quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Advogados populares afirmam também sofrerem criminalização por parte do Estado


Por Marcela Belchior



O alto índice de casos de violações de direitos a manifestantes durante os protestos desde 2013 nas cidades brasileiras também atingiu advogadas e advogados populares. A classe aponta que também vem sofrendo criminalização por parte do Estado e já tomou providências. No último dia 18 de agosto, um conjunto de entidades sociais entregou à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dossiê sobre ataques às prerrogativas dos profissionais da advocacia no Brasil. Eles defendem questões como uma campanha pública pela valorização da categoria e a desmilitarização da polícia.

A entrega ocorreu durante sessão do Conselho Federal da OAB, em Brasília, capital do país, por membros da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) e da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDH). Os representantes das entidades pretendem que as pautas levantadas sejam debatidas e deliberadas pelo Conselho.

O documento apresenta casos registrados nas cinco regiões brasileiras, onde se observa uma série de atos de desrespeito e ameaça aos advogados que atuam na defesa dos movimentos sociais, manifestantes e defensores de direitos humanos. Dentre esses, hásituações de violações às prerrogativas da advocacia, como o direito de manifestantes detidos terem o direito de se comunicarem, a realização de oitivas informais sem o acompanhamento de advogados, além de negativas de informações sobre o paradeiro de manifestantes detidos.

"Advogar não é crime. Na verdade, é função indispensável à administração da justiça e, mais do que nunca, necessita da defesa de sua Instituição”, expõe o dossiê, referindo-se ao artigo 133 da Constituição Federal. "Estas violações terminam por atingir o Estado Democrático de Direito, pois impedem, dentre outros, princípios, direitos e garantias, a erradicação das desigualdades sociais e regionais, a função social da propriedade, a liberdade de manifestação do pensamento, o direito à greve e o direito à vida”, acrescenta.


O levantamento destaca que as manifestações ocorridas em junho de 2013 reuniram o maior número de práticas estatais de violação de direitos. Desde esse período, pelo menos 12 pessoas morreram, vítimas de confrontos, além de um grande número de feridos e da execução de prisões arbitrárias. Em março de 2014, cerca de 200 casos de violência praticada pelo Estado brasileiro durante protestos de rua foram tema de audiência da Organização dos Estados Americanos (OEA).

"A partir das chamadas Jornadas de Junho (2013), o desvirtuamento dos deveres do Estado ficou mais expressivo. As práticas estatais de violações de direitos foram, escancaradamente e sem nenhum pudor, expostas ao mundo. Tanto é que, de modo geral, as mídias (...) registraram e publicaram inúmeros casos de práticas estatais condenáveis”, afirma o documento. "Embora totalmente descabida, a criminalização é uma realidade cotidiana dos defensores de direitos humanos e dos que se colocam ao lado dos movimentos sociais”, avalia.

Na ocasião da entrega, o advogado Rodrigo de Medeiros, integrante da Renap e da JusDH, afirmou que a defesa das prerrogativas de advogados populares e da advocacia de Direitos Humanos significa a própria defesa destes direitos e das causas sociais. Para isso, Medeiros reforça que a própria OAB possui, dentre suas finalidades, a defesa dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito, representada no artigo 44 do Estatuto da entidade.

Organizações envolvidas

Dentre as organizações que assinam o dossiê estão: Mariana Criola - Centro de Assessoria Jurídica Popular, o coletivo Advogados Ativistas, a ONG Justiça Global, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (IDDH). Soma-se a estes a Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR), a ONG Terra de Direitos e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Distrito Federal.

SERVIÇO


FONTE: Adital

domingo, 24 de agosto de 2014

Programa Universidade para Todos: democratizar ou mercantilizar?


Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito à educação superior. O problema é que tal política destrói qualquer projeto democrático de nação


Por Roberto Leher (*)



A expansão das matrículas do ensino médio, o recrutamento de força de trabalho pelo capital e as mobilizações de estudantes e docentes em prol de uma reforma universitária tornaram improrrogável a questão da democratização do acesso à educação superior. O crescimento econômico motivou a emergente classe média a investir – como o passaporte para a mobilidade social – em cursinhos pré-vestibulares para garantir o acesso de seus filhos à universidade. Os estudantes excedentes (aprovados, mas sem vagas) saíram às ruas em protestos que abalavam a imagem do “Brasil potência”.

Diante das pressões, o governo argumentou que as vagas públicas não poderiam atender prontamente à demanda. “Sensível” aos reclamos sociais, induziu a abertura de vagas no setor privado, em instituições universitárias ou não (uma firula, diante da causa democrática), por meio de pesadas isenções tributárias e empréstimos estudantis fortemente subsidiados pelo poder público. Assim, o anseio dos estudantes poderia ser realizado “aqui e agora”. Ao mesmo tempo, contemplaria os interesses capitalistas dos empresários da educação, segmento que demonstrara força política no processo de elaboração da Lei de Diretrizes e Bases.

Evidentemente, referimo-nos até aqui à ditatura civil-militar de 1964. O sistema de bolsas foi colocado em prática pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que determinava a criação de bolsas de estudo restituíveis, e pelo artigo 20 da Constituição de 1967, que vedava à União, aos estados e aos municípios a cobrança de impostos sobre renda, patrimônio e serviços dos estabelecimentos de ensino. Houve uma acentuada expansão das matrículas no ensino superior: entre 1960 e 1980, de 200 mil para 1,4 milhão (cerca de 500%), mas o grande impulsionador da expansão foi o setor privado (crescimento superior a 800%), quepartiu de um patamar de 42% das matrículas no início dos anos 1960, alcançando 50% em meados dos 1970 e, em 1980, sendo responsável por 63% do total. A solução emergencial do problema do acesso expandiu e diferenciou as instituições de ensino superior privadas, legitimando a contrarreforma de 1968, calibrada pelos Acordos MEC-Usaid. Ao final da ditadura, o sistema público assumiu função complementar ao privado. As frações mais pauperizadas teriam de se conformar com cursos aligeirados, adequados para formar o exército industrial de reserva.

