domingo, 2 de março de 2014

O Judiciário colabora para a irresponsabilidade da imprensa


Um dos juristas mais respeitados do país, Celso Bandeira de Mello fala sobre a relação entre mídia e Justiça, discute sobre como deveria ser o processo de escolha dos ministros do STF e avalia a condução da Ação Penal 470



Por Glauco Faria

Quando o ministro Gilmar Mendes insinuou, recentemente, que a arrecadação de recursos para o pagamento da multa imposta pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a José Genoino poderia ser “lavagem de dinheiro”, ele foi um dos que não hesitou em responder. Celso Bandeira de Mello disse que as declarações eram “escandalosas” e “tolas”: “Como doador, me senti ofendido, porque Gilmar Mendes lançou publicamente uma suspeita sem provas e fui atingido por ela. Estou chocado”.

Não foi a primeira vez que o ministro Celso Bandeira de Mello se posicionou de forma contrária ao senso comum. Professor titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) desde 1974, ele não teve medo de expor suas posições a respeito da Ação Penal 470, o chamado mensalão, que considera ter sido um caso julgado pela mídia. “A meu ver, a imprensa julgou e eles só referendaram. Os ministros não tiveram coragem de enfrentar a imprensa.”

Para Bandeira de Mello, o Judiciário também contribui para que a imprensa, a qual julga ser de baixíssima qualidade, tenha esse poder quando não aplica em suas decisões valores indenizatórios significativos àqueles que são atingidos pelo poder midiático. “É incrível, mas diria que nesse aspecto o Judiciário colabora para a irresponsabilidade da imprensa. Tirante quando o atingido é um juiz de Direito, no resto, as indenizações são ridiculamente baixas”, analisa.

Na entrevista abaixo (feita na quinta, 13, antes da resposta de Gilmar Mendes ao senador Eduardo Suplicy), o jurista fala também sobre como deveria ser o processo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal, o qual, acredita, deveria ser composto por um número mínimo de juízes de carreira. Ele critica ainda o fato de ministros darem entrevistas e declarações a todo instantes sobre quase qualquer assunto. “Há um grande perigo que a televisão tornou realidade, o fato de o magistrado querer se tornar um ator, alguém que tenha visibilidade na mídia. Quanto menos visibilidade, melhor. O juiz deve ser a voz do Direito. E só. O que ele disser não deve ser capitalizado por ele, mas pela Justiça como um todo.”

Fórum – O senhor comentou há alguns dias sobre o fato de Gilmar Mendes ter feito insinuações a respeito da arrecadação via internet de recursos para pagamento da multa imposta a José Genoino pelo STF. Não é a primeira vez que um ministro ou um magistrado se manifesta publicamente desta forma, em outras ocasiões, alguns chegam mesmo a antecipar pontos de vista sobre casos que podem julgar no futuro. O que o senhor acha disso, esse tipo de exposição é um dos problemas do Judiciário atualmente?

Celso Bandeira de Mello – Sou de uma geração em que se aprendia desde o primeiro ano da faculdade que o juiz só fala nos autos. Portanto, todo pronunciamento que é dado fora do exercício da função jurisdicional é desaconselhável e deveria ser proibido, na minha opinião. Magistrado não deveria poder dar entrevista, o que ele tiver a dizer é no processo que estiver submetido a ele, nada mais.

Há um grande perigo que a televisão tornou realidade, o fato de o magistrado querer se tornar um ator, alguém que tenha visibilidade na mídia. Quanto menos visibilidade, melhor. O juiz deve ser a voz do Direito. E só. O que ele disser não deve ser capitalizado por ele, mas pela Justiça como um todo.

Esse é um dos problemas da magistratura, mas ela tem muitos problemas, e todos sabem que a Justiça é lenta, demorada. A queixa é geral, das partes e dos advogados. Bom que a Justiça não seja de uma velocidade espantosa, porque é sempre preciso uma certa distância entre o evento e o julgamento. Uma certa distância, mas não essa distância fantástica. Tenho ação tramitando há mais de 25 anos.

Fórum – São extremos…

Bandeira de Mello – Lógico que, com uma situação dessas, todo processo de realização da justiça se desnatura. O que deve um advogado cobrar quando ele sabe que uma ação contra o poder público pode durar dez, quinze, vinte anos? Se depois ele recebe uma importância alta, a pessoa diz: “olha a fortuna que o advogado ganhou”. Mas divida isso pelos meses, anos que durou, veja quanto fica por mês… Uma ninharia. E ele passou todos esses anos acompanhando o processo, eventualmente interferindo em momentos diferentes. Isso faz com que tenha que cobrar mais para entrar em juízo, fica mais caro para o cidadão. Se ele pudesse contar com a sucumbência e o valor final, era outra coisa.

