebelde, o CDF, o garoto-problema) e na complexificação da trama por meio da filosofia. O próprio professor, por exemplo, tem o dissabor de fazer parte da dinâmica: sua inteligência, o desprezo pelas regras e a heterodoxia revelam, em diversas situações, um egocentrismo e um senso de autoimportância nocivo às relações pessoais. No episódio dedicado à Butler, Merlí exagera na tentativa de tornar a escola receptiva à nova colega trans. No dedicado à Kant, ele se vê confrontado por seu hábito de mentir. O líder inspirador, assim como os demais personagens, gera amor e ódio, fugindo do maniqueísmo e mostrando que todos nós circulamos constantemente entre o orgulho e a generosidade.

De(re)formas?

A série passa longe da arrogância e do academicismo na tentativa de mostrar a importância da filosofia – na vida e como disciplina em sala de aula. No decorrer do ano, os peripatéticos reveem o modo cruel como trataram Ivan, a forma como lidam diariamente uns com os outros e quais caminhos tomam para a compreensão de suas próprias responsabilidades.

Como uma boa ferramenta para investigar nossos mecanismos internos e externos, a filosofia ressignifica o papel do professor em sala de aula, o lugar dos estudantes e a relação deles com o colégio (episódios que abordam a questão do poder e da autoridade, como os dedicados a Michel Foucault e Hobbes, dão conta disso).

Em tempos de debates sobre reformas educacionais que repensem as diferentes etapas do ensino formal, como a do Ensino Médio brasileiro (aprovada em fevereiro deste ano), a série “Merlí” pode dar a sua contribuição. A medida provisória que instituiu o texto do projeto causou polêmica ao eliminar do quadro de conteúdos obrigatórios disciplinas como sociologia e filosofia.

Não há como saber se os peripatéticos da série sustentavam aquele tacanho pensamento juvenil (uma espécie de verdade oculta dos alunos em alguns colégios) de que “filosofia não reprova” antes de se tornarem os discípulos de Bergeron. E, na verdade, este é o fator menos relevante. O que o professor Merlí consegue com indiscutível êxito é despertar o interesse de todos – até de quem o assiste de casa – para as possibilidades da filosofia.

O que será que ele nos diria para convencer de sua importância nos currículos do ensino médio?



(*) Milena Buarque

Jornalista na Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), Milena é blogueira, atriz e apaixonada por artes. Já passou pela Editora Abril e já trabalhou como editora voluntária da Cruz Vermelha Brasileira. Paulistana, formada em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pedestrianista. Também escreve para o site HuffPost Brasil e é especialista em Estudos Brasileiros - Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política


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