terça-feira, 11 de março de 2014

Ministro, que justiça é essa?


Por Agassiz Almeida


Na salvaguarda dos direitos fundamentais do cidadão, entidades nacionais e internacionais atuam há meses para que o Conselho Nacional de Justiça, do qual Vossa Excelência é presidente, enfrente o desafiador problema do sistema penitenciário do Brasil em que se amontoa um verdadeiro rebanho humano de 500 mil condenados ao inferno, e por cujos labirintos trevosos até os ecos lancinantes de Dante na Divina Comédia se perderiam. A ditadura militar assassinava nos porões dos quartéis, atualmente se degrada nas masmorras das penitenciárias.

Qual a sua posição, senhor ministro, frente a estas tragédias humanas? Total indiferença, como a daquele abutre do Atacama ante os gritos desesperados de milhares de atobás. Envergonha o país perante o mundo coonestar com estas infames misérias morais.

Numa trombada entre a realidade gritante de um regime penitenciário selvagem e o seu absolutismo togado, Vossa Excelência vai a Paris e lá derrama inconsequente verborreia defendendo as transmissões televisivas das sessões do STF, confundindo publicidade com exposição midiática. Não! O mandatário de um poder não é senhor das circunstâncias, mas o seu arbítrio.

Na sua volta daquela capital, no aeroporto do Galeão, em face do deputado João Paulo Cunha não ter sido preso, ouviu-se de um verdadeiro Herodes, sátrapa do Império Romano, um berro e este bordão: Dos condenados das galés romanas aos da Papuda todos se equiparam. Assim, certos vultos se transvestem de uma volúpia doentia a provocar terror bestial. Olhemos por trás das luzes da ribalta esta ópera bufa midiática. O que encontramos? Um tragicômico dramalhão. Cinismo deslavado a tripudiar no direito e na vida dos direitos e malbaratar a justiça como uma desassossegada megera.

Indigna-nos a parafernália que este festival de desencontros provoca na nação. Há algo de enigmático nos bastidores deste maquiavélico julgamento. Onde estavam Vossa Excelência e os atores que comandam este novelão quando o fardo da ditadura militar desabou sobre o país? Calados como certos desavergonhados personagens de Rabelais, e alguns até ajoelhados perante a tirania fardada. O todo-poderoso senhor do poder togado desfechou os seus raios fulminantes em direção a este amedrontado Henrique Alves, que nada preside a não ser entregar cabeças de parlamentares na bandeja para serem devoradas por esta fúria negra Quetzalcoatl, deus dos astecas e das almas aterradoras.

Ponha-se de pé, senhor deputado, e repila o chicote.

Contra o caos degradante que assola a nação, antepomos a ideologia dos desafios sob cuja legenda olhamos o mundo. Que vulto se investe como imperioso da lei? Mergulhemos no terrível tribunal da Inquisição do Santo Ofício nos séculos XV e XVI. Lá está possuído de uma alegria macabra e masturbadora o inquisidor-mor Tomás de Torquemada a ouvir sadicamente os enlouquecidos gritos dos condenados na fogueira.

Que personalidade é esta que preside o STF? Um Torquemada carregado de ódio ou um temível soba egresso das sinistras noites africanas como preador de negros para o tráfico nos tumbeiros, e cujos gritos de horror Castro Alves pranteou em imortal poema:

Deus, oh Deus, onde estás que não respondes? Há dois mil anos te mandei meu grito.

A pior tirania é a togada. Em nome da justiça despedaça o direito e a vida dos povos, instrumentalizada na lei renega a verdade e desordena normas processuais. Nesta babel erige um soberbo Catão do moralismo público.

Que justiça é esta que faz de uma corte constitucional um tribunal penal?

Que justiça é esta que renega o princípio da individualidade da pena, já defendida por Cesare Beccaria no século XVIII? Que desconhece os antecedentes dos réus lançando no mesmo processo, resistentes à ditadura militar e larápios de bancos? Enfim, que faz de peças processuais peças teatrais.

Que justiça é esta que, cega de paixão, desconhece os motivos e causas do crime, princípio primário da justiça criminal? Que leva de roldão a competência ratione funcionae e faz rolar no mesmo caldeirão dezenas de acusados?

Que justiça é esta que concede o passaporte da impunidade aos Maluf e aos torturadores e genocidas da ditadura militar, enquanto nos outros países estes tipos de criminosos estão na cadeia?

Que justiça é esta em que o próprio tribunal julgador incita ao linchamento público de réus, quando permite a transmissão ao vivo pela TV das sessões de julgamento? E a defesa dos condenados? Que se dane, assim determina a mídia. Isto violenta o direito natural e a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Cesse este megashow incompatível com o verdadeiro ideal de justiça. Com que se depara a nação? Um festival de ignomínia em que condenados desfilam as suas angústias em milhões de aparelhos televisivos. Isto não é justiça, mas a nau dos destroçados a navegar entre o imponderável e os interesses escusos. O que significa toda esta orquestração cretina da qual irrompem jatos diários de publicidade, frente aos quais a justiça se esfarrapa e um fariseu com a cara de Catilina romano se glorifica? Basta, senhor ministro! Isto não é julgamento, mas linchamento moral.

Ouçamos os sinais do tempo, assim falavam os incas.

Quando cessarem as fanfarras midiáticas e os falastrões de uma justiça rocambolesca se amiserarem e desertarem de cena, que fiquem estas palavras: A história, a verdadeira mater et magistra dos homens e das circunstâncias falará no amanhã dos tempos.

Saudações democráticas



Obs.: Agassiz Almeida é escritor, ativista dos direitos humanos, ex-deputado federal constituinte, autor das obras: ”500 anos do povo brasileiro”, "A república das elites”, "A ditadura dos generais” e lançou recentemente "O fenômeno humano”. É considerado pela crítica como um dos grandes ensaístas do país.



FONTE: Adital

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