A crítica à ditadura colocou em evidência o perverso modelo privado-mercantil: embora ofertando cursos, em geral sem qualidade, os lucros do setor ampliaram exponencialmente sob o manto da filantropia. Daí por que a luta na Constituinte ter priorizado a consigna: verbas públicas para as escolas públicas. Derrotas e avanços coexistem no capítulo da educação da Carta de 1988. O artigo 207 consagra a universidade como uma instituição autônoma e referenciada na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, mas o artigo 209 estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, e os artigos 150 e 213 admitem a possibilidade de repasse de recursos públicos (apenas) para as instituições “sem fins lucrativos” (comunitárias, filantrópicas e confessionais).

Fernando Henrique Cardoso institucionalizou o caráter privado-mercantil das “particulares” (Decreto n. 2.306/1997). A expansão, doravante, foi liderada por essas instituições com fins lucrativos (em 2008, das 2.016 privadas, 1.579 eram particulares). Após o boom das matrículas privadas entre 1995-1999, o setor educacional foi afetado por uma crise semelhante à dos anos 1980: não havia mercado consumidor, com renda, para comprar o serviço educacional. Nesse contexto, o poder do atraso se impôs. O resgate das organizações privadas dar-se-ia em nome do interesse público. Tratava-se de democratizar o acesso “aqui e agora”, ainda que financiando as instituições privadas. O diagnóstico do governo era de que o setor público não daria conta e era pouco eficiente nos gastos. O setor privado seria auspiciado por uma dupla medida já conhecida: a) oferecer isenções tributárias para as organizações privadas (Programa Universidade para Todos), ultrapassando até mesmo os limites da Constituição (ao conceder isenções às instituições com fins lucrativos) e b) turbinar o programa de empréstimos subsidiados para os clientes (Fies).

Muitos estudantes se beneficiaram do ProUni. E devem ser apoiados em seu direito à educação superior. Não resta dúvida de que outros muitos se beneficiaram da expansão e das bolsas na ditadura. O problema é que tal política destrói qualquer projeto democrático de nação. A opção pelo setor privado leva ao encolhimento do setor público. Em 2002, apenas 27% das matrículas eram públicas; em 2010, 25%. Difunde-se um padrão de educação minimalista e desvinculado das necessidades do país: apenas 0,002% das bolsas do ProUni foram para Geologia e 0,6% em Medicina, por exemplo; o grosso se destina a cursos de “humanidades”, tecnológicos de curta duração (sem relação com as áreas tecnológicas duras) e ciências sociais aplicadas, cursos fast delivery diploma.

O próprio nome do programa é enganoso: não é universidade para todos, já que as vagas estão dispersas em todo tipo de instituição de ensino superior, inclusive nas mal avaliadas pelo MEC. É de baixa efetividade. Em 2005, apenas 77% das vagas anunciadas em maciças campanhas publicitárias foram ocupadas. Em 2008, apenas 58% das vagas anunciadas. O custo-aluno para o Estado é enorme, muito acima da mensalidade média das empresas: a) organizações com fins lucrativos: R$ 436; custo do bolsista: R$ 495; b) sem fins lucrativos beneficentes: R$ 597; valor pago por aluno: R$ 1.043 (2006).

Uma diferença em relação aos anos da ditadura precisa ser realçada. Atualmente, o setor é controlado por corporações e fundos de investimento com grande participação de capital estrangeiro. Não se trata mais de empresas familiares, mas de negócios que compõem o rol de investimentos especulativos do setor financeiro. Permitir, em nome da democracia, que a juventude brasileira permaneça prisioneira dessa educação mercantilizada é algo brutal. Urge mudar a direção da política educacional. E o eixo tem de ser público e universal. Uma universidade aberta a todos os que possuem um rosto humano. A história se move!



(*) Professor titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRJ, além de pesquisador do CNPq 


Ilustração: Orlando


FONTE: Le Monde Diplomatique Brasil

terça-feira, 19 de agosto de 2014

RESISTÊNCIA CORAL, a incrível torcida politizada e não-violenta


Além de recusar ofensas a adversários, machismo e homofobia, torcedores do
Ferroviário-CE vão aos estádios defender causas anticapitalistas. Imagina se
fosse no Corínthians ou Flamengo?


Por André Linares, Igor Resende e Lucas Borges


Existe no Brasil uma torcida organizada que prega a paz nos estádios. Seus integrantes se recusam a pedir ingressos para dirigentes e entre eles é proibido ofender o adversário com termos machistas ou homofóbicos.

Essa é a Ultras Resistência Coral, torcida organizada do Ferroviário, time que é a terceira força da cidade de Fortaleza. Além do amor ao ‘Ferrão’, os membros da Resistência Coral têm em comum a afinidade ideológica: todos são críticos ao sistema capitalista.

“Surpreendente, os cartolas gostam da nossa torcida. Apesar de estarmos contra o capitalismo e de alguns dos dirigentes serem empresários etc, eles compram nossas camisas pra ajudar, falam, ‘cara, a torcida de vocês deveria ser maior, é muito massa!”, conta Leonardo Carneiro, sociólogo, professor da rede pública e apaixonado pelo Ferroviário.

Leonardo e boa parte dos outros 19 sócios da Resistência Coral já eram torcedores do clube antes de se tornarem militantes de esquerda. Com o passar do tempo, eles descobriram que a paixão pela equipe de futebol e a crença política tinham a mesma origem. Diferentemente de Ceará e Fortaleza, clubes de maior expressão do estado, o Ferroviário tem raízes operárias e foi fundado por funcionários da antiga Rede de Viação Cearense – RVC.

