Por Josimar Priori
Os profissionais da área de ciências humanas não cansam de ouvir piadas – de mau gosto – como estas: “não sei fazer esta conta, eu sou de humanas” e “ser de humanas é confiar que sempre o troco está correto”. De fato, recaem sobre “o pessoal de humanas” chacotas que os consideram como ignorantes em cálculos matemáticos, distraídos, esotéricos que gostam de aplaudir o sol e abraçar árvores. Eles seriam descolados da realidade, ingênuos e até um tanto bobalhões, incapazes de fazer coisas realmente importantes. Ao mesmo tempo as humanidades têm o seu status de ciência questionado com muita frequência.
Em outro campo estaria o “pessoal de exatas”. Estes seriam objetivos, produtivos, práticos e engajados em criar serviços realmente importantes para a sociedade. Não teriam tempo de contemplar a natureza porque estariam muito ocupados em seus relevantes afazeres. Sua produção intelectual estaria fundada na objetividade científica e os resultados seriam úteis e aplicáveis. Nesse diagrama, não haveria espaço para extensas leituras ou debates intermináveis sobre política ou filosofia, por exemplo.
Evidentemente, estas representações são caricatas, reforçam preconceitos e todos saem perdendo. Primeiramente, tal compreensão é prejudicial para os profissionais de ciências humanas e é lamentável que muitos de nós das humanidades reproduzamos isso como se fosse engraçado. Esquecemo-nos, porém, que ao sermos tomados como chacotas, estão desqualificando nossa inteligência e o fundamental conhecimento científico que produzimos. Os profissionais ligados às ciências exatas, por sua vez, perdem ao serem qualificados, por exemplo, como excessivamente objetivos, despolitizados, desinteressados por temáticas sociais e com dificuldades em realizar leituras extensas.
É óbvio que ciências humanas e cálculos não são incompatíveis, como também não são as ciências exatas e literatura, por exemplo. Na realidade, esse dualismo pouco sapiente gera prejuízos para o próprio avanço científico, pois acaba limitando o campo de atuação de um pesquisador em torno da sua disciplina. No entanto, ainda que as ciências sejam corretamente pensadas como plurais, elas possuem um ponto de partida comum que não deve ser ignorado.
É fundamental compreender que o princípio primeiro da ciência, herdado da filosofia, é a dúvida. O cientista – humano, exato, biológico, qualquer um – deve ser um cético por excelência. Ao duvidar das aparências, daquilo que o olho humano toma por óbvio e certo, das verdades estabelecidas, o estudioso põe em movimento uma rigorosa pesquisa, faz um minucioso escrutínio do objeto estudado, o compara com os demais, faz testes e experimentos, elabora e testa hipóteses e chega a uma conclusão que se expressa por meio de uma tese. Essa, no entanto, é sempre provisória, visto que novas evidências podem alterar a explicação sobre um fato.
Cada objeto de estudo exige técnicas e recursos diferentes para ser compreendido, daí a especificidade de cada ciência. Por exemplo, ao estudar os corpos celestes, os cientistas se valem de equipamentos como telescópios, sondas e modelos matemáticos. O estudo dos seres minúsculos requer o uso de microscópio. O estudo da cultura, da economia e da política, por seu turno, exige observações, entrevistas, aplicação de questionários, levantamento de documentos históricos. Ainda assim, as áreas do conhecimento se complementam, como quando as ciências sociais utilizam modelos matemáticos e estatísticos para compreender preferências políticas e econômicas ou a história e a arqueologia recorrem a exames laboratoriais para identificar a causa da morte de uma rainha ou a idade de um artefato.
O que estou sugerindo, de fato, é que embora as ciências precisem se organizar em disciplinas a fim de poderem aprofundar o conhecimento em temas específicos, todos compartilhamos de uma mesma matriz. Além disso, o conhecimento se torna muito mais profundo, complexo e sofisticado quando reconhecemos a colocamos em prática a interdependência e a complementaridade científica. É notório que os maiores gênios não conheciam apenas sobre seus objetos de estudo mais estritos. Albert Einstein, por exemplo, escreveu belíssimos textos de análise social. René Descartes era filósofo, físico e matemático. Karl Marx conhecia densamente a mecânica por traz das máquinas da revolução industrial.
De tal maneira, o desejável é que nos tornemos profundamente interessados por qualquer conhecimento. O verdadeiro amante da ciência não se permite se enquadrar em caricaturas empobrecedoras como “sou de humanas” ou “sou de exatas. É necessário quebrar essa dicotomia, ensinar aos estudantes a importância e a complementaridade de todas as áreas do saber e, mais que tudo, reconhecer que o avanço social está intimamente associado ao investimento, ao respeito e à intersecção entre todas as ciências.
* A versão original deste texto foi publicada no Jornal Noroeste (Nova Esperança – PR).
** JOSIMAR PRIORI é Cientista Social, Doutor em Sociologia, professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e autor de A luta faz a lei (Maringá, Eduem, 2017).
FONTE: Revista Espaço Acadêmico
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