domingo, 18 de abril de 2021

Genocídio de classe


Por José Matrins




Na con­tramão do mundo ca­pi­ta­lista e dos em­pre­sá­rios en­di­nhei­rados, os bra­si­leiros que são obri­gados a vender sua força de tra­balho a estes pa­trões para viver ter­mi­naram a dé­cada 2011 a 2020 mais po­bres. Muito mais po­bres.

É o que se pode con­cluir de início com quase ile­gí­veis nú­meros e per­cen­ta­gens apre­sen­tadas em es­tudo do Ins­ti­tuto Bra­si­leiro de Eco­nomia da Fun­dação Ge­túlio Vargas (Ibre/FGV) com base em nú­meros do Fundo Mo­ne­tário In­ter­na­ci­onal (FMI).

Nesta úl­tima dé­cada, o Pro­duto In­terno Bruto (PIB) per ca­pita do Brasil re­cuou 0,2% ao ano, em média. Isso é muita coisa em um pe­ríodo tão longo.

Nesse mesmo pe­ríodo, o mesmo PIB mun­dial per ca­pita teve cres­ci­mento anual de 0,4%, en­quanto o das eco­no­mias do­mi­nadas da pe­ri­feria do sis­tema avançou 2,5%. O PIB per ca­pita bra­si­leiro já está abaixo do chinês.

O PIB per ca­pital é a soma de tudo o que país produz di­vi­dido pela po­pu­lação e fun­ciona como um im­por­tante termô­metro para ava­liar a vi­ta­li­dade econô­mica de uma nação. O nível da pro­du­ti­vi­dade ou da po­breza de uma nação.

O fra­casso em nú­meros

O PIB per ca­pita sobe quando pro­du­ti­vi­dade do tra­balho e ati­vi­dade econô­mica avançam em ritmo mais rá­pido do que o cres­ci­mento po­pu­la­ci­onal. No Brasil acon­teceu exa­ta­mente o con­trário. E isso não acon­tece im­pu­ne­mente para os tra­ba­lha­dores.

Em 2010, os bra­si­leiros em geral ti­nham uma renda anual média de US$ 14.931,10. Em 2020, ela caiu para US$ 13.777,44. Va­ri­ação de 8% para baixo. Já está mais baixo que o chinês. Logo es­tará mais baixo até que o in­diano.

Esse valor é uma média na­ci­onal. Em seu cál­culo é con­si­de­rada toda a po­pu­lação bra­si­leira. Por­tanto, estão con­ta­bi­li­zados, além da po­pu­lação tra­ba­lha­dora, apro­xi­ma­da­mente 15% da po­pu­lação com­posta de em­pre­sá­rios en­di­nhei­rados e de­mais classes im­pro­du­tivas do país. Essa parte al­ta­mente mi­no­ri­tária da po­pu­lação bra­si­leira é a cor­po­ri­fi­cação do ca­pital no Brasil.

A bur­guesia bra­si­leira (pro­pri­e­tária dos meios de pro­dução da eco­nomia) soma apro­xi­ma­da­mente 30 mi­lhões de ci­da­dãos – parte mí­nima de uma po­pu­lação de 210 mi­lhões.

Assim, no cál­culo do PIB per ca­pita faz-se uma mis­tura es­ta­tís­tica de ca­pi­ta­listas e tra­ba­lha­dores as­sa­la­ri­ados. De im­pro­du­tivos e pro­du­tivos.
Afinal, na de­mo­cracia os ci­da­dãos não têm o mesmo peso? Cada ci­dadão um voto?

O fato im­por­tante a ser des­ta­cado nesta mis­ti­fi­cação do pro­cesso é que para os 85% de es­tro­pi­ados tra­ba­lha­dores pro­du­tivos do exér­cito in­dus­trial de re­serva no Brasil, a queda de seu mi­se­rável ren­di­mento anual médio foi muito mais ca­tas­tró­fica que aquela média na­ci­onal de 8%.