“Surgimos em 2005. Antes, estávamos juntos das organizadas, nos dávamos bem com elas, mas aos poucos fomos vendo cada vez mais cantos machistas, homofóbicos, incitação à violência gratuita. Queríamos formar uma torcida organizada que tivesse uma ideologia compatível à história do nosso time. É uma forma, inclusive, de retomar a tradição, a gente não inventou nada, foi a retomada da tradição da origem de classe do Ferroviário, que foi sendo esquecida com o fim da parceria com a RFFSA – Rede Ferroviária Federal”, explica o estudante Pedro Mansueto, um dos fundadores do grupo.

“Do nosso conhecimento, a primeira torcida com esse viés que surgiu no Brasil foi a nossa. Depois, vieram outras que temos conhecimentos, existem iniciativas com Atlético-MG, Bahia, Palmeiras, Flamengo, São Paulo. Na Europa, futebol e política estão juntos há muito tempo. Se nós que pertencemos a um clube que está mal das pernas e não tem torcida tão numerosa conseguimos causar certa repercussão, fico pensando como seria se um Flamengo ou um Corinthians criasse uma torcida como essa e ganhasse corpo, o efeito que isso causaria”, imagina Carneiro.

Terrorismo?

A relação com as velhas organizadas, como a Falange Coral, é amistosa e todos costumam apoiar o time juntos na arquibancada. Quando uma música de cunho preconceituoso é cantado, porém, parte dos torcedores se cala.

Apesar de seguir o caminho oposto ao da violência entre organizadas, a Resistência Coral ainda assim enfrenta repressão por parte das forças policiais. Uma faixa com a frase ‘Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes’ está proibida de entrar nos estádios cearenses.

“Diziam que a gente queria incitar a violência, não entendiam o conceito de luta de classes. Outras faixas que continham símbolos anarquistas ou a foice e o martelo eram proibidas, sobre faixas em apoio à resistência palestina, diziam que era terrorismo”, diz Mansueto.

Eles tampouco estão livres da hostilidade dos rivais. Leonardo Carneiro se lembra do dia em que torcedores do Fortaleza tentaram roubar uma faixa. “Não dava pra partir pra cima porque estávamos em desvantagem numérica, mas salvamos a faixa. É tão difícil fazer um material desse, nossos fundos são tão escassos…”

Anti-Fifa

Sem auxílio dos cartolas, a Resistência Coral sobrevive da venda de material próprio e do auxílio dos sócios. Suas mensagens estão não só nos jogos, mas também em manifestações populares, inclusive contra a Fifa e a Copa do Mundo atualmente realizada no Brasil.

“Aqui há anarquistas, comunistas, cada um tem um pensamento diferente. Mas somos contra a Copa pela origem do nosso time, pelo que a gente defende, pelo conjunto do que esse evento trouxe de corrupção, desvio de dinheiro, superfaturamento, desapropriações”, explica o recepcionista Francisco de Oliveira.

Leonardo Carneiro completa. “Estão querendo impor um padrão Fifa de torcedor. No Castelão, tiraram qualquer possibilidade de colocar faixa, tiraram as muretas, as grades, por mais que alguém queira colocar uma pequena bandeira, a policia diz que não. Não tem espaço para estar de pé, pulando. É a ideia do futebol moderno, higienizado. O preço dos ingressos e do que tem para ser consumido nos estádios impede o trabalhador de acompanhar seu time. A Copa do Mundo acentua esse processo.”

“Amamos o futebol, mas odiamos essa forma como estão querendo impor o futebol a povos do mundo. Agora é a vez do Brasil. A Fifa pra gente representa um grande mal, é uma organização que está mais preocupada em obter ganhos financeiros do que permitir que esse esporte continue sendo acessível à maioria das pessoas.”

Renascendo das cinzas

Do lado de uma equipe em momento tão ruim, a origem política acaba sendo o principal chamariz da Resistência Coral. Nove vezes campeão cearense, responsável pela revelação de jogadores como o goleiro Clemer, os volantes Nasa e Lima e os atacantes Mirandinha, Jardel e Iarley, o Ferroviário foi rebaixado neste ano pela primeira vez em sua história para a Série B do Estadual.

Sua torcida, que segundo os fãs do ‘Ferrão’ um dia rivalizou com a do Fortaleza pelo posto de segunda maior do Ceará, hoje, já é bem menor.

“São 15 anos sem ser campeão, mas apesar disso, o Ferroviário ainda tem muitos torcedores, fervorosos, ferrenhos”, alega Carneiro em entrevista com o ESPN.com.br no Benfica, bairro estudantil de Fortaleza, durante a qual foi interrompido por Ailton Lopes, candidato ao governo do estado pelo PSOL e torcedor do Ferroviário e por João Sávio, engraxate na Praça da Gentilândia e também apaixonado pelo ‘Tubarão da Barra.’

“A crise começou a se aprofundar depois da privatização da RFFSA, no governo Itamar Franco, o que provocou uma crise financeira em vários times ferroviários do Brasil. Parte da renda dessas equipes vinha dos trabalhadores, descontado em folha. Quando privatizou, o Ferroviário perdeu esse recurso. É um momento de dificuldade. O clube está tentando sobreviver de cotas de TV, parceria com o Castelão pra conseguir renda, patrocínio é cada vez mais difícil, acabamos não sendo uma boa marca na visão das empresas. Diretorias que passaram acabaram desmanchando as categorias de base, e infelizmente o pesadelo do rebaixamento aconteceu”, diz Carneiro.

“O viés de esquerda acaba atraindo muitos torcedores jovens, muito militante que faz parte do movimento estudantil e não torce pra time nenhum diz, ‘vou torcer pro Ferroviário então, já que é um time diferente’. Dizem que na torcida do Ferroviário só tem idosos, mas não é verdade. Vivemos um momento bastante difícil na história do clube, mas temos confiança de que vamos dar a volta por cima.”


