Com o acirramento das disputas econômicas e ideológicas, devemos nos perguntar: o que queremos das nossas escolas?
Por Anaíra Lobo e Carolina Guimarães
A Escola Técnica em Agroecologia Luana Carvalho, é uma iniciativa do MST, cujo projeto pedagógico e manutenção são uma experiencia de organização coletiva - Arquivo Escola |
Neste mês de março, o Brasil de Fato Bahia estreia o encarte especial ‘Diálogos’ que tem como objetivo convidar você, leitor, leitora, a refletir conosco sobre alguns temas fundamentais para a construção da sociedade na qual gostaríamos de viver. Não temos a pretensão de oferecer as saídas ou respostas prontas, mas vamos colocar algumas perguntas que acreditamos serem pertinentes; nesse sentido, estreamos com o tema da Educação Pública, que não é somente um direito essencial, mas base de transformação, desenvolvimento e consolidação de uma sociedade mais justa e democrática. Nas próximas edições discutiremos também o direito à Terra, à Água, ao Alimento, à Saúde, ao Emprego e outros mais.
No final do ano passado, uma pesquisa Datafolha revelou que cerca de 70% da população brasileira defendia a total gratuidade do sistema educacional, da creche à universidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece que a educação é um direito social e é dever do Estado proporcionar os meios para o seu acesso. Esse dever está regulamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que afirma que o Estado brasileiro é responsável pela Educação Básica, que inclui a pré-escola, o ensino fundamental e o ensino médio. Todos esses dados parecem indicar que existe um consenso sobre a importância da educação e a quem cabe provê-la, mas não é assim que tem acontecido na prática.
Apesar de, em 2014, a então presidenta Dilma Rousseff ter sancionado o Plano Nacional de Educação (PNE) – fruto de amplo debate e mobilização da sociedade civil e das entidades ligadas ao setor – que objetiva ampliar o acesso e melhorar a qualidade da educação no país, existe uma imensa dificuldade em garantir o seu cumprimento. O PNE estabelece 20 metas educacionais a serem cumpridas ao longo de 10 anos, porém, um estudo realizado em 2019 pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, revelou que 16 delas estavam estagnadas e apenas 04 foram parcialmente cumpridas. Metas, por exemplo, sobre taxas de alfabetização, universalização do acesso à pré-escola e formação de professores não atingiram os índices desejados. Agravando esse cenário, a diminuição progressiva do investimento público imposta com a aprovação da Emenda Constitucional do teto de gastos, em 2016, a atual política de asfixia financeira, tanto na educação básica quanto na superior, e o clima de intimidação com os profissionais da educação, acusados de “doutrinadores”.
Foi a partir dessas inquietações, que a reportagem conversou com as professoras Uilma Amazonas, Marta Lícia de Jesus e Zuza Jaegermann buscando traçar um panorama sobre quais os desafios, contradições e propostas que elas enxergam para a educação brasileira e baiana, a partir de suas diversas vivências. Docente da Faculdade de Educação da UFBA, a professora Uilma atuou no Programa de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR); Marta Lícia, também do quadro da Faced/UFBA, trabalha com formação de professores e políticas educacionais, além de ser dirigente do Sindicato de professores das instituições federais de ensino superior da Bahia (Apub); a professora de sociologia, Zuza é educadora do Movimento Sem Terra (MST) e membro da coordenação coletiva da Escola Técnica em Agroecologia Luana Carvalho, uma iniciativa do Movimento cujo projeto pedagógico e manutenção são uma experiência de organização coletiva. As educadoras opinaram sobre o papel da educação na formação humana e social, as disputas em torno dos conteúdos e do que pode ou não ser ensinado na escola, a desvalorização da carreira docente e as dificuldades de financiamento, hoje, focadas no debate em torno do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), em discussão na Câmara Federal.
Quem ensina?