Há muitos anos deixei de advogar, só o faço em algum caso esporádico. Não estou advogando porque é para mim o sustento, não para meus netos. Claro que quero guardar para eles, temos o sistema de herança, mas não estou trabalhando para eles.Tenho que receber, se sei que posso demorar dez, quinze, vinte anos para receber, não quero, não me interessa, por isso hoje trabalho para dar parecer. O parecer não é uma coisa que você pode dar porque quer ou porque estão te pagando, mas só se a parte tiver razão. Eu, de cada dez pedidos de parecer, recuso sete, oito.

Enfim, essa demora judicial prejudica todo mundo. O poder público é o pior pagador que existe no mundo, ele não paga, inclusive o Congresso colabora com isso. De vez em quando tem uma reforma constitucional que adia o pagamento dos precatórios…

O Judiciário tem muitos problemas. Não se costuma falar muito dos problemas dele porque passou muitos anos à margem do noticiário. O respeito ao Judiciário, de uma importância transcendente, levava não apenas a uma atitude de consideração, mas também a mantê-lo fora do foco do noticiário. Hoje é o contrário, ele entrou no centro do palco. É moda falar mal do Judiciário, constranger os juízes a julgar deste ou daquele modo. Costumo dizer que o mensalão é o mais típico exemplo de como quem julga é a imprensa e não mais os juízes. Na minha opinião, o Supremo não foi mais do que a longa manus da imprensa.

Alguém vai poder dizer “mas o clamor do povo”… Não é verdade. Há um grande equívoco que temos, uma tendência grande a incorrer de que a opinião do povo é a opinião da imprensa. E a imprensa no Brasil é praticamente irresponsável, há alguns casos paradigmáticos. Um deles, famoso, é a acusação falsa feita no caso da Escola Base, que causou um estrago na reputação comercial, pessoal e moral das pessoas, escangalhadas na imprensa. E depois, o que aconteceu? Nada, porque a indenizações são ridículas…

Fórum – E demoram muito tempo para serem pagas.

Bandeira de Mello – Quando o efeito do julgado e o fato estão muito distantes, já não se sente a relação entre ambos. É incrível, mas diria que nesse aspecto o Judiciário colabora para a irresponsabilidade da imprensa. Tirante quando o atingido é um juiz de Direito, no resto, as indenizações são ridiculamente baixas. Ela estraga com a reputação, ofende, e fica por isso mesmo.

A imprensa brasileira tem um baixíssimo nível, e a reputação que ela merece é praticamente nenhuma. A capacidade que tem de distorcer os fatos, seja por omissão ou por ação, é tão grande que sirvo como um exemplo. Sempre fui um eleitor do ex-presidente Lula, e, na reeleição dele, estive a pique de votar contra e assinar um manifesto a favor de outro candidato, por achar que ele não tinha feito o que havia prometido. Até o dia que, entrando na internet, vi uma notícia pequena dizendo que o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) tinha divulgado que o seu governo tinha tirado uma grande parcela de pessoas das classes D e E para a C e B, e pensei que não era possível, porque só lia que o governo dele era péssimo. Entrei para procurar o site do centro e vi. Fiquei estuporado e percebi que me foi sonegada informação durante vários anos, foi só nas proximidades das eleições que se divulgou. E o governo Lula tinha sido o primeiro que de fato tinha cumprido um princípio constitucional de reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Mas eu não sabia. E era um leitor de jornal e revista. Deixei de ser. Jornal, assino um que é um dos mais reacionários do Brasil, O Estado de S. Paulo, mas que é honesto, ao passo de que o jornal que assinei durante vinte, trinta anos, deforma a realidade, é hipócrita. Eu mesmo estou o processando, a Folha de S. Paulo, que disse que eu assediava um ministro do STF por conta do caso do Cesare Battisti, a maior mentira da Terra, nunca assediei ninguém. Tive assistente que foi juiz de tribunal, o Carlos [Ayres Britto] conheço há 30 anos, e nunca assediei porque não acho digno de um profissional fazer isso. Fiz oq ue? Dei um parecer, de graça. Portanto, não fui contratado, era falso dizer que fui. O que fiz foi o que todo advogado faz, entregar o parecer para o ministro e, no entanto, duas articulistas da Folha, Eliane Cantanhêde e Renata Lo Prete falaram em suas colunas. Ia ignorar o assunto, mas, como foi mais de uma vez, pensei que não podia fazer isso. Escrevi uma carta dizendo o que tinha se passado e depois processei. Meu advogado entendeu que queria processar a Folha, e não elas, mas queria processar muito mais elas do que a Folha. No fim, só o veículo foi processado.

