Se temos o Dia da
Consciência Negra, devemos agradecer a Zumbi e outros milhares que não se
curvaram aos que insistiam em enxergar um paraíso racial. Negros e negras que
fizeram de suas histórias as histórias do Brasil.
Foto: Ricardo Borges/divulação
Existe um ditado que circula entre
várias sociedades africanas que diz: “Até que os leões inventem as suas
histórias, os caçadores sempre serão os heróis das narrativas de caça“. Gosto
muito desse provérbio, pois ele conta de forma simples uma premissa que muitas
vezes pode passar despercebida: a história não é uma via de mão única, uma reta
que nos leva ao presente. A história é emaranhado, é trança, é trama e é
tessitura. E são muitas as pontas que permitem a conexão com esse tempo que já
passou.
Mas esse provérbio também fala sobre
enunciado. Sobre quem conta as histórias e o poder que isso representa não
apenas na construção do tempo presente, mas também nos projetos de futuro, nas
escolhas do que e de quem devemos lembrar.
Hojé é dia 20 de novembro de 2021. Há
326 anos Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes quilombolas da história das
Américas, era assassinado. Sua morte demorou muito mais tempo do que os
senhores de engenho da capitania de Pernambuco imaginavam. Na realidade, o
Quilombo de Palmares se transformou num grande pesadelo para os homens que
viviam da exploração do trabalho de homens e mulheres escravizados, a maior
parte deles africanos. Até mesmo o rei de Portugal enviou correspondências para
Zumbi, na tentativa de dissuadi-lo de ser quem era. Zumbi não cedeu aos apelos
reais. O mundo que ele estava construindo com seus companheiros era outro. Ele
sabia muito bem disso, e pagou um preço alto por essa ousadia. Pagou com sua
própria vida.
Sua história atravessou tempo e
espaço. A tradição oral garantiu que gerações de escravizados e libertos
soubessem de seus feitos. E até mesmo a história oficial, aquela escrita por
homens que defendiam a escravidão e a escravização de homens como Zumbi, foi
obrigada a se curvar ao líder palmarino, que, mesmo de maneira rápida, foi
mencionado nos tratados e livros de história escritos no período colonial e ao
longo do século 19.
Todavia, há uma grande diferença
entre constar nos anais da história e se tornar herói nacional. Para ser herói
não basta que um leão passe a contar as histórias. É necessária uma alcateia
inteira. Sendo assim, a história por trás do 20 de Novembro não é apenas a
brava e heroica história de Zumbi dos Palmares e de seus companheiros e
companheiras de luta. O 20 de Novembro também é resultado da luta dos
movimentos negros brasileiros na disputa por uma outra narrativa da história
nacional. Uma narrativa que fez da figura de Zumbi não só um ícone, mas também
um lembrete de tantas histórias e trajetórias que compunham a consciência
negra – e que estavam submersas nesse oceano de racismo.
Há 50 anos, no dia 20 de novembro
de 1971, no Rio Grande do Sul, um dos estados mais brancos do país, alguns
cidadãos negros se reuniam no Clube Náutico Marcílio Dias, uma das poucas
associações negras de Porto Alegre. O Brasil vivia os anos de chumbo, numa
ditadura militar que fez da democracia racial seu projeto de nação, ao mesmo
tempo que vigiava atentamente todas as organizações negras do país. Mesmo
assim, aqueles homens e mulheres – como outros tantos negros e negras
brasileiros da época – se reuniam para ler poemas e cantar músicas compostas
por artistas negros, para debater e combater o racismo. Brotava ali, um
importante verso dessa nova história.
A década de 1970 foi marcada pela
ampliação dos movimentos negros em todo o Brasil e teve a criação do
Movimento Negro Unificado (1978) como uma de suas grandes marcas. Essa
movimentação realizada por e para negros questionava a ordem vigente e
propunha uma outra forma de revisitar o passado brasileiro e, portanto, uma
outra forma de ser brasileiro. O 13 de Maio da Princesa Isabel não poderia ser
a marca da liberdade. Mesmo porque, outras liberdades já haviam sido lutadas.
Zumbi era um dos maiores lembretes disso.
O que observamos a partir daí, foi
uma ação conjunta e coordenada, com o objetivo de, literalmente, mudar a
história do Brasil, e trazer o protagonismo negro para a centralidade da
narrativa. Um processo que foi lento, que passou por tramitações jurídicas,
que causou polêmicas e muitas críticas daqueles que insistiam em enxergar o
Brasil como uma espécie de paraíso racial.
Então, se hoje temos e comemoramos o
Dia da Consciência Negra no Brasil, devemos agradecer não só a Zumbi e seus
companheiros palmarinos, mas também aos outros milhares de homens e mulheres
negros e negras que não se curvaram aos caçadores e que fizeram de suas
histórias as histórias do Brasil.
*Este artigo compõe a Ocupação da
Rede de HistoriadorXs NegrXs em veículos de comunicação de todo o Brasil neste
20 de novembro de 2021.
Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017) e Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020), e também responsável pelo perfil do Instagramhttps://www.instagram.com/nossos_passos_vem_de_longe/
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