A Meta nº15 do PNE visa garantir que até 2024 “todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam”. De acordo com o Observatório do PNE, em 2018, esse índice era de 79,9% no Brasil e 67,2% na Bahia, ou seja, ainda persistem professores sem formação específica atuando nas salas de aula. A melhoria desse índice passava pelo Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), um programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), uma fundação ligada ao Ministério da Educação. O Programa articula as Universidades Públicas e as secretarias de educação dos estados para atender às necessidades de formação de professores. No site da CAPES, o último edital do Parfor é de 2018. “A gente considerava que [o Parfor] conseguia dar um salto qualitativo na ideia de formação de professores, articulado nacionalmente com as metas e, principalmente, fechando a relação dos professores que atuam na escola pública serem formados em universidades públicas”, explica Marta Lícia. “E depois diz que quer valorizar a educação básica...”, diz Uilma. E continua: “acabar com essa política de formação de professor vai reduzindo mesmo o alcance dessa qualidade na educação básica. Porque, por exemplo, a Bahia ainda tem professores sem formação atuando em sala de aula, então por que desativou o programa? Que avaliação fez? Teve uma época que a gente garantia que na cidade de Salvador não tinha um professor em sala de aula que não tivesse formação superior... acabou, hoje a gente perdeu isso”, lamenta. E Marta completa: “e aí você deixa de pensar na melhoria salarial dos professores, de uma forma geral para pensar bônus a partir de critérios estabelecidos por planejadores que não conhecem a diversidade e chão da escola”.
Marta Lícia, também do quadro da Faced/UFBA, trabalha com formação de professores e políticas educacionais/ Carolina Guimarães |
Quem financia?
Atualmente, a principal política de financiamento para Educação Básica, que foi resultado dos movimentos sociais ligados à educação, é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), formado por recursos provenientes dos impostos e transferências dos estados, distrito federal, municípios e com complementação da União. Antes Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), o Fundeb entrou em vigor em 2007 e avançou no sentido da ampliação do direito à educação, a partir da compreensão de que o poder público era responsável por mais de uma etapa do sistema educacional. “[Antes] era responsabilidade do Estado apenas o ensino fundamental de 8 anos. O estado brasileiro não queria saber nem de alfabetização, nem de educação infantil nem de Ensino Médio”, reflete Uilma.
Professora Uilma é docente da Faculdade de Educação da UFBA e atuou no Programa de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR)/ Anaira Lobo |
Com a Proposta de Emenda à Constituição 15/2015, atualmente em tramitação, se objetiva tornar o Fundo em uma política de Estado, já que este tem validade até dezembro deste ano, e aumentar e o valor oriundo da União, que hoje é de 10% do valor correspondente à contribuição total dos estados e municípios. Apesar da importância da PEC para garantir o financiamento da educação, há críticas sobre o texto que recua em diversos aspectos na concepção desta política. O relatório da Comissão que analisa a PEC teve forte influência do lobby de empresários da educação privada e apresenta pontos problemáticos como a inclusão do Salário Educação – que é uma fonte extra de recursos para o sistema educacional – ao valor total do Fundo, a fragilização do Custo Aluno Qualidade (um dispositivo que calcula o investimento necessário por aluno), que seria regulamento através de Lei complementar e vinculação da transferência de recursos a resultados aferidos a partir de um sistema de avaliação geral, implantando uma “meritocracia” que desconsidera as desigualdades regionais. “Todo mundo precisa melhorar, a educação é um projeto de nação, a escola pública precisa melhorar, mas a polêmica é que eles querem introduzir uma competição na educação pública, mas o sistema não considera a diversidade”, diz Marta”.
Outra meta fundamental para a garantia do financiamento, a nº 20 do PNE, estabelece a ampliação do investimento público em educação de forma a atingir o equivalente a 10% do PIB até 2024, está praticamente inviabilizada com o teto dos gastos. Anterior a isso, em 2013 foi aprovado também a destinação para a área de 75% dos royalties do petróleo e 50% do chamado Fundo Social do Pré-Sal, outra lei também ameaçada pelos leilões das bacias do minério e com o acelerado desmonte da Petrobras.
Políticas que tratavam de modalidades ou grupos sociais mais específicos estão, quando não extremamente ameaçados, sendo extinguidos. É o caso do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), que através do decreto nº 20.252 de 20 de fevereiro de 2020 extingue a Coordenação responsável pela Educação do Campo da estrutura do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). “Essa relação com o poder público é construída a base de pressões, negociações e luta constante para conseguir garantir realmente o direito à educação pública. O descaso do poder público praticamente determina o fechamento das escolas do campo, todo início de ano começamos sem equipe, sem serviços gerais, sem merenda, sem livro, sem material didático. A gente demora meses para conseguir o básico que garante o direito, se não fosse a comunidade que cola junto para poder ajudar a limpar a escola, para fazer a merenda, para trazer alimento, se não fosse a equipe de educadoras militantes que doam força do trabalho todo ano e ao longo do ano, realmente isso não seria possível”, afirma Zuza.