Fórum – Existe um diálogo entre Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello, à época do julgamento do cabimento ou não de embargos infringentes na AP 470, em que o ministro Mello disse se preocupar com o “jornal do dia seguinte” pois devia contas aos contribuintes. Como o senhor vê essa preocupação com o que vai dizer a imprensa vinda de um ministro do Supremo?

Bandeira de Mello – E não qualquer ministro, porque diria que o Marco Aurélio é um dos melhores do Supremo, que tem péssimos ministros, mas tem ótimos também. Prefiro me referir ao Supremo como um todo. O que ele disse é verdade, deve contas, mas não este modo. A meu ver um grande desserviço ao Direito foi a transmissão pela TV das sessões do STF. Julgamentos que poderiam ser mais rápidos ficam demorados porque o ministro quer mostrar que estudou aquele tema, que sabe mais. Além disso, pretende ser um ator, um artista, e o juiz tem que ser discretíssimo, um homem alheio ao interesses das partes. Pode ter raiva de alguém, mas não pode transparecer essa raiva nas atitudes dele. Um homem que não é sereno não pode ser juiz, não deve nem se candidatar ao cargo porque não nasceu pra ser juiz.

A escolha do ministro é mal feita. Em primeiro lugar, deveria haver mandato, não pode ser algo para a vida inteira. Uma vez, uma ministra me disse com toda razão: “Tanto nos chamam de excelência que a gente acaba achando que é excelência mesmo”. E ela me dizia que era a favor de se instituir um mandato para evitar esse fenômeno. Em segundo lugar, tem o processo de escolha. Alguém pode perguntar qual seria então o melhor processo, não ouso dizer porque não sei qual o melhor, mas sei que este é péssimo. O presidente da República indicar alguém é muito ruim porque em tese os ministros ficam devedores do presidente. Nós já vimos que nem sempre isso é verdade, pelo contrário, alguns se revelaram algozes do presidente e de seus companheiros no chamado caso do Mensalão, mas a regra é essa. Esse negócio de indiciar é um processo que fica oculto, alguém vai lá e aconselha o presidente ou ele procura saber e vai perguntar, se aconselhar com outras pessoas. Quem disse que aqueles que indicaram são os credenciados para dizer?

Qual é o processo ideal? Em outros tempos, achei que era eleição feita por todos os juízes do Brasil, exceção feita aos de segundo grau. Porque tenho e sempre tive mais confiança no juiz do primeiro grau do que no do segundo, e a explicação é simples: o juiz de primeiro grau entrou por concurso, o de segundo grau é nomeado por uma autoridade, é alguém que já sentiu o bafejo do poder. Acho fundamental que haja os recursos e os tribunais, mas para a escolha dos ministros do Supremo eu preferiria que fossem juízes de primeiro grau. Com isso não se cria o risco da politização excessiva? Cria-se, mas o homem é um ser político, e essa fórmula atual tem outros tipos de risco, como campanhas feitas por indivíduos… Não existe sistema perfeito, mas o atual provou ser muito ruim, a vitaliciedade é o pior e nisso o ministro Marco Aurélio tinha razão, ele deve satisfação a toda sociedade.

Fórum – Mas no caso ele atribuiu ao jornal o papel de porta-voz desta sociedade, o que não é verdade.

Bandeira de Melllo – Não é. Algumas coisas seriam necessárias, como a proibição de o juiz dar entrevistas. Não precisa nem ser a respeito de um caso que pode ser julgado por ele, mas sobre qualquer coisa. Se quiser falar de alguma coisa que seja algo estranho às lides jurídicas, como se torce pra time tal e qual.

Os tribunais deviam ser compostos em parte por juízes de carreira, porque são homens treinados, antigamente isso era mais claro, mas ainda é. Desde o começo ele ouve que tem que ser imparcial, que não pode ter partido, não pode ser político, isso faz parte da sua cultura de desempenhar o papel de terceiro em embates. Não estou dizendo que o juiz tem que ser alheio à realidade social, de modo algum, senão seria um alienado total, mas digamos que um juiz seja peessedebista – o que é uma probabilidade dado o extrato social de onde geralmente vem –, ele não pode sê-lo quando é juiz, o mesmo vale se ele for petista, sua posição tem que ser equidistante.

Fórum – Em relação ainda à composição do Supremo, o senhor defende que uma parte dos membros deveria ser composta por juízes…

Bandeira de Mello – Uma parte deveria ser.