O de­sastre pro­du­tivo da queda do PIB per ca­pita no Brasil nos úl­timos dez anos pode ser mais bem vi­su­a­li­zado com dados que pes­qui­samos no IBGE sobre a evo­lução dos in­ves­ti­mentos e da pro­dução per ca­pita nos se­tores pro­du­tivos da eco­nomia.

Ob­serva-se, ini­ci­al­mente, uma queda anual média de 0,3% da For­mação Bruta de Ca­pital Fixo – quer dizer, do in­ves­ti­mento agre­gado da eco­nomia em má­quinas, equi­pa­mentos e es­tru­turas. As forças pro­du­tivas do tra­balho con­creto se en­fra­que­ceram.

Essa queda mostra como os em­pre­sá­rios e de­mais classes pa­ra­sitas – que mo­no­po­lizam a pro­pri­e­dade da to­ta­li­dade dos meios de pro­dução so­cial da nação – re­duzem sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, nos úl­timos dez anos, os meios de tra­balho ne­ces­sá­rios à ex­pansão da pro­dução de uti­li­dades e da pro­du­ti­vi­dade da classe tra­ba­lha­dora.

Na In­dús­tria de Trans­for­mação, nú­cleo re­gu­lador da pro­dução na­ci­onal, a queda de 0,9 % ao ano foi ainda muito mais pro­funda que a da For­mação Bruta de Ca­pital Fixo.

E, nos ramos in­dus­triais da Cons­trução Civil a queda de 2,7% ao ano foi ainda maior que na in­dús­tria como um todo. Isso é muito mais ca­tas­tró­fico, pois os di­versos ramos da Cons­trução Civil con­cen­tram e ao mesmo tempo es­pa­lham para todas as ci­dades e re­giões do país as grandes massas de tra­ba­lha­dores pro­du­tivos da eco­nomia.

De­bates frau­du­lentos

Por­tanto, o que querem dizer todos esses nú­meros? Todas estas abs­tra­ções ma­te­má­ticas apa­ren­te­mente neu­tras de um pro­cesso so­cial? Para os eco­no­mistas e mídia do ca­pital esta der­ro­cada pro­du­tiva não passa de um aci­dente pro­vo­cado por su­ces­sivos go­vernos in­ca­pazes de sa­near as contas pú­blicas e pro­mover a es­ta­bi­li­dade ma­cro­e­conô­mica.

“Os cul­pados são os po­lí­ticos”. Para eles, a in­ca­pa­ci­dade dos go­vernos em pro­mover as “re­formas ne­ces­sá­rias” e eli­minar a per­ma­nente “ins­ta­bi­li­dade das contas pú­blicas” é o fato que im­pediu a re­to­mada dos in­ves­ti­mentos na eco­nomia, do cres­ci­mento e, con­se­quen­te­mente, é a cul­pada pela der­ro­cada econô­mica dos úl­timos dez anos.

Se o pro­blema se re­sume à má gestão dos go­vernos, isso é muito con­ve­ni­ente para eles es­conder sem re­morso a res­pon­sa­bi­li­dade dos em­pre­sá­rios pri­vados e de­mais classes pro­pri­e­tá­rias de ca­pital. Estas não apa­recem em ne­nhum mo­mento das suas ava­li­a­ções sobre a “dé­cada per­dida”. A não ser como ví­timas.

Para os eco­no­mistas que ava­liam os dados da FGV, os vir­tu­osos e des­pro­te­gidos ca­pi­ta­listas são ví­timas dos maus go­vernos. Isso acon­tece porque eles estão sempre aguar­dando a pro­me­tida es­ta­bi­li­dade das contas pú­blicas para vol­tarem a in­vestir na pro­dução e, em um ato de ex­trema mag­na­ni­mi­dade e bon­dade, gerar renda e em­prego para a so­ci­e­dade ne­ces­si­tada dos seus ser­viços.

