terça-feira, 13 de novembro de 2018

“Merlí”, Filosofia e reformas educacionais



Em série espanhola, professor irreverente interfere nos dramas dos alunos com
conceitos filosóficos - enquanto apresenta Aristóteles, Deleuze, Hobbes e muitos
outros. Como o ensino brasileiro poderia aprender com ele? 

Por Milena Buarque (*)


Um professor propõe a estudantes que reflitam sobre a disciplina enquanto caminham pela cozinha, elege como pupilo o aluno que nada anota em classe e para falar sobre a matéria do dia picha o tema da aula na parede da escola. Merlí Bergeron (Francesc Orella) é professor de filosofia, protagonista de uma série catalã homônima e tem muito a dizer em tempos de reformas educacionais.

Com a primeira temporada de 13 episódios disponível na Netflix, “Merlí”, do diretor Héctor Lozano, conta a história de um professor de uma escola pública que procura investir em métodos pouco ortodoxos para motivar e incentivar os questionamentos de seus alunos. No meio do caminho, Merlí se vê em conflitos com pais e com os próprios funcionários do Instituto Àngel Guimerà.

Tida como uma das séries de maior audiência do canal TV3 (Televisió de Catalunya) – estreou em 2015 no horário nobre –, “Merlí” é daquelas peças disponíveis no catálogo da Netflix (desde dezembro do ano passado) que, se não dispõe da mesma popularidade das grandes produções do serviço de streaming, certamente merece mais atenção.

A vã filosofia

A série não trata apenas de relacionar os arquétipos da adolescência com linhas e pensamentos da filosofia. A estrutura montada para que cada episódio aborde uma escola filosófica ou um pensador, como Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Thomas Hobbes, para citar alguns, acaba servindo não só de fio condutor para os acontecimentos da trama como também aproximando o público de temas ligados ao universo da filosofia.

No primeiro episódio, Merlí batiza seus alunos de “os peripatéticos”, como ficaram conhecidos os membros da escola de discípulos do grego Aristóteles, que “passeavam” e aprendiam ao ar livre.

Os dramas pessoais dos alunos retratados na série ganham no debate quando colocados à luz dos conceitos de alguns filósofos. É o que acontece no episódio dedicado ao francês Guy Debord e à exposição de um vídeo íntimo de uma das estudantes da classe. Merlí traz para a aula a ideia de “sociedade do espetáculo” e do acúmulo de imagens. Ou então na segunda temporada (ainda não disponível na Netflix) quando para falar sobre a nova professora trans que chega ao colégio acrescenta ao conteúdo programático (nunca seguido por ele, aliás) a contemporânea Judith Butler e suas ideias sobre construção cultural de gênero.

A série facilita essas conexões ao criar um professor que dialoga intensamente com os dramas dos alunos. Apesar de o comportamento gerar controvérsia, são inegáveis os impactos positivos das atitudes de Merlí, que ultrapassam as fronteiras da sala de aula: com o mito da caverna de Platão e muita cautela, o professor consegue fazer com que o aluno Ivan vença a agorafobia (o medo de estar em espaços abertos) e retorne ao ambiente escolar. Ou seja, a filosofia deixa de ser uma mera disciplina e torna-se ferramenta de transformação social.

A premissa do professor-amigo, no entanto, não é exatamente o que dá originalidade à série. Filmes como “Sociedade dos Poetas Mortos”, de Peter Weir, estão aí desde a década de 1990. A tematização de episódios com produções literárias – guardadas as devidas e evidentes diferenças – também já foi arriscada por séries competentes, como a brasileira “Tudo o que é sólido pode derreter” (2009), de Rafael Gomes e Esmir Filho.

O potencial de “Merlí” está na transgressão de todos os arquétipos (as tais das “imagens primordiais”) da adolescência apresentados logo no primeiro episódio (para citar só alguns: a aluna rebelde, o CDF, o garoto-problema) e na complexificação da trama por meio da filosofia. O próprio professor, por exemplo, tem o dissabor de fazer parte da dinâmica: sua inteligência, o desprezo pelas regras e a heterodoxia revelam, em diversas situações, um egocentrismo e um senso de autoimportância nocivo às relações pessoais. No episódio dedicado à Butler, Merlí exagera na tentativa de tornar a escola receptiva à nova colega trans. No dedicado à Kant, ele se vê confrontado por seu hábito de mentir. O líder inspirador, assim como os demais personagens, gera amor e ódio, fugindo do maniqueísmo e mostrando que todos nós circulamos constantemente entre o orgulho e a generosidade.

De(re)formas?

A série passa longe da arrogância e do academicismo na tentativa de mostrar a importância da filosofia – na vida e como disciplina em sala de aula. No decorrer do ano, os peripatéticos reveem o modo cruel como trataram Ivan, a forma como lidam diariamente uns com os outros e quais caminhos tomam para a compreensão de suas próprias responsabilidades.

Como uma boa ferramenta para investigar nossos mecanismos internos e externos, a filosofia ressignifica o papel do professor em sala de aula, o lugar dos estudantes e a relação deles com o colégio (episódios que abordam a questão do poder e da autoridade, como os dedicados a Michel Foucault e Hobbes, dão conta disso).

Em tempos de debates sobre reformas educacionais que repensem as diferentes etapas do ensino formal, como a do Ensino Médio brasileiro (aprovada em fevereiro deste ano), a série “Merlí” pode dar a sua contribuição. A medida provisória que instituiu o texto do projeto causou polêmica ao eliminar do quadro de conteúdos obrigatórios disciplinas como sociologia e filosofia.

Não há como saber se os peripatéticos da série sustentavam aquele tacanho pensamento juvenil (uma espécie de verdade oculta dos alunos em alguns colégios) de que “filosofia não reprova” antes de se tornarem os discípulos de Bergeron. E, na verdade, este é o fator menos relevante. O que o professor Merlí consegue com indiscutível êxito é despertar o interesse de todos – até de quem o assiste de casa – para as possibilidades da filosofia.

O que será que ele nos diria para convencer de sua importância nos currículos do ensino médio?



(*) Milena Buarque

Jornalista na Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), Milena é blogueira, atriz e apaixonada por artes. Já passou pela Editora Abril e já trabalhou como editora voluntária da Cruz Vermelha Brasileira. Paulistana, formada em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pedestrianista. Também escreve para o site HuffPost Brasil e é especialista em Estudos Brasileiros - Ciências Sociais na Fundação Escola de Sociologia e Política


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