terça-feira, 10 de novembro de 2015

Enem, Educação, Hipocrisia




Grita contra "feminismo" no exame revela: Brasil consagra Direitos Humanos em dezenas de pactos,
mas rejeita-os na prática quando se trata de defender grupos vulneráveis



Por Mariana Vilella, Renata Ferraz e Vanessa Pinheiro *


Em 25 de outubro, o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM teve como tema de redação: “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Em uma tarde, milhões de jovens brasileiros viram-se instados a refletir e dissertar sobre esse tema, caro à sociedade, dados os alarmantes números da violência doméstica, sexual, psicológica, obstetrícia, dentre outras, que atingem a mulher brasileira. A escolha gerou polêmica.

Muitos mostraram-se contrários ao tema e, ainda, criticaram o MEC por conta de um viés feminista. A hashtag #enemfeminista foi criada e imensamente utilizada por defensores e críticos da prova.

O Enem foi ideológico? Foi de esquerda? Foi correto? As avaliações devem medir critérios como respeito aos direitos humanos ou capacidade de refletir sobre os problema políticos e sociais nacionais?

O perigo é pensar que começamos essa conversa do zero. Achar que essa seja uma questão nova. É claro que a democracia pressupõe a possibilidade de refletirmos sobre as escolhas que o país fez e faz. Mas saber de onde partimos e com o que já nos comprometemos é fundamental.

Quanto ao tema da redação do ENEM, é preciso saber, em primeiro lugar, que a violência contra a mulher é, hoje, reconhecida nacional e internacionalmente como um tipo de violação contra os direitos humanos

Os direitos humanos, por sua vez, são reconhecidamente um tema pertinente à educação básica, que tem como uma de suas funções primordiais formar cidadãos. Isso nada tem a ver com partidarismo, mas com o reconhecimento de que os mais importantes agentes na defesa de uma sociedade democrática, em que o povo é soberano, é o próprio povo, que deve saber que possui direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, ou seja, direitos humanos afirmados e insusceptíveis de retrocesso.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, da qual o Brasil é signatário, já afirma o compromisso das nações de promoverem o respeito aos direitos humanos por meio do ensino e da educação. A participação da educação na consolidação de uma sociedade de paz é tão fundamental à Declaração Universal da ONU que vem exposta em seu preâmbulo, ou seja, antes dos direitos em si, como pressuposto de um país comprometido com os princípios que o texto elenca. A ONU, portanto, já reconhecia em 1948: lei sozinha não garante uma sociedade livre e justa. É também pela educação que se desenvolve o respeito aos direitos e liberdades formalmente consagrados.

No Brasil, o debate sobre os direitos humanos e a formação para a cidadania alcançou mais espaço a partir dos anos 1980 e 1990, por meio de ações governamentais e da sociedade civil visando ao fortalecimento da democracia.

O marco desse movimento é a Constituição Federal de 1988, que formalmente consagra o Estado Democrático de Direito e reconhece, entre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana e os direitos da cidadania. Desde a Constituição, o Brasil ratificou os mais importantes tradados internacionais (globais e regionais) de proteção dos direitos humanos.

No campo da educação em direitos humanos, a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei Federal n° 9.394/1996) afirmam o exercício da cidadania e conhecimento dos direitos e deveres como uma das finalidades da educação.

Ainda, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), lançado em 2003, apoiou-se em documentos internacionais e nacionais para inserir o Brasil na “Década da Educação em Direitos Humanos”, prevista no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH). Hoje, “a prevalência dos direitos humanos” integra as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica.

No ano passado, após ampla participação da sociedade civil, o Brasil aprovou, ainda, o Plano Nacional de Educação, que estabelece metas para a educação brasileira para os próximos dez anos e tem como uma de suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Ainda assim, em muitos Estados e Municípios, a menção à igualdade de gênero tem sido extremamente polemizada, em muitos casos chegando a ser excluída dos planos municipais e estaduais de educação, embora não seja questionada a ideia de uma educação para exercício da cidadania.

O que isso nos mostra é que a afirmação dos direitos humanos é aceita em termos abstratos, mas rejeitada quando se volta à proteção de grupos que sofrem violações específicas. Na prática, isso significa que temos mais facilidade em aceitar o discurso dos direitos humanos do que a sua efetivação.

O que sabemos, no entanto, após tantos anos da Declaração Universal de 1948, é que a efetivação de direitos universais passa pela compreensão e capacidade da sociedade em identificar e proteger grupos que têm seus direitos violados de formas particulares, como mulheres, negros, minorias religiosas, jovens, idosos, crianças. A educação, de acordo com todos os fundamentos citados, tem o dever de contribuir para essa compreensão.

Quanto ao tema da redação do ENEM, cumpre dizer que, dentre os objetivos balizadores do Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos está justamente o fomento à igualdade de gênero, porque a questão de gênero ainda é uma das maiores fontes de injustiça social, aqui e no mundo. Dentre os tratados internacionais assinados pelo Brasil de proteção dos Direitos Humanos estão a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, no âmbito global, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, no âmbito regional.

Este ano, a ONU também lançou a campanha Global Goals, que elenca 17 metas globais a serem percorridas por todas as Nações nos próximos 15 anos. A meta de número 5 é o combate à desigualdade de gênero.

Em âmbito nacional, a Constituição Federal assegura o dever do Estado de proteger as pessoas que integram as famílias contra a violência doméstica. Desde 2006, com a aprovação da Lei Maria da Penha, o Brasil tem avançado nesse tema ao reconhecer a vulnerabilidade da segurança da mulher no âmbito doméstico e criando mecanismos para coibir a violência específica contra a mulher. O MEC também avançou, ao sinalizar que a questão de gênero é, sim, conteúdo a ser abordado no Ensino Médio e avaliado no ENEM.

O MEC, portanto, não inventou nada de novo, apenas deu um pequeno passo para o cumprimento de todos os compromissos assumidos nacional e internacionalmente por uma educação baseada nos Direitos Humanos.



 * Mariana Vilella, Renata Ferraz e Vanessa Pinheiro são fundadoras e educadoras do Pé na Escola, um negócio social de educação com foco em política, cidadania e direitos.



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