Mesmo que estes su­ces­sivos go­vernos não sejam nada mais, no mundo real, do que ser­vi­çais bu­ro­cratas das classes do­mi­nantes, go­vernos que são ins­ta­lados por estas úl­timas para ad­mi­nis­trar seus in­te­resses econô­micos.

Ao con­trário da nar­ra­tiva dos eco­no­mistas do ca­pital, todos os go­vernos (sem ex­ceção até para con­firmar a regra) são sim­ples­mente co­mitês po­lí­ticos ar­mados do Es­tado de de­fesa da pro­pri­e­dade ca­pi­ta­lista e de ad­mi­nis­tração da luta de classes de­cor­rente deste pro­cesso his­tó­rico.

Uma bur­guesia inútil

En­tre­tanto, a des­peito da le­vi­an­dade dos eco­no­mistas do sis­tema e ou­tros ideó­logos das classes do­mi­nantes, a der­ro­cada econô­mica bra­si­leira dos úl­timos dez anos não foi apenas mais uma “dé­cada per­dida”.

Ela teve enormes con­sequên­cias so­ciais e po­lí­ticas. Em pri­meiro lugar, na origem desta dé­cada a classe em­pre­sa­rial e de­mais classes pro­pri­e­tá­rias são res­pon­sá­veis pelo des­li­ga­mento da eco­nomia na­ci­onal do resto do mundo.

Não como em­pre­sá­rios na­ci­o­na­listas ou pro­te­ci­o­nistas, mas como in­com­pe­tentes li­be­rais. Fa­ná­ticos e in­com­pe­tentes li­be­rais. Não foram ca­pazes de re­a­lizar seu pro­jeto de li­be­ra­li­zação e in­te­gração da pro­dução às ca­deias glo­bais pro­du­tivas de valor.

A in­dús­tria bra­si­leira meia-boca é to­tal­mente in­capaz de pro­duzir e ex­portar com­pe­ti­ti­va­mente sua pro­dução. Nem como ma­qui­la­doras. Mesmo em grandes zonas es­pe­ciais de in­dús­trias mon­ta­doras (ma­qui­la­doras), como a Zona Franca de Ma­naus, todas as mer­ca­do­rias ali mon­tadas são des­ti­nadas ao mer­cado in­terno.

Na China e no Mé­xico, por exemplo – do mesmo modo que nas de­mais eco­no­mias do­mi­nadas da pe­ri­feria ple­na­mente in­te­gradas às ca­deias pro­du­tivas glo­bais de valor – todas as mer­ca­do­rias mon­tadas nas zonas es­pe­ciais são ime­di­a­ta­mente ex­por­tadas para as eco­no­mias cen­trais.

Os ca­pi­ta­listas chi­neses e me­xi­canos são mais es­pertos que os bra­si­leiros. Os dois únicos se­tores pro­du­tores de ca­pital da eco­nomia bra­si­leira que ainda se re­la­ci­onam ati­va­mente com o mer­cado mun­dial são dois en­claves pri­mário- ex­por­ta­dores: a agro­pe­cuária e a in­dús­tria mi­ne­ra­dora.

O setor agro­pe­cuário (ou agro­ne­gócio), que produz a mer­reca de 6% do PIB apre­sentou cres­ci­mento médio anual de 2,7% ao ano. As mi­ne­ra­doras (Vale do Rio Doce etc.) al­can­çaram 1,2% ao ano.

São os dois únicos se­tores in­dus­triais que cres­ceram nos úl­timos dez anos. Só aqui os em­pre­sá­rios bra­si­leiros foram “efi­ci­entes e ino­va­dores”. Mas sem ne­nhuma con­sequência po­si­tiva para a ex­pansão da to­ta­li­dade da eco­nomia.

O pro­blema é que, além do agro­ne­gócio e as mi­ne­ra­doras pro­du­zirem uma par­cela muito pe­quena do PIB, também não pro­por­ci­onam, en­quanto en­claves pri­mário-ex­por­ta­dores, ne­nhum “efeito mul­ti­pli­cador da renda” na pro­dução in­terna. Ou seja, são es­té­reis para gerar de­sen­vol­vi­mento econô­mico.