Fórum – … hoje, a composição do Supremo…

Bandeira de Mello – É muito comum o ministro vir de outras áreas, o Teori Zavascki, de origem, não é juiz, o Barroso é advogado…

Fórum – No caso do Joaquim Barbosa, que fez carreira no Ministério Público, o senhor acho que esse fato o influencia fazendo com que ele tenha uma postura muito mais de promotor do que de magistrado?

Bandeira de Mello – Muito mais, mas o Zavascki também foi promotor. Tem alguns que entram e assumem a toga de juiz, e tem outros como o Joaquim Barbosa que parecem não ter assumido. Juiz lá é minoria, há muito tempo. E, como disse, o juiz tem treino, que faz a cabeça dele, não é só conhecimento. Tivemos um, que posso discordar demais de muitos votos dele mas sempre o respeitei muito, o Cezar Peluso, que foi um excelente ministro embora discordasse das suas opiniões por achá-lo um conservador, mas era um homem sério. Muitos deles conheço há anos, ele conhecia desde que era juiz de primeira instância, nunca tive amizade, mas como também era professor da PUC, o encontrava. Sempre tive boa impressão, era um homem equilibrado, esse era juiz, mas são poucos que são assim. Alguns se põem no papel de vingadores.

Fórum – Nesse aspecto, muitos abordam que existem hoje dois problemas, não necessariamente relacionados. Um é a politização do Judiciário, com alguns magistrados assumindo posições e posturas políticas em suas decisões; outro é a judicialização da política, com órgãos como o STF decidindo questões que por vezes não são debatidas pelo Legislativo. Como o senhor vê esses dois pontos?

Bandeira de Mello – Realmente alguns ministros do Supremo dão a impressão de decidir politicamente. Mas não acho que o Judiciário se meta, ele tem que decidir. Está lá na Constituição, o legislador não legislou, o juiz não deve dizer que não vai cumprir a Constituição porque o legislador não legislou. Então não vejo isso que se diz, é um pouco pela rivalidade que se criou entre os poderes, injustificadamente, porque bastaria o Legislativo cumprir seu papel, inclusive de correção do Supremo, porque quem julga os crimes de responsabilidade dos ministros do STF é o Senado e nós podemos nos indagar se já não cometeram crime de responsabilidade e se o Senado não deveria ter tomado alguma iniciativa em relação a essa matéria.

Não é um poder, são todos os poderes. Assistimos o Legislativo praticar atos que censuramos, existe o hábito de xingar os parlamentares, dizer que são safados, ladrões. Não vou dizer que não tenha, mas também tem muita gente digna, honesta lá dentro. Não há uma valorização de quem precisa ser valorizado. Vou dar o exemplo de uma conduta típica: quando alguém age mal, metemos o pau, quando alguém age bem, ficamos quietos. Durante boa parte da minha vida não dizia nada a respeito de política, achava que quem fosse da área jurídica não deveria escrever em jornal, só em revista jurídica. Durante o governo do Fernando Henrique Cardoso os desmandos foram tantos e o apoio era tão forte que mudei a minha atitude. Passei a escrever, na Folha à época, para criticar o governo. Não gostava de escrever porque pensava que era uma forma de ficar conhecido, de arregimentar clientela, o que não é eticamente aceitável. Mas quando vi que ninguém criticava o Fernando Henrique, tirando eu, o Dalmo Dallari e o Fábio Comparato em São Paulo, que é um estado muito grande, e o Paulo Bonavides no Nordeste, estes que são os que me ocorrem, não tinha quase ninguém.

Foi por isso que comecei a escrever, e veja minhas reservas em relação à imprensa… Na Europa, você vai à França e no hotel tem dois jornais, o Le Figaro, de direita, e o Le Monde, de esquerda, e lendo qualquer um dos dois você fica bem informado, porque têm um viés, mas não distorcem. Aqui não.

Fórum – Mas boa parte dessa situação de parte da imprensa no Brasil, em especial no caso da TV e do rádio, não tem a ver com a falta de um marco regulatório de comunicação e de ações que incentivem a democratização na área. Pouco ou nada se avançou nos governos Lula e Dilma nessa questão.

