domingo, 30 de dezembro de 2018

Manter os pobres “no seu lugar”




Por Elaine Tavares *







Es­tudar e or­ga­nizar, ta­refas dos tra­ba­lha­dores



A lição é sim­ples: se o ca­pi­ta­lismo entra em crise sig­ni­fica que o lucro dos em­pre­sá­rios di­minui. Isso é ina­cei­tável para eles. Qual a saída? Ex­plorar o mais que puder os tra­ba­lha­dores para manter o lucro no mesmo nível apesar da crise. Sendo assim, quando se fala em crise, é bom que se tenha claro que ela é só para os mais po­bres. Os ricos pouco so­frem com crise. Já as ca­madas mé­dias se ar­re­bentam porque seus ne­gó­cios não con­se­guem aguentar o rojão e vão à breca. Apenas os mais ricos con­se­guem se manter por cima da carne seca.

Basta es­tudar um pouco a his­tória dos povos e já se pode com­provar essa ver­dade in­so­fis­mável. A cha­mada crise de 1929, co­nhe­cida como a grande de­pressão, durou longos anos só ter­mi­nando de­pois da se­gunda guerra mun­dial. Quem so­freu com ela: os po­bres. Entre a elite muita gente en­ri­queceu na­queles anos e a pró­pria guerra ajudou a aquecer a eco­nomia, ala­van­cando a in­dús­tria das armas e uma série de ou­tras que ser­viam para dar su­porte ao con­flito. Assim, en­quanto massas de gente mor­riam de fome ou pela guerra, uma pe­quena por­cen­tagem de em­pre­sá­rios en­chia as burras de di­nheiro.

Outro mo­mento de crise pro­funda foi agora, nesse sé­culo, em 2008, com a ex­plosão da dí­vida imo­bi­liária nos Es­tados Unidos, que levou a uma quebra geral nos bancos, todos de­vi­da­mente salvos com di­nheiro pú­blico, é claro. E, para salvar os bancos foi ti­rado tudo dos po­bres. Esses per­deram suas casas e seus in­ves­ti­mentos. Tudo co­mido sem dó. Os bancos se re­er­gueram, os grandes in­ves­ti­dores se­guiram lu­crando e tudo acabou bem para eles. Para eles, apenas. Os sem-casa nos EUA se­guiram sem poder re­cu­perar seus imó­veis e até hoje en­grossam as fi­leiras dos de­ses­pe­rados.

Enfim, re­pe­timos: a crise nunca é crise para os ricos. Não, para eles é sempre opor­tu­ni­dade de novos ne­gó­cios e novos in­ves­ti­mentos. Os po­bres que se las­quem, essa sempre foi a pa­lavra de ordem. Que fi­quem no “seu lugar”, que, para os ca­pi­ta­listas, é o de sus­tentar com seu tra­balho o luxo de poucos.

 Agora, o mundo vive nova crise do ca­pital. Ela surge em ci­clos porque jus­ta­mente os ca­pi­ta­listas con­se­guem ma­quiar os efeitos por algum tempo, ge­rando novas crises, cada vez mais pro­fundas e graves. É uma es­pécie de res­piro para que os tra­ba­lha­dores se re­com­po­nham mi­ni­ma­mente e possam ser no­va­mente ar­ro­chados até o osso. É um cír­culo vi­cioso, sem fim. A conta sempre vai parar na porta do tra­ba­lhador.

No Brasil, vamos pre­sen­ciar mais um longo mo­mento de ar­rocho e so­fri­mento para a mai­oria da po­pu­lação. Desde o se­gundo go­verno de Dilma Rous­seff as coisas vêm se pre­pa­rando para que o ca­pital re­cu­pere seus lu­cros e se man­tenha a salvo, pois es­tamos em mais uma onda de crise. Por isso as cha­madas re­formas. Elas vêm para le­gi­timar le­gal­mente o sa­queio dos tra­ba­lha­dores.

 Du­rante o go­verno Temer já vi­eram a re­forma do en­sino médio, pre­pa­rando o ter­reno para a mer­can­ti­li­zação da edu­cação de se­gundo grau, e a re­forma tra­ba­lhista, que re­tirou di­reitos dos tra­ba­lha­dores dei­xando-os to­tal­mente vul­ne­rá­veis ao longo pro­cesso de ex­pro­pri­ação que de­verá vir. O pró­ximo passo agora é a re­forma da Pre­vi­dência, que vai li­berar ainda mais o pa­tro­nato e o es­tado cap­tu­rado pelo ca­pital, das obri­ga­ções com os tra­ba­lha­dores. A ló­gica se­guirá sendo a mesma da do sé­culo 17: manter os tra­ba­lha­dores mi­ni­ma­mente vivos para que possam ser ex­plo­rados. Por isso a “ideia bri­lhante” de Ar­mínio Fraga – bra­si­leiro na­tu­ra­li­zado es­ta­du­ni­dense que já di­rigiu o Banco Cen­tral - de uma apo­sen­ta­doria uni­versal. Igual para todos.