É por isso que, en­quanto a eco­nomia na­ci­onal afunda estes dois en­claves crescem. E os ideó­logos do pa­ra­si­tismo ca­pi­ta­lista na­ci­onal fes­tejam esse fenô­meno pa­to­ló­gico do cres­ci­mento econô­mico na pe­ri­feria.

O fato é que o des­li­ga­mento dos se­tores in­dus­triais mais di­nâ­micos da eco­nomia na­ci­onal da glo­ba­li­zação do ca­pital – in­te­grados às ca­deias pro­du­tivas glo­bais de valor apenas para a livre im­por­tação de má­quinas, in­sumos e com­po­nentes do pro­cesso de pro­dução – foi um fra­casso his­tó­rico em que os em­pre­sá­rios pri­vados na­ci­o­nais foram os prin­ci­pais res­pon­sá­veis.

Nem para re­pro­duzir o sub­de­sen­vol­vi­mento econô­mico os em­pre­sá­rios bra­si­leiros servem mais. Tor­naram-se apenas agentes ir­res­pon­sá­veis (e cons­ci­entes, como ve­remos a se­guir) de uma cri­mi­nosa ar­qui­te­tura da des­truição. O go­verno atual Bo­çal­naro/Guedes é a ex­pressão po­lí­tica mais bem aca­bada deste ge­no­cídio de classe.

Não há fu­turo pos­sível

O fra­casso dos em­pre­sá­rios e de­mais classes im­pro­du­tivas que di­ri­giram a eco­nomia para o tra­va­mento e à queda ob­ser­vada nos úl­timos dez anos pro­vocou um brutal de­sem­prego, queda dos ren­di­mentos e, fi­nal­mente, uma ex­plosão de pau­pe­ri­zação e mi­séria ja­mais ob­ser­vada na his­tória econô­mica bra­si­leira.

Ao con­trário do que os eco­no­mistas do ca­pital pro­curam es­conder, aqueles nú­meros acima ob­ser­vados não são neu­tros e muito menos des­pro­vidos de efeitos de­vas­ta­dores sobre a re­pro­dução fí­sica da po­pu­lação bra­si­leira.

E não se trata de um mero de­si­qui­lí­brio de ren­di­mentos entre ricos e po­bres, uma mera de­si­gual­dade. Uma in­jus­tiça na “dis­tri­buição da renda” que pode ser re­sol­vida com po­lí­ticas pú­blicas, go­vernos po­pu­listas e ou­tros amigos do povo.

Quando o sis­tema econô­mico não se move, afunda con­ti­nu­a­mente – como temos ob­ser­vado nestes úl­timos dez anos – de­sa­pa­rece também a função bá­sica de qual­quer modo de pro­dução: ga­rantir a re­pro­dução fí­sica da po­pu­lação.

A in­ca­pa­ci­dade econô­mica dos em­pre­sá­rios de ga­rantir a re­pro­dução fí­sica dos tra­ba­lha­dores des­pro­vidos de qual­quer re­serva ou pro­pri­e­dade – junto com a sua in­sis­tência em manter in­de­fi­ni­da­mente essa en­ge­nharia da des­truição como po­lí­tica de go­verno – trans­forma-se em um ina­cei­tável ge­no­cídio econô­mico.

Em nosso pró­ximo bo­letim con­ti­nu­a­remos com a aná­lise deste pro­cesso. Como este ge­no­cídio econô­mico per­pe­trado pelos em­pre­sá­rios bra­si­leiros se re­produz agora como ge­no­cídio pan­dê­mico e fatal in­go­ver­na­bi­li­dade po­lí­tica.


José Mar­tins é eco­no­mista e editor do Crí­tica da Eco­nomia, de onde este ar­tigo foi re­ti­rado.


FONTE: Correio da Cidadania


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