Além de recusar ofensas a adversários, machismo e homofobia, torcedores do Ferroviário-CE vão aos estádios defender causas anticapitalistas. Imagina se fosse no Corínthians ou Flamengo? |
Por André Linares, Igor Resende e Lucas Borges
Existe no Brasil uma torcida organizada que prega a paz nos estádios. Seus integrantes se recusam a pedir ingressos para dirigentes e entre eles é proibido ofender o adversário com termos machistas ou homofóbicos.
Essa é a Ultras Resistência Coral, torcida organizada do Ferroviário, time que é a terceira força da cidade de Fortaleza. Além do amor ao ‘Ferrão’, os membros da Resistência Coral têm em comum a afinidade ideológica: todos são críticos ao sistema capitalista.
“Surpreendente, os cartolas gostam da nossa torcida. Apesar de estarmos contra o capitalismo e de alguns dos dirigentes serem empresários etc, eles compram nossas camisas pra ajudar, falam, ‘cara, a torcida de vocês deveria ser maior, é muito massa!”, conta Leonardo Carneiro, sociólogo, professor da rede pública e apaixonado pelo Ferroviário.
Leonardo e boa parte dos outros 19 sócios da Resistência Coral já eram torcedores do clube antes de se tornarem militantes de esquerda. Com o passar do tempo, eles descobriram que a paixão pela equipe de futebol e a crença política tinham a mesma origem. Diferentemente de Ceará e Fortaleza, clubes de maior expressão do estado, o Ferroviário tem raízes operárias e foi fundado por funcionários da antiga Rede de Viação Cearense – RVC.
“Surgimos em 2005. Antes, estávamos juntos das organizadas, nos dávamos bem com elas, mas aos poucos fomos vendo cada vez mais cantos machistas, homofóbicos, incitação à violência gratuita. Queríamos formar uma torcida organizada que tivesse uma ideologia compatível à história do nosso time. É uma forma, inclusive, de retomar a tradição, a gente não inventou nada, foi a retomada da tradição da origem de classe do Ferroviário, que foi sendo esquecida com o fim da parceria com a RFFSA – Rede Ferroviária Federal”, explica o estudante Pedro Mansueto, um dos fundadores do grupo.
“Do nosso conhecimento, a primeira torcida com esse viés que surgiu no Brasil foi a nossa. Depois, vieram outras que temos conhecimentos, existem iniciativas com Atlético-MG, Bahia, Palmeiras, Flamengo, São Paulo. Na Europa, futebol e política estão juntos há muito tempo. Se nós que pertencemos a um clube que está mal das pernas e não tem torcida tão numerosa conseguimos causar certa repercussão, fico pensando como seria se um Flamengo ou um Corinthians criasse uma torcida como essa e ganhasse corpo, o efeito que isso causaria”, imagina Carneiro.
Terrorismo?
A relação com as velhas organizadas, como a Falange Coral, é amistosa e todos costumam apoiar o time juntos na arquibancada. Quando uma música de cunho preconceituoso é cantado, porém, parte dos torcedores se cala.
Apesar de seguir o caminho oposto ao da violência entre organizadas, a Resistência Coral ainda assim enfrenta repressão por parte das forças policiais. Uma faixa com a frase ‘Nem guerra entre torcidas, nem paz entre classes’ está proibida de entrar nos estádios cearenses.
“Diziam que a gente queria incitar a violência, não entendiam o conceito de luta de classes. Outras faixas que continham símbolos anarquistas ou a foice e o martelo eram proibidas, sobre faixas em apoio à resistência palestina, diziam que era terrorismo”, diz Mansueto.
Eles tampouco estão livres da hostilidade dos rivais. Leonardo Carneiro se lembra do dia em que torcedores do Fortaleza tentaram roubar uma faixa. “Não dava pra partir pra cima porque estávamos em desvantagem numérica, mas salvamos a faixa. É tão difícil fazer um material desse, nossos fundos são tão escassos…”
Anti-Fifa
Sem auxílio dos cartolas, a Resistência Coral sobrevive da venda de material próprio e do auxílio dos sócios. Suas mensagens estão não só nos jogos, mas também em manifestações populares, inclusive contra a Fifa e a Copa do Mundo atualmente realizada no Brasil.
“Aqui há anarquistas, comunistas, cada um tem um pensamento diferente. Mas somos contra a Copa pela origem do nosso time, pelo que a gente defende, pelo conjunto do que esse evento trouxe de corrupção, desvio de dinheiro, superfaturamento, desapropriações”, explica o recepcionista Francisco de Oliveira.
Leonardo Carneiro completa. “Estão querendo impor um padrão Fifa de torcedor. No Castelão, tiraram qualquer possibilidade de colocar faixa, tiraram as muretas, as grades, por mais que alguém queira colocar uma pequena bandeira, a policia diz que não. Não tem espaço para estar de pé, pulando. É a ideia do futebol moderno, higienizado. O preço dos ingressos e do que tem para ser consumido nos estádios impede o trabalhador de acompanhar seu time. A Copa do Mundo acentua esse processo.”
“Amamos o futebol, mas odiamos essa forma como estão querendo impor o futebol a povos do mundo. Agora é a vez do Brasil. A Fifa pra gente representa um grande mal, é uma organização que está mais preocupada em obter ganhos financeiros do que permitir que esse esporte continue sendo acessível à maioria das pessoas.”
Renascendo das cinzas
Do lado de uma equipe em momento tão ruim, a origem política acaba sendo o principal chamariz da Resistência Coral. Nove vezes campeão cearense, responsável pela revelação de jogadores como o goleiro Clemer, os volantes Nasa e Lima e os atacantes Mirandinha, Jardel e Iarley, o Ferroviário foi rebaixado neste ano pela primeira vez em sua história para a Série B do Estadual.
Sua torcida, que segundo os fãs do ‘Ferrão’ um dia rivalizou com a do Fortaleza pelo posto de segunda maior do Ceará, hoje, já é bem menor.
“São 15 anos sem ser campeão, mas apesar disso, o Ferroviário ainda tem muitos torcedores, fervorosos, ferrenhos”, alega Carneiro em entrevista com o ESPN.com.br no Benfica, bairro estudantil de Fortaleza, durante a qual foi interrompido por Ailton Lopes, candidato ao governo do estado pelo PSOL e torcedor do Ferroviário e por João Sávio, engraxate na Praça da Gentilândia e também apaixonado pelo ‘Tubarão da Barra.’
“A crise começou a se aprofundar depois da privatização da RFFSA, no governo Itamar Franco, o que provocou uma crise financeira em vários times ferroviários do Brasil. Parte da renda dessas equipes vinha dos trabalhadores, descontado em folha. Quando privatizou, o Ferroviário perdeu esse recurso. É um momento de dificuldade. O clube está tentando sobreviver de cotas de TV, parceria com o Castelão pra conseguir renda, patrocínio é cada vez mais difícil, acabamos não sendo uma boa marca na visão das empresas. Diretorias que passaram acabaram desmanchando as categorias de base, e infelizmente o pesadelo do rebaixamento aconteceu”, diz Carneiro.
“O viés de esquerda acaba atraindo muitos torcedores jovens, muito militante que faz parte do movimento estudantil e não torce pra time nenhum diz, ‘vou torcer pro Ferroviário então, já que é um time diferente’. Dizem que na torcida do Ferroviário só tem idosos, mas não é verdade. Vivemos um momento bastante difícil na história do clube, mas temos confiança de que vamos dar a volta por cima.”
FONTE: Outras Palavras
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