Em prin­cípio, essa ideia de igual­dade pode pa­recer legal. Mas, não se pode tratar de ma­neira igual os de­si­guais. A pro­posta é ga­rantir 70% de um sa­lário mí­nimo a todas as pes­soas que pas­sarem dos 65 anos. “Muito bom”, dizem os in­cautos, acre­di­tando que isso é jus­tiça. Não é! Jus­tiça seria ga­rantir a cada um con­forme sua ne­ces­si­dade. Se fosse assim, um tra­ba­lhador, ao fim da vida la­boral, teria que ter ga­ran­tida uma mo­radia digna, edu­cação, saúde, se­gu­rança, ali­men­tação de qua­li­dade. Mas, sa­bemos que essa não é a re­a­li­dade. Pelo menos não no mundo ca­pi­ta­lista onde todas essas coisas pre­cisam ser com­pradas a peso de ouro.

Não é o caso de Cuba, por exemplo, onde o sa­lário é baixo, mas em com­pen­sação a pessoa não pre­cisa pagar por saúde, edu­cação, mo­radia, se­gu­rança e ainda tem uma cesta bá­sica ga­ran­tida. Mas, lá, é outro sis­tema. Não há com­pa­ração pos­sível. Vol­temos ao nosso mundo.

O novo go­verno eleito não chegou ao poder sem pro­postas. Isso é falso. Sempre foram muito claras as pro­postas do can­di­dato. Ao re­fe­ren­ciar suas falas nos exem­plos dos  Es­tados Unidos e Is­rael o can­di­dato apon­tava cla­ra­mente qual seria a linha de seu go­verno: tudo para os mais ricos, e os mais po­bres pa­gando a conta. É por isso que a re­forma da Pre­vi­dência virá avas­sa­la­dora, tra­ves­tida de  “igual­dade”. E, a con­si­derar a cam­panha cheia de no­tí­cias falsas, nada de­verá mudar. O bom­bar­deio de men­tiras con­ti­nuará sem freio. Até que a grande ficha co­mece a cair muita coisa será des­truída.

O novo go­verno nem co­meçou e o de­senho do ar­rocho já está dado. A fusão dos mi­nis­té­rios da Agri­cul­tura e Meio Am­bi­ente é a cópia mal aca­bada do re­chaço am­bi­ental pro­mo­vido por Do­nald Trump, um dos mo­delos do pre­si­dente eleito. A terra es­pe­cu­lada até o úl­timo naco, au­men­tando ainda mais a pro­le­ta­ri­zação no campo. A re­ti­rada das uni­ver­si­dades do Mi­nis­tério da Edu­cação, jo­gando-as para o de Ci­ência e Tec­no­logia é outra me­dida contra os mais po­bres. O en­sino su­pe­rior já não será mais edu­cação e sim ne­gócio, e nos dois sen­tidos: sendo ne­gócio e pro­du­zindo ne­gócio. Aca­bará com aquilo que os re­me­di­ados, ra­cistas e in­to­le­rantes ja­mais su­por­taram: os po­bres na uni­ver­si­dade. Os cen­tros de pro­dução de ino­vação ou for­ma­dores da elite serão apenas para os que podem pagar. 

No campo da se­gu­rança o mo­delo é Is­rael, com a re­pro­dução de todo o ar­ca­bouço ra­cista e eu­gê­nico. A tal ponto de o go­ver­nador eleito do Rio de Ja­neiro, da mesma turma dos ra­cistas e an­ti­po­bres, ter su­ge­rido em pú­blico e sem pejo a eli­mi­nação de pes­soas com o uso de “sni­pers”, ati­ra­dores de elite. Ou seja. Bas­tará ser negro e car­regar um guarda-chuva para o su­jeito ser atin­gido sem dó, e com a alegre apro­vação da co­mu­ni­dade que pre­fere um ino­cente morto a correr riscos.
Soma-se a isso a pro­posta de per­se­guição po­lí­tica e fí­sica dos ver­me­lhos, co­mu­nistas e afins, su­ge­rida pelo pró­prio pre­si­dente eleito em nível na­ci­onal, e temos ar­mado um triste ce­nário que vai co­brar bem caro à nação, ainda que boa parte dela es­teja jus­ta­mente es­pe­rando por isso, para gozar de prazer, as­sis­tindo pela te­le­visão
.
 Assim que aos tra­ba­lha­dores res­tará a re­or­ga­ni­zação e a luta, como sempre foi ao longo da his­tória hu­mana. Não há novas re­ceitas nem novas fór­mulas. Agora, ter­mi­nado o frisson da eleição e da der­rota cabe um pro­fundo pro­cesso de ava­li­ação e aná­lise. En­frentar o que virá vai de­mandar boas es­tra­té­gias que só po­derão se armar com pen­sa­mento crí­tico, co­nhe­ci­mento e com­pre­ensão cer­teira do que levou o país a esse mo­mento dra­má­tico. Errar na aná­lise leva ao erro na ação. 

Por isso, en­quanto o pre­si­dente eleito arma seu grupo para go­vernar o Brasil, os tra­ba­lha­dores também pre­cisam armar os seus para o en­fren­ta­mento que virá. É tempo de pensar e re­or­ga­nizar. Os po­de­rosos querem os po­bres “no seu lugar”, ou seja, na sen­zala, fora da casa grande, no chão das fá­bricas, nas sar­jetas. Mas, como sempre foi, os em­po­bre­cidos se le­van­tarão e darão suas res­postas.



* Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC





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