FONTE: Outras Palavras

domingo, 17 de agosto de 2014

A propósito da situação jurídica atual


Por Alysson Leandro Mascaro
 

Consultam-me as companheiras e os companheiros das lutas populares e de esquerda a respeito da situação atual das instituições do direito e do Estado no Brasil. Em face da escalada da repressão jurídica destes últimos tempos, passo à análise.



Direito e capitalismo

O quadro presente de perseguições às lutas dos movimentos populares e sociais poderia ensejar, como horizonte de combate, uma resposta ordeira e moralista: contra as ilegalidades da repressão estatal, o pleno estabelecimento do Estado democrático de direito. Pelo contraste, assim se levantaria uma bandeira de contraposição a uma prática jurídica e estatal ruim, em favor do direito e do Estado assentados em boas bases. O resgate de certa moralidade do direito e de bases principiológicas jurídicas fundantes e ideais seria, então, a arma de confronto à regressão repressora de nossos dias.

No entanto, tal leitura é frágil, por desconhecer a natureza do direito e do Estado: há um indissolúvel e necessário nexo entre direito e capitalismo. Somente é possível entender as variadas doses de garantias e de repressões do mundo jurídico a partir de sua correspondência com as estruturas da reprodução do capital. O direito não é um plano normativo-institucional bom, justo ou ideal do qual a prática é sua negação ou sua corrupção. O fenômeno jurídico é o mesmo nas normas e na sua concreção. Seja em sua forma ou suas práticas, o direito se estrutura a partir de um talhe igual ao das contradições da sociedade da mercadoria, isto porque a exploração capitalista se arma exatamente a partir da subjetividade jurídica. Os indivíduos se compram, vendem-se e portam mercadorias a partir da condição de sujeitos de direito. A equivalência operada pelo direito é o segredo da estruturação da dinâmica do capital. Burguês e trabalhador são iguais e livres, portando direitos subjetivos, e assumindo deveres e obrigações, por meio de uma infinita circulação da mercadoria, para o acúmulo de capitais.

Por toda sua forma e sua estrutura, o direito é capitalista. É de sua natureza ser perpassado pelas contradições deste específico modo de produção. Assim, nesse quadro em que se situa, não há um direito ideal do qual sua realidade seria uma corrupção. A começar, porque o ideal do direito é justamente sua prática. Desde as revoluções burguesas, não há grande descompasso jurídico entre o ideal e o efetivo, na medida em que nas sociedades organizadas por Estados nacionais estão dadas todas as relações, as formas sociais e as estruturas institucionais que permitem operar as ferramentas suficientes à reprodução do capital. Em seu núcleo, a prática jurídica é exatamente o que a forma jurídica permite ser, e esta é reflexa da forma mercantil.

Direito e capitalismo se perpassam e se imbricam em todas as suas estruturas, sem possibilidade de negação parcial entre si, nem das sociedades para com eles. O não ao direito é direito: se o direito opera nos vínculos obrigacionais, jungindo pessoas e coisas a partir da vontade livre, a negativa de tais vínculos, direitos e deveres não é uma disrupção ou um afastamento do direito da sociedade. Antes, é apenas uma de suas modalidades. O crime, que de modo mais exemplar parece ser a negação de um ideal do direito, não abala as estruturas da reprodução social porque a forma do direito opera também em conjunto com a forma política capitalista, que é estatal.

Assim sendo, o descumprimento dos vínculos obrigacionais e o desrespeito à propriedade privada estão já previstos na própria dinâmica do direito, na medida em que implicam repressão estatal. O Estado assume a forma de um terceiro em face de burgueses e trabalhadores, operando então, só por existir materialmente como tal, uma máquina de violência monopolizada que acaba por ser necessária e funcional à manutenção da ordem capitalista. O Estado não é burguês porque seja controlado diretamente pela burguesia ou porque responda imediata ou exaustivamente a seus interesses, mas sim porque sua existência, estrutura e dinâmica são derivadas da própria reprodução do capital, mesmo que negando interesses específicos de burgueses ou da burguesia. O Estado, se não é diretamente ou por meio dos seus agentes o comitê gestor da classe capitalista, é uma forma social do capital.

Dadas suas naturezas sociais, exploratórias e plantadas em contradição, não há um direito ideal e justo nem um Estado cuja essência seja de bem comum, que possam então ser usados como contraste a práticas regressivas no seu seio. Sendo formas sociais capitalistas, a sorte e os resultados do Estado e do direito são símiles aos do próprio capitalismo. Explorações, dominações e opressões estruturadas, gestadas, recepcionadas ou reconfiguradas pelo capitalismo passam pelo Estado e pelo direito, que são inclusive centrais para tal processo. Então, com base nos planos político e jurídico, tudo o que se reclamar por ordem, justiça, legalidade ou respeito às instituições e aos direitos, na vastidão das acepções de todos esses termos, caberá exatamente nos limites contraditórios do capitalismo.

Prática do direito e ideologia

As mercadorias não se trocam sozinhas no mercado. A reprodução capitalista é feita por relações sociais e estas, tecidas por seres humanos. O mesmo no campo jurídico. Há normas e instituições do direito, mas elas só se concretizam por meio de práticas de seus operadores.

Devido à leitura de mundo juspositivista, é raro quem consiga observar que o fenômeno jurídico prepondera a partir da aplicação. De modo geral, as avaliações a respeito do direito dissociam o campo das normas e das instituições daquele dos seus agentes. Fazendo tal disjunção (que opera com os pares ideal/real, aparência/realidade ou teoria/prática), dada a dificuldade de se empreender a crítica estrutural à sociedade, quase sempre os clamores em face da exasperação causada pelo direito se voltam contra seus agentes, mais do que contra as próprias instituições do direito.