Bandeira de Mello – Os governos têm medo da imprensa, o que é uma coisa pavorosa. Nesse ponto, admiro Cristina Kirchner, da Argentina, que se comportou com coragem, aqui no Brasil ninguém tem coragem de enfrentar os meios de comunicação e, quando se enfrenta, dizem que você é louco. Uma vez, em um seminário em Minas Gerais do qual participei, dei os nomes aos bois, e um sujeito estava assistindo ao lado da minha mulher e comentou: “esse homem é louco!”. É verdade, no Brasil, se você dá nome aos bois, é considerado louco. Como se fala contra um ministro do STF? Você tem medo, se é advogado. E já tenho dois ministros que não podem gostar de mim, um é o Gilmar [Mendes], e o outro é o presidente do Supremo [Joaquim Barbosa]. Mas a maior parte deles não me tem animosidade comigo, segundo me dizem, sou um dos juristas mais citados no STF, são só esses dois mesmo.

Com o presidente do Supremo, já tive um relacionamento episódico, mas muito afável, logo que ele entrou. Ele sofre desse problema da coluna e minha mulher também sofreu muito por conta disso. Uma vez, ela o viu andando na calçada perto de nossa casa, já que ele ficava hospedado em hotel próximo quando vinha a São Paulo, e, como estava tratando com uma pessoa que começava a dar um jeito na situação dela, achou que era muito egoísmo não dizer nada para ele. Se apresentou, ele disse que já nos conhecia de nome, e minha esposa o convidou para jantar conosco. Ele foi dias depois e tive uma impressão muito boa, mas depois ele me decepcionou.

Na vida, as coisas mudam, por exemplo, a ministra Carmem Lúcia, conheço desde menina, quando estudante de Direito. Imaginava que ela votaria de certo modo no Mensalão, e não votou. Para mim foi uma surpresa. Até porque fui presidente do Instituto de Defesa das Instituições Democráticas, e quem sugeriu sua criação foi ela, que fez o estatuto e também sugeriu que eu fosse o presidente. Imaginava, por uma similaridade posições, que decidiria de um modo, mas não aconteceu… Só o [Ricardo] Lewandowski, que é um dos que veio de tribunal, foi presidente do tribunal daqui. Nunca tive com ele um relacionamento próximo, mas o admiro profundamente, é um juiz corajoso, independente, sofreu… Nossa, esse homem sofreu o diabo! Mas faltou energia ao Supremo. Lembra quando o Eros Grau e a Carmem Lúcia trocaram e-mails e um jornalista flagrou? Aquilo é invasão de privacidade, e ele saiu gloriosamente.

A meu ver, a imprensa julgou e eles só referendaram. Os ministros não tiveram coragem de enfrentar a imprensa. Houve violações ao direito, como a supressão de duas instâncias, o que é inadmissível. Só poderiam ser julgados diretamente os que tinham mandato, o Marco Aurélio inclusive foi contra isso, era a favor do desdobramento. Outra falha gravíssima foi a condenação sem provas, que é a coisa mais inominável que existe. Zé Dirceu foi condenado sem nenhuma prova. Nenhuma, não existia nada contra ele. O próprio Genoino foi condenado, a meu ver, sem ter razões, e muitos outros… Passaram um borrão em cima da Justiça, e confesso que fiquei chocado, nunca havia visto algo semelhante, e olha que sou formado em 1959, mas nunca vi nada semelhante.

Fórum – Nesse caso, o senhor não acha que a imprensa trabalhou com algo que ela própria estimula, que é a cultura punitiva, ou seja, ocorre algo e ela já quer ver alguém na cadeia.

Bandeira de Mello – Isso existe, mas cresceu muito nos últimos tempos em relação aos políticos. Como disse anteriormente, nós, para criticar, somos ótimos, e para homenagear, somos péssimos. Quando Marco Aurélio, lá atrás, no começo do seu mandato, começou a julgar sozinho, falei para a minha mulher que tínhamos que reconhecer, e mandei um telegrama a ele. Temos que apoiar as pessoas que achamos que agem certo. Com o Lewandowski, agora, eu não tinha amizade nenhuma e telefonei mais de uma vez manifestando minha solidariedade e meu apoio. O cara fica sozinho. Não quero entrar em minúcias, mas a solidão que esses caras têm no começo, quando ninguém dá a mão, é terrível. Depois o tempo passa, melhora, mas acho o Supremo um dos piores lugares da Terra. Jamais aceitaria ser ministro.

Fórum – O senhor já foi sondado?

Bandeira de Mello – Não. Mas nunca aceitaria. Primeiro porque não tenho coragem de ser juiz, fui indicado para o Tribunal de Alçada de São Paulo quando tinha 35 anos, consegui escapar na última hora. Não quero ser juiz, não tenho coragem, sou sincero. Mais vale ser sincero. Nunca botaria um cara na cadeia, até porque a pena é muito pior do que a cadeia. Nunca poderia. Isso em matéria penal, mas mesmo em matéria civil, de família… Prefiro não estar nessa.


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