Bernardo Mello Franco e Fernanda Godoy – Em entrevista ao GLOBO, antropólogo diz que Bolsonaro tem ‘obsessão primitiva’ com exploração de terras indígenas. Para ele, missionários buscam ‘desconectar’ povos de sua cultura.
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro avalia que a escalada do desmatamento e a pressão sobre povos indígenas piorou após a eleição de Jair Bolsonaro
Numa palestra recente, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro disse que governar é criar desertos. Ele usou a metáfora para descrever a relação dos donos do poder com o meio ambiente. “Quem já andou pela Amazônia sabe que a grande realização de todo prefeito é derrubar as árvores e cimentar a praça”, comenta.
Crítico de obras faraônicas da ditadura militar e dos governos petistas, o professor da UFRJ considera que a situação ficou ainda pior desde a posse de Jair Bolsonaro. Ele atribui a escalada do desmatamento a uma aliança da gestão atual com os setores mais atrasados da economia, que derrubam a floresta para plantar soja e extrair minério. O avanço das motosserras tem aumentado a pressão sobre os povos indígenas, que o antropólogo estuda desde a década de 1970. “O que eles querem é acabar com os índios no Brasil”, afirma.
Há muito tempo não se falava tanto em ameaças aos índios no Brasil. Por quê?
Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas. O grande capital quer as terras, e os evangélicos querem as almas.
Existe uma frase famosa atribuída a um índio americano: “Nós ficamos com a Bíblia e vocês ficaram com a terra”. Os grandes interesses econômicos, que sempre tiveram a posse do Estado, agora se uniram ao fundamentalismo religioso. Isso é uma coisa relativamente nova no Brasil. E muito preocupante.
Onde o governo entra nisso?
Este governo tem três braços: o econômico, o religioso e o militar. Os militares veem os índios como ameaça à soberania. Os evangélicos tratam os índios como pagãos que devem ser convertidos. E o grande capital quer privatizar ao máximo o território brasileiro, o que significa reduzir as reservas ecológicas e as terras indígenas.
O projeto é abrir novas áreas para o extrativismo mineral e derrubar mais floresta para abrir pasto e plantar soja.
O Brasil está retomando sua vocação de colônia de exportação de produtos primários. Tivemos o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro, o ciclo do café e o ciclo da borracha. Agora temos o ciclo da soja e da carne.
Bolsonaro nomeou um missionário para o setor da Funai que cuida dos índios isolados. O que isso significa?
Os cristãos fundamentalistas acreditam que é preciso converter até o último pagão, e os índios isolados são os clientes ideais para esse projeto.
O objetivo dos missionários é desconectar os índios das suas condições culturais e materiais de existência. Isso significa separar os povos deles mesmos. Destruir o que há de indígena nos povos indígenas.
"Há uma ofensiva econômica e religiosa contra os povos indígenas", afirma Viveiros de Castro. Foto: Ana Branco/ Agência O Globo |
É um projeto especialmente sinistro porque está ligado a um programa econômico de desterritorializar os índios para permitir a entrada da mineração. Os missionários são fanáticos, mas os estrategistas do Estado não são.
Desde 1987, a política oficial da Funai era evitar o contato e garantir a proteção dos índios isolados. Essa política sempre foi combatida pelos missionários. Agora também passou a ser combatida pelo governo.
Como vê as declarações do presidente sobre os índios?
São declarações racistas e repugnantes. Essa história de que o índio “está evoluindo” e “cada vez mais é um ser humano igual a nós”… Bolsonaro faz declarações racistas e xenófobas, na medida em que trata os índios como se fossem estrangeiros. Essas falas estimulam a a violência, como se fossem uma licença para matar.
O Brasil tem um governo que declarou guerra aos povos indígenas. O governo Bolsonaro vê os índios como um obstáculo, como algo que precisa acabar. Os governos anteriores nunca atacaram os índios dessa forma.
Qual é o projeto de Bolsonaro para os povos indígenas?
Ele não tem projeto nenhum. Quem tem um projeto é o grande capital, que usa o Bolsonaro como uma espécie de leão de chácara.
O horizonte intelectual do Bolsonaro vai até a bateia do garimpeiro. Ele tem um imaginário do Velho Oeste, uma obsessão primitiva com a ideia de ficar rico com o ouro.
Este é o governo da terra arrasada. Querem desescrever a Constituição de 1988, que não é nenhuma maravilha, mas representou um grande avanço na conquista de direitos e na proteção dos índios.
Por que os militares veem a demarcação de terras indígenas como ameaça à soberania?
Os militares vivem na paranoia de que o Brasil está sob ameaça perpétua de invasão. No plano econômico, a internacionalização da Amazônia já aconteceu há muito tempo, mas eles não dão a mínima.
Como vê os ataques do Planalto a ONGs ambientalistas?
Existem ONGs de todos os tipos, mas o governo só ataca as que difundem práticas de justiça ambiental e social. E esses ataques agradam aos militares, que sempre se viram como donos do território nacional.
O senhor também fez críticas duras aos governos Lula e Dilma. Qual a diferença entre as gestões do PT e a atual?
Fui muito crítico ao modo como os governos Lula e Dilma concebiam o desenvolvimento econômico. A construção da usina de Belo Monte foi uma monstruosidade, uma iniciativa criminosa. Sem falar nas interações bizarras entre os governos do PT e as empreiteiras.
Apesar de tudo, o que estamos vivendo hoje é muito pior. Antes você já tinha garimpeiros invadindo terras indígenas, mas a Polícia Federal ia lá e tentava retirá-los. Agora o governo quer destruir a Funai e incentivar o garimpo.
O que nós temos hoje no Brasil é um projeto de destruição. Bolsonaro já disse que não chegou para construir, e sim para derrubar.
Outra coisa sinistra é a relação do poder com os porões da ditadura, com um submundo que emergiu. Vivemos num país em que a distância entre a milícia e o governo se tornou infinitesimal, para usar um eufemismo.
Como define o espírito deste governo?
O sentimento predominante no governo e em sua base de apoio é o ressentimento. Ele se manifesta nos ricos que não toleram ver a empregada indo à Disney e nos pobres que pararam de ascender socialmente por causa da crise.
O Brasil é um país que não aboliu a escravidão, um país racista. A frase do Paulo Guedes sobre as empregadas indo à Disney pertence ao universo moral da escravidão.
As classes dominantes do Brasil sempre foram eficazes em manter o povo num estado de abjeção intelectual. Darcy Ribeiro já dizia que a crise da educação não é uma crise, é um projeto.
A incapacidade de aceitar as diferenças também produz ressentimento. O sujeito olha em volta e diz: “Este cara é gay, não quer viver como eu”. Então ele pensa que tem que curar o gay, tem que acabar com o índio.
Isso gera um processo de etnocídio, no sentido mais amplo da palavra. Estamos assistindo a um etnocídio geral no Brasil, uma tentativa de exterminar tudo o que não é parecido com quem está no poder.
Por que o ressentimento virou uma arma tão poderosa para políticos populistas?
Isso é um fenômeno mundial. Tem a ver com a ideia de que o mundo em que nós vivemos está acabando. Com a emergência climática, o futuro próximo se tornou imprevisível. E a sensação de que as coisas estão saindo do eixo produz uma insegurança existencial enorme.
Nós imaginávamos que a História iria conduzir o Ocidente a um mundo cada vez mais secular. E o que se vê é um retorno da religião e do fundamentalismo, que estão ligados a esse sentimento de pânico.
https://oglobo.globo.com/brasil/eduardo-viveiros-de-castro-governo-declarou-guerra-aos-indios-24251561
FONTE: Controvérsia
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