Há um impulso geral de crítica ao direito que tem por horizonte denunciar ou querer mudar aqueles que operam as engrenagens jurídicas e as instituições políticas. Comparada à denúncia do burguês, a crítica ao jurista e ao político é mais fácil. Isto porque, no plano do Estado e do direito, seus agentes não estão “naturalmente” investidos no cargo. Dependentes de concursos, nomeações ou eleições, haurem sua competência de cargos cujo poder está previamente normatizado e, daí, uma eventual abusividade de seus atos é mais facilmente contestada. Ao contrário do poder econômico, cujos agentes estão escondidos em seus escritórios, bancos, indústrias, comércios ou lares – e cuja riqueza se legitima com o trabalho e a herança –, os operadores do direito e da política se organizam a partir do mundo localizável das instituições jurídicas estatais: policiais, delegados, promotores ou juízes assim o são porque investidos de poderes e competências dados pelo Estado. Os campos político e jurídico acabam por ser alvo primeiro – e, na curta crítica, também quase sempre final – da insurgência e do combate dos movimentos progressistas, restando oculto, de seu horizonte, o núcleo econômico burguês.

Se nesse diapasão de crítica ou de luta social, fica à sombra, no plano mediato, o poder do capital, ficam também olvidadas, no plano imediato do direito e do Estado, até mesmo suas próprias instituições. A crítica ao direito termina por ser, quase sempre, a crítica ao jurista, bem como a crítica à política acaba por ser ao político. E a denúncia contra os agentes do Estado e do direito em geral se baseia no descompasso entre ordenamento normativo e prática. Se as normas jurídicas garantem direitos subjetivos, possibilidades de ação, liberdades, fornecendo inclusive instrumentos processuais judiciais para seu respaldo, então, dadas tais boas instituições e previsões normativas, o que ocorreria seria um descompasso localizado no chão da concretude do direito. A assim postular o problema jurídico da repressão às lutas populares, desconhece-se, na verdade, a natureza da própria aplicação do direito.

As normas jurídicas não falam nem existem por si só. Seu sentido é relacional; na operação jurídica quotidiana e concreta é que se constitui e se afirma. Não há um sentido normativo eminente ou dado em si mesmo, do qual a prática jurídica seria uma distorção. O sentido da norma jurídica é o sentido constituído por sua prática. Se, por absurdo, os órgãos estatais brasileiros passarem a não reconhecer a possibilidade de que direitos e garantias fundamentais da Constituição, como o habeas corpus, sejam remédios jurídicos utilizados por lutadores de movimentos sociais, e se um corpo médio de pensamento jurídico, seja pelos doutrinadores de direito, seja pelos comentários na imprensa, também partilhar do mesmo entendimento, pode-se dizer, então, direta e objetivamente, que o direito do Brasil não reconhece o habeas corpus a determinadas categorias de cidadãos em função de seus atos políticos, ainda que a leitura textual da Constituição revele o contrário. Já Hans Kelsen compreendia que a interpretação do direito não é aquela que um virtual leitor possa extrair do texto normativo, mas, sim, a realizada pelos agentes competentes para tanto. De tal modo, o direito na sua concreção é uma opção de poder.

A forma jurídica advém de outras formas sociais necessárias e, a partir dessa base, seus demais contornos só são o que a prática jurídica entende sê-los. Como a maioria dos juristas e mesmo do senso comum sobre o direito está habituada a ler sua natureza a partir da norma e não da prática, em decorrência disso, aventa-se um sempiterno moralismo relacionado ao descompasso entre letra normativa e efetividade. Para além de tal idealismo normativo, é preciso desvendar o direito a partir da sua materialidade, de seus mecanismos de compreensão, decisão e aplicação.

A prática do jurista é constituída por seu horizonte de mundo, que pode ser entendido tanto como o conjunto das opções de valores ou inclinações subjetivas quanto como um quadro das estruturas gerais que formam os sujeitos. No campo do conjunto que orienta suas perspectivas imediatas, um magistrado pode ser conservador ou reacionário em suas sentenças. Um policial violento pode avançar mais desbragadamente no uso da força que outro que, por índole mais contida, faz um exercício de reflexão de enxergar no indivíduo sob sua arma um cidadão. Esse campo é o da moralidade imediata e individual, que explicaria os pendores e as inclinações de cada operador do direito e do Estado. Tal leitura, ainda que já buscando se arraigar na prática, é insuficiente e incompleta.

A ideologia se estabelece no jurista e no agente estatal não no nível das possibilidades voluntárias ou conscientes. Estas existem, é claro. Mas o fundamental da ideologia opera na própria constituição estrutural da subjetividade. Nesse campo, que é o inconsciente, formam-se os arcabouços necessários à armação geral do entendimento de mundo e das práticas do jurista.

Aquele que age como policial assim o faz porque se reconhece como operador do Estado, porque porta uma arma, porque é investido num cargo ao qual faz jus porque sabe ter granjeado méritos em concurso, porque é da ordem, cumpridor dos deveres perante as instituições e respeitador dos ideais maiores da sociedade. Além disso, há seu reconhecimento de sua condição de homem, religioso, filho de Deus, corajoso, destemido, de boa sorte etc. Para que ele se entenda como policial, não lhe basta apenas saber as competências e o múnus que lhe foram investidos pelo Estado e pelo direito. Ele só é policial no quadro de todo esse complexo, cujas formas que lhe constituem escapam do controle de sua individualidade.

Ser policial ou agente do direito e do Estado é se entender ideologicamente como tal. Assim, sendo policial, projeta seu comportamento a partir daquele geral de sua corporação. Seu destemor é virtude que julga ser esperada por todos os demais, de dentro e de fora de sua instituição. Ser homem lhe dá poderes e fardos específicos. Ser filho de Deus lhe dá acesso a forças e a negociações psíquicas especiais com o que julga o Alto, inclusive pela sorte de sempre matar e não ser morto até aquele momento. Todo esse quadro de referências é administrado e passa por ele, mas não vem dele. Não está na conta de sua mera opção ser um homem distinto daquilo que socialmente forma um homem. A subjetividade do agente do direito e do Estado, bem como de qualquer ser humano, é constituída por formas sociais que lhes são coercivas.