Após 5 anos de mobilização, a Escola atua na Educação Básica, e conta com uma parceria da Universidade Estadual da Bahia na promoção do ensino pré-universitário/ Arquivo Escola |
Quem decide o que ensinar?
Ainda que as escolas tivessem o financiamento adequado, o debate em torno da educação não deixaria de passar pelo que muita gente chama hoje de “pauta ideológica”. A discussão em torno do “conteúdo” a ser ensinado nas escolas não é nova – foram anos necessários para a aprovação, em 2018, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), um documento que norteia a formulação dos currículos escolares por todo o país, estabelecendo as competências e habilidades mínimas que os estudantes devem desenvolver. Apesar de um avanço, a BNCC não escapou das disputas sobre o que a escola “pode” ou “não pode” falar, como questões de gênero e diversidade – no final de 2017, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação denunciou à ONU os efeitos do projeto “Escola Sem Partido” e a retirada, imposta pelo governo Temer, dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” do texto da BNCC.
A Reforma do Ensino Médio, priorizando a carga horária de português e matemática, foi outra demonstração de uma visão conservadora para a educação. Hoje, o governo Bolsonaro aprofunda essa disputa com a narrativa da “doutrinação de esquerda” em sala de aula e uma suposta necessidade de proteção das crianças e jovens de uma educação “ideológica” – como se alguma neutralidade fosse possível nesse caso. “Essa discussão vai resvalar na mudança da política da definição dos livros didáticos e incidir diretamente no conteúdo da formação de professores. Isso tem a ver com conteúdos não só de Direitos Humanos, mas conteúdos identitários que vão, na verdade, conformar o nosso tipo de memória em relação a quem somos e quem desejamos ser, com projeto de nação”, aponta Marta referindo-se ainda ao momento de revisionismo em relação a temas da história nacional, como escravidão e ditadura militar, por exemplo. Importante ressaltar que essa discussão “ideológica” não está dissociada da econômica – o mercado da produção de livros didáticos movimenta, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) cerca de R$ 2 bilhões ao ano.
Zuza é professora de sociologia e educadora do Movimento Sem Terra (MST)./Arquivo Escola |
E quais as alternativas? A professora Zuza reflete a partir da experiência da Escola Luana Carvalho, que funciona desde 2015 após a ocupação do prédio destinado à escola por famílias camponesas que colocaram em prática a rotina escolar junto com os educadores e educadoras do MST. “A gente percebe que quanto mais conseguimos envolver os educadores nesse projeto Político e Pedagógico (PPP) da escola do campo, mais a gente fortalece o coletivo e tem a mínima autonomia. A partir disso, a gente consegue construir experiências e elas precisam se traduzir em documentos formais, como o PPP, que possa servir como arma mesmo, como ferramenta de combate e negociação com o poder público”, diz. Para a professora do MST, há ainda brechas para trabalhar um conteúdo contextualizado ainda que tenha que dialogar com a Base. “Temos algumas experiências, como no extremo sul da Bahia onde a questão da agroecologia conseguiu ser inserida”. Após 5 anos de mobilização, a Escola atua em toda a Educação Básica e conta com uma parceria da Universidade Estadual da Bahia na promoção do ensino pré-universitário. “A gente tem vários desafios nessa transição de uma escola tradicional para uma escola emancipatória, democrática, libertadora, que forme a pessoa de maneira plena”, afirma Zuza. Para Marta, é preciso desconstruir a ideia de que a ampliação da participação e convivência com a diversidade prejudicaria a disciplina, a ordem necessária ao ambiente escolar. “Tem que ter disciplina para participar, tem disciplina para ter uma escola democrática. Olha, se alfabetiza sim, passa na universidade sim, entende? Sem com isso perder o seu processo de humanização, sem com isso perder sua capacidade de criticar a sociedade que está aí, sem com isso perder a capacidade de saber a que classe você pertence e que tipo de luta você vai ter que empreender”.
Edição: Elen Carvalho
FONTE: Brasil de Fato
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