A ideologia do direito é, então, a mesma ideologia que se erige e que constitui os sujeitos em – e a partir de – suas relações sociais. Nesse campo mais decisivo, toda a ideologia não é outra que não a ideologia do capitalismo. Há ordem, há direito, há razão, há proporção e equivalência, há responsabilidade pelos atos, há legitimidades na apropriação dos bens, dos cargos e do poder político e jurídico etc. Essa ideologia não é formada por conta de um engano coletivo nem tampouco por meio de operações voluntárias ou de escolhas cerebrinas de algumas pessoas. A ideologia não é um balanço a posteriori dos valores a que os indivíduos optarão. É, sim, a própria constituinte da possibilidade de entendimento dos indivíduos. Não há sujeito sem ideologia. O mero ser vivente não é uma opção da sociabilidade capitalista.

A ideologia advém da prática. Não é uma deliberação, não está no nível do capricho ou da voluntariedade, mas é o resultado de relações sociais que se cristalizam em formas sociais. A ideologia do direito e do Estado corresponde à materialidade das práticas capitalistas, sendo-lhe a mesma por outro ângulo. Todos transacionam e trocam para explorarem e serem explorados.

A ideologia é a do sujeito de direito. Todos reconhecem que os seus bens e os bens alheios não podem existir sustentados pela força bruta de cada qual. A ideologia é a do Estado como única força legítima. Todos se reconhecem como cidadãos e portadores do direito de escolher seus governantes. A ideologia é a da democracia como valor universal.

Nesse quadro, a ideologia do direito é o resultado da materialidade das relações sociais capitalistas. Não destoam os valores centrais do direito daquilo que é a própria concretude da sociabilidade da mercadoria. Tanto o direito é núcleo decisivo e geral da ideologia do capitalismo que até a crítica ao direito, quase sempre, termina por ser seu louvor. O combate ao direito opera, via de regra, na reposição da ideologia ao seu pedestal. O policial que agiu com violência desmedida extrapolou o poder que lhe foi dado. O excedente, extra, é ilegítimo: portanto, o central do poder do policial é legítimo. O magistrado que decidiu ideologicamente pôs seu horizonte político pessoal à frente da hermenêutica mais clara e apropriada da norma. O ideológico da sentença judicial é ilegítimo: portanto, o poder de julgar do juiz é legítimo, e as normas jurídicas, se interpretadas retamente, também o são.

Pode-se e deve-se, é verdade, fazer uma crítica ao magistrado e ao policial. Mas, uma vez puxado o novelo, ele redundará necessariamente na crítica ao direito e ao Estado. E, ainda mais a fundo nos fios do novelo, ele chegará necessariamente à crítica do capitalismo.

A propósito do atual

A ideologia cobre totalmente o vasto campo da sociabilidade. Ela constitui a subjetividade, dando sentido às relações sociais que o sujeito opera. Ela é vista, além do mundo econômico, do direito e do Estado, na família, na escola, na religião, na empresa, no esporte etc. Mas um dos pontos fundantes da materialidade da ideologia, no capitalismo contemporâneo, se perfaz nos meios de comunicação de massa, com contornos importantes para a prática jurídica. Eventuais dinâmicas no seio da ideologia se explicam pela natureza contraditória da reprodução capitalista, que é atravessada por conflitos necessários e oposições e antagonismos variados.

Nesse quadro de constantes mudanças nos influxos da ideologia, é preciso entender que a atual escalada de conservadorismo, reacionarismo e repressão dos agentes do Estado e do direito não é distinta da mesma escalada geral existente na sociedade. É essencialmente parelha, porque dentro da mesma estrutura de implicações recíprocas. Os mecanismos pelos quais os meios de comunicação de massa constituem, bombardeiam, estabelecem e interditam o conhecimento e a interpretação dos indivíduos encontram eco imediato no afazer do direito, que passa a ser caudatário desse mesmo processo, retroalimentando-o. Só se sabe que tal perspectiva de mundo, tal ato ou tal pessoa são odiosos porque a televisão, a revista, o jornal, o rádio e a rede social assim propagam. O jurista, então, não é o operador primeiro da avaliação ideológica. É mais um receptáculo perpassado por um maquinário de constituição de avaliações que se impõem como inexoráveis socialmente. O agir jurídico é pautado nos seus horizontes gerais pela mídia. Peculiarmente, acaba por dar à própria mídia a verdade que gestou, agora com chancela pela decisão do direito.

A atual investida repressora do direito está em nível quantitativamente igual ao mesmo processo em fluxo na sociedade brasileira e mundial. O direito não tem corpo intelectual, valorativo e material suficiente para servir de contraposto às vagas ideológicas gestadas na dinâmica social geral. A criminalização dos movimentos populares e dos movimentos que lutam pela ruptura ou pela superação do capitalismo é um mecanismo que encontra no direito seu lócus eminente, mas não sua força motriz. A mídia cria a caça para o direito se reconhecer como caçador. Remanesce, ao cabo de tudo isso, a própria dominação do capital. As mesmas linhas de força do capital alimentam e direcionam tanto o direito quanto os meios de comunicação de massa, sendo que estes ainda se implicam reciprocamente. O direito não se concebe fora do quadro geral de valores da sociedade, que é dado imediatamente pela mídia e, mediatamente, pelo capital. O horizonte do mundo jurídico prático não é diverso do movimento geral de conservadorismo ou reacionarismo do capital, como nem quer sê-lo.

É verdade que, na atualidade, o primeiro grito de todos os que lutam por uma sociedade superadora do capitalismo está em reclamar contra o retrocesso das instituições, que sobre eles faz recair sua violência. Os movimentos de esquerda, socialistas, sociais e populares e as lutas anarquistas ou para a aceleração das contradições destrutivas da sociedade da mercadoria, a partir de um dado grau de articulação e de repercussão estrutural, enfrentam necessariamente um forte combate por meio da repressão jurídica e estatal. Esse processo é verificado universalmente na história das sociedades capitalistas. A criminalização dos movimentos sociais é praticamente um passo inexorável de reação empreendido pelas classes burguesas, pelos meios de comunicação que as sustentam e pelas instituições jurídicas e estatais. Não há, no limite, Estado ou direito ao mesmo tempo plenamente a favor do povo e contra o capital na sociabilidade capitalista. A luta de grupos dominados e especialmente de classes exploradas, ao ganhar materialidade e maior envergadura, sói enfrentar reação aberta.

No caso brasileiro atual, tais contradições mal começam a aflorar, mas já revelam muito. Elas devem servir, no estágio atual, de base para construir novos patamares de luta, enfrentando os poderes imediatos da repressão como forma de poder qualificar passos mais estruturantes. Se é preciso combater o aumento da criminalização dos movimentos populares e anticapitalistas, isso se faz estancando a base ideológica de tal escalada, que reside em bombardeios de militâncias informativas conservadoras e reacionárias feitas pelos meios de comunicação de massa majoritários. É fundamental construir aparelhos ideológicos suficientes para a batalha das ideias. Sem seus próprios meios sólidos de comunicação de massa, as lutas progressistas não aglutinam o povo e, portanto, estão fadadas a um baixo alcance ou ao fracasso.

Para que haja juristas e agentes políticos orientados de maneira progressista, é preciso que o maquinário da produção imediata da ideologia leve a tanto. Daí, uma luta ideológica progressista, que no Brasil não existe e nunca chegou a ser uma política estatal tentada, é a única possibilidade de garantir que os fatos da luta não sejam sempre narrados como os fatos segundo a mídia ou os mercados. Qualquer tentativa social progressista ou politicamente de esquerda no Brasil, sem constituir rapidamente um desarme do bloqueio da razão cínica, escandalizante, conservadora ou reacionária presente, não permitirá o mínimo avanço ideológico necessário para se iluminar, então, a própria natureza do direito e do Estado na sociabilidade capitalista.

Na base das lutas de classes, há o fato de que estas operam no campo das instituições que são derivadas das formas da sociabilidade capitalista. Daí, as lutas progressistas, se se avolumam, apontando para uma eventual superação do capitalismo, passam então a se apresentar antagônicas às instituições estabelecidas e no seio das quais estão arraigadas. Nesse momento, tratando da esfera eminentemente jurídica, a luta progressista há de investir na transformação e na superação de suas instituições, mais do que propriamente na correção de conduta de seus agentes.

Numa ferida histórica incontornável, a escravidão no Brasil foi, ao tempo, chancelada e albergada pelo direito e pelo Estado. No passado e no presente, por todo o espaço do globo, direitos e Estados estruturaram e estruturam o capitalismo e a exploração de bilhões por uma parcela ínfima de burgueses. E em que pesem os bilhões de explorados e os perseguidos, presos aos trabalhos assalariados ou aos cárceres, em nossas plagas, em mais um 11 de agosto, continua-se a comemorar o direito.


Alysson Leandro Mascaro é jurista e filósofo do Direito. Autor do livro "Estado e forma política".

Texto publicado originalmente no Blog da Boitempo.
  

FONTE: Correio da Cidadania

domingo, 10 de agosto de 2014

Aumento da punição: única resposta aos adolescentes?


Apenas 1,9% das infrações cometidas por menores são latrocínio


Duas cientistas sociais respondem a jornal gaúcho que defendeu aumento de pena para menores infratores


Por Janaína de Souza Bujes* e Mariana Chies Santiago Santos**


Diversos projetos de lei e propostas de emendas constitucionais que tratam do aumento do tempo de internação do adolescente em conflito com a lei e da redução da maioridade penal estão em tramitação no Congresso Nacional. Isso data, no mínimo, de 1993, quando o então Deputado Federal Benedito Domingos (PP/DF) apresentou a PEC nº 171. Essa PEC, ainda em tramitação, justifica-se em texto religioso para reduzir a maioridade penal e, também, afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente, datado de 1990, seria demasiado ultrapassado para regular essa questão. Essa proposta, e todas as outras, desconsideram o fato de que o ECA é tido, na atualidade, como uma das legislações mais avançadas em termos de proteção aos jovens e foi resultado de uma série de conquistas surgidas no país com a reabertura democrática.

No Editorial do último dia 11 de maio de 2014, os responsáveis pela publicação no Jornal Zero Hora citaram, de maneira bastante aleatória, uma série de motivos em defesa do aumento do tempo de internação do adolescente infrator. Como referido editorial não cita o Projeto de Lei em que está baseado, acreditamos tratar-se do PLC nº 5.454/2013, proposto pela Deputada Federal Andreia Zito (PSDB/RJ), no qual, dentre uma série de reivindicações, não expõe de maneira clara as justificativas das mudanças legais.

Confunde-se, nessa esteira, o tempo de internação com a forma de seu cumprimento, pleiteia regime de atendimento especial para crimes hediondos, desconsiderando as peculiaridades de cada delito reunido nessa legislação. Refere o uso do adolescente para a prática de crimes por adultos, ao mesmo tempo em que defende o aumento dos limites da medida socioeducativa de internação, desconsiderando o caráter pedagógico que elas devem atender.

Nos parece uma maneira temerária de buscar a alteração da legislação democrática. Já que não se consegue aprovar medidas repressivas, como a redução da maioridade penal através das PECs em tramitação no Congresso Nacional, opta-se por agravar as punições aos jovens. Ao aumentar o tempo de internação dos adolescentes, vamos puni-los duplamente: pela falta de estrutura e de oportunidades que o Estado lhes deveria proporcionar (e não o faz); e pela ausência de investimento em programas de atenção e socioeducação que lhes permitam (re)inserir-se socialmente. Busca-se, assim, a saída mais fácil: punir mais.

O 7º anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apresentado no final de 2013, trouxe o quadro dos números dos atos infracionais praticados no país e temos, em resumo, os seguintes dados: 46,5% dos atos infracionais são relacionados ao roubo e ao furto; 26,6% ao tráfico de drogas e 1,9% ao latrocínio – crime este diversas vezes referido no editorial. Para sermos mais claras: 73,1% dos atos infracionais referem-se aos crimes contra o patrimônio e ao tráfico de drogas.

Isso nos leva a uma única conclusão: a referida “deliquência juvenil” é, antes de mais nada, produzida por uma série de fatores que estão muito além da vontade e das ações dos jovens. Isto porque a “clientela” preferencial da Justiça Juvenil é bastante específica: são jovens oriundos das camadas sociais mais desfavorecidas economicamente, abandonados por um Estado que não investe em educação, moradia, lazer, saúde e políticas inclusivas. Esses adolescentes (pobres, negros e habitantes das periferias), quando não são mortos pelas ações policiais, são lembrados e atendidos pelo Estado apenas no momento de sua seleção pela justiça juvenil.

Este sistema perverso só faz reproduzir aquilo que estamos acostumados a ver no sistema prisional adulto: penas altas, prisões lotadas com estruturas precárias, formação de facções e grupos criminosos que, cada vez mais, arregimentam sujeitos sem oportunidades de uma vida melhor. Aumentar as penas significa investir em verdadeiras “escolas do crime”, que legitimam e garantem a manutenção de uma ordem social injusta, violenta e desigual.

Não precisamos de novas leis que recrudesçam as já existentes. Necessitamos reconhecer a nossa parcela de responsabilidade, ao defender projetos de leis que aumentam as penas, as medidas de internação ou quando exigimos a redução da maioridade penal. Precisamos refletir sobre os motivos pelos quais optamos por essas saídas como forma de resolver os problemas sociais ou acabar com a violência. Vamos optar pelo velho – criando leis cada vez mais rigorosas como medida rápida ou paliativa – ou vamos investir no cumprimento das que já possuímos, no fortalecimento da cidadania e no reconhecimento dos jovens como futuro do país?


*Janaína de Souza Bujes é mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Ciências Criminais/PUCRS. Professora Substituta do Instituto Federal/RS.

**Mariana Chies Santiago Santos é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Ciências Criminais/PUCRS. Advogada do G10/PIPA/SAJU/UFRGS.



FONTE: Outras Palavras

domingo, 3 de agosto de 2014

Educação Pública Estadual – sistema de ensino, ensino do sistema


A educação liberta, o conhecimento revoluciona. Mas qual educação? Essa educação que adestra a massa para manter a exploração funcionando, ou uma educação comunitária e formadora de pessoas emancipadas? 


Por Professor Juka


A educação promovida pelo Estado (assim como a privada) visa manter o sistema capitalista em funcionamento, produzindo a mão-de-obra que será explorada pelos capitalistas. Essa mão-de-obra terá uma falsa formação, pois aprende apenas o suficiente para ler, escrever, fazer contas simples, “ser rápido no olho” e apertar botões. Isso é ideal para os empresários que irão explorar essa massa de pessoas “formadas” no ensino público e que não são capazes de fazer uma reflexão crítica sobre sua situação social de escravidão disfarçada na sociedade capitalista. A falta de ensino de qualidade os fará acreditar que ser explorado pelos empresários, banqueiros e governos é normal. É preciso um clamor por mudanças.

Os funcionários das escolas parecem mais carcereiros do que educadores, pois ficam fiscalizando os alunos dentro e fora das salas de aula o tempo todo. Perdem tanto tempo chamando a atenção dos alunos que acaba não sobrando tempo nenhum para a execução das propostas que se esperam de um ambiente de ensino. Os professores reprimem mais que libertam. A função libertadora da educação desaparece no ambiente prisional da escola. Justiça seja feita, essas ocorrências são a conseqüência de uma política pública que precariza a educação em nome de interesses mercadológicos e da produção de mão-de-obra barata e obediente para ser explorada sem reivindicar qualquer direito. Essa é a saída que as empresas e governos encontraram para a crise: baratear a mão-de-obra e desmontar os serviços sociais. Mais exploração e morte dos pobres para salvar o “Deus-Mercado”.

A educação nunca foi neutra nem desprovida de interesses políticos e econômicos. No presente momento não é diferente. O governo precisa mostrar números às organizações internacionais e ao mesmo tempo manter a exploração sobre todos nós funcionando sem perturbações. Para tanto, é necessário um sistema educacional precário e carcerário, que promove uma falsa educação que não passa de adestramento. Pela distribuição das disciplinas, verificamos os interesses na manutenção da ordem que oprime e explora nós trabalhadores. As aulas de Artes, História, Geografia, Filosofia e Sociologia são pingadas no currículo escolar, sem tempo hábil para o professor trabalhar os conteúdos sequer de forma superficial. Não diga que pensava que isso era por puro acaso! Essas disciplinas despertam o senso crítico dos alunos e “dificultariam” o domínio da massa promovido por empresários, banqueiros, políticos, proprietários das mídias corporativas, burocratas profissionais, entre outros exploradores. Deste modo, qual governante se interessaria em melhorar o nosso ensino? Convido os leitores a pensar nesse assunto, que é de interesse de todos nós.

A educação liberta, o conhecimento revoluciona. Mas QUAL educação? Essa educação que adestra a massa para manter a exploração funcionando, ou uma educação comunitária e formadora de pessoas emancipadas?



Como desmontar a Ciência e Tecnologia brasileiras

CNPq, entidade essencial ao desenvolvimento nacional, é o alvo da vez. Série de cortes brutais em Educação e Ciência escancara um Brasil q...